Emissoras de TV e taxas sobre o mercado sustentam audiovisual francês

Um amplo mecanismo de apoio estatal, vinculado à intensa participação das emissoras de TV e de taxações sobre a própria atividade, explica a vitalidade do setor audiovisual francês. A França é o maior produtor em número de filmes de longa-metragem da Europa e o sétimo país do mundo neste quesito – perde, nesta ordem, para Índia, China/Hong-Kong,
Filipinas, Estados Unidos, Japão e Tailândia.

A França é pioneira na questão da proteção do estado à atividade. As primeiras discussões sobre o assunto começaram já nos anos 30, tomando corpo imediatamente após a Segunda Guerra, durante o governo de Charles De Gaulle, que criou, em 1946, o Centro Nacional de Cinematografia (CNC), instituição sem similares no mundo que persiste até hoje como o
pilar central da indústria audiovisual francesa. Inicialmente concebido para a regulamentação econômica, o CNC evoluiu, nos anos 50, para um órgão cuja missão é desenvolver toda a política industrial do setor.

Já em 1948, foi instaurado um mecanismo que constitui a base do sistema hoje vigente: uma taxa sobre a venda de ingressos que reverte para um fundo voltado ao apoio à produção. No ano seguinte, foi criado um fundo para difusão internacional das obras cinematográficas do país, base da distribuidora Unifrance. Em 1959, o sistema ganhou um mecanismo automático de apoio estatal ao desenvolvimento da indústria. Nos anos 60, a dimensão cultural da atividade ganhou corpo, com incentivos às primeiras obras e aportes para a preservação do patrimônio. A concorrência da televisão gerou um princípio de crise no setor nos anos 70, levando os franceses a perceber que, sem a parceria das emissoras de
TV, a atividade cinematográfica poderia naufragar. A questão foi resolvida nos anos 80, durante o governo de François Mitterand, quando as emissoras passaram a ser obrigadas a investir na produção de filmes, além de terem seu faturamento taxado em benefício do desenvolvimento do setor.

Em 1999, o sistema foi aprimorado pela redefinição do conceito de "produtor delegado", única figura jurídica passível de ter acesso aos apoios financeiros. Essa figura passou a ser, obrigatoriamente, uma companhia produtora – antes, podia ser também uma pessoa física -, numa forma de garantir o desenvolvimento do lado empresarial da atividade.

O mercado de salas do país é um dos mais prósperos do mundo. Com 60 milhões de habitantes, a França teve 166 milhões de espectadores nos cinemas em 2000, com arrecadação total de cerca de US$ 823 milhões. Os 145 filmes franceses exibidos no ano (produzidos a um custo médio de US$ 4,3 milhões), abocanharam US$ 235 milhões, ou 28,5% do mercado. O campeão de bilheteria do ano foi um filme francês – "Taxi 2", de Gérard Krawczyk, fez 10,2 milhões de espectadores (o segundo maior público para filmes nacionais na década, só perdendo para "Les visiteurs", de Jean-Marie Poiré, que, em 1993, levou 13,8 milhões de pessoas às salas de cinema do país) – e dois outros ocuparam as dez primeiras posições do ranking. No ano anterior, a França também ocupou o topo da bilheteria, com os 8,9 milhões de espectadores que assistiram a "Astérix & Obélix contre César", de Claude Zidi, e teve um share ainda maior (32,4%).

Somadas as arrecadações em exibições no exterior (os filmes franceses só perdem, no mercado europeu, para o cinema dos Estados Unidos, embora tenham uma participação relativamente pequena no resto do mundo) e as vendas para os mercados de TV e vídeo, pode-se dizer que a atividade cinematográfica no país é, em geral, lucrativa. Estima-se que um em cada cinco filmes franceses dê lucro, uma boa média para uma atividade conhecida pelo seu alto risco.

Em 2000, foram gastos US$ 740 milhões na produção de longas-metragens na França. A origem desses recursos ajuda a compreender o funcionamento do sistema audiovisual do país.

As produtoras francesas entraram com 31,9% desse montante (cerca de US$ 236 milhões). Muitos desses recursos são provenientes de créditos bancários. A França conta com um interessante facilitador para a busca desses créditos, o IFCIC (Instituto de Financiamento do Cinema e das Indústrias Culturais), criado em 1983 para fazer a ponte entre o CNC e o
sistema bancário. O instituto avaliza até 50% das operações de empréstimo para o setor. Como só desembolsa recursos quando todos os outros meios de quitar um determinado empréstimo estão esgotados, tem uma capacidade de aval de até 30 vezes o valor disponível em seu fundo de garantia. O IFCIC, na verdade, é uma empresa de crédito estabelecida de acordo com as normas bancárias. Entre seus acionistas, estão o próprio Estado e diversos bancos franceses.

Outra parte dos recursos para a produção de longas vem de mecanismos alheios ao sistema de apoio estatal: 5,5% (cerca de US$ 41 milhões) são recursos colocados por empresas distribuidoras do país e 6,5% (US$ 48 milhões) são aportes de produtores estrangeiros, a co-produção internacional é comum entre países europeus, sendo que, dos quatro principais parceiros estrangeiros da França na produção de longas, três são da Europa (Itália, Bélgica e Alemanha) e o outro é o Canadá.

As emissoras de TV são parte fundamental do sistema. Em 2000, investiram cerca de US$ 231 milhões (31,2% do total gasto com longas) em pré-compras de projetos e mais US$ 67 milhões (9%) em co-produções, num total de US$ 298 milhões. São, assim, diretamente responsáveis pelo financiamento de mais de 40% dos recursos gastos em longas-metragens no país. Indiretamente, a conta sobe ainda mais, pois cerca de 70% do orçamento do CNC vem de taxações sobre o faturamento publicitário das emissoras. O sistema criado busca a simbiose entre os dois segmentos: as
emissoras participam nos lucros dos filmes, ganham audiência com a exibição dos mesmos (filmes franceses são comuns na grade de programação) e ainda são beneficiadas pelo COSIP (Fundo de Apoio à Indústria de Programas) que, gerido pelo CNC, financia diretamente a realização de telefilmes, documentários, animações, programas de TV e videoclipes. O Canal + é, de longe, o mais importante parceiro do cinema: em 2000, participou de 115 filmes, investindo US$ 134 milhões. Em seguida, vêm os canais estatais TF1 (20 filmes, US$ 33 milhões), France 2 (33 filmes, US$ 22 milhões), France 3 (16 filmes, US$ 12 milhões), Arte (22 filmes, US$ 6,5 milhões) e M6 (9 filmes, US$ 5,2 milhões), além do canal por satélite TPS (19 filmes, US$ 16 milhões). Claro, há filmes que contam com a participação de mais de uma emissora.

O capital privado também participa ativamente do financiamento à atividade, através dos SOFICAs (Companhias de Financiamento para a Indústria de Filme e TV), fundos de investimento criados em 1985. Esses fundos são carteiras de filmes (onde, obrigatoriamente, um mínimo de 35% dos projetos deve ser de produtores independentes) cujas ações podem ser compradas por pessoas físicas ou jurídicas. Os investidores que mantiverem a posse das ações por um período mínimo de oito anos passam a gozar de benefícios fiscais; além disso, participam dos lucros dos filmes da carteira. Em 2000, 5,7% dos recursos gastos para a produção de longas veio dos SOFICAs, num total de aproximadamente US$ 42 milhões.

O sistema não estaria completo sem o apoio estatal direto à atividade, todo operacionalizado a partir do Centro Nacional de Cinematografia. O orçamento do CNC em 2000 foi de cerca de US$ 342 milhões. O dinheiro veme taxas sobre o faturamento das emissoras, a venda de ingressos em salas de cinema e os negócios do mercado de homevideo; de subvenções do estado; dos resultados comerciais dos projetos em que o órgão participa; de taxas para a emissão de certificados de obra cinematográfica (sem os quais os filmes não podem ser exibidos no país), entre outras fontes.
São aplicados em vários níveis: apoio a projetos de curtas, documentários, programas de TV, vídeo e multimídia; desenvolvimento de roteiros; avanços para opção de compra de direitos e custos de equipe em fase de preparação de filmes; subsídios para o uso de novas tecnologias na produção de filmes e para a composição de trilhas sonoras originais;
prêmios; apoios para distribuição, difusão em mercados externos, renovação e construção de salas, aquisição e modernização de equipamentos por empresas de infra-estrutura; ensino, pesquisa e preservação do patrimônio. São, principalmente, aplicados diretamente na produção de longas, em forma de apoio automático (foram US$ 49 milhões
investidos nessa modalidade em 2000 – 6,6% do total investido em longas no país) ou seletivo (US$ 27 milhões em 2000, ou 3,6% do total). O apoio automático tem seu valor calculado com base nos resultados comerciais de um "projeto de referência" (normalmente, o filme anterior da produtora) no box office, na TV e no mercado de vídeo. A empresa pleiteante tem direito a uma porcentagem do valor resultante que varia conforme o número de pontos conseguido pelo projeto num sistema de pontuação que leva em conta aspectos técnicos, artísticos e financeiros (com pelo menos 80 pontos, num total de 100, já leva 100% dos recursos a que tem direito, que não podem exceder, entretanto, 50% do orçamento total do
filme). A soma é depositada numa conta em nome da produtora, administrada pelo CNC e o produtor tem um prazo máximo de cinco anos para investi-la em um novo filme. Se o filme for inteiramente ou quase inteiramente falado em francês, a soma é acrescida de mais 25%. Além disso, cresce mais 1% para cada dia de filmagem em estúdio realizada no
país (até um determinado limite). O apoio automático é dado a fundo perdido. Mas o produtor pode ter de devolver todos ou parte dos recursos se esses não forem devidamente aplicados segundo apreciação da Direção Geral do CNC.

O apoio seletivo funciona como um empréstimo, tendo de ser reembolsado, no todo ou em parte, conforme o caso. Pode ser pedido antes do início das filmagens ou após a conclusão do filme. Nesse caso, o produtor precisa ter em mãos um contrato de distribuição.

Vários mecanismos de apoios regionais completam a gama de opções de recursos públicos para a produção de um filme.

 * Paulo Boccato é presidente do CBC – Congresso Brasileiro de Cinema 

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *