Autonomia e independência em risco na nova TV pública

Quando o Governo Federal anunciou a intenção de construir uma rede pública de televisão, setores da sociedade logo se preocuparam em definir as diferenças fundamentais entre emissoras públicas e estatais. Para ser de fato pública, a nova TV deveria ter gestão independente do governo, financiamento não contingenciável e uma programação que refletisse a diversidade da sociedade brasileira. Não cumpridas estas premissas, a nova instituição acabaria por se constituir como uma TV estatal ou governamental, mas não uma TV pública.

A apreensão de que tais princípios não fossem respeitados não nos impediu de apoiar a iniciativa. Afinal, é evidente a necessidade de se instituir no país um autêntico sistema público de comunicação, autônomo e independente em relação aos governos e ao mercado. Historicamente, o setor comercial de rádio e TV tem se mostrado incapaz de garantir o debate plural sobre as questões centrais para o Brasil. São inúmeros – e permanentes – os exemplos em que os interesses particulares dos donos da mídia se impõem frente ao interesse público, com resultados desastrosos para a democracia.

A polêmica sobre “público X estatal” parecia ter sido dirimida com a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas, em maio deste ano, quando governo, emissoras do campo público e organizações da sociedade civil assinaram a Carta de Brasília, documento que estabelecia diretrizes para a nova TV pública: ela deveria ser independente em relação ao governo federal, com autonomia para estabelecer sua programação e gerenciar seus recursos. O conselho gestor da TV Brasil, explicitava o documento, deveria ser representativo da sociedade e, em sua composição, o governo não deveria ter maioria. Buscava-se, assim, afastar o risco de a emissora se tornar braço político do Executivo federal, qualquer que seja seu ocupante.

Nos últimos meses, prevaleceu a convicção de que o governo cumpriria o compromisso assumido e daria efetividade aos princípios pactuados. De fato, alguns princípios parecem estar se concretizando. Será um avanço se o governo realmente adotar um modelo de rede horizontal e descentralizado. Também é positivo o incentivo à autonomia das emissoras estaduais em relação aos governos locais.

Entretanto, o que parecia consolidado – o caráter público da nova instituição – está sob risco. A proposta atual do governo contraria os princípios da Carta de Brasília ao estabelecer mecanismos de gestão vinculados direta e exclusivamente ao Executivo federal. Pela proposta, tanto o conselho gestor da TV (responsável por zelar pelas finalidades públicas da instituição) quanto a presidência da nova emissora seriam indicados pelo presidente da República, sem qualquer necessidade de aprovação por órgão independente.

Ora, com um conselho de “personalidades” indicado pelo presidente, a TV perde sua autonomia e independência, ameaçando seu caráter público. Não é a mera existência de um órgão gestor que confere à emissora este caráter. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência da instituição em relação ao governo. Além disso, é a própria sociedade quem deve escolher os seus representantes. A idéia de um governo que indica, em nome da sociedade, quem a representa, é paternalista e anti-democrática, independentemente de quem sejam estes indicados.

Alega o ministro Franklin Martins que representantes de instituições no conselho gestor da emissora tendem a defender interesses corporativos. A preocupação com a possível contaminação da instituição por interesses particulares é legítima, mas a solução proposta é a pior possível. É certo que não deve haver no conselho vagas fixas para qualquer instituição. O desafio é estabelecer mecanismos democráticos e participativos de indicação, seja por conferência ou por eleição direta. Esse modelo já é utilizado – e bem-sucedido – em estruturas como o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho das Cidades que, embora tenham atribuições distintas do conselho de gestão da nova TV pública, também têm a missão de representar o conjunto da sociedade.

A ousadia e coragem que o governo teve ao propor a criação de uma nova rede de televisão devem permanecer na escolha de seu modelo de gestão. Neste momento de definições, é imprescindível zelar pelo caráter efetivamente público da futura instituição, para que nenhum governo, a qualquer tempo, possa utilizá-la como um instrumento político. Que assim seja, para o bem da ainda incipiente democracia brasileira.

*Diogo Moyses e João Brant são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Active Image Folha de São Paulo

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