Professora assistente da Universidade Federal de Sergipe e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia, Messiluce da Rocha Hansen tem conseguido alcançar, nos últimos sete anos, patamares de prestígio na comunidade acadêmica dos estudos das políticas públicas de comunicação no Brasil.
Tendo publicado em 2007 seu primeiro livro, “Esfera pública, democracia e jornalismo”, Messiluce Hansen tem experiência na área de Teoria Política Contemporânea, atuando principalmente nos temas que envolvem cidadania e representações sociais.
Em entrevista para o Boletim de Notícias da Rede Eptic, a professora fala sobre a relação entre liberdade de imprensa e democracia, destaca o processo de monopolização das empresas de comunicação e defende a pluralidade de discurso na esfera pública. Messiluce trata ainda do surgimento da rede pública de comunicação no Brasil, abordando o panorama do mercado de televisão, e revela que a TV pública pode proporcionar maior participação da sociedade civil na produção de conteúdo. Confira na íntegra a conversa:
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Em seu livro – Esfera Pública, Democracia e Jornalismo -, a senhora estabelece uma estreita ligação entre liberdade de imprensa e democracia. Como se estabelece a relação entre liberdade de empresa e liberdade de imprensa?
É preciso fazer uma pequena contextualização, salientando, mesmo que de forma bastante breve e superficial, a relação que há entre o modelo de democracia liberal e capitalismo. Existe, no próprio nascedouro da imprensa profissional, uma estreita relação entre as liberdades civis, entendidas como liberdades de expressão, de opinião e de reunião, a contestação ao poder vigente e a própria defesa que a burguesia faz do modelo de democracia liberal, incorporando também os elementos do modo de produção capitalista.
Há uma ênfase também na liberdade de empresa, que é a liberdade que as pessoas têm de trabalharem e produzirem o capital. Isso tem gerado confusão no tratamento da liberdade de imprensa, porque muitas vezes se confunde liberdade de imprensa, que é uma liberdade institucional ancorada nas liberdades civis, com a liberdade de empresa, que é a liberdade para atuar no mercado. Percebe-se, sobretudo a partir da década de 60, um processo de monopolização das empresas de comunicação, onde o setor de comunicação vai ser, não apenas dominado por empresas capitalistas, mas também por um número cada vez mais restrito de empresas de comunicação. Isso constrói um modelo social bastante complexo e, do ponto de vista democrático das liberdades democráticas e civis, é preocupante, porque se trata de uma ameaça significativa a um dos elementos fundamentais da democracia, que é a liberdade de expressão e de opinião, e à presença de uma pluralidade de discursos na esfera pública.
A importância dessa pluralidade de discurso na esfera pública é a existência de uma diversidade de abordagens, de discursos ideológicos que permitam que as pessoas que consomem informação pelos meios de comunicação de massa possam formar, de maneira crítica e autônoma, a sua opinião. É preocupante quando se tem um quadro em que as empresas de comunicação capitalistas dominam limitam o que pode ser difundido e divulgado na esfera pública.
A relação que eu faço entre a liberdade de imprensa e a liberdade de empresa é exatamente a partir de um posicionamento crítico. Atualmente, se observarmos tratados internacionais que abordam a questão da liberdade de informação e liberdade de comunicação, perceberemos que elas se apóiam em elementos da democracia liberal, na defesa dos princípios e valores capitalista, defendendo livre fluxo da mercadoria informação, sem atentar, por exemplo, para um aspecto fundamental, que é a liberdade de comunicação. Esta, com uma base muito mais social, abrindo também uma perspectiva para a participação não apenas dos setores capitalistas da comunicação, mas também daqueles setores não privados da comunicação, dos setores da sociedade civil.
Então, o aspecto que eu poderia pontuar é exatamente essa questão de que hoje há uma defesa, inclusive dentro das normas vigentes, da liberdade de empresa, e que essa liberdade de empresa não garante a efetiva liberdade de expressão, de opinião, de manifestação na sociedade complexa como a nossa.
A senhora ressalta em seus textos que os canais sociais de publicidade são uma das principais arenas de conflitos travadas a níveis simbólicos e acabam desenvolvendo uma distribuição desigual do poder. Nós podemos relacionar esse evento à decadência da esfera pública?
A tese da decadência da esfera pública foi uma tese desenvolvida pelo Habermas, ainda na década de 60, em um livro clássico dele, “A Estruturação da Esfera Pública Burguesa”, onde ele falava que a vigência dos meios de comunicação de massa e a indústria cultural teriam contribuído para o esvaziamento normativo da esfera pública. Nesse sentido, a opinião já não era formada pelo conjunto da sociedade em uma discussão pública e racional, ela teria se transmudado numa opinião construída de cima para baixo, imposta pelos meios de comunicação de massa.
Posteriormente, Habermas reviu essa questão, porque sua tese inicial não lidava com a própria complexidade da esfera pública e a complexidade dos meios de comunicação de massa. Isso porque ele não entrava na minúcia, por exemplo, da presença de sistemas públicos de comunicação, rádios e TVs públicas, nem dos canais de comunicação alternativos da sociedade civil, as chamada rádios livres. Ele não avaliou os detalhes da pequena imprensa diante de um quadro dominado pelas grandes corporações. Há ainda uma presença marcante dos movimentos sociais e seu trabalho na construção de uma opinião pública informada e crítica.
Então, a partir desse marco, que se coloca a partir da década de 80, quando Habermas vai adotar uma teoria mais pragmática da sua teoria da ação comunicativa, ele revê seu próprio conceito de esfera pública, que passa a ser visto como redes de esferas públicas, abarcando a esfera pública institucional do Estado, a esfera pública da sociedade civil propriamente dita, onde estão incluídos os movimentos sociais, e a esfera pública formada pelos meios de comunicação de massa.
Esses três modelos de esfera pública se interconectam. Para que o movimento social consiga ganhar visibilidade, ele precisa estabelecer pressão sobre a esfera pública midiática, de forma que o seu discurso ganhe ressonância social. Mas, não importa apenas a ele ganhar ressonância social e ganhar legitimidade frente à opinião pública. Eles também precisam pressionar a esfera pública do Estado formal, pois é nessa esfera que eles vão ter suas demandas atendidas, seja em ações do executivo ou ações do legislativo. Nesse aspecto, os canais sociais de publicidade são importantes porque farão com que as questões polêmicas da sociedade possam ser problematizadas.
Há uma resolução consensual do conflito, que pode gerar ou não ações na esfera pública do Estado. É isso que vai interessar aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada. Mas acho que o principal fator a salientar é que a esfera pública não decaiu, não está morta. Ela mudou, se complexificou. Para entender a sua complexidade, é preciso entender tanto a complexidade do sistema midiático, nas suas subdivisões; o papel efetivo da sociedade civil e dos movimentos sociais no processo de luta constante pela democracia e a complexidade do próprio Estado e a necessidade que este tem para se manter democrático.
Quais as relações entre o público e o privado no mercado de televisão no Brasil? Como a senhora observa os processo de implantação de um modelo público de radiodifusão no país?
É preciso notar que vivemos um período em que há o surgimento de uma nova plataforma digital, que tem possibilitado um maior acesso à informação, não necessariamente jornalística, filtradas pelo jornalismo, mas também informações que a própria sociedade organizada passa a oferecer de forma direta. O problema é que o acesso à Internet ainda é muito restrito no Brasil. Atinge esferas restritas da classe média, que tem poder aquisitivo para consumir esses produtos e para ter acesso à educação necessária para isso.
Um elemento fundamental é que a maioria das informações sobre a política é difundida pela TV. E nós, no Brasil, tivemos um modelo de televisão dominado pelo modelo comercial. Nosso modelo de televisão é um modelo de concessão pública, mas essa concessão pública é concedida a empresas privadas que desempenham esse papel, um papel fundamental na democracia, porque eles têm o papel de manter essa relação entre a esfera do Estado e a sociedade como um todo.
É interessante notar, por exemplo, o surgimento agora dessa discussão da formação de uma rede pública de comunicação. Esse é mais um fator que traz novos elementos para se refletir sobre a oferta de informação na nossa sociedade, porque no modelo aberto de TV pública, a sociedade civil tem uma maior participação, seja na coordenação dessa instituição, no controle de instituição, ou seja, na produção de conteúdo. Isso vai fazer com que aquele aspecto fundamental do funcionamento de uma esfera pública possa realmente começar a ganhar novos nativos.
Pode-se haver uma situação em que a entrada de uma rede pública de comunicação, somada à rede já estatal de comunicação e à rede comercial de comunicação, possa ampliar os espectros dos discursos e das informações que circulam na nossa sociedade. Isso vai fazer com que, pelo menos em tese, o cidadão possa ter acesso a uma gama mais diversificada de enfoques sobre os acontecimentos. Este é um elemento fundamental porque a informação é um instrumento fundamental para a formação da opinião individual e para a formação da opinião pública de uma forma crítica, de uma forma autônoma, e é através dessa opinião que nós vamos, enquanto cidadãos, tomar decisões importantes sobre os destinos de nosso país.
Então, o grande elemento é ver como vai se configurar esse quadro, de que essa esfera pública midiática possa agora contar com um novo integrante que venha trazer uma maior diversidade para essa esfera de publicidade, que é a esfera pública midiática. No processo de licitação das concessões de rádio e TV, um elemento que é fundamental é a produção local e a regionalização da produção. Esse é um que, se as agências responsáveis e o Ministério das Comunicações fossem levar a rigor, poderia levar inclusive a uma suspensão de uma concessão, já que a maioria das empresas de comunicação não regionalizam a sua produção. A principal justificativa dada pelas grandes redes é que não haveria capital humano qualificado para produzir esse conteúdo, o que pode ser facilmente contestado pelo crescimento do número de cursos superiores na área de comunicação, não apenas de jornalismo, mas também da publicidade, relações públicas, etc.
Um outro elemento é que as empresas cabeças de rede, como o SBT e a Rede Globo, que são empresas privadas, acabam centralizando suas produções nos seus próprios eixos, nas suas regiões sedes no Sudeste, a depender de onde a empresa esteja fixada, o que leva a uma visão muitas vezes deturpada e desigual da riqueza cultural brasileira. A multiculturalidade brasileira não ganha efetivamente expressão na nossa produção cultural, especialmente a televisada, e quando ganha, muitas vezes é de forma estereotipadas.
Como a comunidade acadêmica pode contribuir no processo de democratização dos meios de comunicação?
A comunidade acadêmica pode contribuir de várias formas. Uma delas é através da pesquisa, conhecendo a realidade e, quando possível, diagnosticando essa realidade, onde o aspecto de gerar conhecimento é fundamental. Uma outra forma é na qualificação da mão de obra, já que os professores atuam na formação da pessoa que irá trabalhar no mercado de comunicação, visando uma educação de qualidade, com uma ênfase na ética, na responsabilidade civil e social, trabalhando com a criatividade. A academia tem a possibilidade de, não apenas diagnosticar o presente, mas também de traçar bases para o futuro, de trazer elementos que colocam a academia em um papel fundamental de gerar conhecimento e de capacitar as futuras gerações para atuar nesse mercado.
Do ponto de vista dos estudantes de Comunicação, o primeiro aspecto é tornar-se um sujeito crítico, tornar-se um cidadão crítico ativo. Se você, em sua base, é um cidadão crítico ativo, você será também um jornalista crítico. É claro que há restrições do mercado, mas a criatividade também nos ajuda a vislumbrar novos espaços de atuação, que não sejam na mídia comercial. Há uma crescente necessidade da sociedade de ter assessores de comunicação qualificados, a exemplo das ONG’s, a exemplo dos movimentos sociais, e é interessante notar como esses setores estão se profissionalizando e buscando também profissionais para que possam estabelecer uma relação mais efetiva com a sociedade. Então, nós fazemos aquele retorno aos canais sociais de publicidade, que há uma necessidade também de maior qualificação da sociedade civil para atuar em uma sociedade complexa, que depende de comunicação, que depende de informação de qualidade, porque é através dessa visibilidade que os movimentos sociais da sociedade civil vão legitimar as suas demandas, legitimar os seus discursos. Eu acho que um aspecto fundamental nessa discussão é a contribuição que a academia pode dar, na geração de conhecimento, na prospecção de futuros possíveis de uma esfera pública mais ativa, de meios de comunicação democráticos.
Colaboração: Joanne Mota (graduanda do curso de Radialismo da UFS e bolsista de iniciação científica do Obscom)
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