Encilhamento na revisão do PGO das telecomunicações

Houve um período na história de nosso país, logo após a proclamação da República, em que ocorreu grande expansão de crédito para as empresas industriais, propiciando o surgimento de numerosas sociedades anônimas e intensa especulação de ações. Este período foi denominado Encilhamento (1), um termo que também era aplicado para definir o momento em que “os jóqueis se preparavam para montar na sela e os apostadores tentavam comprar suas desistências. Durante essas negociações, a montaria pronta para a corrida era refreada antes da largada final” (Levy, 1980). O termo caiu em certo esquecimento, mas aquela prática persiste em vários setores da economia e nas formulações contratuais.

A proposta de revisão do Plano Geral de Outorgas – PGO traz à baila conduta típica do Encilhamento. Atores e grupos de interesse se articulam para definir, o mais breve, o “resultado do páreo”, alterando o ânimo dos competidores. Há, no entanto, importantes considerações para ser viabilizada uma assertiva revisão do PGO que, tal qual ocorre no páreo principal do turfe, exige tempo de maturação, propósito favorável, cautela e, para empolgar espectadores, intenso empenho de todos os competidores envolvidos. Em conseqüência, devem ser aplicados esforços para que o marco final resulte preciso agreement it's agreed upon (2), imprimindo ao Estado e às empresas do setor de telecomunicações, sob o amparo contratual da concessão pública, corresponderem aos majoritários interesses da sociedade brasileira.

Novas metas

Ora, os referenciais para os interesses da sociedade deveriam estar expressos no Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado – PGMU (ou simplesment PMU). Por mérito, numa percepção do governo Lula, providenciou-se um novo plano, permutando compromissos anteriores por uma disponibilização de acesso à Internet. Essa atitude representa a atualização de compreensão das carências essenciais da população brasileira, no que tange ao acesso à informação e, ainda, à contextura das diferentes regiões do país, trazendo distinção de ações para o atendimento das áreas remotas, rurais ou metropolitanas.

Sabe-se que no raciocínio técnico de implementação tecnológica levam-se em conta as diferentes regiões, mas sob uma lógica de otimização de recursos para provimento de serviços, em bases de ganho de capitais, que marginalizam os aspectos sociais. Com a diretriz de substituir Postos de Serviços Telefônicos – PST – por backhaul, a fim de interligar municípios – muitos dos quais ainda isolados –, e áreas rurais ao backbone das empresas, o governo Lula afirma outra prioridade para as ações tecnológicas. Desta feita, estimula-se esforço sensato no contexto do desenvolvimento social.Deve-se reconhecer a conscientização do atual governo às alterações tecnológicas e suas decorrências e, naturalmente, seus esforços para a efetivação das transformações necessárias.

Contudo, estas preciosas ações de governo representam, apenas, impulsos para que os atores do setor pertinente cumpram suas atribuições. Observe-se que a especialização de agentes, a serviços do Estado na área, corresponde aos funcionários de carreira do Ministério das Comunicações e da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. É redundante afirmar que a elaboração cotidiana destes profissionais, todavia, necessita de canais políticos para concretizar-se em transformações ditames, fato que legitima os impulsos oriundos do governo federal a fim de estabelecer ação técnico-política e, até mesmo, regulamentar.

Cartões com menos créditos

Não obstante, ao avaliar-se em detalhes os compromissos primevos do PMU de 1998, renovado em 2003, tem-se clareza de que não houve sua completude. O serviço básico de telefonia – voz – não alcançou amplamente a população brasileira. Por exemplo, a despeito da maior disponibilização dos Telefones de Uso Público – TUP, ocorre uso refreado deste serviço. Tal resultado é observável, principalmente, sob avaliações de base socioeconômica, onde se destacam os efeitos das tarifas e da imediata dificuldade à aquisição dos cartões telefônicos. O cartão telefônico com menor quantidade de créditos disponibiliza 40 unidades – cujo preço é obstáculo para o acesso ao serviço básico de telefonia. Visando benefícios e respeito à população de baixa renda, é capital a disponibilização de cartões telefônicos com menor número de créditos: com dez e com vinte unidades.

Com estas últimas observações é possível perceber o contraste entre a tecnologia em construção, de banda larga e já evidente nas áreas ricas do país, com aquelas tecnologias de serviços considerados basais e destinados aos serviços de voz, ausentes em parte da nação. Concomitante, ao admitir-se esta oposição de gerações e expressões tecnológicas, ocorre a ruína do arcabouço que, hoje, estrutura as leis e compromissos das telecomunicações brasileiras.

Por isso torna-se pertinente aplicar empenho de oposição ao Encilhamento. É mister que todos os atores se apliquem em disputa, e que outros ainda venham ao páreo, trazendo influência ao resultado, especialmente para que a construção de entendimento, que não implique contradição, permita vislumbrar além das transformações tecnológicas aquelas sociais e culturais. Não se pode permitir que o páreo seja definido antes de “cruzar-se o disco final”, o que deve acontecer somente quando a sociedade brasileira, por meio de seus legítimos representantes, afirmar aceitação ao contrato.

O PGO está, historicamente, firmado para o Serviço Telefônico Fixo Comutado – STF, que por sua vez se caracteriza nas redes com infra-estrutura cabeada, admitindo algumas exceções, em soluções sem-fio (WLL). A decorrência deste contexto é manter esta parte do amplo sistema de telecomunicações, tal qual um “sistema fechado” (3), cujos elementos estão organizados para formar um conjunto harmônico e infindo – porém isolado – sem permitir análises do ambiente em que fora inserido. A homeostase é sua principal característica e visa manter sua estabilidade a todo custo, exibindo reações drásticas no caso de acontecimentos externos que sejam inesperados.

Não é mera extrapolação teórica, pois as estimativas de fortes reações já foram evidenciadas, por exemplo nos debates (de fato, na ausência deles) para viabilizar-se o unbundling (4). Contudo, o rio do desenvolvimento tecnológico é passível de desvio, mas não de interrupção. As telefonias fixa e móvel paulatinamente abandonam os circuitos e encaminham-se para outras estruturas mais abrangentes, que operam em pacotes de informações – em Internet Protocol – IP, e que incrementam serviços básicos tal como “voz sobre IP”, ou mais complexos tal como multisserviços de vídeo. Exigem-se, pela passagem sucessiva dos desenvolvimentos tecnológicos, maiores capacidades em bandas de transferência de informação e maior robustez.

Este raciocínio circunspecto, por algum bloqueio, ainda não gerou uma compreensão repentina e por isso deve-se induzir uma nova frente de debates para contribuir com a revisão do PGO, adequado-o ao futuro tecnológico, em conseqüente articulação com os tratados de sustentação das telecomunicações brasileiras.

Fixos e móveis, sem distinção

Não são raciocínios imediatos e sem outros desdobramentos, pois o simples conceito de desagregação também apresenta-se em utilidade no gerenciamento do espectro de radiofrequência: permitindo compartilhar uma mesma banda espectral para serviços variados. Além disto, especialistas reconhecem exequível o emprego de soluções complementares da tecnologia de redes cabeadas com as sem-fio, em outro paradigma de acesso para a última milha. Por isso, não há porque manter distinção entre os serviços fixos e móveis, uma vez que as soluções estarão demandadas pelas carências essenciais, desde as chamadas de voz até acessos à Internet e outras coisas que não são possíveis de intuir de imediato.

A sociedade brasileira requer tais benefícios tecnológicos oriundos das telecomunicações. Compreende-se inevitável que ocorra mudança reacional nas empresas de telecomunicações e, naturalmente, no modelo de negócio que aplicam. O paradigma fixo-móvel é, apenas, realimentado pela histórica cisão, que vem da origem remota da telefonia fixa. As novas tecnologias parecem ignorar a história e oprimem pela convergência completa.

A fusão de empresas de telecomunicações, com operações em áreas e tecnologias, ora polarizadas, é pequena parte do que se pretende resolver, de imediato, com a revisão do PGO. Porém, há que se admitir que a solução imediata terá consequências futuras na organização, manutenção e surgimento de empresas, organização do mercado, políticas tarifárias, garantia de acesso e universalização. Indo além, existem implicações em outros campos em que o Estado brasileiro – e não meramente o governo sazonal – tem responsabilidade e preponderância, tal como na política industrial.

As fusões das empresas de telecomunicações podem e devem vir enquanto alternativa no cenário empresarial, e que sustentem as soluções tecnológicas de completa convergência e, verdadeiramente, de transformação nos serviços. Contudo, ao entender as empresas de telecomunicações baseando-se em moldes tecnológicos ultrapassados, isso conduz à manutenção da distinção de serviços de telecomunicações que atualmente reina na estrutura do PGO, e cujas conseqüências estão convidadas à permanecerem em seu substituto, revitalizado em antiguidade. Há que se romper com esta linha!

ste é um ponto crítico; sua superação permitirá estabelecer ganhos para a sociedade brasileira, indo além dos benefícios para as poucas empresas de telecomunicações que permanecerem – nesta tendência natural das coisas. Há sérios riscos, especialmente o de ocorrer fracasso em modelo idealizado à acolher a nação em universalização plena e efetiva.

Observe-se que é recorrente e predominante em todos os regulamentos, que derivam a partir da Lei Geral da Telecomunicações – LGT, uma negligência às transformações tecnológicas. Ignóbil admitir-se que a Anatel ignore a tecnologia. Contudo, empresas industriais e operadoras otimizam o extrato financeiro nestas oportunidades temporais de renovação tecnológica, porque os usuários aplicam capacidades financeiras em favor das novas tecnologias, em fato, dos seus atravessadores.

Também, a partir da promulgação da LGT, o Estado deixa escapar oportunidades para estabelecer políticas de desenvolvimento tecnológico e industrial, que maximizariam vantagens para a ampla sociedade: indústria; comércio; serviços; usuários; educação, dentre outros.

Todavia, o debate predominante ainda é pueril, pois ignora-se que existam tantos outros pólos a se apresentar e defender, e todos estes atrelados à “simples” revisão do PGO. Observe-se que, destas questões, sobressaem e destacam-se aspectos econômicos; políticas tarifárias; regulação e concepção de políticas públicas.

A preponderância na revisão do PGO deve oferecer liberdade a todos em que refletir seu conteúdo, “no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas” (Ferreira). Cabe, por fim, ressaltar que há grande disponibilidade de representantes sociais para construir referenciais justos e debater em cenário democrático, tal qual hoje é apresentado nessa nação.

(1) Afirma Maria Barbara Levy (1980) que “as interpretações que o envolviam tinham caráter profundamente ideológico¨.
(2) Contrato firmado em acordo com o que foi previamente combinado.
(3) Da teoria física.
(4) Desagregação da rede.

Levy, Maria Barbara; in Economia no Brasil, uma visão histórica; Neuhaus, Paulo (org.); Rio de Janeiro; Campus; 1980; p. 191-255.
Ferreira, Aurélio B. H; Dicionário eletrônico Século XXI; versão 3.0; Nova Fronteira; SL; 1999.

*José Zunga Alves de Lima foi presidente da CUT DF e da FITTEL, fundou o IOST e está representante da sociedade civil no conselho consultivo da Anatel.
* Marcus Manhães é pesquisador em telecomunicações.

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