Rádios comunitárias: até quando marginais?

A pressão popular contra o fechamento da Rádio Heliópolis pela Polícia Federal em 20 de julho do ano passado deflagrou um processo que estava embaraçado há anos. Até hoje, as rádios comunitárias estiveram ilegais em São Paulo não por opção própria ou negligência, mas pela ausência de qualquer outra opção. Desde 1998, quando a lei 9.612 regulamentou o funcionamento das rádios comunitárias, o município de São Paulo esperava por um aviso de habilitação do Ministério das Comunicações, documento oficial que convoca as entidades interessadas em obter autorização para este tipo de serviço em determinado município. Sem isso, não havia como se legalizar. Em 7 de dezembro de 2006, mais de oito anos depois da promulgação da lei, o aviso para o município de São Paulo foi finalmente publicado. O que parecia ser o fim de uma história mostrou-se apenas um longo primeiro capítulo. O aviso de habilitação já deu início a outro, que prenuncia ser tão complicado quanto o primeiro, e mostra como a regulamentação das rádios comunitárias é feita de modo a inviabilizar a sua existência.

   

A situação de São Paulo merece ser observada com atenção por dois motivos: primeiro, por ter particularidades que fazem da cidade um caso especial – a existência de leis municipais específicas sobre o tema, a formação de uma ampla frente de apoio à legalização das rádios (com participação de diversas entidades, Defensoria Pública, vereadores e deputados), além da alta densidade populacional aliada à alta demanda. Em segundo lugar, por ser um exemplo claro da esquizofrenia do Estado, que propõe a legalização, mas não a viabiliza, trabalhando pelo fechamento de rádios que estão participando do processo e ainda se vê em meio a divergências entre os poderes federal e municipal.

   

O caso paulistano

As especificidades legais de São Paulo começam na própria alocação do espaço reservado às rádios comunitárias. Até 2004, o município não tinha nem canal designado, já que o canal 200, apontado pela Anatel para ser usado para a radiodifusão comunitária, teria interferência de outra emissora (Rádio Gazeta), que ocupa o canal 201. A escolha do canal 198 só se deu depois de anos de estudo da Fundação CPqD, que indicou a viabilidade técnica de se ocupar a freqüência 87,5 MHz – ainda que houvesse o temor de que ela estivesse fora do dial de alguns rádios analógicos.

   

Em 2004, na revisão do Plano Diretor municipal aprovado dois anos antes, foi incluída a obrigação do Executivo desenvolver um Plano Diretor de Radiodifusão Comunitária, abrangendo, entre outros pontos, “a definição das regras a serem observadas para instalação de rádios comunitárias, de acordo com a legislação própria e com base em processo participativo” e o “desenvolvimento de sistema público de controle e cadastro georreferenciado”. Esse plano deveria ser incorporado ao Plano Diretor Estratégico na revisão de 2006 – que ficou para 2007 -, mas até agora o Executivo Municipal não apresentou nenhuma proposta nesse sentido.

   

A última especificidade legal é, possivelmente, a mais importante. Em junho de 2005, foi aprovada a lei 14.013, que disciplina a exploração do serviço de radiodifusão comunitária em São Paulo. A municipalização traz para o Poder Executivo local a responsabilidade pela autorização das rádios. Além disso, diferentemente da lei federal, que limita o patrocínio a apoios culturais e os restringe a empresas localizadas na área de prestação do serviço (1 km de raio), a lei de São Paulo permite inserção publicitária, e não restringe o anúncio aos estabelecimentos situados próximos à rádio. Uma longa batalha jurídica continua sendo travada para garantir a aplicação desta lei, já que a Associação Brasileiras de Emissoras de Rádio e Televisão – Abert ingressou no STF com uma ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a Lei. Por enquanto, nada. O aviso de habilitação que saiu no final de 2006 é totalmente baseado na lei federal.

   

Além dessas especificidades legais, São Paulo se destaca por conta da ampla mobilização que se organizou em torno do tema. Entidades como a Oboré, o Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da PUC-SP, e a Defensoria Pública do Município (entre outras) se uniram a especialistas técnicos e parlamentares como os vereadores Soninha e Carlos Néder (que exerceu por um tempo o mandato de deputado estadual) e o deputado estadual Simão Pedro, formando uma Mesa de Trabalho para dialogar com o Ministério das Comunicações e apoiar as rádios no processo do pedido de autorização – extremamente burocrático e rigoroso. 39 entidades, 21 deputados estaduais, 12 vereadores e 2 deputados federais, além de dezenas de indivíduos assinaram um compromisso de honra com as rádios comunitárias, comprometendo-se em apoiar as rádios comunitárias de São Paulo e lutar pela democracia na comunicação.

   

Essa iniciativa mostrou a intenção da sociedade civil e de parte do legislativo em contribuir para que o processo pudesse correr da melhor forma possível, potencializando o número de rádios inscritas e viabilizando o diálogo do ministério com o conjunto das rádios. Até abril de 2007, foram realizadas nove mesas de trabalho. Nas primeiras reuniões, o ministério esteve presente. A certa altura, passou a se ausentar do processo sem justificativa. Assim, aquele que, em tese, seria o maior interessado nessa articulação – que dava apoio no processo extremamente trabalhoso de facilitação do diálogo com o conjunto das emissoras – não mandou mais notícias.

   

Já não houvesse suficiente complexidade, graças ao apoio desse amplo grupo de entidades, 154 rádios responderam ao aviso de habilitação no prazo (5 de março) e encaminharam a documentação ao ministério, o que se transformou numa boa, mas desafiadora, notícia. Essa alta demanda soma-se a uma alta densidade de rádios no município, que complica a alocação das autorizações. A lei 9.612 determina que deve haver apenas uma rádio por região, e nacionalmente um único e específico canal, e o decreto 2.615 (que a regulamenta), define que sua cobertura deve estar limitada a até 1 km de raio. Num mapa de situação feito pelas entidades que apóiam as rádios fica claro que não haverá espaço para todas. O que acontecerá, então?

Esquizofrenia estatal e legal

Se prevalecesse a lógica de viabilizar e potencializar o funcionamento das emissoras comunitárias, a resposta à pergunta acima certamente seria: “tudo será feito para que o maior número de rádios possa obter a autorização”. O problema é que há vários sujeitos atuando nesse processo, representando diferentes faces do Estado. O Ministério das Comunicações, de um lado, propôs o aviso de habilitação, mas ausentou-se do processo das mesas de trabalho e parece não ter interesse em ampliar o número de rádios beneficiadas. A Anatel e a Polícia Federal, por sua vez, mesmo depois de os processos já terem sido encaminhados ao Ministério das Comunicações, desencadearam a “Operação Interferência”, que apreendeu equipamentos de 19 rádios em São Paulo, incluindo três rádios que não estavam no ar. Duas delas – a Dimensão e a Alitavi – estão entre as 154 que responderam ao aviso de habilitação e estavam esperando resposta do Ministério. Parece surreal que até as rádios que estão há meses sem funcionar e que agora esperam a resposta do ministério sobre seu processo de autorização sofram a repressão das próprias forças estatais.

   

No entanto, a esquizofrenia não está apenas nas ações do Estado. A própria lei 9.612 e suas regulamentações (Decreto 2.615/98 e Norma 02/98) já contêm contradições internas que criam empecilhos para o funcionamento das rádios e estabelecem uma relação fratricida entre aquelas interessadas em atuar de maneira legal. O exemplo de São Paulo mostra que quatro pontos são especialmente questionáveis:


1)  
A definição de um único e específico canal para as rádios comunitárias gera uma enorme desproporção entre os sistemas público e comercial. Enquanto há mais de 25 canais comerciais, reserva-se espaço para apenas um único canal comunitário. Além disso, a lei prevê que, em caso de haver mais de uma entidade comunitária interessada na mesma área de cobertura, haja a tentativa de composição entre elas. Se não houver composição, somam-se pontos obtidos com as declarações de apoio individuais (1 ponto cada) e institucionais (5 pontos cada) enviadas no processo. Em São Paulo, praticamente todas as 154 rádios colidem com pelo menos mais uma em relação à área de cobertura. A idéia de composição, embora interessante do ponto de vista dos interesses comunitários, é ingênua, e parte de uma falsa premissa: a de que não há espaço para todos. Não há porque manter quase 30 rádios comerciais funcionando por toda a cidade e obrigar as rádios comunitárias a uma briga fratricida entre elas para ocupar uma região de 1 km de raio. Uma solução simples seria reservar mais espectro para as rádios comunitárias. Nos Estados Unidos, por exemplo, 4 MHz (de 88 a 92 MHz) são reservados ao conjunto das emissoras públicas de rádio. Aqui, poderia se começar de maneira simples, ampliando para três os canais reservados à radiodifusão comunitária. Esses canais não devem ser os mesmos em todas as regiões; como aponta o engenheiro Marcus Manhães em seu texto “Direitos Alienáveis”, deve haver “atribuição de canalização flexível, vinculada num planejamento de freqüências que admita evolução dinâmica”.

2) Ao estabelecer o limite de 25 W, 1 km de raio e mínimo de 3,5 km entre as antenas das emissoras, a regulamentação desconsidera a flexibilidade necessária para qualquer plano de outorgas. Em zonas rurais, essa potência e alcance são baixos demais. Em zonas urbanas densamente povoadas, como é o caso de São Paulo, poderia ser interessante ter diferentes classes de potência, que viabilizassem a melhor distribuição dos canais, considerando as diferentes condições geográficas e sociais. Além disso, a lei considera que o conceito de comunidade é apenas geográfico, desconsiderando outros possíveis arranjos de interesses comuns.

3)  Como já foi apontado, a legislação restringe o financiamento das rádios ao proibir publicidade comercial e permitir somente apoio cultural de estabelecimentos na mesma área de cobertura da rádio. Na prática, a inexistência de fundos públicos de financiamento da rádio – alimentados seja por taxação da publicidade negociada pelas rádios comerciais seja pelo dinheiro do Tesouro – faz com que essas regras praticamente inviabilizem o funcionamento das rádios. Legalmente, elas ficam restritas à míngua.

4)  Por fim, a regulamentação cria condições completamente desiguais para as rádios. Diferentemente das comerciais, as emissoras comunitárias não estão protegidas de nenhuma interferência. Por sua vez, são absolutamente proibidas de provocar qualquer interferência em outro sistema de telecomunicações, sob pena de perderem a autorização.

Em virtude de todos esses limitantes, diversas rádios comunitárias em operação preferiram não entrar com o pedido de autorização, continuando ilegais, mas ao menos mantendo a possibilidade de sobrevivência. Isso mostra o quão asfixiante é a regulamentação em vigor.


Os desafios presentes 
O processo de São Paulo segue; e a esquizofrenia também. No momento em que esse texto está sendo escrito, aguarda-se a publicação oficial, pelo Ministério das Comunicações, da listagem de todas as entidades que responderam ao aviso de habilitação e do mapa com a localização (incluindo as coordenadas) de todas elas. Mas o ministério não tem participado das mesas de trabalho e nem deu sinal de quando vai oficialmente divulgar esses dados.

As entidades que compõem a mesa de trabalho mantêm o constante apoio às rádios, mas dependem de mínimas condições para poder avançar. Para a equipe técnica, é necessário um mapa digitalizado em três dimensões, com a topografia da cidade, para que se possa buscar a otimização máxima do uso do espectro, viabilizando a autorização do maior número de rádios. Embora já tenha solicitado o mapa aos poderes executivos municipal e federal, nenhum dos órgãos que poderiam tê-lo se dispôs a ceder o software.

  

Além disso, enquanto a Anatel e a Polícia Federal trabalham para fechar pequenas rádios que nem operando estão, o canal 198 é atualmente ocupado por uma rádio não legalizada, a rádio Samba FM, que transmite numa potência suficiente para ser ouvida em toda a cidade e inviabiliza a legalização de qualquer das 154 rádios.

  

Em relação ao Plano Diretor, durante a última mesa de trabalho, o representante da Secretaria de Planejamento do município declarou que o Executivo não está trabalhando numa proposta para o Plano Diretor de Radiodifusão Comunitária e que, pasmem, espera que a proposta venha das próprias entidades participantes da mesa de trabalho. 

  

Por fim, a ampliação do número de freqüências reservadas às rádios comunitárias esbarra, em um primeiro momento, na questão legal e, num segundo, na vontade política em enfrentar o poder das rádios comerciais. Uma possibilidade real seria a liberação da freqüência 98,1 MHz (canal 251), hoje ocupada pela Rádio Terra FM, de Paulo Abreu (empresário que é dono de cinco rádios que transmitem para a capital paulista, a maioria delas com sede em municípios limítrofes). Isto porque uma regra geralmente adotada nos planos de canalização é que o canal que fica 10,6 MHz distante da freqüência designada, chamado de canal tabu, não deva ser usado na mesma área, por haver o risco de interferência pelo batimento de freqüências. Se liberado esse espaço em São Paulo, seria possível adotar um plano mais racional de canalização, alternando a ocupação do canal 198 e do 251. Mas isso depende da disposição política em se enfrentar interesses privados, entre eles o de Paulo Abreu.

  

Enquanto tudo permanece como está, com a lei e a ordem ao lado das emissoras comerciais, as rádios comunitárias de São Paulo seguem em sua condição marginal e ilegal, resistindo à esquizofrenia estatal e à ganância do setor comercial. Às rádios que estão participando do processo de habilitação restam poucas alternativas. Mas é preciso manter a mobilização, fortalecer a pressão política e seguir lutando por mudanças nessa legislação absurda, na briga por mais espaço e condições de sobrevivência para as emissoras comunitárias.

 

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