O ensino de Jornalismo entre a honestidade e o merchandising

Os alunos de uma disciplina do programa de pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes entrevistaram, em 1997, o jornalista Fernando Salgado, que na época era o responsável pelo jornal “O Metalúrgico” do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Os pós-graduandos ficaram surpresos com a honestidade e veemência do editor do mencionado periódico sindical. Ele classificou a sua atividade como marketing ideológico e não como jornalismo, porque só lhe interessava o lado dos trabalhadores.

Essa lembrança vem a propósito da matéria de Henrique Costa, publicada no sitio do Observatório do Direito à Comunicação, Presença de empresas de mídia no curso de jornalismo da USP gera reação dos alunos. Os desdobramentos que podem ser extraídos do conteúdo e da edição dessa matéria são tão ricos quanto a posição clara e ética de Fernando Salgado e de sua obra sindical, apesar da oposição de comportamento dos dois profissionais.

Pela abertura do citado comentário, termo que aqui se usa na acepção dos estudos de gênero de Manuel Chaparro, é possível verificar que a pauta da referida matéria não foi pesquisada e que havia uma clara intenção de demonizar a “parceria” que foi explorada no texto. Uma das acusações que consta da costura dos argumentos é que as mídias alternativas não estão presentes na estrutura do curso de Jornalismo da ECA. Para demonstrar que não houve cuidado em contextualizar o tema, é preciso citar, como exemplo de que esse tipo de afirmação não é sustentável, a entrevista com o próprio Salgado. Ela faz parte do livro “Edição no Jornalismo Impresso” (Edicon/ECA-USP/NJC, 1998).

Faltou, também,  constar da matéria as tentativas feita pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, nos últimos cinco anos, para reativar discussões importantes para a formação dos jornalistas, que teve em seu currículo, até meados da década de 80,  disciplinas como “Jornalismo Sindical”, “Jornalismo Comunitário” e “Folkcomunicação”.

Estudo de Caso

Atualmente a estrutura curricular do curso de Jornalismo da ECA optou por discutir Jornalismo e não Mídia, o que justifica a existência das disciplinas de Estudos de Caso (Jornalismo Televisionado, a Imprensa Diária, Jornalismo Radiofônico, Jornalismo Social, Jornalismo e Políticas Públicas, Imprensa Semanal).

Este detalhe, ponto fundamental na construção do currículo, não foi discutido na matéria, contrariando a prática jornalística que recomenda a apresentação de contextos claros e precisos para fornecer aos leitores a perspectiva que deu origem ao fato jornalístico. Pelo menos é isso que pregam os manuais e livros dedicados à argumentação.

A matéria, além de sonegar as origens históricas da colaboração das empresas e organizações (Folha de S. Paulo, Editora Globo, Abril, TV Globo, Andi e Anjos), dá às disciplinas uma dimensão que elas não têm na grade curricular.

Historicamente, a primeira experiência da relação empresa/escola, na ECA, aconteceu em 1987, quando a Folha cedeu o jornalista Cláudio Abramo para ministrar um curso que tratou de edição jornalística. Portanto, não se confirma a afirmação de crise de identidade alardeada pela matéria. Essa experiência, que já conta mais de 20 anos, está sendo aprimorada e é uma identidade da estrutura. O projeto que teve o menor tempo de planejamento foi o de Jornalismo Social, que começou a ser discutido no dia 04.08.2004 e foi ministrado pela primeira vez no segundo semestre de 2007, como curso de extensão gratuito e será disciplina optativa no segundo semestre de 2008.

Onde mora o problema?

Outro ponto não contemplado na matéria foi a informação de que as disciplinas optativas livres não fazem parte do núcleo duro da formação do aluno de jornalismo. A consulta à grade curricular, mesmo que feita superficialmente, demonstrará que esse tipo de disciplina corresponde a 11,22% do total da carga horária. As disciplinas mencionadas na matéria, são complementares e concorrem com mais de uma centena de disciplinas optativas da área de ciências humanas oferecidas aos alunos da Universidade . O cerne da construção do saber na área está na articulação de conteúdos das disciplinas obrigatórias, dispostas em um desenho curricular elaborado e fundamentado de acordo com parâmetros científicos. 

Atentando para princípios recomendados por César Coll, há um esforço para que esse desenho curricular se transforme em verdadeiro instrumento de trabalho e de indagação, que se consubstancia na oportunidade de os alunos criarem, exercitarem e exercerem a crítica em relação ao mercado e ao que lhes é ensinado. Em outras palavras, o aluno está em sintonia com a sua  formação crítica e tem nas disciplinas optativas o campo de verificação das teorias e, no feedback dessa verificação, as indagações que dão vida à teoria. Não se trata, pois, de uma via de mão única.

Este desenho significa que o currículo de Jornalismo da ECA não trabalha com a perspectiva de adestramento. Não tem fórmulas prontas porque não considera estático o mercado, na sua acepção ampla. E não entende o Jornalismo como mera mídia, mas como uma manifestação do direito fundamental do cidadão que será alimentada pelos seus egressos. Talvez esteja aí a grande diferença entre a formação proporcionada pelo curso de Jornalismo da ECA e algumas escolas cuja administração está voltada ao atendimento exclusivo das necessidades do mercado ou subordinada a princípios ideológicos reducionistas.

Uma organização curricular aberta e participativa, como a que foi brevemente descrita, só pode ser mantida quando o corpo docente rechaça a visão de ensino como forma de moldar mentes para a aceitação de conceitos com propósitos determinados. Os estudantes que contam com estruturas similares são incentivados a aprimorar a visão crítica da sociedade, do mercado e do capital, sem os filtros ideológicos que castram a capacidade de questionamento dos fatos. 

Outro equívoco que deve ser apontado na matéria é a imprecisão do acordo entre a instituição e as empresas e organizações. Não há uma parceria, no sentido amplo do termo. O que se faz é um convite onde a receptora (ECA) se mantém fiel à sua meta de formar jornalistas e a outra parte (empresas e organizações) concorda em ceder parte de sua capacidade produtiva para que os propósitos de ensino projetados sejam alcançados. É possível que existam dificuldades administrativas para a implementação de similar estrutura em cursos privados. As relações de lucro entre as duas entidades poderiam tornar a oferta de disciplinas optativas onerosa, e poderiam contrariar os projetos acadêmico e pedagógico  criados para atender principalmente às metas econômico-financeiras impostas pela instituição bancária que garante a manutenção da instituição de ensino.

Teoria da conspiração

A matéria contamina o leitor levando-o a acreditar na existência de uma conspiração que tem o curso de jornalismo da ECA como “parceiro” das grandes instituições de comunicação. Seria desgastante apresentar os fatos da história recente do país em que alunos e professores do curso de Jornalismo da ECA constam como atores na luta contra a ditadura e a favor das liberdades de informação e opinião, justamente porque faz parte do DNA dessa instituição a defesa intransigente da democracia e da pluralidade de opiniões.

Na angulação do tema, o autor da matéria poderia ter usado os instrumentos da própria USP para requerer o fechamento do curso, como foi sugerido em duas ocasiões do texto. É possível que a cruzada, encetada pelo autor, tivesse maior êxito se, por exemplo, recorresse  ao “Código de Ética” que, no preâmbulo, afirma que a “USP adota os princípios indissociáveis aprovados pela Associação Internacional de Universidades, convocada pela Unesco em 1950 e em 1998, a saber:1) o direito de buscar conhecimento por si mesmo e de persegui-lo até onde a procura da verdade possa conduzir;2) a tolerância em relação a opiniões divergentes e a liberdade em face de qualquer interferência política;3) a obrigação, enquanto instituição social, de promover, mediante o ensino e a pesquisa, os princípios de liberdade e justiça, dignidade humana e solidariedade, e de desenvolver ajuda mútua, material e moral, em nível internacional.”

Para não ferir o mencionado Código de Ética, outras ilações constantes do texto publicado não serão comentadas. Com sabedoria, a Universidade de São Paulo recomenda que “a relação com os demais profissionais da área deve basear-se no respeito mútuo e na independência profissional de cada um, buscando sempre o interesse profissional” (Art. 18)

José Coelho Sobrinho é coordenador do curso de Jornalismo da ECA-USP.

Nota do repórter Henrique Costa

É importante ressaltar que o foco da matéria é, sobretudo, as opiniões dos alunos, e delas se extraem as conclusões apresentadas. Não há, portanto, qualquer semelhança com marketing ideológico, neste caso.

Antes das ofensas, o professor Coelho deveria responder por quê afirmou à reportagem que são os professores os “responsáveis” por definir o programa da disciplina, quando os alunos e a própria Globo afirmam o contrário.


A matéria deixa explícito que os alunos não são obrigados a cursar as disciplinas.


Não faz sentido a afirmação de que o termo “parceria” é impreciso. Mesmo que consideremos a definição do professor Coelho, há um claro acordo no qual duas organizações se unem para um objetivo comum. Como se chama isso, se não uma parceria?


O professor Coelho sugere que este autor tenha, deliberadamente, atentado contra a história da instituição. Se o professor acredita que a crise da universidade não atinge a sua unidade, ou mesmo não existe crise, tenho liberdade para questionar.


É bom esclarecer que este autor não sugere em momento algum o fechamento do curso, mas apenas reproduz comentários de uma fonte claramente identificada.


Sobre o citado “Código de Ética” da USP, não há nada a se comentar, apenas que, enquanto universidade pública, seus encaminhamentos e objetivos estão passíveis ao questionamento de qualquer cidadão. Mas parece que nem mesmo a comunidade universitária tem tido acesso a esse debate.

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