O Idec e os sistemas anticópia na TV digital

[Titulo original: Idec comenta anticópia na TV digital e explica porque é contra proposta]

Gravar um programa de TV para assisti-lo mais tarde. Fazer backup de seus vídeos. Tudo isso vem se tornando uma possibilidade cada vez mais comum no Brasil e em diversos países do mundo.

No entanto, essa possibilidade acaba sendo diminuída em razão das restrições tecnológicas. Ao impedir usos legítimos de obras audiovisuais, o consumidor comum é afetado enquanto muitas vezes o esforço não afeta a chamada “pirataria”.

Está hoje em discussão no Congresso a adoção de mecanismos de proteção anticópia no Sistema Brasileiro de Televisão Digital, por meio do Projeto de Lei 6915/06. O Idec não tem dúvidas de que esses mecanismos, se adotados, acabarão por prejudicar todos consumidores, além de serem contrários à nossa Constituição e à atual realidade de convergência tecnológica.

A Lei de Direitos Autorais, que cuida dos direitos do autor e também dos direitos de acesso às suas criações, permite diversos tipos de cópia. É preciso, por isso, desmistificar algumas práticas que podem, sim, ser benéficas para a coletividade.

A lógica por trás do sistema de proteção aos direitos autorais é simples: embora nem toda criação derive necessariamente de pagamento ao autor, o criador de uma obra intelectual deve ter o direito de ser reconhecido e receber remuneração pelo trabalho desenvolvido, estimulando a produção de novos trabalhos. A proteção intelectual serve como um dos estímulos a inovações e criações.

O direito de exclusividade de exploração da obra pelo autor tem tempo limitado, após o qual as obras são disponibilizadas em domínio público, possibilitando a reprodução e circulação do conhecimento independentemente de autorização.

Um sistema saudável de proteção aos direitos de autor deve equilibrar esta proteção com a possibilidade de acesso às obras protegidas por direito autoral.

Por isso existem o direito autoral e as restrições ao direito de copiar. Também por isso, existem as exceções ao direito de autor, que abrangem, por exemplo, o direito de copiar, além do domínio público.

As exceções à proibição de copiar não podem ser punidas criminalmente nem podem ensejar um pedido de indenização pelo autor. Essas exceções foram criadas justamente com o intuito de garantir o acesso de todos os cidadãos ao conhecimento, à cultura e à educação.

Em primeiro lugar, é possível copiar todas as obras que já se encontram em domínio público.

Além do domínio público, sempre será possível copiar, por exemplo, a partir da autorização expressa do autor.

Além disso, ainda que sem autorização, alguns direitos de cópia decorrem diretamente da lei. O artigo 46 da LDA limita o direito do autor, dizendo que não constitui ofensa ao direito autoral a reprodução de passagens de qualquer obra para fins de estudo e de pequenos trechos para uso privado, desde que sem intuito de lucro, dentre outras exceções.

Além dessas considerações já feitas, as restrições tecnológicas ferem princípios constitucionais e até mesmo o próprio Decreto 4.901 de 2003 que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital:

O artigo 4º do Decreto 5820/06 estabelece que o acesso ao SBTD deve ser livre e gratuito. Esse artigo justamente reflete o entendimento constitucional da televisão aberta: o artigo 155, parágrafo 2º, X, da Constituição Federal prevê que a radiodifusão sonora e de sons e imagens é livre e gratuita.

Mecanismos anticópia na TV digital tirariam das mãos do espectador diversos dos direitos previstos na própria LDA, como, por exemplo, o direito de fazer a cópia de pequenos trechos de programas, dentre outros usos legítimos e costumeiramente adotados (como o hábito de gravar um programa para assistir em outro horário).

A lei de direitos autorais é extremamente restritiva e precisa de reformas. E são inadmissíveis propostas que venham restringir ainda mais o acesso, como essa da instalação do sistema anticópia no televisor de cada cidadão, sob o argumento de que, sem isso, a TV digital seria inviável.

Uma outra consideração que podemos fazer a respeito dessa proposta de adoção de mecanismos anticópia na TV digital é com relação ao contexto atual da convergência tecnológica.

A tecnologia convergente abre novos espaços para a criação e disseminação de conteúdos que beneficiam todos os que tratam com essa nova realidade, principalmente os usuários finais, ao possibilitar a democratização do acesso a conteúdos e serviços e a ampliação de suas possibilidades de escolha.

A tecnologia anticópia impede a convergência tecnológica, porque outros equipamentos eletrônicos (celular, computador, etc) não vão conseguir acessar o sinal da TV digital se não usarem a mesma tecnologia.

Para concluir, as restrições tecnológicas, como pretendem ser os mecanismos anticópia na TV digital, afetam a possibilidade de o consumidor ter acesso à maior diversidade possível de bens e serviços.

Se implantados, o espectador não mais poderá decidir como os conteúdos serão utilizados, se, por exemplo, poderá gravar um programa para assistir depois.

É imprescindível a busca por um equilíbrio entre a legítima remuneração dos criadores e a necessidade da democratização da tecnologia e do acesso ao conhecimento, elementos fundamentais para a inclusão na atual sociedade da informação.

Não se justifica o abuso na utilização das restrições tecnológicas, sem respeitar os interesses dos consumidores, a realidade tecnológica e até mesmo os direitos de utilização concedidos à sociedade pela legislação de direito autoral, como o direito já mencionado de copiar pequenos trechos.

Sob o argumento de evitar a "pirataria", não mais se distinguirá quem copia em larga escala e com intuito de lucro (o verdadeiro pirata) daquele que reproduz uma única vez um trecho de um programa para fins privados ou educacionais, o que é permitido pela lei de direitos autorais.

O Idec não é contra o direito autoral, mas é contra normas excessivamente rígidas, que não permitem que o público tenha acesso a informação, cultura e conhecimento. Dessa forma, o Idec entende que a cópia legal pode incentivar o acesso ao conhecimento, à educação e à cultura, trazendo maior equilíbrio entre a justa e legítima remuneração dos autores e o interesse público de acesso às obras. As normas de propriedade intelectual, assim, devem também ser subordinadas ao bem público e à função social. Por essas razões, o Idec reprova a implantação do sistema anticópia na TV digital brasileira.

* Estela Guerrini é advogada do Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *