Contra os desequilíbrios na Lei de Direitos Autorais

Teve início na quarta-feira (30/7) no Rio de Janeiro o primeiro seminário do Fórum Nacional de Direito Autoral. O Fórum é uma iniciativa do Ministério da Cultura para discutir os problemas da legislação referente ao tema e propostas de mudanças. O primeiro seminário tem como tema "A Defesa do Direito Autoral: Gestão Coletiva e Papel do Estado", que visa problematizar principalmente os desequilíbrios entre autores, intermediários e o público fruidor de cultura e a situação atual do Estado nesta atividade. Além deste evento, serão realizados mais quatro seminários nacionais, um internacional e 11 oficinas regionais.

Mais do que levantar a discussão, o Ministério da Cultura está participando do Fórum Nacional de Direito Autoral com uma posição clara pela mudança na Lei de Direitos Autorais. Sobre as razões para isso e as propostas do órgão, o Observatório do Direito à Comunicação conversou com o coordenador-geral de direitos autorais da pasta, Marcos Alves de Souza.

Qual é o objetivo do Fórum Nacional de Direito Autoral?
O Fórum tem por objetivo fazer um amplo debate com a sociedade e com os interessados no campo autoral sobre a necessidade ou não de revisão da legislação bem como de revisão do papel do Estado neste setor. O Ministério da Cultura acha que é preciso mudar a Lei do Direito Autoral porque ela apresenta uma série de problemas. Também acha que o papel do Estado precisa ser diferente, porque hoje não temos papel nenhum. Mas antes de tomar qualquer atitude em relação à mudança, queremos consultar a sociedade e interessados se é isso mesmo ou não.

Quais são os problemas que o ministério vê?
Em primeiro lugar, tem uma série de problemas menores, mas que causam insegurança jurídica que estão relacionados a definições problemáticas logo no início da lei. O primeiro grande bloco de problemas diz respeito ao desequilíbrio que a lei proporciona na relação entre o criador e o intermediário, as pessoas ou empresas que investem na divulgação das obras. A parte da lei que lida com as relações contratuais permite a cessão total e definitiva de direitos, o que leva os autores a perderem o controle sobre suas obras. Recentemente, reportagens sobre os debates do lançamento do Fórum mostraram artistas, como Zé Ramalho e Erasmo Carlos, que quiseram lançar suas músicas por outras gravadoras e as editoras musicais impedindo isso porque os direitos foram todos cedidos para as editoras. É comum nas legislações uma proteção maior ao autor, vedando cessão definitiva e prevendo revisão dos contratos se houver desequilíbrio. Ela está desequilibrada pró investidores intermediários.

E o conflito entre os direitos dos autores e os direitos do cidadão ao acesso às obras culturais?
Nossa lei é uma das mais rígidas do mundo. Ela está extremamente desequilibrada do ponto de vista de quem consome obras protegidas. Direito autoral não é absoluto, está sujeito a limites, como o prazo de proteção. Mas toda legislação autoral tem uma parte que trata das limitações e exceções ao direito autoral, aquelas utilizações de obra que qualquer um pode fazer sem precisar de autorização prévia e sem ter que remunerar os detentores dos direitos. O nosso capítulo de exceções e limitações é muito restrito, ou seja, as nossas exceções estão em desacordo com nossa realidade social, econômica e cultural, tornando a lei rígida para o cidadão comum. Isso é outro problema que queremos discutir com a sociedade no Fórum.

A possibilidade de copiar trechos de obras é vista pelo MinC como uma destas restrições?
Em alguns países, existe entre as limitações (ao direito autoral) a permissão para cópia integral para uso privado. A não permissão leva a uma situação absurda de que MP3, MP4 e Ipod estão na ilegalidade do ponto de vista autoral, a não ser que as pessoas copiem apenas pequenos trechos. Como ninguém faz isso, ao copiar uma música inteira para o Ipod, a pessoa, mesmo que tenha comprado legalmente um CD, vai violar direito autoral duas vezes: a cópia para o computador e depois a reprodução para o Ipod. Isso é só uma parte, mas tem outras. Bibliotecas, arquivos e museus não podem digitalizar obras a não ser que as obras caiam em domínio público. Então, as bibliotecas se vêem impedidas de fazer cópia de segurança ou digitalizar acervos e há várias leis de outros países que permitem que se faça cópias sem demandar autorização ou remunerar para as atividades as quais se destinam.
Nossa lei prevê que para transformar livro em braile não precisa de autorização. Com esforço, você pode entender que isso estende-se para audiobook. Mas não tem nada que garanta direitos ao deficiente auditivo. Já houve quem reclamasse no ministério de que a tradução para Libras (Língua Brasileira de Sinais) é uma violação de direito autoral, porque se estava traduzindo uma obra protegida. Isso torna este capítulo anacrônico. As limitações para usos educacionais são muito restritas. Tratam apenas de "apanhados de lição", mas este termo gera uma interpretação muito dúbia.

Ainda em relação ao acesso, tem havido um debate forte sobre restrições tecnológicas a cópias na TV digital. Há um Projeto de Lei com esta medida tramitando na Câmara e recentemente a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) colocou em consulta pública normas com este tipo de proteção. Como o ministério tem se posicionado diante disso?
Estes mecanismos anticópias não existem só para TV digital, mas também para Internet, TV e DVD. A posição do ministério é radicalmente contra a existência disso no Brasil. Os mecanismos de proteção tecnológica são de dois tipos: alguns regulam acesso e outros restringem a utilização. O MinC é contra ambos e não tem nenhum problema com informações sobre gestão de direitos, os metadados que identificam os autores dos titulares de direitos de um arquivo digital que contém uma obra. Já em relação aos mecanismos de proteção, somos contra. Será um retrocesso se a lei permitir isso. Se alguém quebra uma medida destas, comete um ilícito civil e criminal também. E nós achamos que não é o caso de ter isso na nossa legislação, seja porque são ineficazes, seja porque representam uma ampliação dos direitos autorais no ambiente digital. Se eu posso copiar pequenos trechos e uma medida tecnológica me impede de fazer isso, as poucas limitações que eu já tenho se vêem mais limitadas ainda por conta desta proteção.
Além disso, as restrições tecnológicas também prejudicam o acesso e utilização de obras caídas em domínio público, podem ir contra a própria vontade dos autores das obras que eventualmente licenciem o uso via Creative Commons. Em qualquer âmbito, seja na TV digital ou em outras mídias, nos opomos a isso. Então nossa idéia é debater a retirada disso do Projeto de Lei, ou se for o caso de manter que sejam compatíveis com o domínio público, as limitações e exceções, a vontade do autor e que se houver uso abusivo da medida tecnológica que se penalize isso.
Com relação à consulta pública na ABNT, é importante lembrar que ABNT produz normas técnicas que não são vinculantes, elas só se tornam vinculantes se aparecerem em um dispostivo legal. Não se obrigando a adoção da norma técnica… De qualquer forma, o ministério está apresentado posições na consulta pública da ABNT.

Mas não se corre o risco de ter uma norma não-vinculante, mas que todos os fabricantes passem a utilizar?
Corre-se o risco. Por isso que queremos levar a discussão da lei. Mesmo com vazio legal, se não há nenhuma lei que obrigue o fabricante a utilizar, ele utilizará ou não conforme sua conveniência. Quando houver maior disseminação da TV digital e telespectadores começarem a tomar contato com o modo como esta tecnologia funciona, que há possibilidade de você ter set top boxes que permitem cópia e outros que não, aqueles que permitem cópia vão ter preferência no mercado. Então, haverá fabricantes com interesse em vender aparelhos sem mecanismo anticópia por conta da maior atratividade ao consumidor. Então, nós não vemos com bons olhos a adoção de medidas de proteção tecnológica na TV digital, porque mesmo levando-se em consideração a proposta dos radiodifusores – que argumentam que só vão limitar a uma cópia na alta definição –, vale lembrar que a alta definição de hoje será a baixa definição de amanhã. Se tivermos isso incorporado no nosso sistema, poderemos ter prejuízo grande em um futuro que não está distante, porque a evolução do padrão de definição é muito rápida.

Mas como fica o papel do Estado em relação ao sistema de direitos autorais?
Até 1990, existiu uma instituição, o Conselho Nacional de Direito Autoral. Ele foi desativado e, de 1998 para cá, a Lei dos Direitos Autorais retirou todas as prerrogativas do Estado de atuar. O Estado tem papel muito limitado. Não temos instrumentos para agir no campo autoral e isso nos leva a uma situação um tanto quanto anacrônica, pois, ao mesmo tempo que não podemos fazer nada, todos reclamam com o Ministério da Cultura em relação aos problemas da Lei do Direito Autoral. O Estado poderia atuar, por exemplo, na função de supervisão das relações. É direito privado, mas muitas vezes se está regulando atividades de interesse público, como o acesso à cultura. Por isso a necessidade de uma supervisão estatal, inclusive nas atividades de gestão coletivas de direitos.
Também é muito interessante que o Brasil volte a contar com uma instância de mediação e arbitragem, como muitos outros países contam. Ao invés de todos os conflitos irem para o Judiciário, abarrotando os tribunais, boa parte deles poderia ser resolvido em uma instância de mediação e arbitragem em âmbito administrativo. As questões relacionadas à preservação das obras em domínio público também é uma função importante, pois estamos vendo cada vez mais casos de apropriação indevida, privada, de obras em domínio público. A ausência estatal no campo autoral já teve tempo o bastante, estamos no 11o ano de vigência da lei, e entendemos que a opção de desregulação total do direito autoral já se mostrou equivocada por conta do grande número de problemas.

Nesta situação, que perde e quem ganha?
Quem tem mais poder econômico. Se você leva em consideração, em uma relação de autores e intermediários, o autor sempre é a parte hiposuficiente e acaba sendo prejudicado. E quando se dá uma relação entre intermediário e usuário, é este que acaba prejudicado. Agora se o usuário é um radiodifusor, aí inverte a lógica. Direito autoral é campo totalmente desregulado, portanto vale a lei do mais forte. Se eu sou uma parte na relação, para eu entrar no mercado, eu preciso me sujeitar às condições que a empresa que domina o mercado impõe pela via contratual. Isso geralmente envolve a cessão total, que acaba sendo a única forma de me inserir no mercado. Só que eu entrego tudo e acabo me beneficiando muito pouco do direito autoral.

O que o ministério propõe como modelo alternativo?
Achamos que as relações devem estar mais equilibradas. No campo da relação entre o criador e o intermediário, a lei deve prever que os contratos não possam permitir a cessão definitiva de direitos, pelo menos para a maior parte das áreas. Em algumas, talvez seja necessário ter cessão definitiva. No Brasil, nossa lei não prevê esta proteção ao autor. Nas relações com o usuário, deve haver uma revisão do capítulo de limitações e exceções que as tornem compatíveis com a nossa realidade. Por exemplo, o direito de cópia privada com remuneração eqüitativa, limitações para uso educacional, para pessoas portadoras de necessidades especiais, para bibliotecas, etc. Isso não é rebaixar direitos, flexibilizar direitos. A gente não está defendendo nada que não exista em outras legislações, apenas achamos que a nossa é muito restrita.

Há formas de o autor gerenciar ele próprios seus direitos? As licenças como Creative Commons atuam nisso?
Muitas vezes pessoas confundem licenças alternativas com gestão individual, mas não é. Creative Commons é licença. Uma música que tenha atribuição para uso não comercial em Creative Commons, se ela é tocada em uma rádio, há um uso comercial, portanto, ao autor cabe direito de remuneração, radiodifusor tem que pagar. A própria licença é compatível com sistema de gestão coletiva. Isso já está ocorrendo em alguns países. Não são modelos conflitantes. Mas, por outro lado, nem todos os tipos de obras exigem gestão coletiva.
Há mercados em que a gestão é feita de forma individual: o caso do livro. O autor negocia seus direitos de maneira individual junto à editora. Por outro lado, as novas tecnologias, a Internet, trouxeram facilidade para a produção, a distribuição e o uso de obras protegidas. Isso facilitou ao criador livrar-se ou não necessitar do intermediário para disponibilizar obras ao público, reduzindo a distância entre o criador e seu público. Isso é uma revolução mundial, que tem trazido resultados interessantes. Tem situações em que pessoas que não tinham condição de se inserir no mercado conseguiram, a partir da Internet, se tornarem conhecidas. É o caso do BNegão, que ganhou público forte fora do Brasil quando não tinha espaço aqui.

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