A batalha do relógio

Se não acontecer algum recuo de última hora*, algo sempre possível no governo federal em questões atinentes à radiodifusão, entra em vigor nesta semana uma regra importante da Portaria 1220, que regulamentou a classificação indicativa da programação de TV. Doravante, todas as emissoras do país deverão obedecer as faixas de adequação horária estabelecidas na portaria – livre, 10 anos, 12, 14, 16 e 18 anos –, independente de estarem em fusos distintos e de eventualmente receberem programação de redes nacionais sediadas no sudeste, horário de Brasília.

Esta medida corrige uma flagrante aberração existente no regulamento anterior, que desconsiderava o fato do país ter quatro fusos horários e de que uma boa parte da massa telespectadora assiste a programação gerada do Rio de Janeiro e de São Paulo com uma ou duas horas de antecedência, que chegam a duas ou três no horário de verão. Se a idéia é regular a oferta de conteúdos com base na adequação dos horários de sua exibição, para poupar as crianças e os adolescentes de nocividades, isso só faz sentido se os fusos forem respeitados. Afinal, salvo engano, a lei deve ser igual para todos e o Estatuto da Criança e do Adolescente tem aplicação em todo o território nacional.

Evidentemente, a implantação dessa medida traz uma série de problemas operacionais e implica custos. Não por outra razão, as emissoras de TV empenharam-se em derrubá-la da Portaria 1220, sem sucesso, e depois trabalharam para adiar ao máximo a sua vigência. Agora mesmo, nesse exato instante, haverá algum diretor da Abert ou da Abra fazendo gestões em Brasília para ver se consegue uma suspensão de última hora. É da regra do jogo, quando os interesses empresariais são confrontados pelo interesse público. Se terão sucesso, é o que saberemos nos próximos dias.

Diferença objetiva

De qualquer forma, goste-se da medida ou não, o fato é que ela tem tem valor legal e entra em vigência. Portanto, obriga todas as emissoras e estende seus efeitos sobre todos os cidadãos. E se assim é, talvez mereça uma análise mais objetiva, que deve avaliar pelo menos três ângulos: a justeza, a sua possível efetividade e os efeitos que ela provocará na cena televisiva.

Quanto à justeza, não parece haver dúvidas. A Portaria 1220 regulamenta a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), que no artigo 74 determina ao poder público "regular as diversões e espetáculos públicos, informando sobre sua natureza, a faixa etária a que não se recomendem, bem como os horários em que sua apresentação se mostre inadequada". Isso está disposto também na Constituição Federal, onde o artigo 21 reza que "compete à União exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão". Além disso, a mesma Constituição estabelece, no artigo 227, "a co-responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na garantia à criança e ao adolescente do direito à educação, ao lazer, à cultura, ao respeito e à dignidade".

Estamos falando, portanto, de uma medida perfeitamente constitucional e legal, que não agride – aliás, observa – outras importantes garantias dispostas no artigo 5 da carta magna, em particular a de que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura e licença" (está no preâmbulo do texto). Falar em obscurantismo, em regressão aos tempos da censura do regime militar, como as emissoras vêm fazendo para desqualificar a Portaria 1220, não é apenas impróprio. É um despropósito e uma agressão ao direito social à comunicação.

Já sobre a possível eficácia, admitido que as emissoras de fato cumpram a portaria e ajustem a programação aos fusos horários, estamos em terreno pouco seguro. Há uma inescapável subjetividade em vincular a adequação de conteúdos a faixas etárias tão próximas, com diferença de apenas dois anos entre elas. Qual a diferença objetiva que existe hoje entre um pré-adolescente de 10 anos e um de 12? Ou de um adolescente de 16 e outro de 18? Por que um garoto de 18 anos pode ver TV a qualquer hora e o de 16 tem de parar às 23 horas? O que há na TV às 20 horas que seja tão distinto das 21 horas? Muitas questões como essas podem ser levantadas.

Instrumento de julgamento

O que se sabe é que, nos centros urbanos – onde já vive a maioria da população brasileira –, as crianças assistem TV à noite, até horas impensáveis nas gerações anteriores. Razão pela qual os institutos de pesquisa indicam que os programas preferidos pelos garotos são os adultos (Cassetta & Planeta, por exemplo), em vez daqueles concebidos para a sua idade. Obviamente, isso varia de acordo com o perfil das famílias, se são mais ou menos conservadoras, se são mais ou menos estruturadas etc. Existem em grande quantidade as que restringem drasticamente o acesso dos filhos à TV e também as que permitem que eles assistam o que quiserem, até altas horas.

Mas é certo que crianças de até 10 anos, no Oiapoque ou no Chuí, em Rio Branco ou em João Pessoa, não desligam o televisor às 20 horas. Se o fazem, é para navegar na internet (as que podem), onde encontram facilmente a mais pesada pornografia, bem mais explícita que a pole dance da moda nas novelas.

Isso apenas ressalta a importância dos pais em exercer a função fiscalizadora sobre o consumo de informação dos filhos, e sublinha a ambição meramente indicativa da Portaria 1220. Quem autoriza ou não os menores a ver TV são os pais, com a orientação da classificação imposta pelo Estado às emissoras. Bem ou mal, subjetiva ou objetiva, eficaz ou não, ela oferece um instrumento de julgamento. Na falta de outro melhor, é adotada em todos os países civilizados. E se não produz nenhuma revolução no comportamento dos telespectadores infanto-juvenis, mal não faz a ninguém e talvez ajude muita gente – portanto é tolo colocar-se contra ela.

Entradas ao vivo

Resta a questão do impacto da medida sobre o mercado de televisão. Para as emissoras, ela representa um ônus financeiro considerável. Ou as "cabeças de rede" enviam sinais específicos (feeds) para cada região horária ou as suas afiliadas gravam a programação recebida via satélite no horário de Brasília, para retransmiti-la na hora local adequada. Em ambos os casos, isso implica a aquisição de equipamentos e ocorre justamente no momento de transição da TV analógica para a digital, o que amplia ainda mais o esforço de investimento no parque técnico.

A complicação operacional também não é pequena. Gravar a programação "enlatada" – novelas, filmes, shows etc – para retransmiti-la mais tarde é simples. Mas, como fazer no caso da programação ao vivo? Como fazer com os telejornais, as transmissões esportivas, os programas interativos tipo Big Brother Brasil? Para que sejam vistos ao mesmo tempo em todo o Brasil, será necessário que as emissoras tenham flexibilidade em suas grades regionais, intercalando seus programas numa ordem distinta daquela seguida na "cabeça de rede". O que implica conceber a "programação nacional" não mais como uma grade fixa, transmitida para todo o Brasil e assistida por todos os telespectadores ao mesmo tempo, em fusos horário distintos, mas como uma grade móvel, a ser composta de acordo com as necessidades de cada praça.

É isso que as emissoras mais temem, porque liquida o atual conceito de transmissão em rede e, por extensão, o formato de comercialização de publicidade "net". Os anunciantes podem não querer que suas mensagens acompanhem a oscilação de horários de uma grade móvel. Podem julgar indispensável que seus consumidores de todo o Brasil estejam "todos juntos, ligados na mesma emoção", assistindo ao mesmo comercial, ao mesmo tempo. E se tiverem esse juízo, talvez repensem seus investimentos na mídia televisiva.

Por outro lado, o que fazer com as freqüentes "entradas ao vivo" de repórteres nos telejornais? Se eles estiverem em Cuiabá, em Manaus ou em Porto Velho, entrarão no tempo real da emissão, horário de Brasília, mais cedo do que seus conterrâneos verão o noticiário. Portanto, seu "ao vivo" só será simultâneo ao de parte dos brasileiros, os da banda oriental. Os demais os verão com atraso. Os papagaios de pirata, que gostam de ficar atrás dos repórteres dando adeusinho para a câmera, terão tempo de sobra para assistir à própria performance.

Esse transtorno à operacionalidade do telejornalismo está sendo apresentado pelas emissoras como um grande prejuízo, quase uma agressão à informação. Mas, convenhamos: qual é, de fato, o problema de assistir a telejornais com delay? Faz alguma diferença se o acreano é informado sobre as essencialidades do Jornal Nacional duas horas depois que os paranaenses? Muda a vida dos amazonenses assistir ao Jornal da Record depois dos capixabas? E quanto às entradas ao vivo nos telejornais, o que há de tão essencial nelas para que justifiquem a audiência simultânea de todo o país? No mais das vezes, não são burocráticas e prenhes de irrelevância, informando sobre "festas que não têm hora para terminar" ou que "é intenso o movimento nas estradas, nessa saída de feriado"?

Controle social

Nos Estados Unidos, país que, como o Brasil, também tem quatro zonas horárias, a televisão em rede nacional se resolve com uma combinação de feeds de transmissão distintos, a partir das "cabeças de rede" situadas em Nova York, e da gravação dessas transmissões pelas estações locais, afiliadas. A Costa Oeste assiste TV com atraso em relação à Costa Leste, inclusive telejornais e eventos ao vivo. As votações dos programas interativos foi organizada para funcionar nesse esquema. Só em casos especiais a grade nacional é alterada, para permitir a simultaneidade de uma transmissão.

Seja como for, o transtorno da obediência à Portaria 1220, na questão dos fusos horários, não é desprezível. Nenhuma das objeções levantadas pelas emissoras é descabida. Por isso mesmo, teria sido muito útil que elas se dedicassem ao debate franco e aberto dessas questões com a sociedade, em vez de tentar derrubar o regulamento "no tapetão", articulando nas sombras em Brasília.

Por que os problemas e os riscos trazidos pela obediência aos fusos não foram apresentados claramente, explicitamente, à opinião pública? Por que as emissoras escudaram-se no argumento desonesto da "censura", quando tinham algo muito mais sólido – a conveniência do telespectador, a efetividade do investimento publicitário, a estabilidade do mercado televisivo – para defender as suas posições?

A resposta é simples: tradição. A radiodifusão acostumou-se a ter poder, não a compartilhá-lo com a sociedade. Acostumou-se a fazer valer seus pleitos em qualquer governo, qualquer circunstância, lixando-se para os eventuais conflitos com o interesse público. Nessa questão dos fusos, tentaram até mesmo unificar tudo ao horário de Brasília, sem considerar o que isso pode representar em termos orgânicos, sociais e econômicos para uma grande parte da população brasileira. Agora, mais racionalmente, concentram-se no projeto do senador Tião Viana (PT-AC), que reduz os quatro fusos a apenas dois.

O Brasil está mudando, a democracia avança. A cidadania quer a mídia livre de censura, mas não de controle social. A radiodifusão já encontra dificuldades para permanecer acima e além de qualquer regulamentação efetiva. Esse é o recado mais claro do processo de implantação da Portaria 1220. Ela pode ser aperfeiçoada, sem dúvida alguma, e é bom que seja, se demonstrar-se ineficiente. Mas ela não será derrotada apenas com alarido e leviandade. No grito, não vai dar.

***

*Nota do Autor – O texto acima foi escrito na manhã de terça, dia 8. Hoje, manhã de quarta, dia 9, os jornais já trazem a informação de que o Ministério da Justiça adiou a vigência da medida dos fusos horários por mais 90 dias, "para possibilitar efetivamente a adequação técnica das emissoras", segundo o secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Jr [ver abaixo]. Presume-se, portanto, que nos últimos 180 dias, prazo anterior, as emissoras não fizeram nada de efetivo para se adequar. Efetivo mesmo foi o lobby sobre o governo, modalidade em que o setor de radiodifusão é imbatível. Agora, serão 210 dias para os fusos horários terem vigência, desde a edição da Portaria 1220. Ou para a radiodifusão obter a extinção deles no Congresso Nacional. Isso, claro, se não houver novo adiamento em 9 de março, ou mesmo a revogação desse ítem da portaria. Faça sua aposta.

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