A Artigo 19 e a liberdade de expressão no Brasil

Os militares voltaram aos quartéis e a censura à imprensa, em tese, foi abolida. Entretanto, prevalecem no Brasil outras formas de censura, como a autocensura dos jornalistas, a concentração dos meios de comunicação e a censura à documentos e informações de interesse público, conforme alerta Paula Martins, coordenadora da Artigo 19 no Brasil, uma organização não governamental internacional com sede em São Paulo que atua na promoção e proteção da liberdade de expressão.

Nesta entrevista, Paula Martins avalia a liberdade de expressão no Brasil.

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Qual é a avaliação que a senhora faz da liberdade de expressão no Brasil?
Em princípio temos uma mídia livre e uma sociedade civil bastante ativa. Não se pode comparar nossa situação atual com um contexto de ditadura ou um contexto de violência explícita contra a mídia e seus profissionais como ocorre, por exemplo, em algumas regiões do México. No entanto, ainda existem sérios obstáculos ao pleno exercício da liberdade de expressão, obstáculos que vão além da restrição à liberdade de imprensa.

Dentre esses obstáculos ressaltamos um arcabouço legal defasado e deficiente, a falta de incentivo à radiodifusão pública e comunitária, a ausência de um verdadeiro pluralismo e diversidade na mídia, pressões sobre o exercício do jornalismo decorrentes de ações judiciais muitas vezes abusivas, e ainda, alguns casos de violência, seja ela na forma de ameaças ou agressões.


O que fazer diante desse quadro?
É importante ressaltar que essa situação demonstra inobservância dos padrões e mesmo obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em tratados e fóruns internacionais.

A revisão do marco legal aplicável à matéria nos parece uma medida urgente e fundamental. Isso inclui a revisão da Lei de Imprensa e do Código Brasileiro de Telecomunicações (e suas alterações posteriores), de forma a adotar normas que garantam a liberdade de expressão e os demais direitos humanos, em um ambiente efetivamente democrático, num novo período crucial que é o da convergência tecnológica.

Para garantir que isso ocorra, é importantíssimo colocar em prática mecanismos que garantam que a revisão do marco legal seja feita de forma participativa e democrática, por exemplo, com a realização da conferência nacional de comunicações, já prometida pelo governo federal.


Por que a legislação brasileira que rege a liberdade de expressão está incompleta?
Porque diversos artigos, principalmente as garantias constitucionais, carecem de norma adicional e infraconstitucional que explicite e detalhe seu conteúdo. O direito de acesso à informação pública, por exemplo, até hoje não foi regulamentado – não existe determinação de prazos, responsabilidades e recursos para os requerimentos de informação apresentados a órgãos públicos. Em termos operacionais, embora o direito já exista hoje de forma inequívoca, seu pleno exercício pode ser comprometido pelo silêncio da lei.


Quais são os dispositivos mais repressivos na legislação?
Alguns exemplos são a possibilidade de censura a espetáculos e diversões públicas;  a inadmissão da prova da verdade em acusações de crime de calúnia praticada contra Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, Chefes de Estado ou de Governo estrangeiro, ou seus representantes diplomáticos;  a possibilidade de proibição em alguns casos da entrada no país de jornais, periódicos, livros e outros impressos estrangeiros (nos termos do artigo 60);  a possibilidade de apreensão de impressos que incitem “à subversão da ordem política e social”;  ou a possibilidade de determinar a suspensão da impressão, circulação ou distribuição de jornal ou periódico, inclusive sem autorização judicial.   A maioria destes artigos não tem sido aplicada pela Justiça, mas ainda assim fica a pergunta: porque então não os revogamos definitivamente?


Como a senhora vê a concentração dos veículos de comunicação em poucos grupos empresariais?
A concentração da mídia é uma tendência mundial, além de ser uma tendência brasileira. De acordo com pesquisa do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (Os Donos da Mídia) seis empresas de mídia controlam o mercado de TV no Brasil, um mercado que gira mais de 3 bilhões de dólares por ano. Estas seis principais empresas de mídia controlam, em conjunto com seus 138 grupos afiliados, um total de 668 veículos midiáticos (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva (em um país em que 81% da população assiste à TV todos os dias, numa média de 3,5 horas por dia).

Neste contexto é imprescindível que as concessões de rádio e televisão observem critérios democráticos que garantam a igualdade de oportunidades de acesso para todos os indivíduos. E mais, que sejam processadas com total transparência.


Como a ARTIGO 19 vê a iniciativa do governo federal em lançar uma TV Pública?
A existência e mesmo a necessidade de um sistema público de radiodifusão são reconhecidas por diversos países em suas legislações nacionais e também no âmbito internacional como forma de garantir o pluralismo e a diversidade na mídia. Juntamente com o sistema privado e o comunitário, o sistema público é essencial para o pleno fluxo de informações e opiniões que caracteriza as verdadeiras democracias, sem restrições discriminatórias ou excludentes de determinados grupos.

A nova TV Brasil é um importantíssimo passo na direção da criação de um sistema publico de radiodifusão, ainda inexistente em nosso país, e que acreditamos ser um imperativo imediato. No entanto, a TV Brasil ainda não cria este sistema.

O futuro sistema deverá atender os princípios-base de um sistema público, ou seja: (i) a criação de estruturas apropriadas que assegurem sua independência, como Conselhos plurais e autônomos; (ii) a adoção de esquemas de financiamento que garantam o livre fluxo de informações e idéias e a promoção do interesse público; e finalmente, (iii) processos de prestação de contas que tornem os radiodifusores públicos responsáveis perante o público, tanto em relação ao conteúdo transmitido como em relação aos recursos gastos.


A ARTIGO 19 também se manifestou sobre o elevado número de indenizações por danos morais no Brasil. O que foi identificado?
A ARTIGO 19 está bastante preocupada com o alto número de casos de indenização por danos morais contra jornalistas e veículos de comunicação social e com a natureza destes casos.

Pesquisa realizada pela revista jurídica Consultor Jurídico indicou que hoje existe cerca de uma ação judicial para cada jornalista trabalhando nos 5 principais grupos de comunicação do pais. Proporção que nos foi confirmada pela percepção de jornalistas, representantes de classe e associações de mídia, embora inexistam números mais totais e precisos. O Consultor Jurídico também indicou que o valor das indenizações vem crescendo bastante nos últimos anos. Essa situação pode indicar uma tendência preocupante.

É importante que existam mecanismos que possibilitem a reparação de danos causados por matérias irresponsáveis ou mentirosas. Mas é também fundamental que estes mecanismos não sejam utilizados para manutenção de situações de abuso de poder. Além disso, as indenizações devem obedecer sempre padrões de proporcionalidade. É importante que pequenos veículos de comunicação não sejam obrigados a fechar suas portas em razão dos montantes indenizatórios fixados em juízo; do contrário, as ações judiciais podem vir a representar verdadeira repressão à liberdade de imprensa.


Há ainda relatos de censura prévia no Brasil?
Identificamos um número de liminares contendo determinações que, a nosso ver, constituem censura prévia.

Veja que a censura é em absoluto proibida pelo nosso sistema legal. Pode existir sim responsabilização por abusos, mas a posteriori. No entanto identificamos casos em que a circulação de jornais foi proibida, sites foram obrigados a se manter parcialmente “fora do ar”, foi imposto sigilo absoluto em relação a certos nomes, de forma antecipada…

É importante que essas instâncias de censura prévia cessem o quanto antes, ao mesmo tempo em que mecanismos sejam adotados para incentivar o jornalismo responsável.

Perceba que não estamos incentivando um jornalismo sensacionalista, superficial e sem padrões de qualidade e veracidade. Pelo contrario. No entanto, acreditamos que a censura prévia não pode ser considerada uma forma de coibir tal situação ou ser utilizada como controle de qualidade – se assim for, a maior prejudicada será a democracia, com poucas vantagens efetivas para as vítimas de abuso.


Muitos casos reportados referem-se a decisões de juízes de primeira instância. Quais seriam as razões para este quadro? 
Duas possibilidades existem: há um entendimento equívoco por parte de alguns juízes sobre quais seriam as restrições legítimas à liberdade de expressão; a outra seria a forte pressão sofrida por juízes de primeira instância.

Se o segundo caso se mostrasse verdadeiro, o próximo passo seria identificar de onde vem tal pressão, como ela é exercida e como anulá-la – nossa organização, no entanto, ainda não tem dados para ir tão longe na análise neste momento; pretendemos lançar uma pesquisa para aprofundar nossa análise desta situação.

Os juízes conhecem os limites da liberdade de expressão?
Enquanto jornalistas e associações de mídia reconhecem que a ausência de treinamento e qualificação adequada podem resultar em um jornalismo de baixa qualidade, eles apontam também para o fato de que a maioria dos casos de danos morais / difamação divulgados dizem respeito a situações de abuso de poder. Isso deve ser analisado com seriedade pelos juízes; o interesse público na divulgação e cobertura de certos temas também deve ser levado em consideração.

A idéia de que alguns juízes têm demonstrado um entendimento equivocado sobre os limites da liberdade de expressão parece ser confirmado pelo grande número de decisões modificadas em grau de recurso. De acordo com advogados que têm monitorado casos de indenizações por danos morais contra a mídia, instâncias superiores revogam ou modificam cerca de 80% das decisões julgadas procedentes em instâncias inferiores. Além disso, é importante considerar que quando um caso finalmente chega ao STF, muito do prejuízo à liberdade de expressão já se materializou, uma vez que um caso pode levar 10 anos para ser analisado em recurso à referida corte.


A falta de qualificação dos jornalistas explicaria o aumento de processos por danos morais e difamação?
Sim, também. Além da pressa muitas vezes a eles imposta na cobertura de certos temas. Neste sentido, gostaríamos de incentivar a mídia a desenvolver e estabelecer, no interior dos próprios veículos e no meio do setor, sistemas e procedimentos efetivos de auto-regulação, como treinamentos profissionais, padrões para reportagens, ombudsman, mecanismos de reclamação, um comitê de ética, etc. Essa iniciativa seguiria boas práticas adotadas pela mídia em diversos países ao redor do mundo.


Qual seria a melhor solução para toda essa situação?
Acredito que seria importante retomar as discussões sobre os limites legítimos à liberdade de expressão e sobre a importância do banimento da censura. Veja que censura e monitoramento social da mídia – para que cumpra suas obrigações legais e contratuais – são ações distintas. Uma deve ser banida e a outra priorizada. Mas elas são ações complementares na luta pela realização da liberdade de expressão no Brasil.

No caso das indenizações, acreditamos também que soluções não-pecuniárias devam ter prioridade. Nossa posição é a de que as indenizações devem ser utilizadas para reparação e não para punição. Quando outras formas de reparação – que remediem efetivamente o dano causado pelas declarações difamatórias – estiverem disponíveis, elas deveriam ser preferidas aos pagamentos de montantes indenizatórios. Além disso, o valor das indenizações deveria obedecer a um teto a ser aplicado unicamente nos casos mais graves.

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