Radiodifusão comunitária: uma batalha desigual

Essa novela você não assistirá na TV. Nem lerá nada a respeito nos jornalões. Muito menos escutará o resumo dos capítulos no rádio do seu carro. O roteiro foi escrito pelas entidades militantes da comunicação e batizado de O Direito de Nascer. A inspiração veio do título veio da famosa radionovela cubana da década de 1940, que foi produzida no Brasil no rádio e na televisão em três versões. A trama é longa, portanto apresentamos uma sinopse resumida.

O primeiro capítulo acontece no ano de 1998, quando foi aprovada a lei nº 9.612, que autoriza a existência de rádios comunitárias. Até então, esse conceito não existia e todas eram consideradas “piratas” ou “clandestinas”. Os grandes grupos de comunicação não gostaram dessa idéia, mas não conseguiram evitar que o projeto fosse aprovado no Congresso. A partir da aprovação, foi expedido o aviso de habilitação para os interessados em um lugar no dial.

Pano rápido. O cenário é uma quadra poliesportiva na rua da Mina, no bairro de Heliópolis, na periferia de São Paulo. Estamos no dia 11 de agosto de 2007, um sábado. O clima é festa. Neste endereço funciona o União de Núcleos, Associações e Sociedade de Heliópolis e São João Clímaco (Unas), a entidade que gere a rádio Heliópolis.

Depois de mais de um ano fora do ar, finalmente a rádio voltou a funcionar na freqüência 87,7 Mhz. Fundada em 1997, a rádio cobre as cinco maiores favelas de São Paulo. Em seu entorno vivem cerca de 100 mil pessoas, que podem acompanhar a programação ao vivo entre as seis da manhã e a meia-noite. Estima-se que 34% dos moradores das áreas onde chega o sinal são ouvintes fiéis da Heliópolis, que ganhou diversos prêmios, entre eles o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Motivos não faltavam para comemorar. A rádio foi fechada e lacrada pela justiça e órgãos reguladores do setor desde 20 de julho de 2006 em uma ação que lembrou a repressão dos tempos da ditadura.

Para voltar à ativa, Heliópolis teve que buscar uma brecha na lei: vai funcionar, por enquanto, apenas em caráter experimental. O retorno só foi possível graças a uma parceria entre a Unas e a Universidade Metodista de São Bernardo do Campo e ao apoio da Oboré Projetos Especiais em Comunicação e Artes. A idéia é que em sua nova freqüência (87,7 FM), a rádio Heliópolis passe por testes para verificar se há ou não interferência nas rádios comerciais. No dia da festa, nenhum jornalista da grande ou média imprensa apareceu. Os únicos microfones e câmeras eram dos veículos da região ou de estudantes que faziam um trabalho de conclusão de curso.

 Mas por que uma rádio que opera abertamente, é premiada e já cansou de provar sua importância para a comunidade tem que operar em caráter experimental? “A rádio nunca ficou escondida. Não era regularizada porque as condições não permitiam. O Ministério não publicava os avisos de habilitação”, diz Cristina Cavalcanti, responsável pelo escritório paulista da Amarc (Associação Mundial das Rádios Comunitárias). Pano rápido.

Quinta feira, 16 de agosto. Depois de cinco dias debruçados sobre dados da Anatel e do Ministério das Comunicações, o coletivo Intervozes publica na página eletrônica do Observatório do Direito a Comunicação um documento explosivo: mais de 90% das emissoras de FM de São Paulo estão com outorgas vencidas, mais de 50% não tem outorga para operar na capital e estão consignadas para empresas de outros municípios.

Grupos usam de artimanhas jurídicas como forma de burlar os princípios da legislação para possuir diversas emissoras; 50% das permissões “educativas” não cumprem sua função social. “Dois grandes grupos orgulham-se de ter cinco emissoras de FM transmitindo para São Paulo, chegando a vender publicidade casada para as diversas emissoras. O Grupo Bandeirantes controla a Band FM, BandNews, Bandeirantes, Nativa e Sul-América Trânsito. Já o grupo CBS, dos irmãos Paulo e José Masci de Abreu, controla a Kiss, Mundial, Tupi, Scalla e Terra”, explica o relatório do Intervozes. 

Sobre púlpitos e palanques

O estudo do Intervozes e o capítulo da reabertura da Heliópolis são as duas pontas mais visíveis de uma guerra surda e subterrânea que está sendo travada em São Paulo. Para entender este episódio cheio de meandros técnicos é preciso um breve preâmbulo. A cidade de São Paulo foi a última do Brasil a receber o aviso de habilitação do Ministério das Comunicações para as rádios comunitárias. Dizia a justificativa oficial que a maior metrópole do país simplesmente não tinha mais espaço no dial para receber um novo canal, destinado as rádios comunitárias. “O dial é limitado. São freqüências. Como as rádios comerciais da cidade ocupavam todas as freqüências, a Anatel contratou o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) para encontrar uma freqüência. Em 2004, a Anatel divulgou que encontrou o canal 87,5. Mas apenas em dezembro de 2006 o aviso foi expedido”, explica Anna Cláudia Vazzoler, advogada e coordenadora jurídica do escritório-modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da PUC-SP. Ela foi uma das responsáveis por dar auxílio jurídico às associações que pleitearam licença para operar.

As pretendentes deveriam ter baixa potência e alcance restrito e manter uma distância de quatro quilômetros uma das outras. Cento e trinta entidades enviaram documentação para o ministério. “Estima-se que existe espaço apenas para 40 ou 50 rádios”, explica Cláudia. Das pretendentes, 117 cumpriam todos requisitos. “Várias foram desclassificadas por serem claramente religiosas. Em outras, não há como perceber isso pela razão social. Tem que esperar entrar no ar para praticar proselitismo. Existem, ainda, comerciais disfarçadas de comunitárias. Mas a maior parte é comunitária no melhor sentido da palavra”, pontua João Brant, do coletivo Intervozes.

Assim, como decidir quem entra e quem fica de fora entre as que estão aptas? É aí que começa o capítulo mais dramático desta novela. “A lei diz que o ministério deve promover o entendimento entre as emissoras, buscando que elas se componham. Acontece que esse entendimento não foi promovido”, diz João Brant. O critério de “desempate” em caso de duas rádios que pleiteiem uma vaga na mesma região é o maior número de apoios – leia-se assinaturas da comunidade. “Com isso, as associações que conseguiram mais 'apoios' não vão querer se compor. Quem tem mais estrutura, leva. É só mandar gente para a porta do metrô para recolher assinatura. Ou passar a lista depois do culto da igreja evangélica”, dispara Sergio Gomes, da Oboré, empresa que lidera o movimento Pelo Direito de Nascer.

 “Tivemos notícia de muitas associações que conseguiram as assinaturas de maneira trapaceira. Não temos prova, mas sabemos que muitas foram investigadas”, completa Cristina, da Amarc. Os capítulos finais do Direito de Nascer devem acontecer em dois fronts. O primeiro é a batalha por mais um canal no dial de São Paulo para abrigar as rádios comunitárias. O espaço existe, só está mal ocupado. O outro é tentar mudar os critérios de desempate, para algo como, por exemplo, uma comissão formada por pessoas de notório saber que decidiriam as pretendentes. De qualquer forma, já é um avanço que este debate exista. Só falta o público ficar sabendo. 

São Paulo tem um plano

Uma lei municipal de 2005 deu à cidade de São Paulo a autonomia de decidir sobre as outorgas. Por iniciativa dos vereadores Ricardo Montoro (PSDB) e Carlos Neder (PT), foi sancionada pelo então prefeito José Serra a lei que inclui no Plano Diretor da cidade um plano diretor para as rádios comunitárias. A municipalização das outorgas, entretanto, está sendo contestada na Justiça paulista pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Além disso, o ministério não autorizou nenhuma rádio comunitária a funcionar na capital paulista. 

 “São Paulo instituiu, no Plano Diretor da cidade, a obrigatoriedade de o município criar um plano diretor de radiodifusão comunitária. Transformou a questão do planejamento da localização das rádios comunitárias em uma questão de legislação municipal. Foi pioneira. A cidade tem uma topografia acidentada, muitos prédios. A localização das emissoras não pode seguir um critério abstrato, como se a cidade fosse plana. Além disso, esse critério estúpido, uma rádio a cada quatro quilômetros da outra, deixa muitos brancos, áreas descobertas. Em São Paulo os interesses das emissoras já regulamentadas é maior. Elas têm muita força política e não têm interesse em que as verdadeiras comunitárias entrem em funcionamento. O processo aqui está enrolado”, informa o ex-vereador Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que é um dos líderes do movimento em defesa das rádios comunitárias.

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *