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‘Sem os meios de comunicação não haveria debate democrático’

Chamado de "pai" ou "arquiteto" das constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia, onde trabalhou como consultor nos últimos anos, o professor de Direito Constitucional da Universidade de Valência, Roberto Viciano Pastor, de 49 anos, não perdeu a calma diante da plateia que insistia nas perguntas sobre as ameaças à liberdade de imprensa e de expressão naqueles países. "Já estava preparado", comentou, depois do debate na Reunião de Meio de Ano da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).

Em entrevista ao Estado, Viciano defendeu a tese de que o trabalho dos meios de comunicação é um serviço público. "Como é serviço público a distribuição de eletricidade ou de água, o que não quer dizer ingerência ou abuso de controle do poder público", afirmou. Reconheceu, no entanto, não saber que critérios definiriam uma boa ou má prestação do serviço. "Ainda estamos na primeira parte do debate. Não demos o salto porque não há consenso", justificou.

Os trabalhos de consultoria para países da América Latina são feitos pelo professor e sua equipe do Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS), sem vínculo com a Universidade de Valência e que se define como "uma organização política não partidária dedicada à produção de pensamento crítico e ao trabalho cultural e intelectual para fomentar consensos de esquerda". Admirador da ideologia de direita na juventude, Viciano hoje se define como partidário do "socialismo democrático".

Estadão – Qual foi seu papel na elaboração das constituições de Bolívia, Equador e Venezuela? O senhor trabalhou diretamente com os governos?

Roberto Viciano Pastor – Faço parte de uma equipe de professores espanhóis interessados no constitucionalismo latino-americano e, quando éramos muito jovens e não tínhamos capacidade de fazer assessoria, seguíamos à distancia. Estudamos os processos democráticos de América Latina desde 1991. Em 1998, no Equador, trabalhamos com a Assembleia Constituinte, em um programa de cooperação internacional do governo espanhol. Não trabalhamos com o governo. Na Venezuela fizemos um convênio com a Assembleia Constituinte também, em um contrato com a Procuradoria Geral da República. No caso boliviano, foi um programa próprio que fizemos com nossos fundos. Nunca trabalhamos diretamente com os governos.

O senhor dialoga com frequência com os presidentes Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez? Trocam ideias, têm proximidade?

Conheci presidentes da Venezuela, da Bolívia, do Equador e de outros países da América Latina, da Argentina, do Chile. Em razão do meu trabalho tenho relação com muitos presidentes da América Latina, mas esporádica.

Não discutiu com eles as questões da Constituição?

Não, nosso trabalho foi com os parlamentos eleitos para discutir a fazer as constituições.

Existe uma grande discussão sobre a tese de que o trabalho dos meios de comunicação é um serviço público. O senhor levou esta ideia para os países onde trabalhou?

Este tema não se discutiu nas constituintes, não está contemplado nas constituições. O que está nos textos constitucionais se refere à questão das concessões de telecomunicações, o que é normal. Não se fala na comunicação em si.

Mas esta é a ideia que o senhor defende, que os meios de comunicação prestam um serviço público?

Óbvio. Eles servem para que haja um debate político no país. Sem os meios de comunicação não haveria debate democrático.

Esta tese não deixa os meios de comunicação submissos aos governos?

Não, o fato de ser um serviço público não significa que tenha ingerência ou controle abusivo do poder público. Um serviço público pode ser de eletricidade, e não quer dizer que o governo vai dizer como se produz eletricidade. Mas se uma companhia não presta adequadamente o serviço público, terá que ser tomada uma medida porque está causando uma disfunção no funcionamento da sociedade.

Mas no caso da eletricidade se sabe exatamente o que é não prestar um serviço adequado. O que seria não prestar um serviço adequado no caso dos meios de comunicação?

Não sei. Estamos na primeira parte do debate: é ou não é um serviço público? Se é, até onde tem que haver uma intervenção do poder público para garantir o serviço público? O que tem que ser garantido e o que seria um abuso dos poderes públicos frente os que realizam o serviço, seja no setor privado ou público? Ainda não demos o salto, porque não há consenso de social que seja um serviço público. Quando se assumir que é um serviço público, veremos como funciona, como sempre se fez no Direito. Primeiro se decidiu que a distribuição de água é um serviço público e depois se pensou o marco jurídico que rege este serviço. O papel dos meios de comunicação em sociedades democráticas não está em discussão só na América Latina, mas na Espanha, na França, na Itália, na Alemanha. O tribunal constitucional espanhol disse que é um instrumento fundamental para a comunicação pública. Se é assim, pode-se deduzir que se está prestando um serviço público, o que não é nada negativo. Como o serviço público de água.

Se a água não chega às casas das pessoas, está claro que há um problema. No caso da informação, é uma avaliação mais subjetiva. Como avaliar a prestação do serviço?

Sim, se a água não chega as pessoas morrem por não beber, é muito mais grave falhar o serviço público de água. Mas dizer que é um serviço público não quer dizer que é restritivo nem anulador da liberdade. Apenas que é necessário para o funcionamento da sociedade e, se é necessário, qual o marco regulatório necessário? Sobre isso não tenho opinião formada. Mesmo no serviço de água, não se quer a eliminação do setor privado.

Informes de países como Argentina, Equador e Venezuela apresentados ontem na SIP dizem que os governos tratam os críticos como inimigos o traidores. O que pensa sobre isso? Os presidentes precisam ter essa atitude para manter sua autoridade?

Acredito que em toda sociedade democrática é necessária a crítica e o contraste de opiniões. Não se pode estabelecer uma dinâmica de amigos ou inimigos, me parece incorreto.

Politicamente, o senhor acredita que os governos Chávez, Morales e Correa estão no caminho certo?

Eu falei aqui das constituições dos países, não da ação política dos governos. É difícil um governo todo bom ou todo mal. Precisaria de uma análise ponto a ponto.

Outra crítica é a concentração de poder do Executivo nesses países, com o Legislativo e o Judiciário submisso ao governo. O senhor concorda com este modelo?

Temos uma crise mundial da definição dos Poderes. A cidadania tem a sensação de que não há equilíbrio. Acho que vocês creem que algumas coisas só acontecem na América Latina, mas acontecem no resto do mundo. O movimento dos indignados na Espanha diz exatamente que não há equilíbrio de Poderes e que o partido que ganha se coloca em uma posição demasiadamente hegemônica. Quando fizeram uma pesquisa na Espanha de insatisfação como o modelo político, as pessoas falaram que não há suficiente separação de Poderes. É um debate no mundo inteiro.

Mas em países como Espanha, França ou Itália não há um debate sobre ameaças à liberdade de imprensa e de expressão como há em muitos países da América Latina, certo?

Na Europa há um debate muito forte sobre o papel dos meios de comunicação, que não estão transmitindo o debate político ou o estão fazendo de acordo com seus interesses políticos. Muitos cidadãos na Europa questionam por que os meios de comunicação não criticam tao fortemente as políticas de cortes na área social. Acreditam que os meios não estão em sintonia com a população, que está reagindo.

É verdade que o senhor, quando jovem, militou em um grupo da direita católica e depois se tornou marxista?

Quando eu era muito jovem, dos 16 aos 18 anos eu tinha uma ideologia mais de direita, mas não militei em organizações. Não tinha identidade com nenhum modelo político concreto. Depois, houve uma evolução para posições democráticas, mas não sou comunista, como dizem alguns meios de comunicação. Tive que entrar com uma ação judicial contra um jornal para retificar porque dizia que eu pertencia um partido, o que não era verdade absolutamente. Mandei uma carta, não corrigiram. Só quando fui à Justiça. Acho que posso enquadrar-me no socialismo democrático.

Venezuela, Bolívia e Equador não teriam um caminho mais democrático de mudança que não concentrasse tanto poder nos governos?

Eu ou qualquer pessoa pode ter opiniões favoráveis ou desfavoráveis de algumas políticas, mas não se pode dizer que não são países democráticos. Existem eleições, liberdade de imprensa, liberdade de partidos políticos, de manifestação. Ninguém pode dizer que não são democráticos.

Mas muitos jornalistas nos informes à SIP relatam grandes dificuldades de acesso a informações públicas. Não é uma restrição à liberdade de imprensa?

Sou militante ativo e partidário do pleno acesso à informação, porque é do interesse do cidadão. Qualquer mecanismo de limitação me parece negativo em uma sociedade democrática.

Por que o senhor defende que a Bolívia tenha um sistema unicameral?

Sou a favor do sistema unicameral em algumas situações. Na Espanha, por exemplo, porque o Senado não tem muito sentido. Muita gente pensa que é um gasto inútil. Tem que pensar as ideias para cada país. Estados federais, como o Brasil ou os Estados Unidos, sim, devem ser bicamerais. Na Bolívia, acho que não era necessário um sistema bicameral porque não é um Estado federal. Quando me perguntaram, eu disse o que acredito que me parece melhor. Mas não houve mudança.

“Agora eles começaram o desmonte de fato”

[Título original: Agora eles começaram o desmonte de fato', diz trabalhador da TV Cultura]

Em entrevista à Carta Maior, Sérgio Ipoldo Guimarães, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão no Estado de São Paulo e funcionário da TV Cultura há 25 anos, fala sobre o processo de desmonte que a emissora vem sofrendo nos últimos governos tucanos em São Paulo. Guimarães aponta a pouca transparência na gestão da emissora, nos últimos governos, e para o uso eleitoreiro da “privatização” da Cultura para empresas de jornalismo.

O processo de privatização da TV Cultura começou em 2004, no governo Geraldo Alckmin. Na gestão de Marcos Mendonça, a diretora Julieda Puig de Paz começou o desmonte com um “Planejamento Estratégico” que resultou em pouco mais de 300 demissões. Já era o projeto de transformar a TV em uma “grande prestadora de serviços”. No final da gestão passada, quando José Serra já havia deixado o governo para disputar a Presidência pelo PSDB, o seu vice, Alberto Goldman, então no cargo, indicou o nome de João Sayad para a presidência da Fundação Padre Anchieta. Sayad, de volta a um governo Alckmin, está completando o projeto.

Esta é a visão de Sérgio Ipoldo Guimarães, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão no Estado de São Paulo e funcionário da TV Cultura há 25 anos, que acompanhou de perto o desmonte da tevê educativa do Estado – um projeto tucano, uma vez que não sofreu solução de continuidade ao longo dos dois últimos governos do PSDB.

Em entrevista à Carta Maior, Guimarães aponta a pouca transparência na gestão da emissora, nos últimos governos, e para o uso eleitoreiro da “privatização” da Cultura para empresas de jornalismo. “Eu acho que nas campanhas os caras do PSDB serão beneficiados por meio desses veículos”, afirmou. Abaixo, a íntegra da entrevista:

Carta Maior: Em sua opinião, quando começou o processo de privatização da TV Cultura?
Guimarães: Se eu não me engano em 2004, na gestão do Marcos Mendonça, quando eles colocaram uma diretora chamada Julieda Puig de Paes. Ela tinha um cargo de superintendente, mas era uma espécie de interventora. Ela começou a fazer uma série de levantamentos sobre a emissora e instituiu um café da manhã com os funcionários que, na verdade, serviu para sugar informações dos próprios trabalhadores – por exemplo, se determinado setor tinha muita gente, se poderia funcionar com menos trabalhadores e esse tipo de coisa. Sabe como é, o peão quando tem oportunidade de conversar com alguém grande da empresa, se sente parte da empresa e acaba prejudicando a vida dele mesmo. Isso findou com 300 e poucas demissões e também com um documento que ela fez chamado “Planejamento estratégico”. E este documento previa tudo o que está acontecendo hoje.

O que dizia esse documento?
A síntese era que a TV Cultura viraria uma grande prestadora de serviços, que é o que está acontecendo. Haviam contratos com a TV Justiça, Tribunal Superior Eleitoral e mais uns seis ou sete nesta esfera do Legislativo e do Judiciário. Não sei se houve algum problema político que impediu João Sayad de mantê-los, mas de resto o projeto foi mantido: a Univesp – que virou um canal – e várias parcerias com a Secretaria de Cultura. Ou seja, você tem um plantel mínimo, faz a rescisão de alguns contratos de trabalhadores provisórios que geralmente não incluem alguns direitos trabalhistas e não podem gerar processos judiciais contra a emissora. Assim, reduziram drasticamente a folha de pagamento.

E as demissões?
O que o Paulo Markun e Marcos Mendonça não concretizaram desse planejamento estratégico da Julieda, o João Sayad está fazendo. Mas tem um diferencial nas demissões. Desta vez eles estão eliminando postos de trabalho. Segue esta lógica, da diminuição das equipes e a compra desses enlatados, como é com a Folha de S. Paulo. Eu acho que agora eles começaram o desmonte de fato. Até então eles demitiam, mas depois contratavam e mantinham mais o menos o mesmo número de funcionários. Agora não, eles estão peitando inclusive algumas estabilidades. Na última leva foram demitidas quatro ou cinco pessoas que são ditas estáveis lá por aquela coisa chamada Constituição de 88. Acharam uma brecha jurídica pelo fato de estarem aposentados.

Falta transparência nesta gestão?
Nós já fizemos há algum tempo atrás denúncias com indícios de rolo pra Procuradoria das Fundações. Recebemos um retorno de um procurador solicitando mais subsídios para tal denúncia, sendo que cabe ao Ministério Público esse papel. Vamos ver se agora com mais entidades e mais força conseguimos recolocar estas denúncias. Teve o episódio da TV Assembleia, por exemplo, quando foi afastado o diretor de comunicação Antonio Rudnei Denardi e o ex-diretor da Cultura Alberto Lucchetti. Nós já havíamos denunciado, mas a Procuradoria das Fundações ignorou. Tem rolo pra todo lado. Eu acho que só se tiver muita pressão da sociedade esses promotores fazem alguma coisa.

Outros direitos trabalhistas foram retirados?
Já tiveram processos de trabalhadores aposentados demitidos que foram reintegrados. Para nossa surpresa, mandaram embora esses quatro ou cinco que estão nesta situação e existem outros que mais cedo ou mais tarde podem sofrer o mesmo ataque. No dia 10 haverá uma reunião do Conselho da Fundação Padre Anchieta. Precisamos fazer uma mobilização lá na frente.

Qual sua opinião, especificamente sobre o contrato com a Folha, Estadão, Veja etc?
A informação que a gente tem é que a Folha não está pagando absolutamente nada. O que é pior. Deve estar pagando de alguma outra forma.

Passou pelo Conselho esse contrato?
Segundo o deputado Simão Pedro (PT), passou em um dia em que ele não estava e houveram várias ausências. Eles nem enviam as pautas antes das reuniões do Conselho ou mandam muito em cima. As pessoas vão pra lá sem saber o que vão discutir.

É preciso democratizar o Conselho?
Com certeza precisa democratizar. Em primeiro lugar, o Conselho dificilmente tem quórum. Só quando tem eleição seus integrantes se mobilizam. De resto, não tem representatividade da sociedade. Nem pegar boletim dos trabalhadores da TV Cultura eles pegam. Qual o compromisso que eles tem com a TV? Outra questão que ilustra o problema do Conselho: os dois sindicatos que representam as categorias, dos radialistas e dos jornalistas, não têm assento. Tem uns poucos que podemos contar e mesmo assim falham. Por exemplo, um cara da União Nacional dos Estudantes (UNE) faz discursos na reunião da Frente Paulista pela Democratização da Comunicação mas não aparece nas reuniões do Conselho. Nós recebemos a ata, pelo e-mail interno da TV, um mês depois das reuniões, então sabemos quem comparece. Os deputados também: dependendo do ano de eleição, podemos contar ou não com eles. E são sempre poucos. Além deles, tem os reitores de universidades, secretários municipais e estaduais e essas personalidades indicadas pelos conselheiros que não ajudam.

De quem é a responsabilidade por esse processo de privatização?
Do governo do Estado de São Paulo.

Acha que existe corrupção e mal uso da verba pública?
Com certeza, pois qual a transparência que temos? Só como exemplo, os trabalhadores que são chamados para gravar as reuniões do Conselho, são orientados a ligar o equipamento e sair da sala. Qual o problema de um funcionário que está trabalhando ouvir o que está acontecendo, se é um órgão público? Nós não sabemos porque eles gravam as reuniões, pois só recebemos o que dizem ser a íntegra da ata. As propagandas, parcerias, balanços financeiros não são divulgados em lugar nenhum.

Por que escolheram especificamente esses veículos para usarem espaço na TV Cultura?
Isso tem fim eleitoreiro. Eu acho que nas campanhas os caras do PSDB serão beneficiados por meio desses veículos.

Posso publicar tudo isso ou você corre algum risco?
Pode. Já estou mais riscado do que tudo.

“O Conselho tem o efeito de estimular uma maior participação e transparência”

Nesta quarta (28) foi realizada a primeira reunião do Conselho Estadual de Comunicação da Bahia. Já foi aprovado o regimento interno e começa a etapa de planejamento. Mas os desafios ainda são muitos frente a histórica falta de participação da sociedade nas definições do setor.

O Conselho de Comunicação da Bahia só foi regulamentado em 2011, após um forte processo de mobilização da sociedade e uma articulação com empresários e governo, mesmo sendo previsto na Constituição Estadual desde 1989. O resultados podem destravar políticas de comunicação em todo país, dessa vez, tendo como referência o poder de estados e municípios.

Conversamos com o representante do Intervozes no Conselho, Pedro Caribé. Ele nos fala sobre atribuições do Conselho, prioridades de atuação e relação da sociedade civil com o empresariado e o poder público.

Observatório do Direito à Comunicação: A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) emitiu nota pública considerando inconstitucional o Conselho de Comunicação Social da Bahia. O que está por trás deste posicionamento de parte do empresariado da comunicação?

Pedro Caribé:
Não só a Abert tem se movimentado para barrar o processo, existe um pacto não assinado, construído por setores midiáticos e reverberado até por setores médios da sociedade, entre os quais muitos jornalistas pouco esclarecidos sobre o tema. No caso da Abert, o receio é que alavanque o desenvolvimento do sistema público e o localismo na radiodifusão. Um modelo que fragiliza o poder das grandes redes nacionais ou mesmo regionais. Como isso pode acontecer? O Conselho tende afetar três segmentos. O primeiro é radiodifusão comunitária, que pode vir a ter mecanismos de sustentabilidade e proteção em casos de criminalização. O segundo são as emissoras públicas-estatais dotadas de potencial pouco explorado no reconhecimento da sociedade, ampliando seu conteúdo e infraestrutura. O terceiro, e mais complexo, é o desenvolvimento das empresas comerciais locais. As reivindicações dos empresários que participam do Conselho passam pela participação direta na verba publicitária federal, estímulo a produção de conteúdo, e  até inserção na grade de programação da parabólica, que se espalha por todo interior e zona rural da Bahia. Os empresários locais entendem o Conselho como algo que legitima reivindicações nacionais, uma “revolta da base". E creio ser uma brecha perigosa para a Abert, que se organiza de forma extremamente verticalizada em consonância com o modelo das cabeças de rede.

Além disto o Conselho tem o efeito imaterial de estimular direta ou indiretamente uma maior participação e transparência no setor. Mesmo temas que não são de sua orçada passam a ser debatidos com mais força pela sociedade, como acompanhar a renovação e liberação das outorgas de radiodifusão. Nesse ponto não será difícil aos baianos encontrarem confrontos com os preceitos constitucionais ao discutir no dia a dia. Aja vista que a família do falecido senador Antônio Carlos Magalhães, através da Rede Bahia, tem ingerência sob três licenças de rádio e sete de TV no estado, um caso clássico de concentração que também se espalha por jornal impresso e portal na internet.

A Abert afirma que a prerrogativa de legislar sobre o tema é do Governo Federal, não cabendo, portanto, aos estados a criação de Conselhos. Nos esclareça isso. Quais as atribuições de um Conselho Estadual?

Esta posição é colocada há algum tempo e não passa de uma retórica obscurantista para atrasar a regulamentação dos Conselhos por todo país. Na prática, não há qualquer fundamento jurídico que endosse o argumento da Abert, pois o Conselho está previsto na Constituição Estadual e suas atribuições foram alvo de apreciação de juristas, em especial da OAB-BA.

Os projetos de Conselhos têm estimulado uma reflexão importante sobre as atribuições federativas na comunicação, e espero, sejam alvo do novo Marco Regulatório. No Brasil o pacto federativo é fincado sob lógica de distribuição de competências. Nada impede que os entes atuem sob o mesmo tema, porém com poderes distintos. Por exemplo, o Conselho não poderá passar por cima da Lei Geral de Telecomunicações e transformar a banda larga num serviço público, mas pode sim elaborar um plano a fim de coordenar tarifações como ICMS, municípios e infraestrutura estatal para expandir o serviço ao cidadão e também para os órgãos públicos. Se trata de atuação complementar já presente em estados como São Paulo e Ceará.

Essa mesma lógica estará presente na radiodifusão comunitária, ou mesmo nas violações aos direitos humanos, que nesse caso, também se relacionam com a Justiça e Ministério Público.  Em outros temas o Conselho terá poderes plenos, como na distribuição das verbas publicitárias e na condução da radiodifusão pública. Nessa seara também existem pautas que estão inicialmente de fora do Conselho, mas podem ser incorporadas para a próxima gestão. Entre os quais a Empresa Gráfica da Bahia (EGBA) que pode se tornar estímulo mais volumosa para a publicação de livros, revistas e demais meios impressos; e os mecanismos de relacionamento direto com o cidadão através da ouvidoria, ferramentas de governo eletrônico e por fim organizar o estado para adotar a Lei de Informação Pública.

Que propostas para o fortalecimento do sistema público de (radiodifusão) comunicação no estado a sociedade civil levará para o Conselho?

Vamos seguir a mesma linha construída a partir dos Fóruns de TV´s Públicas e da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Defender um fortalecimento da radiodifusão pública balizado na autonomia, participação social e diversidade cultural. Por isso, se faz urgente convocar um Conselho Curador para o Instituto de Radiodifusão Pública da Bahia (Irdeb) com maioria da sociedade civil, escolhidos através de eleições. Fixar fundo público com parcela da publicidade governamental. Valorizar o quadro de funcionários. Estimular a produção independente na programação. A partir de então será possível dar estabilidade institucional e preparar o Irdeb para era digital em condições sociais e econômicas para ser reconhecido como alternativa convincente ao modelo comercial.

As rádios comunitárias também devem ser encaradas como integrantes desse campo público. Desde 2009 foi desenvolvido o programa Ondas Livres com universidade, governo e sociedade civil. O programa prevê formação e construção de portal para esse segmento e implementação deve ser o mais rápido possível.

Pesquisas mostram um alto índice de violação de direitos humanos na mídia baiana. Como o Conselho de Comunicação pretende incidir nesta pauta?

Esse é um tema delicado e costumeiramente distorcido. O Conselho poderá encaminhar ao MP e à Justiça questões que forem consideradas graves. O Conselho não pode, nem tem como punir qualquer pessoas física ou jurídica.

Uma questão a ser abordada é o fato de comunicadores populares, radialistas e jornalistas serem alvos constantes de ameaças e até homicídios. Recentemente um radialista foi assassinado em Simões Filho, na região metropolitana, por contrariar o tráfico de drogas. O papel do Conselho será de acompanhar casos desse perfil para que evitar que caiam no esquecimento e impunidade

Quanto ao conteúdo midiático, esse não pode estar acima ou a parte do Estado de direito. Muitas vezes não são apenas as emissoras os responsáveis por violações,  o próprio governo poderá ser alvo de avaliações quando policiais são os que viabilizam julgamento prévio e afronta a dignidade humana. E esses atos podem ganhar uma dimensão amplificada sob cumplicidade dos meios de comunicação. Não dá mais para assistir à "luz do dia" cenas de sangue, inapropriadas para crianças, ou jovens negros serem condenados sem direito julgamento adequado. O Ministério Público do Estado já tem conhecimento que na maioria dos casos são pessoas inocentes e as cenas construídas como espetáculos tragicômicos de mau gosto. Porém, mesmo que não seja punido pela Justiça, o indivíduo já terá punição da sociedade decretada e disponível em vídeos na internet por toda sua vida.

A atual distribuição das verbas publicitárias do Governo Estadual é baseada, principalmente, no critério da audiência. Como o Conselho pode atuar para melhorar a distribuição destes recursos?

Verba de publicidade é dinheiro público: precisa de mecanismos de transparência e critérios não apenas econômicos na distribuição. O Conselho poderá deliberar por acesso  ao direcionamento desses gastos, saber quanto e quando os veículos recebem esses investimentos, bem como separar a assessoria de imprensa do governo do repasse das verbas. A partir deste diagnóstico pode-se viabilizar maior equidade no tratamento entre as mídias, levando em consideração não somente as audiências, mas também o compromisso com a diversidade e pluralidade de ideias e gostos, a descentralização da cadeia produtiva do audiovisual e da indústria gráfica, bem como o caráter público ou comunitário da informação.

Além disso será possível evitar práticas conhecidas dos baianos: a utilização destas volumosas verbas como objeto de barganha, tanto para cercear ou alavancar organizações midiáticas ou comunicadores populares e jornalistas, conforme afinidade política ao governo, como para manutenção de negócios jornalísticos ancorados na chantagem. Nessa relação quem sai perdendo são os profissionais, comunicadores e principalmente o cidadão ao receber informação costumeiramente distorcida por esse jogo.

Como transcorreu até aqui e como você acredita continuará processo de debate com o empresariado dentro do Conselho?

Antes da I Confecom só microempresários participaram, depois entraram grupos maiores. As duas principais empresas comerciais de radiodifusão, Rede Bahia (Globo) e Itapoan (Record), jamais integraram o processo. Porém em nenhum momento eles se pronunciaram abertamente contra o Conselho, somente nos bastidores, por motivos distintos. No caso da filiada da Globo, eles receiam que qualquer posição editoral sobre o tema intensifique a associação ao grupo de ACM. Já a Record, apesar de ser visível aproximação com os governos mais a esquerda, demonstra indisposição em modificar o modelo que a fez crescer rapidamente nos últimos 15 anos. Não podemos esquecer que a Record faz parte da Abert junto com a Globo.

Aos que participaram da elaboração e agora estão no Conselho, sempre houve uma atitude pró ativa, e as diferenças colocadas com naturalidade, sem dogmatismo. A partir da instalação é que os temas vão ganhar materialidade e será possível compreender mais as posições.

E com os representantes do poder público?

Este governo encampou a ideia do Conselho e tem visão das potencialidades. No geral, está aberto ao diálogo e proximidade com percepção das organizações sociais. Porém tem o papel de interlocutor entre interesses distintos, tornando a lógica do consenso familiar e incorporando no seu seio matrizes diferenciadas. Atualmente é desafiador construir base de autonomia dos movimentos em relação a um governo que ajudou a eleger e tem importância histórica indiscutível. Mais desafiador será materializar na estrutura estatal condições humanas e físicas para conseguir executar uma plataforma que o governo defende publicamente.

“Quanto mais exposto, mais propenso o público infanto-juvenil está a beber”

Carnaval, futebol, festa, alegria… e muita publicidade de cerveja. Convidamos a psicóloga Ilana Pinsky para falar sobre os impactos negativos para crianças e jovens dos milionários comerciais das grandes cervejarias veiculados nas datas festivas.

Doutora em Psicologia Médica pela Universidade Federal de São Paulo, pós-doutorada na Robert Wood Johnson Medical School (EUA), Ilana é professora supervisora na pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. É autora da publicação “O impacto da publicidade de bebidas alcoólicas sobre o consumo entre jovens: revisão da literatura internacional”.

Criança e Consumo – A publicidade de cerveja durante datas como Carnaval e eventos esportivos pode influenciar o público infanto-juvenil?

Ilana Pinsky – Não só essas campanhas como todas as campanhas que tem como foco temas que sejam de apreço dessa faixa etária têm impactos negativos. Nos últimos anos, Carnaval e futebol têm sido muito claramente utilizados para promover as cervejarias. Esses dois eventos não são exclusividade das crianças, todo mundo participa dessas festas, mas a publicidade é veiculada de maneira frequente e atinge a todos. E existem muitos temas, músicas, piadas, atores que são de apreço do público jovem, o que é muito problemático.

O importante é saber que a questão não se restringe apenas ao Carnaval. O grande problema é que essas publicidades se utilizam de temas do imaginário infanto-juvenil.

Quais são os principais elementos na publicidade que despertam a curiosidade de jovens e crianças para o consumo de álcool? Qual é a sua opinião sobre o uso de personalidades (como Ivete Sangalo, Jennifer Lopes, etc)?

Não é uma questão de opinião, a gente sabe que quanto mais o adolescente está exposto à publicidade, maior a probabilidade de ele beber mais e mais cedo. Minha opinião é embasada em estudos que existem há pelo menos 20 anos.

Os elementos costumam ser ligados ao erótico, um erótico meio malicioso, engraçado, justamente voltado para o público infanto-juvenil. Também percebemos o uso de músicas que tenham a ver com o que o jovem gosta e que, muitas vezes, o jovem consegue se imaginar naquela situação da propaganda, porque são situações com as quais ele se identifica. E é sempre uma imagem do cara que bebe e pega todas as meninas e coisas do gênero.

A publicidade está ligada também a patrocínio, e um dos patrocínios que existem são de show de música eletrônica, os prediletos dos adolescentes. Além disso, as marcas exercem muita influência nas redes sociais, então a presença das cervejarias no Facebook é maçante, com ações muito criativas e quase sempre voltadas aos mais jovens. Claro que as redes são freqüentadas por todas as idades, mas os mais jovens e as crianças têm mais facilidade em usá-las.

Todo mundo que é legal, bacana e feliz bebe cerveja e faz propaganda de cerveja. Então fica a imagem de que cerveja é legal, deixa todo mundo feliz.  Agora, mais grave é a quantidade de publicidade desse tipo.

Especificamente com relação aos apelos mais direcionados ao público infanto-juvenil, você percebe alguma mudança na maneira de se anunciar cerveja nos últimos dois anos?

O que eu vejo é que isso entrou nas redes sociais de uma maneira massiva. É a grande estratégia do momento. Outra coisa que acontece muito, é que as cervejarias patrocinam atléticas de faculdades, o que é extremamente preocupante, porque mesmo que sejam jovens com 18 anos, você está lidando com gente no limite da faixa etária permitida para o consumo. Esse é um caminho que eu tenho visto nos últimos anos.

O fato de a cerveja não ser considerada bebida alcoólica para fins de publicidade tem algum impacto no consumo precoce da cerveja e de outros tipos de bebida alcoólica?

Pela lei federal, cerveja não é considerada bebida alcoólica para fins de publicidade, o que é uma piada, não tem sentido.  As cervejarias podem fazer propaganda em qualquer horário e são as que mais aparecem nos intervalos comerciais. Assim, os jovens estão muito mais expostos a essas publicidades. Sem contar que a cerveja é um produto de iniciação para o jovem e, no Brasil, é a primeira bebida de escolha, seguida do vinho e das bebidas destiladas. Então, sim, a publicidade tem influência na medida em que ela é muito mais freqüente e criativa. O jovem se associa e se interessa mais e, portanto, acha que pode beber mais também.

Claro que se você fizesse publicidade de cerveja 24 horas, mas fosse muito difícil para o jovem comprar a bebida seria diferente. Mas essa não é a nossa realidade. No Brasil é fácil e é barato consumir essas bebidas. Quanto mais exposto à publicidade, mais propenso o público infanto-juvenil está a beber cada vez mais e mais cedo.

Leia mais sobre esse assunto na nossa newsletter especial sobre juventude e bebidas alcoólicas
http://alana.org.br/banco_arquivos/Arquivos/downloads/news-especial/alcoolismo.pdf

“Você não é só mais um, é um a mais!”

“O ano de 2011 foi magnífico em todo o mundo. Protestos, marchas, manifestações, invasões de sites, ocupações… O céu foi o limite! Mas ainda temos muito o que fazer!” Essa foi a mensagem que o grupo Anonymous enviou ao público, com um convite para 2012: “Aqui, no Brasil, ainda tem muita gente de olhos fechados para toda a realidade. Somos tratados como peões nesse imenso tabuleiro de poderosos, mas somos tantos que conseguimos ser mais fortes! Mas precisamos nos unir para isso. Precisamos achar nossos pontos comuns e somar forças. Você não é só mais um, é um a mais!”

A entrevista surgiu com uma troca de mensagens por Twitter, seguida por e-mail e agendada pelo Skype. Phoenix, Bode e Fá são três anônimos, com diferentes sotaques brasileiros. No país, o grupo combate crimes ambientais e sociais, como no caso do massacre na Ocupação de Pinheirinho (SP), da construção da Usina de Belo Monte (PA) e do Setor Noroeste (DF). Puxou manifestações em defesa do Ficha Limpa, derrubou sites importantes como o da Secretaria de Cultura do DF, invadiu contas bancárias e puxou boicotes direcionados a empresas contra a liberdade de expressão e acesso à informação. Nessa entrevista, conhecemos um pouco mais sobre ideais, ações e objetivos do movimento que usa o mundo virtual para criticar – e transformar – a realidade.

Observatório do Direito à Comunicação: Como surgiu o movimento Anonymous?
Phoenix: Desde 2003. Foi onde começou a ideia basicamente.
Bode: Mas já tinha experiências bem antes, né?
Phoenix: É, isso foi em 1999. Teve o protesto em Copenhague, com a máscara de ópera, ainda não era a do Guy Fawkes, que usamos hoje. Nesse protesto, tinham pessoas na internet que faziam viralizar as imagens, as ideias e as informações transmitidas. Até que alguém teve a perspicácia de dizer “somos anônimos, não esquecemos, não perdoamos, espere por nós” e o meme acabou virando moda.  Um meme se trata disso: ideias e informações que viralizam. A partir de então, foi se criando a ideia de uma legião, que somos todos nós, que lutamos contra a opressão e pelos nossos direitos de liberdade de informação. Essa ideia cresceu muito com as operações que começaram a ser feitas. A primeira foi contra a Cientologia, uma Igreja que perseguia seus opositores…

Quando que foi isso?
Phoenix: Foi em 2004. Aí que surgiram os Anonymous que utilizavam a máscara do Guy Fawkes e trabalhavam com uma noção de pessoas anônimas lutando contra a opressão.

Por que a máscara do Guy Fawkes?
Bode: Você viu o filme V de vingança ou o gibi? É mais ou menos o que ele explica, de se sentir como alguém sem face, todos numa única voz. O Guy Fawkes é uma espécie de Tiradentes inglês, que morreu mantendo um ideal. Ele era católico e na época eles não tinham direitos políticos plenos, porque a Inglaterra era anglicana, então ele queria destruir o parlamento. E ainda que o ideal dele não seja o mesmo que o da gente, nossa ideia também tem a ver com direitos políticos. O V era anarquista, mas nós não temos uma concepção política fixa, não somos anarquistas, capitalistas ou comunistas.

E então a partir de 2004 é que vocês se tornaram mais ou menos o que são hoje em dia?
Phoenix: É, após as ações contra a Cientologia veio a ideia também de hackear e derrubar sites que agiam contra a liberdade de expressão. Um exemplo foi o ataque à Mastercard e à Visa, no ano passado, depois de eles boicotarem o Wikileaks. Foi aí que o movimento passou a ganhar forças: quando se uniu por outras causas, porque até então era só contra essa Igreja. Nossa tática é ocupar espaços da rede. Há várias formas de se manifestar, você pode fazer uma greve, uma marcha, ou esses ataques. São táticas diferentes.

Há quanto tempo vocês, nesse coletivo, atuam juntos?
Phoenix: Desde 2011. Eu já participava de outro movimento, onde levantava informações para conscientizar as pessoas. Isso me ajudou muito a coletar informações e, quando surgiu o Anonymous, eu vi a possibilidade de compartilhar aquilo que eu sabia.

E por que tirar um site do ar? O que isso representa?
Bode: Tem determinadas operações que têm necessidade de fazer um ataque desses para chamar atenção. Mas tem operações que destoam desse sentido.
Phoenix: É relativo. Acho que funciona como uma ação real, mas nunca como consequência e danos ao cidadão. Você pode boicotar uma empresa que polua, ou que queira restringir o acesso à informação, por exemplo.
Bode: Nesse sentido, tem aquela operação da Amazônia (#OPAmazonia <link http://opamazonia.blogspot.com/>), sobre a divisão do Pará e a construção de Belo Monte. E quando você derruba um site, chama a atenção da população quando as pessoas acessam o link de um político corrupto, ou de uma empresa, e vê que caiu e tem uma mensagem explicando o porquê daquela operação. As pessoas começam a ir atrás de outras informações.
Phoenix: Sem contar que não é só derrubar site, existem outras formas de fazer isso, como no caso de um policial que batia nos estudantes. O Anonymous foi atrás e divulgou a identidade dele, para obrigá-lo a responder pelos seus atos. Foi um trabalho hacker, de invasão, não de derrubada de site.

Vocês dizem que têm uma proposta de não direcionar os ataques para cidadãs e cidadãos em geral, mas recentemente foram criticados inclusive pelo Sérgio Amadeu, na Campus Party, por atacar contas bancárias de gente comum e não de grandes empresários. Por que essa ação foi tomada?
Bode:
É complicado falar disso, por que essa ação não foi pensada pela gente. Foi feita por um grupo fechado, que organiza suas próprias ações, sem um coletivo real, só pra chamar a atenção.
Phoenix: Não dá pra agir assim, porque Anonymous não é só ação, você tem que construir um conceito, um sentido, que se possa viralizar e chegar na população, para que ninguém tenha dúvidas do que você está fazendo.

Vocês acham que existe um limite para a ação do hacker? O que não seria interessante para um grupo como o Anonymous fazer?
Bode: Não tem algo que não se possa fazer. Dar limites vai contra o que a gente fala, causa um paradoxo. O que a gente espera é que a população veja as ações e diga: “oh, isso aqui não tá de acordo com o que eles reivindicam, com as causas que eles defendem, talvez não seja uma ação do grupo” e critique. As pessoas têm que se sentir na mesma causa também.

A ideia é que a população seja um termômetro do que é justo?
Bode: É um pouco o que a gente espera, né? Que a população também acorde com as nossas ações e passem a agir. A gente quer pelo menos dar um toque.

Além do trabalho hacker, o Anonymous também tem puxado alguns boicotes contra grandes empresas. O caso mais recente foi o da Sony. Essa tática tem se mostrado efetiva?
Phoenix:
Na verdade, tudo tem sentido de boicote, desde o ataque aos sites até essas ações no mundo real. No caso da Sony, foi pelo apoio da empresa aos projetos de lei SOPA e PIPA nos Estados Unidos. Isso faz parte do nosso objetivo de conscientizar a população de todas as formas, viralizando as ideias. Principalmente pela internet, que é um meio da realidade que a gente deseja mudar, mas também nas ruas. Inclusive tem muitos artistas que já fazem isso naturalmente. Tudo é importante: espalhar abraços grátis, fazer palestras, teatro de rua, ações que deixem clara alguma informação. E a máscara faz com que todos façam isso sem nenhuma identidade. A identidade acaba virando a causa de todos, sem nenhum questionamento.

Fá entra na conversa.

O que projetos de lei como o Stop Online Piracy Act e o Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Acat, também conhecidos como SOPA e PIPA, além do AI 5 Digital e outras iniciativas com o intuito de controlar o espaço cibernético, representam na nossa sociedade?
Bode: É um reflexo do que já ocorreu no passado, no mundo real, quando as pessoas eram proibidas de se reunir em público, por exemplo. É uma iniciativa comum, que só mudou de plataforma. Durante esses intensos distúrbios econômicos e políticos pela Europa e a Ásia, o principal ponto de encontro das pessoas era a internet, então começaram a tentar controlar ao máximo esse espaço para impedir as manifestações e rebeliões.
Phoenix: Essa lógica da indústria cultural também limita a nossa criatividade, a construção, a criação. Tudo se trata de uma combinação de informações, imagens, músicas. E o Anonymous luta por uma sociedade livre, onde a gente não tenha que se limitar para prevalecer um sistema econômico monopolizante, principalmente na questão criativa.

Como fica a questão do direito autoral, nisso tudo?
Bode: Na verdade, é uma questão de direito comercial e direito intelectual. O comercial diz que você ao produzir e tem direito sobre a venda daquilo. No intelectual, você produz uma ideia e de alguma forma isso significa que você quis expor aquela ideia. Então é contraditório você limitar o acesso aquele produto, se era para espalhar a criação. Ou seja, a partir do momento em que você limita do ponto de vista comercial, você também limita intelectualmente.
Fá: Além do que, o direito autoral surge com uma ideia de proteger o autor que a gente sabe que é irreal: hoje as produtoras concentram a maior parte do dinheiro das vendas. Sem contar que também comporta uma noção de originalidade é inviável. Não se pode falar hoje em algo completamente original. O tempo todo você lê livros, vê filmes, ouve músicas, adquire referências e vai se formando. Esse modelo acaba sendo um modelo de cultura elitista ultrapassado. Para isso você tem outras iniciativas como Copy Left e Creative Commons, que protegem o autor de certa forma, mas não impedem o compartilhamento pelo público interessado.

Isso tudo está relacionado com uma luta de vocês pelo acesso à comunicação, né?
Fá: Claro, mas tenho certeza de que você também faz isso. Você baixa músicas, filmes, faz xérox. Não vejo a gente como guardiões de nada, é um processo acontecendo. Tem várias esferas sociais que estão cuidando e participando dessa questão também, não se restringe a uma bandeira Anonymous. É uma questão mais ampla. Você tem o pessoal da Mídia Independente trabalhando com isso há muito tempo, contra o monopólio, pela livre informação. Você tem aí também a I Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em 2009). São várias áreas de atuação. Existe uma determinada atividade feita aqui, mas que está se conjugando com outras atuações da sociedade civil organizada também.

Ainda com relação à internet, um dos argumentos mais utilizados para aumentar o controle cibernético é o combate a crimes como pedofilia. Mas muitas vezes é apenas uma desculpa para cercear a liberdade de expressão. Como vocês veem isso?
Fá:
Os governos já têm a capacidade de rastrear e investigar crimes hediondos com a lei atual. Hoje já é possível rastrear criminosos. Positivamente, para transformar a lei, acho que existem outras formas de se atuar, direcionadas diretamente para criminosos e não para usuários em geral, mas não é esse o objetivo desses projetos de lei. Acho falaciosas essas justificativas, da forma como são colocadas. É complicada a relação que se cria, dizendo que com essas leis você vai acabar com a pedofilia, com os golpes, com os crimes. Esse tipo de coisa tá aí, desde sempre, na humanidade. Não vai acabar de um dia para o outro, com uma lei. Hoje a Polícia já tem a capacidade de tirar o site de um pedófilo do ar, mas porque não tira? Porque a lei também preserva o direito do consumidor, tem os acordos internacionais, a lei é complicada né. Mas é estranho que depois de todas essas manifestações populares surjam essas iniciativas para tentar controlar a internet, com a desculpa de proteger a população. Parece mais é que tem uma elite que perdeu o poder da informação com a internet, e quer recuperá-lo.

Vocês realmente acham que a elite perdeu o poder da informação?
Fá: Eu acho que ela perdeu muito poder. Não é mais a única que pode se comunicar, que tem o veículo. Porque 20 anos atrás você até podia ter uma câmera e fazer o seu filme, mas tinha a dificuldade da distribuição. Só que essa dificuldade tá minada com a internet. Hoje você pode distribuir de casa, o que era impossível antes. Como o caso do pessoal da Rede Globo, que foi expulso na manifestação. Lógico, eles ainda têm o controle da televisão, mas na internet eles não têm mais a prioridade.

Mas hoje em dia o acesso à internet ainda é muito restrito. Vocês veem mesmo esse potencial nela para mudar a lógica da comunicação no mundo?
Fá:
Não acho que tenha potencial, acho que já mudou. A lógica já é outra. A prova são essas leis. Lógico que tem esse problema: não temos acesso universal à internet, isso é um fato. Mas existe um projeto para universalizar a banda larga. Assim como outro para universalizar os tablets, por exemplo. Ou seja, essa possibilidade vai aumentar cada vez mais, se não for interrompida por essas leis. Mas a lógica de pensar já mudou, mesmo que uma boa parcela da sociedade ainda não esteja familiarizada com essas novas ferramentas, como o computador, cada vez mais essa nova lógica fica evidente. Hoje as pessoas não sabem direito onde colher informações, o que é correto, em que confiar: é muita novidade. Mas com certeza a lógica já mudou, tanto que existe um investimento pesadíssimo em marketing na internet.

Durante as manifestações no Irã e no Egito, entre outras, muita gente começou a falar que “a revolução vai ser tuitada”. Vocês acham que a relação entre as manifestações do mundo virtual e real é direta?
Fá:
Não, acho que tem uma diferença aí, mas ao mesmo tempo a internet é uma ferramenta. Existe uma diferença entre quem só organiza movimentos virtuais e quem vai pra rua também. Um exemplo disso foi o que aconteceu no Brasil no 7 de setembro passado: foi algo que começou na internet e deu um monte de gente na rua. Mas não necessariamente as duas coisas estão interligadas, apesar de que a tendência é que cada vez mais as pessoas se organizem também via internet.

Uma dificuldade dos movimentos é saber transformar a indignação virtual em atos mais concretos. Vocês são um grupo mais virtual, mas têm uma boa integração com outros movimentos. Como se dá essa relação?
Fá:
Depende muito. A ação em defesa do Santuário dos Pajés, no Distrito Federal, quando derrubamos o site da Secretaria de Cultura do governo foi por conta própria. Mas a gente também tem pessoas atuando em movimentos pra além do Anonymous, que fazem essa ponte.
Bode: No DF mesmo, tem gente no Santuário, na Marcha das Vadias. Em São Paulo, no Pinheirinho, nas ocupações, em Wall Street. Nosso objetivo é mesmo fazer essas ações com outros movimentos, como foi o caso com os Bombeiros no Rio de Janeiro, com os professores em Goiás. Nós somos na verdade uma reunião de pessoas que estão indignadas com alguma coisa.

E vocês planejam essas ações coletivamente?
Fá: A natureza Anonymous é muito mais anárquica do que democrática. As pessoas têm uma ilusão do consenso, que tem que ser superada. É bem legal também ficar claro que não somos um grupo fechado, que temos diversos interesses. Fiquem atentos. Não achem que tudo que sai é em nome do grupo todo. Como é uma ideia, é como um livro, cada um interpreta a história de um jeito. Existe a ideia lá, as pessoas se indignam, mas cada um vai pensar de um jeito: democraticamente, de maneira anárquica, comunista, socialista. Não existe unidade em uma formação ideológica. Há uma ação, porque a gente percebe que certas ações precisam ser tratadas, às vezes de maneira local, nacional ou global, como no caso dessas leis de restrição.
Bode: E é interessante notar que, apesar de algumas pessoas criticarem o fato de construirmos localmente, esse é um elemento importante para a descentralização.
Fá: É, a coisa é completamente descentralizada. Quando a gente fala que não tem hierarquia, não tem hierarquia. Não tem ninguém a quem você tenha que se dirigir para pedir permissão. Não existe isso. O que eu percebo é que vão se formando grupos de trabalho, de interesse, que vão agindo juntos para combater as injustiças no mundo. As formas de fazer isso é que mudam muito. Mas nosso objetivo é também que as pessoas tenham um lugar para compartilhar e acessar informações, tanto por e-mail, como pelo twitter, facebook. A gente quer que todo mundo possa contribuir com uma visão mais conceitual sobre tudo isso que está acontecendo.

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