A voz dos consumidores

Advogada e fundadora da Pro Teste, entidade que defende os direitos dos consumidores, Flávia Lefévre Guimarães representa os usuários no Conselho Consultivo da Anatel desde 2006. Coordenadora jurídica do Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor até 1998, Lefévre tem sido voz ativa nos debates sobre a mudança das metas de universalização das concessionárias de telefonia fixa, alteração que considera ilegal. Com exclusividade, a advogada falou ao Observatório do Direito à Comunicação sobre estes e outros temas ligados aos direitos dos consumidores nas telecomunicações.

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Na última reunião do Conselho Consultivo da Anatel, seu parecer sobre o Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) foi rejeitado, e em uma entrevista recente sua, você considera ilegal alguns itens do plano. Por que seu parecer foi contrário à mudança no PGMU?
Primeiro, é importante deixar claro que não caí na armadilha que me foi colocada, o discurso de que estaríamos votando a inclusão digital e a universalização da banda larga. O que estava sendo votado era o decreto do ministro Hélio Costa. Eu nunca seria contra a inclusão digital e a universalização da banda larga. Inclusive, um dos conselheiros, que é consultor das concessionárias e ocupa uma das vagas do Senado, o Conselheiro Amadeu de Paula Castro Neto, chegou a dizer que rejeitava meu parecer porque eu era contra um “bem” para a sociedade. Entretanto, quando propus como emenda ao decreto a desagregação da rede – medida fundamental para que se estabeleça competição no setor e redução de preço – ele foi veementemente contra. Então diz que eu sou contra um bem para a sociedade?

Enfim, sou contra o decreto porque ele trata de impor, de forma gritantemente ilegal, novas obrigações de universalização que vão impedir a redução do preço da telefonia fixa. Eu já questionava antes o fato de os Postos de Serviço de Telecomunicações constarem como metas de universalização. Apesar disso, acredito que ele tinha sim um cunho social e de interesse público, mas realmente seria difícil encontrar empresas que estivessem dispostas a fazer o investimento nos PSTs, porque o retorno pelo investimento seria reduzido. A LGT (Lei Geral de Telecomunicações) estabelece uma classificação dos serviços, de acordo com a qual apenas a modalidade do serviço de telefonia fixa comutada é pautado pelo regime público e os demais se submetem a o regime privado. A lei diz ainda que aos serviços prestados no regime público é que serão impostas metas de universalização; a lei diz também que para cada modalidade de serviço deve haver um contrato de concessão específico e, mais, que não pode haver subsídio entre modalidades distintas de serviço. Ou seja, o dinheiro do STFC (Serviço Telefônico Fixo Comutado) não pode subsidiar, por exemplo, o serviço de banda larga ou de qualquer outro tipo de serviço privado que a empresa venha a oferecer. Portanto, o decreto representa não só uma afronta à LGT, mas também à Constituição Federal, que impõe ao Poder Público a obrigação de licitar serviços, sempre que for contratar. De fato, o que ocorreu é que o Ministério das Comunicações, sem respeitar os princípios da isonomia e impessoalidade, introduziu nos contratos de concessão nova modalidade de serviço, no valor de R$ 1bilhão, sem licitação.

A rede que será instalada não se classifica como STFC? não é o mesmo serviço, nos termos das leis e regulamentos que orientam o setor das telecomunicações?
No campo da energia elétrica a legislação permite subsídio para garantir justiça social; temos a tarifa social baixa renda. Mas a LGT não oferece essa ferramenta. Tanto é assim que o Ministro Hélio Costa enfrentou grandes dificuldades em 2006 que o impediram de implementar sua idéia de telefone social. Se o STFC é o serviço público essencial e, portanto, tem que observar os princípios da modicidade tarifária, não é possível pretender que se utilize da receita originada deste serviço para subsidiar a implementação da rede de infra-estrutura para banda larga, que não é serviço prestado em regime público. A LGT estabelece expressamente que a receita para o cumprimento das metas de universalização é a proveniente da exploração eficiente do serviço: qual serviço? Aquele que é objeto do contrato de concessão: o STFC. E diz também que, quando essa receita não for suficiente para propiciar o cumprimento das metas, os recursos do Fundo de Universalização do Serviço de Telecomunicações – FUST poderão ser utilizados. Ou seja, o decreto permite a absurda situação do dinheiro do FUST subsidiar um investimento que acirrará a posição de dominância no mercado de banda larga das concessionárias, a manutenção de um dos preços mais caros do mundo; um alto negócio para as concessionárias. Se o governo pretende usar o dinheiro do FUST para a banda larga, deve antes alterar a LGT e atribuir a este serviço o regime público. Depois disso, deve instaurar licitação para que todas as empresas interessadas possam participar, o que incentivaria as concessionárias a reduzir seus preços. Aí sim poderemos andar dentro da lei.

Tudo isso é muito injusto: nos cinco primeiros anos do contrato de concessão, quando se impôs as primeiras metas de universalização – instalação de milhares de orelhões e milhões de acessos individuais – a expectativa divulgada publicamente pelo Renato Guerreiro – então presidente da ANATEL – é de que até 2008 haveria 58 milhões de acessos em uso. Como em 1998 tínhamos 20 milhões de acessos instalados, seriam necessários grandes investimentos para ampliar a rede de infra-estrutura para o STFC, o que de fato ocorreu. E quem pagou por isso? De onde veio a receita? A lógica do setor orientou no sentido de abaixar-se o preço da habilitação, para garantir ganho de escala para as concessionárias, e aumentar o preço da assinatura, para garantir receita suficiente para a implementação da universalização. Então a sociedade se sacrificou pagando a assinatura básica, que ao longo desses primeiros cinco anos sofreu aumento real superior a 100%. O resultado disso foi que as classes C,D e E, que foram seduzidas inicialmente pelo baixo preço da habilitação, perderam suas linhas, tornaram-se inadimplentes, tiveram os nomes inscritos no SERASA, e passaram a ficar sujeitas ao pré-pago da telefonia móvel – ao “pai de santo”. Isso não é uma cogitação: existem mais de 12 milhões de linhas nas prateleiras das concessionárias; são acessos instalados e não contratados, porque o consumidor não tem como pagar. Ou seja, as concessionárias, com a receita proveniente da assinatura, construíram as redes de infra-estrutura e o consumidor, apesar de ter o serviço à sua disposição, não consegue pagar. E justamente o mais pobre, que fica sujeito ao telefone móvel, com a quarta tarifa mais cara do mundo. Hoje temos menos de 36 milhões de linhas em uso, sendo que mais de 20% delas estão nas mãos de pessoas jurídicas. É esse contexto que levou ao clamor da sociedade nesses últimos anos contra a assinatura básica. As pessoas dormiam em filas dos juizados de pequenas causas para se verem livres dessa cobrança. O Congresso Nacional tem projetos para extinguir a assinatura. Há milhares de ações judiciais contra essa estrutura tarifária.

Apesar de ilegal, você não considera a alteração benéfica?
Do modo como foi feita, sem garantias de preço e competição e condições técnicas insignificantes, considero maléfica. Primeiro, o decreto não traz nenhuma garantia de preço justo nem qualquer dispositivo que especifique como os competidores utilizarão essa rede; além disso, os 8 mbits para serem divididos por 20 mil habitantes por município, como está previsto no decreto, pelo altíssimo preço que se paga hoje no Brasil pelo serviço de banda larga, é escorchante. Tenho certeza que se houvesse licitação, outras empresas apresentariam propostas melhores. A Telcomp fez estudos e levantou os preços da Telefônica, NET, Brasil Telecom e Oi, em diferentes capitais.  Em São Paulo, a NET cobra R$ 39,95 por 1 Mbps, sendo que a Telefônica oferta a mesma velocidade por R$ 159,80; em Brasília, a Brasil Telecom oferece 1Mbps por R$ 239,90. Na França, a empresa Orange cobra R$ 5,02 a mesma velocidade.

Mas o pior é o fato de se impor novas obrigações de universalização para os contratos de concessão da telefonia fixa, de modo a inviabilizar a possibilidade real e concreta de os consumidores poderem, neste momento da primeira revisão qüinqüenal, brigar pela alteração da estrutura tarifária para garantir a redução do preço da assinatura básica e ampliar a teledensidade da telefonia fixa no Brasil.

A Anatel sempre disse, ao defender a assinatura básica frente a forte reação da sociedade contra ela, que a cláusula de reajuste do contrato de concessão, que permite um aumento real ano após ano, além da correção monetária, justifica-se, pois é a tarifa do STFC que contribui para promover a universalização. Tudo bem, isto é correto. Mas a universalização foi feita – existem 50 milhões de acessos instalados e à disposição do cidadão brasileiro, que não consegue usufruir do sacrifício feito por toda a sociedade, pois a assinatura vale 10% do salário mínimo. Agora era hora de reduzir o preço do STFC, para garantir a finalidade da universalização deste serviço.

Aí o governo vem com a conversa de que não há mais interesse no telefone fixo e que o STFC é coisa do passado. Então por que foram renovados os contratos de concessão por mais 20 anos, cujo objeto é o STFC? Nos EUA e na Europa é possível que haja mais demanda por telefones móveis. Mas a teledensidade de fixo não se compara com a brasileira, que é inferior à da Argentina. Na Europa e EUA todos têm telefone fixo e quem optar pelo telefone móvel vai pagar uma tarifa 400% mais barata do que pagam os mais pobres brasileiros. É R$ 1,36 o minuto do pré-pago e R$ 0,07 o minuto do fixo. A distorção que os equívocos do modelo e a ineficiência da Anatel causou é clara.

A forma como alteração do PGMU foi arquitetada também é questionável. As empresas assinaram os contratos de concessão em 22 de dezembro de 2005 já sabendo das metas dos PSTs desde 2003. Ficaram quietas para garantir a confortável situação de concessionárias detentoras do uso privilegiado das redes e dominantes do mercado por mais 20 anos, o que lhes tem possibilitado enfrentar em situação de vantagem ilegal os mercados não só de telefonia fixa, mas de banda larga e, agora, de tv por assinatura. Todavia, já no começo de 2006, começaram o lobby por meio da Abrafix junto ao Ministro Hélio Costa, para mudar as metas. A idéia passou a ser “fazer backhaul Internet em banda larga”. Acontece que backhaul não é STFC, como os próprios representantes do MiniCom repetiram à exaustão na última reunião do Conselho Consultivo. Se não é STFC, como pode constar do contrato de concessão do STFC e do plano de universalização correspondente?

A resposta do assessor jurídico do ministro das Comunicações, foi que a proposta é “consensual” entre as empresas e que elas aceitaram. É claro que aceitaram: trata-se de um presente de mãe para filho. Mas o fato de terem aceitado não impede que a lei esteja sendo desrespeitada. E mais, ninguém nos perguntou se queremos pagar essa conta. Estar no plano de universalização significa que a receita para implementar o serviço de instalação das redes de banda larga será originada pela tarifa que nós pagamos pela utilização do telefone fixo.

O Ministério das Comunicações não discutiu com a sociedade; a Casa Civil não nomeou o outro representante dos consumidores e o da sociedade, esvaziando junto com a ANATEL o Conselho Consultivo, impedindo que debatêssemos devidamente esse importante tema; a Consulta Pública 842/07, relativa à minuta do decreto, deu prazo de 10 dias para contribuições, sendo que 4 deles eram feriados e, pior, não se disponibilizou um único documento para possibilitar que a sociedade pudesse participar de forma consistente. A mudança tem caráter eleitoreiro e é anti-democrática. A Pro Teste, o IDEC, a AET, o Indec Telecom, o Movimento Defenda São Paulo, a ABUSAR, entre outras entidades questionam tudo isso.

O que essa proposta significa, na prática?
Significa que as concessionárias irão construir, ao invés dos Postos de Serviço de Telecomunicações, uma infra-estrutura de rede IP para transmissão de dados, que vai chegar a central telefônica dos municípios que não têm banda larga. É só isso que o decreto garante. As empresas cobrarão o que quiserem dos competidores pelo uso dessa infra-estrutura, o que lhes garantirá amortização rápida dos investimentos, não só por meio da cobrança da injusta tarifa do telefone fixo, mas também pelos escorchantes preços pela prestação do Serviço de Comunicação Multimídia e pelo aluguel da rede aos competidores.

Além disso, sou contra pelo seguinte: o decreto, antes da alteração das metas, dizia que a concessionária deveria instalar Postos de Serviços de Telecomunicações em todos os municípios. Agora, com a alteração, as concessionárias deverão levar a banda larga para todas as cidades que não têm rede para banda larga, até 2010. São Paulo, que tem a Telefônica como concessionária, tem por volta de 660 municípios, o que significaria a instalação de PSTs em mais de 600 municípios. Quanto custariam a instalação e manutenção dos PSTs em 600 municípios, incluindo compra, construção ou aluguel de prédio, quatro telefones públicos, quatro computadores, um aparelho de fax e um atendente pessoal, com 12 horas de atendimento? Agora, com a alteração, a Telefônica terá de puxar os cabos por pequenas distâncias para apenas 258 municípios. E, ainda assim, querem me convencer que existe equivalência econômica nessa troca? O Decreto 6424/08 não inclui a infra-estrutura que deverá ligar o ponto da central telefônica à casa dos consumidores – o que se chama de última milha. E quem vai fazer isso? As concessionárias, que já contrataram autorização para operar o Serviço de Comunicação Multimídia – SCM e irão cobrar das pequenas empresas que também têm autorizações para operar o SCM e terão de comer na mão das concessionárias. Ou seja, não temos garantia de competição e, conseqüentemente, de qualidade e de preço justo.

Existe uma ligação entre essas mudanças no PGMU e o Plano Nacional de Banda Larga? O que parece ser um favor das operadoras na verdade já foi feito pelo PGMU, então?
Exatamente. Mas isso não quer dizer que a estrutura ficará ociosa, pois as próprias concessionárias se beneficiarão disso, porque, como disse antes, todas elas já têm autorização para operar o serviço de comunicação multimídia. Ou seja, elas usariam o dinheiro do consumidor que paga a assinatura básica ou, pior, não consegue contratar o telefone fixo, e, muito possivelmente, também usarão o dinheiro do FUST, que é público, para estender uma rede que as beneficiará amplamente, pois terão implementado a rede para prestação de serviço privado valendo-se das regras do serviço prestado no regime público, prejudicarão os concorrentes e venderão os serviços que quiserem ao preço que quiserem, como já fazem hoje com a telefonia fixa e com a própria banda larga.

Sendo assim, por que não se estabelecer licitação, no regime das Parcerias Público Privadas por exemplo, ou utilizar financiamentos do BNDES, para construir essa rede pelas mãos de outras empresas, que irão competir com as concessionárias, respeitando-se os princípios da isonomia e impessoalidade? Por que o governo escolheu o caminho mais frágil, pelo aspecto jurídico, e mais penoso para os consumidores? Enfiar nos contratos de concessão do STFC o serviço de instalação de rede para banda larga , desrespeitando a LGT e a Lei de Licitações, é uma aberração.

Mas não há nenhum benefício nessa história?
Teria um benefício, que é significativo: quando as concessões vencerem, em 2025, essa rede reverterá para o patrimônio da União. Só que daqui a muito menos de 18 anos, o WiMax e outras tecnologias sem fio e mais baratas serão comuns. Ou seja, a utilidade dessa rede não será mais a mesma e seu grande potencial terá sido explorado amplamente por empresas privadas ao longo do tempo de vigência dos contratos de concessão. Ou seja, a contrapartida anunciada pelo governo, de oferecimento do SCM pelas concessionárias de forma gratuita para 55 mil escolas públicas até o final do contrato de concessão é muito pequena, se a comparamos ao enorme benefício concedido às concessionárias e à lesão que sofrerão os potenciais competidores. Estamos falando de contratação sem licitação, subsídio proibido por lei, utilização indevida de dinheiro público, e utilização exclusiva da rede. Nesse contexto, entendo que a sociedade poderia ganhar mais: as concessionárias tinham de prestar o serviço gratuito não só para as escolas (que no mais das vezes nem tem condições materiais e professores para usufruir do serviço), mas também para a polícia, hospitais, prefeitura etc …

Não devemos esquecer que o BNDES, no ano passado, já concedeu empréstimos de R$ 2 bilhões para cada uma das concessionárias. Mas ninguém esclareceu para o que é esse dinheiro.

Como você vê a utilização do FUST? Qual seria a melhor forma?
Não quero fazer profecia, mas a LGT traz dispositivo que garante às concessionárias a possibilidade de usarem o dinheiro do FUST para implementar as obrigações de universalização, nos casos em que a exploração eficiente do serviço objeto da concessão não for suficiente. Ora, no caso da OI, que terá de estender a rede por extensas regiões, muito possivelmente a receita do STFC não será suficiente, então, vão poder se valer do recurso do FUST. Há também um projeto de lei do senador Aloizio Mercadante que abre as portas para que o SCM utilize recursos do Fust para universalização de banda larga. OS recursos do Fust não poderiam ser usados para isso porque, pela lei, a universalização no regime privado deve ser promovida com receita da própria empresa; ou seja, o FUST deve ser usado apenas para os serviços prestados no regime público. Então, temos duas alternativas: transformar a banda larga em serviço público ou, ainda, ampliar o rol de serviços que podem receber investimento do Fust. Aí sim eu poderia concordar com tudo isso.

Sobre a fusão entre Oi/BrT, quais são as vantagens e quais são as desvantagens?
Não é possível fazer uma análise dessa situação porque, assim como no caso da alteração do PGMU, não sabemos na totalidade quais são os projetos, a estratégia e a lógica da mudança anunciada. Assim como a alteração do PGMU foi uma negociação envolvendo exclusivamente governo e concessionárias, o mesmo está acontecendo em relação à alteração do Plano Geral de Outorgas (PGO). Essas coisas são discutidas lá nos gabinetes. Só digo uma coisa: se vão concentrar o mercado em apenas duas concessionárias, devem haver duas condições essenciais. Primeiro, a desagregação da rede para permitir que outras empresas possam prestar serviço utilizando as redes sem ter de pagar para as concessionárias, pois essa rede é um bem público que já está há dez anos no regime de uso exclusivo das concessionárias, com enormes prejuízos para a sociedade.

A segunda condição seria a implementação do modelo de custo – que, aliás, já deveria estar implementado e em vigor desde o primeiro ano de vigência dos contratos de concessão renovados e, até agora, a ANATEL sequer instaurou licitação para contratar a empresa para desenvolvê-lo. O modelo de custo permitiria um controle efetivo do valor da tarifa. Se o modelo de custo já estivesse implementado, poderíamos verificar a abusividade do valor da assinatura básica cobrada hoje. Você saberia dizer, por exemplo, se as despesas abundantes que as concessionárias têm com marketing e outras despesas não confessáveis não estão inchando abusivamente o preço da tarifa? Ou se custos de outros serviços que prestam não estão sendo utilizados para garantir a manutenção do alto preço da tarifa do STFC? Não tem como saber porque não existe um modelo de custo. Não temos hoje como garantir que uma empresa, que preste uma série de serviços, não esteja alocando as despesas do modo que lhe for mais conveniente, influenciando os processos de reajuste e revisão tarifária.

Além disso, um outro aspecto que deve ser observado são as regras para a transferência de controle acionário da empresa. Já imaginou se a fusão de fato ocorra e amanhã a Andrade Gutierrez vende a sua parte para a Telefonica ou para a Embratel? Como pretende o governo, nesta altura dos acontecimentos, impedir que isso ocorra ou, ainda, defender uma golden share em função da fusão de duas empresas privadas, ainda que o BNDES seja acionista da OI? No momento da desestatização, quando se impõe esse tipo de restrição, o agente privado que ganha o leilão já conhecia e aceitou a regra do jogo. Mas garantir ao Estado poderes especiais numa empresa privada não configura estatização? Eu não sou contra. Mas vamos respeitar a transparência e o debate. O que se está pretendendo? É decepcionante ver a atuação de um governo do PT que não debate, não ouve a sociedade, que impõe pacotes, ao contrário do que sempre defendeu.

Você que tem convivido com o trabalho da Anatel por dois anos, qual a sua avaliação do trabalho da agência? Quais são as principais deficiências?
Como eu também trabalho na área de energia elétrica, é possível comparar os dois setores. Por exemplo, veja a forma como a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e a Anatel conduzem uma consulta pública. A consulta pública para alteração da PGMU, como eu disse antes, começou em setembro e contava no site apenas com a minuta do decreto e a minuta de aditamento dos contratos de concessão. Não tinha uma nota técnica ou qualquer documento complementar e ficou aberta apenas por dez dias. Isso quer dizer que eles não querem ouvir a sociedade. No caso da Aneel, quando se abrem consultas públicas,  as notas técnicas ficam à disposição no site, o que permite que a sociedade possa participar de forma mais equilibrada, uma vez que a assimetria de informação entre prestadores de serviço e consumidores é indiscutível. Além das consultas, existem audiências públicas em várias cidades do país. As reuniões para deliberações na ANEEL são abertas, ao contrário do que ocorre com a ANATEL. Dei estes exemplos para concluir que a Anatel não é transparente. E também não é ágil e eficiente no seu processo de fiscalização. Digo isso porque a Aneel pode delegar suas funções fiscalizadoras a órgãos locais, como no caso da Comissão de Serviços Públicos de Energia, em São Paulo, que efetivamente fiscaliza as distribuidoras. Já a Anatel é proibida de fazer o mesmo.

Nos dois últimos processos de revisão tarifária no setor de distribuição, os consumidores foram contemplados com reduções de 11%, em 2007 e até 12%, agora em 2008. Isso se deve à atuação responsável da Aneel. E as empresas não diminuíram seus lucros por isso e o setor de distribuição de energia elétrica é sustentável. Se enfrenta crises é por conta da falta de investimento dos governos e não pela atuação da Aneel. Quando a Anatel impôs redução tarifária desde a sua criação? Nunca.

Existe ainda um outro fato. O atual presidente da Telefónica é o Antonio Carlos Valente, que já foi presidente da Anatel. Marcos Baffuto, que foi superintendente da área de serviços públicos na ANATEL até dezembro de 2005, em março de 2006 já estava trabalhando para a Telefonica. E há muitos outros exemplos que nós não ficamos sabendo.

Quer dizer que há uma captura da Anatel pelo mercado?
As concessionárias são muito mais ouvidas do que os consumidores. O lobby da ABRAFIX – associação que as representa – na agência é pesado.

E a imobilização do Conselho Consultivo?
Essa votação da alteração na PGMU foi feita sem a presença de cadeiras muito importantes do conselho, as vagas do consumidor e da sociedade e mais uma das empresas. Foi equilibrado? Claro que não. Lá estava o Amadeu, que presta consultoria para as concessionárias de telefonia fixa na SP Comunication, a Emília Maria Silva Ribeiro, assessora da Presidência do Senado, dois membros do Ministério das Comunicações, Israel Baiman, como representante da Câmara do Deputados e Zunga, em uma das vagas da sociedade, sendo que a ligação desses dois últimos conselheiros com o PT – e conseqüentemente com o governo – é clara, e não votariam contra o decreto que pode trazer grandes dividendos eleitorais.

Zunga também tem um cargo de gerência na Brasil Telecom…
Acho que isso não é tão importante no caso. Os trabalhadores têm interesses grandes e legítimos no setor. Se eles não forem trabalhadores de alguma empresa do setor, não estariam nos sindicatos e assim, qualquer deles estaria impedido de participar. Conheço o Zunga, que é sindicalista há muitos anos e, portanto, representa sim a sociedade. Fizemos muitos trabalhos juntos na defesa do consumidor, desde a privatização. O problema agora é o fato de que na atual conjuntura o Conselho Consultivo é uma questão estratégica para o governo, pois precisava aprovar a alteração do PGMU e, agora, o PGO. Acho mais preocupante o fato de ele ser tão ligado ao governo, tanto que, durante a reunião ocorrida para discutir o PGMU, disse que meu relatório não poderia ser desconsiderado, mas, contraditoriamente, votou a favor do decreto, adotando recomendações constantes do meu voto, como necessidade de desagregação, de implementação de modelo de custos, introdução de garantia de preço isonômico para competidores, entre outras. Ora, se o decreto não traz essas garantias, como ele poderia ser favorável?

É possível que o conselho seja mais atuante?
Não acredito. E é importante dizer que as entidades de defesa do consumidor e Procon/SP enviaram cartas ao Ministério das Comunicações, Casa Civil e ANATEL, pedindo que o conselho fosse composto. Em setembro último pedi ao presidente da Anatel para que ele convocasse uma reunião e desse posse aos novos conselheiros, pois então teríamos sete membros – metade mais um, como exige o regimento – e poderíamos ter discutido, por exemplo, o PGMU de forma mais tranqüila, ampliando na sociedade o debate. Isso não foi feito. Mas nesse meio-tempo a minuta do decreto estava em consulta pública. As segundas vagas da sociedade e consumidor continuam vazias. A configuração do Conselho Consultivo propicia que das doze vagas, seis sejam do governo – senado, câmara e poder executivo – mais duas das empresas e apenas quatro para sociedade e consumidores. Os acordos que comumente acontecem entre os partidos tornam desequilibradas as decisões do Conselho. Além disso, os membros são escolhidos pelo Ministério das Comunicações e Presidência da República, o que pode levar ao questionamento de legitimidade, como está acontecendo agora com o Zunga.

Então o próprio Conselho Consultivo também foi capturado?
O Conselho Consultivo, até 2005, com o ingresso de membros que não faziam parte do chá das cinco das concessionárias e ex-dirigentes do sistema Telebrás e suas consultorias (leia-se lobistas), sempre agiu em favor do status quo. Sabemos que foi necessária a atuação do Ministério Público Federal de Pernambuco para tirar da vaga de usuário o diretor de uma companhia de telefonia fixa há poucos anos atrás. O presidente da Anatel, Embaixador Ronaldo Sardenberg não quis dar posse para os conselheiros nomeados em setembro de 2007, alegando publicamente que o conselho ficaria chapa-branca. Mas eu pergunto, a situação agora não piorou; não está chapa-branca – 6 do governo, 1 das empresas, 1 dos consumidores e 1 da sociedade? E ainda existem vagas em aberto – do consumidor, da sociedade e uma de empresa. Os nomes indicados já estão lá, por que então não foram nomeados? É crucial que o conselho esteja completo com membros efetivamente legítimos nesse momento.

Quais são os pontos centrais em relação à regulação que você acredita que devem ser enfrentados?
Estabelecimento de tarifa social, revisão da estrutura tarifária do STFC,  implementação de regras para desagregação de rede,  implantação de modelo de custo, aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização, inclusão da banda larga como serviço público e alteração das regras do FUST, para que se possa usar os recursos para a universalização da banda larga.

Recentemente, o ouvidor da Anatel publicou seu relatório sobre a atuação da agência em 2007. O que você achou do relatório? Ele trouxe algum impacto para a agência?
O Relatório apontou falhas gravíssimas na atuação da Agência, com as quais concordo plenamente. No modelo da Anatel, a ouvidoria não tem o papel de ouvir o consumidor, mas de fiscalizadora da atuação da agência, e o relatório elaborado pelo Ouvidor deve ir para o presidente da República e para o Congresso Nacional. Mas, chegando nesses órgãos, ele não tem impacto. Ninguém fez nada. Ninguém quer enfrentar a CPI da ANATEL; faz-se sempre um esforço enorme para enterrá-la, toda vez que ela surge no horizonte. Mas isso seria muito salutar, acreditem.

Houve alguma mudança com a entrada do Sardenberg?
Que eu tenha notado, não. Tudo o que aconteceu até agora em termos de normas e regulamentos já estava em curso quando ele entrou. Faz pouco tempo que ele está ocupando a vaga.

Uma das questões que o ouvidor aponta em seu relatório é o fato de que as reclamações dos consumidores sempre caem no esquecimento na agência. Isso não é preocupante?
Principalmente as demandas de caráter econômico, que são simplesmente desconsideradas. Veja nossas batalhas pelas tarifas e pelas cobranças indevidas. Não há nenhum acesso a questões como renovação de contratos de concessão, alteração de PGMU, entre outros temas. A agência não tem um funcionamento democrático, nem nenhuma permeabilidade para os consumidores. É comum vermos os diretores da agência em reuniões com concessionárias, operadoras, em seminários e outros eventos. Mas não é comum visitarem as entidades de defesa do consumidor, promoverem debates no âmbito da agência, facilitar informações etc…

Como você avalia o modelo de privatização à luz das demandas que temos agora?
Acho que o acerto foi a criação de mecanismos regulatórios para que o setor de telecomunicações realmente se expandisse em termos de infra-estrutura e ampliação do acesso. Outro acerto foi a criação de mecanismos que propiciassem a competição, ainda que eles não tenham sido implementados até agora. Esse modelo funcionou em alguma medida, onde a competição conseguiu se estabelecer. A diferença de possibilidade de acesso, se comparada com a situação de quinze anos atrás, é radical. O que falhou foi que o modelo não previu o tratamento discriminatório entre os usuários, a garantia de uma tarifa social, como foi feito na energia elétrica. A privatização da distribuição da energia elétrica, por sua vez, demandava menos investimentos em infra-estrutura para a distribuição. Então, se é preciso altos investimentos e você está num país com as características sócio-econômicas do Brasil, a previsão legal que garanta uma tarifa social para os consumidores de baixa renda é altamente necessária para garantir a universalização, tanto pelo viés do acesso pela infra-estrutura quanto pelo viés do acesso pelo preço.

Outro problema que vejo é que a telefonia móvel acabou cumprindo o papel de “competidora da telefonia fixa”, penalizando o usuário mais pobre. O problema é que, no caso do regime privado, ao qual está submetida a telefonia móvel, não há metas de universalização. Existem por volta de 2200 municípios que não têm cobertura de sinal. E isso se deu de uma maneira não prevista pelo modelo e não houve flexibilidade por parte dos responsáveis para corrigir isso. As empresas-espelho também não deram certo, pois, pelas regras da época, não podiam cobrar pela telefonia fixa menos do que as concessionárias. Que competição é essa, se eu não posso entrar no mercado cobrando menos que a minha competidora e, ainda, fico refém dela para prestar meu serviço?

Este cenário foi amplamente conveniente para as concessionárias, porque elas também são sócias das operadoras de telefonia celular e as chamadas de fixo para móvel e vice-versa trazem mais receitas para as elas. Ou seja, as concessionárias têm dois bolsos, o da empresa de telefonia fixa e o da operadora da telefonia móvel, portanto, para elas está tudo bem.

Sendo que a desagregação está prevista na lei, não seria prevaricação da Anatel não cumpri-la?
Acredito que sim e vamos questionar isso, pelo viés da improbidade administrativa. O consumidor ganhou com o modelo, mas poderia ter ganhado mais se a ANATEL fosse mais eficiente, mais comprometida com o interesse social e com os consumidores. Isso sem falar do mau atendimento, das cobranças indevidas, da falta de discriminação no detalhamento das contas e a fiscalização insipiente da ANATEL. Não há dúvida que ganhamos; mas não podemos ser ingênuos e deixar de reconhecer que nós é que financiamos tudo isso e que as concessionárias, pesando os dois lados da balança, ganharam muito mais. Agora, depois de dez anos de sacrifício, já é a hora de dar o retorno para a sociedade.

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