Telecentros: o lugar certo para a inclusão digital

Recentes afirmações a respeito da inclusão digital no país valorizaram o papel desempenhado pelos locais de acesso pago, conhecidos como lan houses. Para os que defendem a inclusão digital como um processo amplo e democrático de apropriação tecnológica, que garanta aos cidadãos o direito à comunicação e a sua intervenção crítica e autônoma na esfera pública infomidiática para um necessário processo de transformação do status quo, os espaços públicos de acesso, chamados telecentros, são a única opção. 

A universalização dos direitos do cidadão, como a saúde e a educação, exigem políticas públicas que invistam recursos em estruturas gratuitas de acesso. Não se supõe a universalização dos direitos como oriundos exclusivamente de estruturas privadas. Ao contrário, as entidades defensoras desses direitos afirmam que os planos de saúde e as escolas privadas não são capazes de garanti-la, já que reproduzem e trabalham dentro da excludente lógica do mercado-consumidor.  

A inclusão digital é um processo de apropriação das novas ferramentas tecnológicas de informação e comunicação, de forma a permitir a autonomia para pessoas historicamente excluídas dos seus direitos. O telecentro é local de acesso ao conhecimento, cultura, educação, formação, entretenimento, compressão crítica da realidade e produção de comunicação comunitária. A gestão valoriza a democracia participativa deste espaço, que é público, incentivando a participação direta dos cidadãos enquanto agentes políticos. Portanto, o telecentro é um local de busca, valorização e promoção da democracia e da cidadania. 

Por isso não é possível a comparação entre um telecentro e uma lan house. São espaços conceitualmente diferentes quanto aos seus objetivos e práticas. Muito menos é possível afirmar, como recentemente o fizeram, que “são as lan houses que estão, de fato, fazendo a inclusão digital neste país”. Pode-se afirmar que esses espaços estão oferecendo acesso ao computador e a Internet para uma parcela da população, mas com um viés muito restrito diante das possibilidades da tecnologia e com uma limitação também de público, nesse caso chamado de “consumidor”. Não há nenhuma perspectiva crítica, libertadora ou transformadora no interior de uma lan house. Pelo contrário, ali se reproduz, na sua essência, a relação excludente e individualista do “usa quem pode pagar”. 

Um telecentro precisa ter um projeto político-pedagógico. É através de um processo de construção coletiva que serão definidas atividades, como oficinas de jornalismo comunitário, software livre, direito à comunicação, governo eletrônico, radioweb, pedagogia de Paulo Freire, economia solidária, entre outras que ao longo do tempo são realizadas com o objetivo de apresentar o potencial transformador da tecnologia e sua relação com o nosso cotidiano, respeitando e dialogando com a realidade e com as características de cada comunidade.  

Diversos projetos dos poderes públicos já foram implementados em todo Brasil e outros estão em andamento. Há um longo e complexo debate acerca de todos os assuntos no que diz respeito a implementação, manutenção, infra-estrutura, conexão, gestão, recursos humanos, capacitação e financiamento de telecentros públicos. Deve-se, com base nessas experiências, realizar um amplo debate que reúna os atores estatais envolvidos, garantida a participação de entidades da sociedade, avaliando essas iniciativas para assim pactuarmos os parâmetros e práticas de uma política pública de inclusão digital para o país.  

Dados do IBGE e do Comitê Gestor da Internet no Brasil (2006) indicam números importantes sobre os locais onde a população brasileira tem acesso a rede. Segundo a pesquisa, apenas 33,3% da população já acessaram, ao menos uma vez, a Internet. Desse total, 40,4% acessam da própria casa e outros 16,1% da casa de um amigo/familiar; 24,4% do local de trabalho; a escola é o local de acesso para 15,5%. Os locais de acesso pago (lan house) são a opção para 30,1% e centrais públicas de acesso (telecentro) para 3,5%.  

A maior parte da população brasileira não possui renda suficiente para a aquisição de computadores (apesar do relativo sucesso do importante programa federal de incentivo) e para o alto custo de uma conexão banda larga (média de R$ 70,00 mensais); temos, portanto, uma limitação estrutural que é relevante do ponto de vista quantitativo. O mesmo ocorre com a limitação do público que pode acessar através de uma lan house. Para um cidadão que pretende ficar em média 2 horas por dia conectado, o que não é muito para a média nacional dos já incluídos, ao final de um mês ele terá que desembolsar cerca de R$ 60,00. Isso equivale a 15% de um salário mínimo, atualmente em R$ 380,00.  

Aproximadamente 10% da população economicamente ativa brasileira está desempregada e 2 em cada 3 dos (das) trabalhadores (as) empregados recebem até 2 salários mínimos. Por isso, as lan houses apresentam uma enorme limitação para, de fato, universalizar o chamado acesso simples. E mais: só existirão lan houses onde é possível haver retorno financeiro e onde há conexão banda larga disponível. Um grande complexo habitacional miserável, habitado por milhares de pessoas de baixa renda, receberá o número de lan houses compatível com o mercado consumidor em potencial do local. Portanto, independentemente de existirem 50 mil pessoas, o número de lan houses possíveis será definida a partir de um cálculo matemático que ao final garanta a rentabilidade de um investimento e não a garantia de um direito. 

Não há campanhas contra as lan houses organizadas por aqueles que desejam manter a estrutura social excludente da sociedade brasileira. O que pode haver é a tradicional disputa de mercado entre empresas ou microempresas na disputa pelo lucro. Dentro desse contexto estão inseridas as lan houses. É preciso compreender que, como em qualquer outra área da economia capitalista, existem disputas de mercado, onde os maiores ou mais poderosos buscam a concentração do setor. Cabe a cada empresário optar pela forma de inserir-se nessa disputa, sabidamente desigual e concentradora. 

O que está na ordem do dia no país é a necessidade de uma política pública para a área da inclusão digital que dê conta de interligar as ações e iniciativas de governo em andamento, sejam elas federais, estaduais e municipais e, fundamentalmente, ampliar os investimentos para aumentar sensivelmente a escala dos projetos públicos de inclusão digital. Essa política pública precisa ter como objetivos um plano nacional de universalização de banda larga, a capacitação contínua, o incentivo à comunicação comunitária, a existência dos telecentros como centrais públicas de comunicação, tendo em vista o potencial da convergência tecnológica, a formação de redes para a colaboração das produções potencializando a sua circulação e um processo contínuo de avaliação. Os R$ 6 bilhões do Fundo Nacional de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) podem viabilizar essa política. 

A participação da sociedade nesse processo é central. A amplitude de possibilidades, as demandas e a realidade de cada comunidade precisam ter espaço de diálogo nos processos de elaboração, implementação, fiscalização e avaliação da política pública nacional de inclusão digital. Para tanto, em nível federal, estadual e municipal, é preciso que sejam instituídas estruturas que tenham essas atribuições e que permitam ampla participação da sociedade. Não há política pública sem a participação democrática da população.  

Não se pode aceitar o argumento de que “é caro o custo de manutenção dos telecentros”. Trata-se de retorno social e o termo correto nesse caso é investimento público para garantia de um direito. Ao longo das últimas décadas, os ideais neoliberais de “estado mínimo” foram implementados e como conseqüência temos uma população desassistida em relação ao conjunto de seus direitos sociais. O investimento em telecentros gera empregos, contribui com a distribuição de renda nas comunidades de baixa renda e por isso movimenta a economia local. Além disso, busca-se legitimar a idéia de que é exclusiva da iniciativa privada a capacidade de “investir certo, onde há retorno”. Trata-se de uma visão exclusivamente mercadológica.

Aqueles que defendem as lan houses como espaço da inclusão digital começam agora a solicitarem linhas de financiamento público para a abertura destes espaços, supostamente na periferia das cidades. Trata-se de, ao invés de investimentos em estruturas públicas, a antiga prática do financiamento privado através dos recursos públicos. Considera-se que a inclusão digital deve ser vista como uma atividade de empreendedorismo privado.


A adoção pelo software livre, utilizado em grande parte dos telecentros do país, é também uma opção política e, portanto, não é uma questão de não se realizar “pirataria”. As lan houses começam a se preocupar com o fato de utilizarem cópias não autorizadas de software proprietário temendo as multas cabíveis. Cogitam a utilização do software livre não como prática de construção livre e colaborativa do conhecimento, mas sim como uma forma de sobreviverem e não serem criminalizadas, conforme prevêem as injustas leis atuais de direito autoral.
 

O telecentro não é espaço de tutelação. É local para aprendizado coletivo, criatividade, valorização da diversidade e da cidadania. Apenas uma política pública é capaz de universalizar direitos. Cabe à sociedade organizar-se para exigir dos governantes a efetivação, de forma democrática, da inclusão digital. As lan houses serão apenas um apêndice limitado desse processo necessariamente universalizante e transformador.


* Flávio Gonçalves é jornalista, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e membro da coordenação regional do Projeto Casa Brasil – flasg@ig.com.br

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