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As opções do Rádio Digital

Nelia R. Del Bianco é jornalista, produtora radiofônica, doutora em Comunicação-Jornalismo pela USP e professora da Faculdade de Comunicação da UnB. Há mais de 10 anos dedica-se à produção de programas radiofônicos educativos para várias instituições públicas e não governamentais. Publicou vários artigos em periódicos científicos do país sobre a condição do rádio na sociedade contemporânea, as tendências e perspectivas da programação radiofônica e o impacto das inovações tecnológicas na configuração de conteúdos e formatos do rádio. Nélia Também coordena a linha de pesquisa "Jornalismo e Sociedade" na UnB e, em entrevista exclusiva ao Observatório do Direito à Comunicação, fala sobre a implantação do rádio digital no Brasil.

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Observatório do Direito à Comunicação – Quais são as mudanças que a tecnologia digital pode trazer para o rádio?
Nelia R. Del Bianco Primeiro, a melhoria da qualidade do som do AM, o que representará uma revitalização de uma frequência já decadente. Segundo, o aparelho receptor inteligente é portátil, multifuncional e multimídia e pode dispor de voz, vídeo, base de dados, opções do tipo unidirecional (page) e interativo. Poderá também ter funções simplificadas que permitam selecionar a estação por nome indicado em uma tela de cristal líquido (LCD). Tudo isso significará uma diversificação na oferta de serviços e conteúdo: dados, tempo, trânsito, compras e informação de serviço pago. Terceiro, a digitalização introduz o sistema multicast, o que permite a divisão da faixa em até três canais, favorecendo a oferta simultânea de 3 tipos de programação diferentes, algo que representa um fator de revitalização do rádio e a diversificação do negócio a partir de parcerias, novos formatos, linguagens e conteúdo.

Quais podem ser os impactos na ampliação da pluralidade e diversidade de fontes de informação e conteúdos na radiodifusão de sons?
Em tese, acredito na hiper-especialização da programação pela música com seus mais variados gêneros e estilos. E também hiper-especialização temática: esportes, viagens, economia, literatura, aventura, cidadania, educação, etnia, saúde, cultura, direitos humanos. Aprofundará também a tendência do rádio de ser meio de relacionamento e interação com a audiência, para garantir sua sobrevivência em meio à diversidade de oferta.

Essa tendência implicará em reforçar a equipe de profissionais para diversificação da oferta de programação. Entendo que o conteúdo novo é o estímulo para aumentar a demanda do consumidor. Simplesmente retransmitir serviços existentes não é suficiente para estimular a adesão.

O ministro Hélio Costa afirmou à imprensa que anunciaria a escolha pelo padrão de rádio digital ainda neste mês de setembro. Qual a sua opinião a respeito disso?
A definição foi adiada para 2008, provavelmente em função de dois aspectos centrais: primeiro, o fato de os testes realizados pelas emissoras até agora não terem seguido corretamente sequer as especificações que constam da portaria de autorização. Na verdade foram feitos sem uma metodologia padrão. Os relatórios que a Anatel recebeu até agora são sumários, não descrevem procedimentos de teste que atendam inteiramente ao disposto nos Atos de autorização, em especial quanto à avaliação da compatibilidade do sistema digital com os canais distribuídos pelos Planos Básicos.

O segundo aspecto se deve à reação de vários segmentos da sociedade, especialmente de pesquisadores na área de rádio vinculados a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom que lançaram uma carta comentando aspectos preocupantes da tecnologia IBOC com base em pesquisa de campo com o IBOC em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Tanto o ministro Hélio Costa quanto os radiodifusores tem indicado preferência pelo padrão HD Radio. A senhora o considera o mais adequado para a realidade brasileira? Quais são as possibilidades e riscos da sua adoção? Haveria uma outra alternativa tecnológica?
A questão central são os testes. Enquanto eles não forem realizados seguindo a metodologia já elaborada pelo Departamento de Engenharia Elétrica da UnB, aprovado pela Anatel após consulta publica, não é possível dizer se o IBOC serve ou não para a realidade da radiodifusão brasileira. Alguns aspectos do IBOC preocupam e foram mencionados em carta assinada por diversos pesquisadores de rádio, entre eles a questão da tecnologia proprietária, cujos custos de royalties poderão inviabilizar a sua adoção por parte de emissoras comunitárias e educativas. Essa condição coloca os radiodifusores sujeitos aos ditames da empresa, a iBiquity Digital Corporation, que administra os direitos de uso da tecnologia. Podem, assim, perder o controle sob o gerenciamento do processo de instalação e definição de equipamentos.

O pedido de ampliação do uso de espectro de 200 kHz para 250 kHz apresentado em julho de 2007 pela iBiquity, proprietária norte-americana do padrão IBOC, junto à Federal Communications Commission (FCC) também é preocupante. Esta alteração é uma demanda técnica, sem a qual o padrão não apresentará um desempenho satisfatório. Se for concedida pela FCC, a ampliação de freqüência poderá significar a redução de cerca de 30% no total de canais em freqüência modulada hoje disponíveis naquele país. Partilhamos da opinião da Benton Foundation, organização internacional dedicada à articulação de políticas para o uso da comunicação na solução de problemas sociais e em prol do desenvolvimento, que vê no aumento da largura do canal ocupado por uma estação uma possibilidade de redução de disponibilidade de espectro para eventuais novos atores.

Além disso, há problemas relacionados à qualidade de som. Pesquisadores que acompanharam testes em emissoras observaram problemas de interrupções abruptas do sinal digital em locais onde havia fios de alta tensão (rede elétrica), prédios e túneis, forçando o aparelho receptor a transmitir em analógico, com um delay que pode chegar a oito segundos.

Como a academia tem visto os testes realizados com as tecnologias digitais para rádio? Seus resultados permitem uma avaliação razoável que embase uma tomada de decisão neste momento?
A preocupação foi manifesta na carta dos pesquisadores já citada anteriormente. Os resultados obtidos até agora não recomendam uma decisão. Primeiro por que têm sido realizados por apenas um dos segmentos da radiodifusão: emissoras comerciais. Não foram realizados testes independentes. É o que a Anatel propõe-se a fazer junto a duas emissoras de rádio a serem escolhidas.

No debate sobre o rádio digital, a tecnologia vem sendo o foco principal. Essa visão é correta ou há outros aspectos a serem discutidos para a implantação de um modelo de rádio digital para o país?
Defendo que existam sete diretrizes básicas para a introdução do rádio digital no Brasil. Primeiro, manter a gratuidade do acesso ao rádio, ou seja, acesso a programação sonora, acesso a dados na tela do aparelho receptor de interesse público e a oferta de serviços especializados e segmentados que podem ser adquiridos por assinatura.

Segundo, o que se refere à transmissão de áudio com qualidade em qualquer situação de recepção, no caso, móvel, portátil e fixa, que disponha de eficiência em qualquer localidade, independente de características topográficas, condições de uso do espectro eletromagnético, como edificações e topografia e problemas de poluição radioelétrica.

Terceiro, a adaptabilidade do padrão ao parque técnico de transmissão instalado e à industria de recepção, pois as emissoras brasileiras têm perfil variado quanto ao tipo de freqüência e a potência dos transmissores, o tipo de transmissor (valvular ou modular), a infra-estrutura técnica de produção, a equipe de pessoal técnico qualificado e a forma de exploração e financiamento: comerciais, educativas, culturais, legislativa, estatais, institucionais e comunitárias

Quarto, permitir uma implantação gradual, minimizando os riscos e os custos com soluções escaláveis e evolutivas, co-existência e convivência do analógico com digital, e um processo de transição compatível com a popularização do receptor.

Quinto, o aparelho receptor deve contar com potencial de popularização, a partir da fabricação nacional do aparelho e evitando uma divisória digital entre os que terão acesso ao aparelho receptor digital e os outros que permanecerão no analógico por falta de recursos.

Sexto, que o modelo conte com tecnologia não proprietária, pois, além de faltarem recursos às emissoras comunitárias, educativas ou públicas para pagar os royalties, há  a necessidade de controle sob o gerenciamento do processo de instalação e definição de equipamentos.

E, finalmente, integração, flexibilidade e convergência, pois o rádio digital não pode ficar isolado do movimento convergente, e deve favorecer a integração do meio com as demais mídias digitais portáteis e com sistemas de redes informatizadas. Deve favorecer também a oferta de mais de uma programação por canal e dispor de aparelhos receptores inteligentes e com possibilidade de interação.

A senhora avalia que o sistema de rádio brasileiro está preparado para esta mudança?
Ainda não. Falta compreensão da natureza da nova tecnologia quanto a aspectos técnicos, culturais e sociais.  Sob o aspecto técnico, o processo de digitalização poderá trazer dificuldades de adaptação para a maior parte das emissoras, sobretudo as pequenas e médias instaladas no interior, as educativas e as comunitárias, por falta de recursos para investimento. É provável que 50% das estações em funcionamento precisem trocar transmissores a válvulas por modulares para se adaptarem à tecnologia digital. Investimento igualmente significativo será necessário para digitalizar o processo de produção radiofônica, com a troca de equipamentos de estúdio, especialmente se for considerado o baixo nível de informatização interna das rádios no interior do país.

Quais deveriam ser os passos a serem adotados pelo governo federal neste processo daqui para frente?
Estabelecer, de forma consensual, que tipo de rádio digital queremos e, a partir desses parâmetros, buscar a melhor tecnologia que nos atenda.

‘A TV digital vai demorar uns 30 anos para pegar’

Com 71 anos, José Bonifácio Sobrinho, o Boni, é um dos pioneiros da televisão, ex-todo poderoso da Rede Globo e dono da TV Vanguarda. Recentemente, foi escolhido por Lula para ser um dos 15 representantes da 'sociedade civil' no condelho curador da Empresa Brasil de Comunivação, mantenedora da nascete TV Brasil. Há 56 anos na televisão, diz que novo sistema estará fora do alcance da maioria dos brasileiros e sugere calma.

Ele não tem pressa. Com a TV digital às portas da estréia, no próximo domingo inicialmente apenas em São Paulo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, como é unanimemente conhecido no métier televisivo, sugere calma e desdenha das tão propagadas inovações do novo sistema. 

Interatividade, alta definição, som surround…. "Ah, tudo isso vai demorar uns 30 anos para pegar de fato no Brasil. Os equipamentos são muito caros. Estão é fazendo propaganda enganosa para convencer as pessoas a aderirem", afirma.


Boni é o que se pode chamar de enciclopédia viva da televisão brasileira. Há 56 anos, quando a TV por estas bandas ainda era um bebê de dois anos, ele já estava na TV Tupi. Ao chegarem as cores, em 1972, era o manda-chuva da Rede Globo e foi o responsável por aposentar o branco e preto na maior emissora do País. Agora, com a TV digital, ele assiste às mudanças na confortável posição de dono de canal no interior paulista, a TV Vanguarda, uma afiliada da Rede Globo no Vale do Paraíba.

"Não terei de me preocupar com esse assunto por pelo menos dois anos. E espero que demore ainda mais", diz, aliviado, referindo-se ao cronograma oficial de implementação do novo sistema no País, que contempla, na primeira fase, as capitais. Só depois virá o interior.

Ao contrário do que possa parecer, Boni não é um saudosista. Está, sim, superantenado com as novidades da TV digital. Já viajou para EUA, Europa e Japão para ver o que se produz por lá e está montando uma nova sede para sua emissora, toda preparada para captar em alta definição. Mas o que pega mesmo, diz, é que tanta falácia e dinheiro gasto para produzir imagens de cair o queixo não irá chegar à maioria das pessoas.

"O Brasil tem cerca de 50 milhões de televisores. Na época em que a TV em branco e preto virou colorida, havia um estímulo óbvio, que era ver as imagens em cores, uma coisa inédita", diz. "E agora? Quem terá R$ 6 mil, mais R$ 800 do conversor, para comprar uma TV em alta definição? A maioria não vai se ligar nisso. O importante para eles é ver a novela, e pronto. Quem irá aproveitar a alta definição será uma minoria de 3% que tem dinheiro no País."

Boni vai mais fundo. Arrisca-se até a dar um conselho a quem está em dúvida se compra ou não um conversor de TV digital. "Na estréia, não vai ter interatividade, poucos programas serão em alta definição e com som surround… Quer saber? Se o sinal de TV pega bem em sua casa, é melhor ficar do jeito que está, pois você não perderá nada."

Mesmo assim, Boni vê a atual transição como necessária. Segundo ele, os equipamentos que as emissoras usam hoje para transmitir no sistema analógico já custam o mesmo que os do futuro sistema digital. "É preciso se atualizar. Para que gastar o mesmo com equipamentos defasados? A televisão ainda irá passar por outras transformações como essa no futuro. É uma coisa cíclica."

"Televisão vai continuar por muito tempo"

Num tempo em que tudo converge para o digital, desde música e vídeos à comunicação, o que será da quase sessentona TV brasileira, agora que ela mesma se rende aos bits e bytes? Boni é claro em sua constatação. “Muitos já preferem outros meios mais interativos, como a web.”

Ele próprio possui um blog (http://bloglog.globo.com/boni), disponibiliza vídeos da programação de sua emissora no site da TV Vanguarda (www.vanguarda.tv) e se diz um usuário compulsivo da rede. “Mas a internet não irá tirar o lugar da televisão. Um meio não mata o outro. Veja o rádio, por exemplo, a TV chegou e ele continua aí.”

É, mas antes de a TV estrear, o rádio era o centro das atenções. Depois, perdeu relevância. Isso não pode acontecer com a TV também?, pergunta o repórter. “Com certeza deve haver uma concorrência no futuro. Mas a televisão continuará a ser o centro. Principalmente porque as telas estão aumentando de tamanho. Quando você vai assistir um programa, prefere ver em uma telinha do PC ou em uma telona na sala? A televisão vai continuar aí por muito tempo ainda.”

O mesmo pensamento é, segundo Boni, válido para a possibilidade de assistir programas em celulares ou outros dispositivos portáteis, como será permitido a partir de domingo, em São Paulo. Para ele, ver programas muito longos em telinhas não agradará o telespectador, mesmo que possa ter acesso à novela em viagens de ônibus, por exemplo.

“Acho, sim, que a transmissão de programas para celular fará muito sucesso. Mas o formato terá de ser curto, de cerca de dois minutos. E isso tem de ser estudado. Pois, pela TV digital, não seria possível. Seria necessário conversar com operadoras de telefonia para conseguir um custo atraente.”

Ao mesmo tempo, Boni se diz preocupado com o impacto que essas mudanças podem trazer. O primeiro deles, apontado por ele como positivo, é que as emissoras terão de se profissionalizar cada vez mais, em detrimento de muitos improvisos praticados hoje. "Cenários com remendos, iluminação sem planejamento, tudo isso terá de ser revisto."

Historicamente, lembra, cada mudança que a TV sofreu nesses 58 anos de operação no País forçou a maior profissionalização. A Boni, por exemplo, é creditada a criação do famoso "Padrão Globo de Qualidade", que fez as demais emissoras correrem atrás do prejuízo para tentar se igualar à líder – vide o atual exemplo da Record.

"A cada alteração, cresce o número de profissionais envolvidos, os cuidados técnicos, o dinheiro envolvido… A tecnologia exige isso", diz. "Hoje, por exemplo, o complexo de produção das emissoras é gigantesco, com milhares de funcionários. Por outro lado, o prédio da TV Paulista (comprada pela Globo em 1965), onde trabalhei no começo da carreira, transformou-se em uma tinturaria, de tão pequeno que era."

Mas, junto com essa profissionalização, Boni alerta para a necessidade de focar na criatividade. Ele diz que, até agora, ouviu muito falar sobre os avanços técnicos na área de imagem, som, etc., mas não sobre como toda essa mudança pode impactar no conteúdo que se vê na tela dos televisores.

"O meu medo é que a preocupação fique apenas nos aspectos tecnológicos e se perca o foco no mais importante, que é o que se leva aos telespectadores", diz. E lembra: "Quando ainda tínhamos a TV em branco e preto, me disseram na TV Paulista: "Não adianta ter uma produção caríssima se o conteúdo for ruim. Se for bom, pode ser até filmado com uma câmera só, com um apresentador lendo um livro, que o público não muda de canal. Viu? A tecnologia não é tudo." 

A mídia como aparato ideológico da globalização

Ignácio Ramonet – jornalista, escritor e teórico da comunicação – visitou recentemente a Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Diante de uma platéia composta por ativistas de 18 países, Ramonet falou sobre seu mais recente livro: “Fidel Castro, Biografia a Duas Vozes”, resultado de mais de 100 horas de entrevista com o dirigente cubano, classificado por ele como “o Picasso da política”.

Após a palestra, o jornalista francês, editor do Le Monde Diplomatique, conversou com exclusividade com este Observatório. Veja os melhores momentos da entrevista.

Algum tempo se passou desde o lançamento de 'A Tirania da Comunicação'. O que permanece e o que mudou no cenário das comunicações nestes últimos anos?
Ramonet –
O livro saiu há uns cinco anos, e neste momento estou escrevendo a continuação, que deve sair na primavera do próximo ano. Eu diria que tudo que se anuncia nesse livro está se realizando, tudo segue dentro do esquema geral ali traçado. Há grupos midiáticos cada vez mais importantes, como empresas resultantes de fusões e concentrações; por outro lado a Internet, que nós pensávamos que poderia ser um elemento de democratização da expressão popular não o está sendo.

Por quê?
A Internet hoje, a Internet digamos “útil”, já pertence aos grandes grupos de comunicação. Na maioria dos países os sites de informação mais freqüentados pertencem aos grandes grupos de comunicação. Claro que alternativas a essa comunicação sempre existiram, mas temos a mesma relação de marginalização e dominação que existe na imprensa escrita, ou no rádio e na televisão. Estamos comprovando todas as tendências que se viam, como a desqualificação dos jornalistas, por exemplo, uma desqualificação que segue crescendo: jornalistas cada vez mais mal pagos, cada vez mais proletarizados, cada vez mais incapacitados para realizar um verdadeiro trabalho autônomo… tudo isso está confirmando uma situação muito preocupante.

Neste momento, os meios dominantes aparecem como aparato ideológico da globalização. Hoje temos uma espécie de duopólio de poderes: poder econômico e financeiro, e poder midiático, que se aliam para dominar a sociedade. Nesse sentido, os cidadãos se sentem traídos, porque pensavam que o que chamávamos de o quarto poder tinha como objetivo constituir um contra-poder, e que os cidadãos tinham um espaço para falar. Isso hoje se modificou, estamos numa situação em que o quarto poder desapareceu, se desvaneceu. Ou se transformou em um poder que oprime os cidadãos.

Você falou da Internet. Nesta segunda-feira começa, no Rio de Janeiro, o IGF – Fórum de Governança da Internet, que pretende discutir o futuro da Rede. Queria que falasse um pouco da diferença entre o que se pensava da Internet há dez anos atrás e o que se passa hoje, as potencialidades e limites dela.
A Internet ainda está apenas começando. Escrevi um livro há alguns anos que se chama Internet: o mundo que está por vir, é um universo que está começando e tudo o que se pode dizer sobre a Internet hoje provavelmente será insuficiente, ou será desmentido em dez anos. Porque ela tem apenas doze anos, a “Internet útil”. Inventa-se a web em 89, e ela começa a se estender em 95. Em doze anos houve uma expansão que não se podia imaginar, ninguém podia imaginar algo como o Google, algo como o You-Tube ou MySpace. Coisas que nem sequer imaginávamos, e que provavelmente não temos como medir ainda o efeito que causam, por exemplo na indústria cultural, a crise extraordinária da economia sonora, de discos. Ou a crise que pode haver amanhã no setor de distribuição.

Eu, desde o princípio, dizia que a Internet essencialmente serve para três coisas: para vender, e a rede já é hoje um elemento de venda muito importante, para distrair, podemos baixar filmes e músicas, muito mais do que apenas visualizar documentos como pensávamos antes, e terceiro ela serve para vigiar. Vemos isso de maneira muito concreta, cada movimento que fazemos na Internet deixa uma pegada que vai deixando impressa a personalidade daquele que a manipula. É o que se está confirmando, e, como disse antes, em certa medida estamos um pouco decepcionados porque a Internet não é a arma de expressão alternativa que imaginávamos.

Outra questão muito ligada à Internet é a da propriedade intelectual. Você como autor de livros, acredita que os direitos autorais são de fato um empecilho à difusão do conhecimento ou…
É um problema evidentemente difícil, por duas razões. Primeiro, a lógica da Internet é a lógica da gratuidade. Tudo que na Internet se impõe como barreira paga não funciona. Estamos vendo agora jornais como New York Times ou Wall Street Journal passarem para a gratuidade a cobrança que tinham instituído no acesso aos seus artigos antigos, porque ganham mais com a freqüência e audiência, com publicidade. Isso faz com que querer que se pague por algo consumido na Internet seja muito difícil. Daí que os autores tenham aceitado a idéia de o que circula pela Net circula gratuitamente. Agora, o problema é que muitos autores vivem dos direitos de suas obras, falo de músicos, realizadores de cinema, autores de literatura, etc.

Há aí uma problemática, receber os direitos é uma reivindicação legítima. Então se por um lado está essa idéia de que a Internet permite uma circulação grande de obras, o que sabemos é que essas obras que circulam e toda sua grande audiência estão enriquecendo ao Google e aos sites de busca, ou estão enriquecendo aos sites que ganham com publicidade. Há que se encontrar uma maneira que o acesso seja gratuito, mas que essa gratuidade não seja através de uma taxação da publicidade ou da compra de programas, permita que os autores sejam retribuídos. É um grande debate, em escala internacional. Digo que há duas posições, e que as duas são legítimas. Que circule livremente a cultura, obviamente estamos a favor; dois, que os autores tenham seus direitos reconhecidos. Sem que se tenha um sentimento de propriedade absoluto.

Estamos no MST, que tem um trabalho reconhecido de comunicação alternativa, em seu livro Fidel fala da importância da Rádio Rebelde na Revolução… Qual o papel da comunicação como forma de organização dos movimentos sociais?
Eu creio que para Fidel estavam claros os princípios, e nisso ele foi um grande professor, de que numa guerra se luta em três frentes: militar (obviamente), política e a frente midiática. Fidel era um homem da geração pós Segunda Guerra, percebeu que essa frente é capital. Bom, conhecemos como ele pôde manipular o New York Times em seu célebre contato com Herbert Mathews, como ele pôs de pé desde o princípio uma ala comunicacional, a Rádio Rebelde. Ele conta no livro que num momento ela foi a rádio de maior audiência em Cuba, e isso com uma potência muito débil. Mesmo assim tinha reflexos por toda a ilha. O movimento social já entendeu isso, em escala internacional. Em certa maneira graças à Internet: sem Internet não se poderia ter organizado o Fórum Social Mundial, sem Internet campanhas que se fizeram em escala planetária, como contra a Guerra no Iraque, não poderiam ter sido feitas. É indispensável que se pense tudo isso.

A TV pública e a convergência tecnológica

Fundador do Núcleo de Estudos de Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), o sociólogo e jornalista Venício Artur de Lima coordenou a edição do livro A mídia nas Eleições de 2006, que reúne artigos de 16 especialistas sobre o desempenho da mídia na última eleição presidencial. O livro, publicado pela Fundação Perseu Abramo, traz uma análise do papel da mídia no processo eleitoral, registra os resultados do acompanhamento da cobertura jornalística realizada por diferentes instituições e publica alguns documentos que marcaram o debate sobre essa cobertura que acabou por se tornar, ela mesma, parte da agenda pública.

Nesta entrevista, Venício Lima analisa a evolução do sistema brasileiro de mídia, fala da convergência tecnológica e do papel da TV pública como um dos canais para construção de uma mídia independente do Estado, com maior participação social na criação de conteúdo.


O que te motivou a fazer o livro A Mídia nas Eleições de 2006? O que mais ficou marcado sobre o papel da mídia nas eleições no ano passado?

Venício – A origem do livro foi uma conversa com o editor da Fundação Perseu Abramo, Flamarion Maués. Desde o princípio, a idéia era editar um livro que contasse a história da relação da mídia com o processo eleitoral; que documentasse esse processo – tem uma parte de anexos e documentos – e fosse um livro propositivo, não só analítico e descritivo. O livro responde basicamente a três perguntas: como foi a cobertura, qual papel ela teve e o que pode ser feito para democratizar as relações da mídia com a sociedade em geral e o processo eleitoral em particular.

A parte de anexos reproduz as reportagens da Carta Capital que saíram imediatamente depois do primeiro turno, a resposta da Globo, referente a carta do Rodrigo Viana, jornalista demitido da Globo. Nós publicaríamos a resposta que a Globo deu, aliás, um comunicado à imprensa, mas por incrível que pareça, o Latgé (Luiz Cláudio), diretor de jornalismo aqui em São Paulo, não autorizou, embora tenha sido comunicado à imprensa.

Do ponto de vista da relação da mídia com o processo eleitoral, o mais interessante é que naquele ano a cobertura dos diferentes candidatos foi acompanhada por instituições independentes, e o resultado desse acompanhamento entrou na agenda de discussão no processo eleitoral. Que a mídia tenha tomado partido e que a cobertura tenha sido desequilibrada, não é novidade. Agora, que o processo tenha sido acompanhado por instituições diferentes, com metodologias diferentes, e todas terem concluído que a cobertura foi de fato tão desequilibrada, isso é novidade. O Doxa (Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública) do IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), acima de qualquer suspeita política e partidária, concluiu que a cobertura foi desequilibrada a tal ponto que é impossível dizer que ela não tenha sido partidária. O OBM (Observatório Brasileiro de Mídia) chegou à conclusão do desequilíbrio, mas não tem a frase dizendo que foi partidária.

Há vários autores que tiveram uma contribuição importante na observação e na análise da cobertura da mídia durante a crise política, como o Wanderley Guilherme dos Santos, que destacava o que acontecia no país pela ausência de uma mídia regional forte, que contestasse sobretudo os jornais de referência nacional. Com o processo eleitoral, que se acumula com a cobertura da crise, a credibilidade da mídia entrou na roda; e, mais ainda, o problema do descolamento dos formadores de opinião tradicionais. Eles entraram num processo de serem desacreditados, porque descolaram sua própria posição da posição majoritária, não só no processo eleitoral, mas já na avaliação de opinião pública da mídia.

Além da posição das empresas, nós podemos identificar nos próprios jornalistas a postura anti-Lula, com exceções, ao contrário das eleições de 82 no Rio de Janeiro, quando o Brizola enfrentou a Globo. O que mudou? O perfil político, social, de classe dos profissionais de imprensa?
Um dos capítulos do livro, escrito pelo Bernardo Kucinski, trata exatamente disso: ele diz que a cobertura da crise e do processo eleitoral, revela um anti-lulismo muito acentuado, sobretudo, entre os jornalistas mais jovens. Ele atribui isso a vários fatores, um deles, ao preconceito de classe. Você tem uma não identificação desses profissionais com a pessoa que assumiu, num processo democrático, a Presidência da República no Brasil. É um fato completamente inédito. Soma-se a isso uma característica da nossa mídia impressa (e vou usar o que o Bernardo fala): a elite é a protagonista, a fonte e a sua leitora. Foi sempre assim, à exceção da mídia alternativa no tempo da ditadura e outras iniciativas que ainda existem. Basta ver a tiragem dos nossos impressos; é irrisória do ponto de vista do conjunto da população.

A evolução do sistema brasileiro de mídia, como ele se consolidou historicamente, fez com que, no Brasil, não exista uma coisa que é comum nos outros países, que é a separação entre os grandes grupos de mídia impressa e os grandes grupos de mídia eletrônica. Aqui são os mesmos grupos. Agora, há uma diferença muito grande entre o que acontece na mídia eletrônica, o jornalismo de TV e o jornalismo impresso. Esse anti-lulismo tem muito a ver com essa figuração histórica, sobretudo, da mídia impressa que sempre foi elitizada. Mas, você não pode atribuir o desequilíbrio da cobertura apenas à atuação dos jornalistas. O jornalismo não funciona assim, tem a ver com as empresas.

É possível situar os interesses econômicos a que estão atrelados os grupos de mídia brasileira hoje? Quais as suas motivações mais importantes?
Nós estamos vivendo um momento muito complicado do ponto de vista do rearranjo dos atores. Não podemos atribuir isso somente à revolução digital e ao processo de convergência tecnológica, que  provocaram um certo desarranjo no setor do ponto de vista da sua configuração tradicional. Nós temos peculiaridades que fazem com que algumas conseqüências desse processo que não é só nosso, talvez demorem mais por aqui. Mas, de qualquer forma, já estamos sentindo alguns reflexos do que ocorre em outras partes do mundo.

Com a convergência tecnológica, a divisão que havia na área baseada na tecnologia está sendo diluída aos poucos. No caso brasileiro, isso significa a entrada de atores que, até o processo de privatização, eram excluídos do cenário brasileiro, que são grandes grupos globais como, por exemplo, de telecomunicações. Eles não são só de telecomunicações, um grupo como a Telefônica tem, inclusive, produção de conteúdo em outros países. Isso representou uma ameaça para os atores brasileiros que historicamente estavam consolidados aqui.

Eu tenho a impressão de que estamos vivendo um momento em que algumas deliberações já foram tomadas, inclusive, sem a participação da sociedade. Por exemplo, a definição do modelo tecnológico da TV digital, que, aparentemente, atende interesses de um grupo. Decisões estão sendo tomadas, mas há muitas coisas a serem definidas. Esse processo tem conseqüências políticas e econômicas, porque os atores são outros. E, obviamente, tem conseqüência do ponto de vista da regulação do setor.

Nós temos uma defasagem imensa em relação à regulação. A entrada do capital estrangeiro para participar do mercado de televisão paga é um exemplo. Hoje, ele tem limite na TV a cabo, mas não nas outras tecnologias. Então é o caos regulatório. Eu tenho esperanças de que o governo consiga fazer uma proposta de lei geral, de marco regulatório. Foram criadas comissões que nunca se reuniram. Agora, dentro dessa confusão toda é muito difícil dizer que há um projeto hegemônico na área. Há uma disputa, por exemplo, entre os radiodifusores e as empresas de telecomunicações, grandes grupos globais que estão disputando essas áreas, não só no Brasil, mas no resto do mundo.

Sobre as peculiaridades do país a que me referi, existe um vínculo histórico da mídia, pelo processo como ela foi consolidada, com as oligarquias regionais. Mas esse vínculo deu uma complicada com a Constituição de 88, porque, a partir daí, o poder concedente  passa a ser compartilhado com o Congresso. Só que, no Congresso, essas oligarquias sempre estiveram e estão muito bem representadas. Então,  apesar de haver, hoje, no Congresso, movimentos importantes e até surpreendentes, como a subcomissão presidida pela Luiza Erundina, o Congresso não assumiu o papel que a Constituição lhe deu. E, até hoje, continua aprovando as concessões e renovações de forma automática.

Em que espaço de tempo poderia se esperar que a Internet reconfigurasse a maneira como a esfera pública é agendada no campo político? O que precisaria para isso? Uma política nacional de banda larga e inclusão digital, ou estamos falando de mudar o jeito de fazer política. Quais as conclusões mais relevantes da análise das comunidades do Orkut durante as eleições?
Eu sempre fui muito resistente a aceitar o fato de que a internet estava alterando muitas coisas, inclusive na política. A base dessa resistência é que temos 70% da população brasileira que nunca teve acesso à internet. A minha linha de compreender isso é que está havendo uma substituição do que nós, analistas e estudiosos, sempre acreditamos que fossem os formadores de opinião tradicionais. Está havendo uma substituição dessas pessoas e, nessa substituição, a internet tem um papel importante.

Ficou claro nas pesquisas sobre o processo eleitoral que a opinião dos colunistas da grande mídia se descolou totalmente da opinião majoritária da população e dos eleitores. Mas nós sabemos, do ponto de vista da teoria da comunicação, que a comunicação embora cumpra uma função importantíssima sem nenhuma intermediação, do ponto de vista da formação de opinião, sempre há uma intermediação, seja para política, comportamento, compra de roupa, o que for. A mesma pessoa pode estar sob influência de várias lideranças de opinião e, ao mesmo tempo, exercer essa liderança para outras pessoas.

Acontece que houve uma incorporação de novas lideranças. Sou daqueles que acredita que está havendo no Brasil, nos últimos quatro, cinco anos, um processo crescente de organização da sociedade civil. Um exemplo são as mais de dez conferências nacionais que aconteceram nos diferentes setores, e que foram precedidas de debates organizados a nível local, municipal, estadual e que mobilizaram milhões de pessoas. Desses processos surgem lideranças que estão substituindo lideranças tradicionais. Esses líderes, apesar do percentual de exclusão digital ser muito grande, têm acesso à internet, ou diretamente, ou indiretamente através de programas de inclusão digital do governo.

Assim, a internet atinge, através das lideranças de formação de opinião, o grande conjunto da população. É surpreendente como em algumas cidades do interior do Brasil, Itabuna (Bahia), por exemplo, você tem mais lan houses do que farmácias. Eu não tenho nenhuma dúvida, sobretudo a partir de 2006, que a internet está desempenhando um papel crescente. E não é só na questão da opinião política.

 

Muitas entidades da sociedade civil criticaram a proposta do governo federal de indicar os nomes para formar o conselho gestor da nova TV pública. Esse modelo, de um conselho de notáveis indicados de cima para baixo, não contradiz, de fato, a idéia apresentada no livro, por Luis Felipe Miguel, de agregar novos atores da sociedade civil para garantir o pluralismo?  Por que, na sua avaliação, o governo fez essa opção?
O que eu acho que pode eventualmente contrariar as indicações feitas no capítulo do Luis Felipe, que é a parte propositiva do livro, não é nem a forma de indicação, pois se você tiver mecanismos de controle público e substituição a longo prazo, não tem nenhum problema. Eu mesmo vi, em discussão da área, aquela coisa de quando você ensina a criança a andar de bicicleta, a criança aprende a mexer o pé e você larga a bicicleta para ela ir sozinha. O governo está fazendo esse papel; se não fizesse, não teria a empresa pública, já que é uma empresa de TV, rádio e agência, não é só TV.

Algumas dessas críticas que de fato aconteceram e são precipitadas. A crítica que não se pode fazer ainda, mas se puder ser feita é importante, é quanto ao modelo de gestão. Você tem que fazer um modelo de gestão com mecanismos de participação e controle social amplo para não se criar uma TV estatal. Isso absolutamente não quer dizer que não tenha que ter uma TV estatal, uma rádio estatal que, aliás, é um problema, não teve, inclusive no momento em que o país precisava de uma outra voz, uma cobertura mais equilibrada.

A chave da questão é o modelo de gestão e não precisa inventar a roda, porque isso existe em outros países, Canadá, nos Estados Unidos. Na Inglaterra, a BBC tem esse modelo com muito vínculo local, nas cidades, universidades. O que precisa é um modelo que dê conta da possibilidade de controle. Você está inserindo uma figura nova, com controle público. Tem que ter uma forma de controle que não seja nem comercial, privado, nem controle do Estado.

Qual a sua opinião sobre a nova regulação de TV por assinatura proposta pelo deputado Jorge Bittar, que cria o novo Serviço de Acesso Condicionado? A redução da publicidade (especialmente no horário infantil), a abertura do mercado às teles, a neutralidade tecnológica e a exigência de participação definida para os conteúdos nacionais (10% da grade, 40% no horário nobre) podem trazer benefícios do ponto de vista da pluralidade de visões políticas na mídia? Pode reduzir o preço desse serviço a ponto de democratizá-lo, ou continuará sendo um acesso de elite?
Em Portugal, o presidente sancionou uma lei pesada, 2/3 de conteúdo em língua portuguesa e 1/3 de produção nacional (…). Eu estou acompanhando isso em Portugal e no Canadá, para mostrar como a regulação, a proteção à cultura nacional e a ética para os jornalistas cresce, cada vez mais, nesses países. E é regulação por lei (…).

Com a questão da convergência tecnológica, é impossível você controlar. O caminho é, como o exemplo de Portugal, você estabelecer normas que protejam a produção independente, a produção cultural, a língua, a cultura, a diversidade. Muitas dessas coisas estão na Constituição e nunca foram cumpridas.

Há quem creia que a regulamentação da nova TV pública seria um dos canais para construção de uma mídia independente do Estado, com maior participação social na criação de conteúdo. Isso seria possível? Como?
A TV Pública só faz sentido se acenar para essa possibilidade. A esperança de quem está na área é que você tenha uma alternativa de qualidade que possa servir inclusive de referência à TV comercial, fazendo o que ela não faz. Por outro lado, essas coisas que estão acontecendo, o relatório do Bittar, a entrada de novos atores que estão disputando um espaço, que tradicionalmente, era monopólio desses grupos de sempre no Brasil, é uma questão de tempo. Tem que ter um marco regulatório adequado. É inevitável.

A renovação das concessões da chamada da grande mídia televisiva está acontecendo agora. Haverá mudanças nos termos, alguma contrapartida nova, algum tipo de ganho para a sociedade civil? A comissão que estuda o assunto avançou em algum aspecto nessa relação?
Se você olhar historicamente o que acontece com a radiodifusão no Brasil, desde a década de 30, o país optou por privilegiar a exploração pela iniciativa privada. Os radiodifusores conseguiram consolidar uma legislação que diferencia os contratos de prestação de serviços dos serviços públicos de radiodifusão, de todos os outros contratos. Eles têm privilégios que outros prestadores de serviços públicos não têm. Isso chega a tal ponto que, para você terminar um contrato de concessão de radiodifusão que esteja em vigência, você precisa da votação nominal de 2/5 do Congresso, pela Constituição de 88. E o prazo da renovação, que é de 15 anos, transforma as concessões em propriedade privada.

O ministro Franklin deu uma declaração dizendo que o país está maduro para discutir as concessões. Esse movimento que surgiu na sociedade civil – sindicatos, entidades da área, movimentos sociais que propõem a discussão sobre as concessões, tendo como mote o vencimento da concessão das cinco cabeças de rede da Globo. O PCdoB está pautando essa discussão. O PT foi para esse rumo também. Agora, é um processo complicado e de longo prazo, porque a população se mobiliza em torno de transporte, hospitais etc, mas para se mobilizar porque a novela não está satisfazendo é muito difícil.

A lei de imprensa e a regulamentação da profissão do jornalista também não poderiam ser atualizadas? Que ações poderiam ser desenvolvidas pela sociedade civil, para ampliar seu poder de influência (online ou fora da rede) nas próximas eleições?
As transformações tecnológicas, economia política e reorganização do setor, estão provocando um repensar sobre as profissões. Na prática, hoje, algumas escolas já formam um profissional multimídia, que é a exigência do mercado. E como há uma oferta de profissionais, muito maior do que a absorção do mercado, a diferença das escolas estará condicionada à capacidade de formar um profissional capaz de inventar o espaço de atuação. Isso acontece com os sites, pequenas empresas de prestação de serviço, etc. Agora, a discussão sobre a regulação profissional deve levar em conta essas mudanças radicais que estão acontecendo agora e que terão implicações na regulação. 

Pesquisa do Instituto GlobeScan, realizada no Brasil, pela GFK Indicator, citada no livro, diz que 64% dos entrevistados raramente encontram na grande mídia o que gostariam de obter. É possível saber o que gostariam? Quais, na sua opinião, são as grandes lacunas da mídia do ponto de vista da esfera pública?
Na TV aberta, falta o debate dos temas nacionais. O Roda Viva é um programa específico, personalista, porque você convida uma pessoa. São temas de interesse público, a própria mídia, ou temas econômicos, sociais, de interesse da família. O espaço na mídia aberta onde essas discussões são feitas de forma indireta, é o espaço da ficção, das novelas e das séries muitas vezes. Falta isso, e junto com isso você levaria um milhão de coisas, a produção independente, a regionalização da produção, a educação, a cultura, a representação da diversidade étnica, cultural, que inclusive que já estão na Constituição.


Além dos marcos regulatórios, concretamente, o que pode ser feito para a sociedade civil nessa direção, por exemplo, considerando as próximas eleições?
Num certo sentido, os partidos políticos têm que pautar a mídia como objeto de discussão e acionar e cobrar dos seus representantes no Congresso ações objetivas nesse sentido. Fora isso, há várias questões que não tocamos. Esse movimento das concessões é importante porque chama atenção ao fato de que as concessões de radiodifusão e televisão são concessões do poder público, por prazo determinado, condições determinadas para a renovação. Isso tem que fazer parte do debate, uma das condições é o cumprimento da Constituição.

Uma coisa importante que poderia ser feita, e pode ser localmente, é o acompanhamento das concessões de rádio FM, por exemplo. As concessões de rádio FM são locais. Você ter em cada local, um partido ou entidade da sociedade civil que saiba quais emissoras têm concessão naquela localidade, qual o prazo dessas concessões e que manifeste publicamente o seu direito de interferir na concessão desse serviço público e na sua renovação, reivindicando o debate sobre isso no nível da estrutura institucional local, a Câmara de Vereadores, movimentando deputados estaduais e federais…

O mais importante para mobilizar a vontade coletiva com relação a comunicação é o acompanhamento dos concessionários a nível local. Aí, entramos na questão das rádios comunitárias também. Nós fizemos uma pesquisa, recentemente, e os dados que conseguimos indica que, das emissoras autorizadas de 1999 até dezembro de 2004, 50.2%  tinham vinculação político-partidária. Um absurdo do ponto de vista do interesse público.


E você vê uma série de rádios comunitárias, com projetos educacionais, públicos, fechadas.
Isso faz parte da necessidade regularizar tudo, uma coisa perversa. A regulação na verdade foi criada para obstaculizar as rádios comunitárias, e não para favorecer a sua criação. Você tem uma situação absurda, de rádios comunitárias que existiam antes da legislação, que cumpriam uma função pública e recebiam recursos de entidades nacionais e internacionais, reconhecidamente públicas, mas que não conseguiram até hoje a sua regularização e são fechadas. Claramente, não é porque elas não servem ao interesse público, mas porque contrariam o interesse das concessionárias privadas e comerciais. Está errado isso.


Até do ponto de vista eleitoral, na crise política, discutia-se que se você tivesse uma rede de rádios comunitárias fortalecida, financiada e apoiada, isso serviria de contraponto para a chamada informação da grande mídia…
É fundamental. O processo é contaminado desde a sua origem. Uma entidade que se interesse em ter uma autorização de rádio comunitária, ela terá quatro vezes mais chance de atringir seu objetivo se tiver apoio político partidário de alguém em Brasília, que acompanhe o processo.


Agora, há um projeto que vai tratar de demandas na área da TV paga e da questão da proteção do conteúdo;em outra frente, temos a TV pública também. Resolver a questão aos pedaços não dificulta a bandeira em defesa da necessidade da Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa?
Eu tinha esperança de que em algum momento fosse chegar o projeto da lei geral do governo;  o Hélio Costa (ministro das Comunicações) prometeu esse projeto para julho. Era um ponto de partida. Imaginei que pegariam todos os projetos anteriores, agregariam tudo e se promoveria uma grande discussão. Do jeito que está caminhando, corremos o risco de resolvermos problemas parciais e o caos continuar.

Os 10 anos da Anatel

Conhecido pelos mais próximos como comandante (afinal, ele é, mesmo, um Comandante de Mar-e-Guerra), a trajetória  do conselheiro José Leite Pereira Filho confunde-se com a da própria Anatel, agência que dirigiu desde o seu primeiro dia. Trazido da União Internacional de Telecomunicações pelo ex-ministro Sérgio Motta, Leite acabou dedicando dez anos de sua trajetória ao setor, deixando o cargo de conselheiro da agência no dia 4 deste mês.

Nesta entrevista, o leitor poderá compreender um pouco o seu perfil: discreto quando trata de elencar as realizações, e realista na avaliação dos erros do regulador. E poderá entender também, ao se deparar com as suas instigantes intervenções, porque José Leite Pereira Filho é um dos mais importantes artífices na construção do modelo, expansão e democratização das telecomunicações brasileiras.

Leite quebra alguns tabus, como o de que as operadoras de TV a cabo são controladas por capital nacional. Defende sem pudor a convergência tecnológica, por entender ser ela benéfica para o país. Ao mesmo tempo, acha que as incumbents devem ser controladas pelo poder que exercem nos mercados relevantes. Não se furta da auto-crítica, ao reconhecer que a fiscalização da Anatel não tem condições de garantir, corretamente, os direitos dos usuários, ou ainda que a agência é ineficiente para arbitrar as brigas entre as empresas. E continua a pensar o futuro, como medo do despreparo da agência para enfrentar as grandes empresas na definição do modelo de custos.
   
Tele.Síntese – O sr. dirigiu a Anatel por dez anos, em dois governos diferentes. Como avalia a relação das agências reguladoras com o Poder Executivo brasileiro?
José Leite Pereira Filho
– A passagem de dois governos consolidou as agências reguladoras. O primeiro governo criou esse sistema, mas o teste do segundo governo foi essencial e acho que a agência passou no teste. O atual governo tem demonstrado, em mais de uma oportunidade, que, realmente, assimilou esse modelo. Essa é a conclusão desses dez anos: a agência veio para ficar.

E no relacionamento entre os poderes?
No relacionamento com os governos, realmente há uma dificuldade. E a dificuldade existe porque, quando se diz que a política é estabelecida pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo e a implementação da política pela agência reguladora, essa definição é muito vaga. Existe uma fronteira muito fluida entre o que é regulação e o que é política pública. Acredito que o aprimoramento seria estabelecer, com mais precisão, como a política deveria se expressar. E, talvez, a saída fosse que a política tivesse que se manifestar sempre através de um instrumento jurídico, seja decreto presidencial, seja uma lei. Também  entendo que as leis e os decretos devam se restringir à política em si e não à regulamentação.

Algum exemplo dessa legislação regulamentadora?
A Lei de TV a Cabo, para mim, é um exemplo desse problema, pois, ao longo dos anos ela só prejudicou o segmento de TV por assinatura.

De que maneira?
Essa lei ficou desatualizada rapidamente, estabeleceu restrições de capital que não são precisas, trazendo interpretações diversas. Do jeito que está escrita a lei, o capital brasileiro nas concessionárias de TV a cabo pode ser quase zero, ao invés de 51% como se apregoa.

O sr. quer dizer o capital total, não é? Mas o controle (ou 51% das ações) têm que estar em mãos de brasileiros, não?
Não é isso que diz a lei e não é assim que muitas concessionárias de TV a cabo estão constituídas. A Lei de TV a Cabo diz que 51% das ações de uma concessionária de TV a cabo têm que estar em mãos de pessoas físicas brasileiras. Mas essa mesma lei diz, também, que essa mesma concessionária pode ser controlada por outra pessoa jurídica que também tenha 51% nas mãos de brasileiros, e mais outra e mais outra. Dependendo da cadeia de controle, o controle de brasileiros sobre a operadora de TV a cabo se reduz a quase zero.

E há esses exemplores no mercado brasileiro. Há concessionárias de TV a cabo no Brasil que têm nove empresas controladoras sobre a sua estrutura. Nesse caso específico, se fizermos uma conta simples, para sabermos quanto de capital nacional efetivamente existe na operadora, basta que elevemos os 51% à oitava potência, o que significa que, na concessionária, a representação do capital nacional é menor do que 0,05% (meio por cento). Então, o capital nacional da Lei do Cabo é uma balela.

Uma balela, mas que atrapalhou muito o setor, porque, ao definir o capital em 51%, isso espantou os investidores estrangeiros. No boom das telecomunicações, a Anatel vendeu várias outorgas de TV a cabo que não foram em frente, porque faltou investimento. Os investidores estrangeiros ficaram assustados quando alguém dizia que a concessionária  “só pode ser de brasileiro”. Mas, na realidade, não é isso o que acontece, já que, no final, uma concessionária terá meio por cento de capital brasileiro e 99,5 de capital estrangeiro.

Esse é o caso da Telmex na Net, por exemplo?
É. Mas há outros exemplos. E quando me refiro a essa cadeia, estou falando apenas das ações nominativas, já que as preferenciais, que são 2/3 das nominativas, não têm restrição alguma.

O sr. não acha que essa cadeia de controle que diminui a participação do capital estrangeiro desvirtua o princípio da Lei do Cabo?
Não, porque, justamente, a Lei do Cabo não fala que a concessionária, a operadora de cabo, é que deve ser controlada por brasileiro.  A lei diz que a concessionária deve ter sede no Brasil e pelo menos 51% da propriedade das ações (e não o controle) nas mãos de pessoa física ou de pessoa jurídica brasileira. E quando fala em pessoa jurídica, aí sim fala que essa pessoa jurídica é que deve ser controlada por brasileiro. Ou seja, a concessionária deve ter 51% de capital ou pessoa física brasileira ou pessoa jurídica brasileira. Só.

Mas a 101 não “amarra” essa cadeia de controle?
A 101 só pode ser aplicada nos limites da Lei. E a Lei do Cabo fala que o controle de 51% deve estar na pessoa jurídica que controla a concessionária. A 101 única e exclusivamente define o que é controle. E a primeira pergunta que ela busca responder é: quem é que deve ser controlado? E, no caso da Lei do Cabo, é a holding, e não a concessionária. Então, a 101 vai obrigar que a pessoa física que está na última empresa da cadeia de controle seja controladora da holding, mas pára aí. Ela não pode chegar à concessionária.

Mas, se se controla o controlador, não está-se controlando a operadora?
Depende do controlador. Ele pode estabelecer no acordo de acionistas que quer ter representantes dele no conselho de administração da concessionária. Ou, simplesmente, pode querer agir como investidor e não ter qualquer representação.

Quais foram os principais erros e acertos desses dez anos?
Vamos primeiro aos orgulhos. É indubitável que um deles é a expansão da telefonia móvel no Brasil. O serviço móvel, não resta dúvida, foi sucesso no mundo todo, mas no Brasil, em particular, ele recebeu uma ajuda muito grande do regulador, quando tomou a decisão da destinação da freqüência de 1.8 GHz para a segunda geração e a de 1.9 GHz para a terceira geração, trazendo para cá  sistema de grande escala mundial, além de garantir uma disponibilidade de espectro muito grande. Essa foi uma contribuição muito importante do regulador para o desenvolvimento da telefonia móvel, além da criação do serviço pré-pago.

O sr. acha que, se a Anatel tivesse tomado outra decisão naquela época, não haveria a expansão do celular tal como ocorre hoje?
O crescimento do celular ocorreria de qualquer maneira, porque é assim no mundo todo. Mas o que se nota é que houve uma expansão maior nos países mais pobres, quando se adotou a tecnologia GSM, de escala mundial. Nos Estados Unidos, onde a tecnologia era outra, houve também a expansão, mas lá a renda per capita é muito diferente e, mesmo com a tecnologia mais cara, eles vivem com isso, sem problemas. Nos países mais pobres, que precisavam de tecnologia mais barata, o GSM, sem dúvida, ajudou muito.

Outros acertos?
Outra contribuição, embora muita gente critique a decisão, foi a implementação do Código de Seleção de Prestadora (CSP). Acho até que está na hora de rever a decisão, mas, à época, foi uma contribuição grande para a competição. A escolha, chamada a chamada, de prestadora de longa distância, fez com que o Brasil saísse de um sistema em que só tinha uma empresa oferecendo o serviço – que era a Embratel – e dividisse esse mercado com as outras empresas. Se não fosse isso, dificilmente teríamos a competição tão rápida como aconteceu nas ligações de longa distância. O incômodo de ficar digitando mais números foi o preço que a sociedade teve que pagar para que a competição vingasse.

A pergunta, agora, é se continua a valer a pena essa medida. Acho que, após dez anos, vale a pena reavaliar. Ela já cumpriu seu papel. Acredito que o sistema de pré-seleção já poderia ser tentado, principalmente na longa distância originada no serviço móvel.

Outro registro positivo?
Os direitos dos usuários. Esses direitos foram bem ampliados ao longo do tempo, tanto nos regulamentos do serviço móvel pessoal, no do serviço telefônico fixo comutado, e no de TV por assinatura. Foi um progresso muito grande.

Por que a Anatel demorou tanto para estabelecer os direitos dos usuários de TV por assinatura?
Acho que foi uma questão de prioridade, já que a TV por assinatura tinha poucos usuários. A tendência normal é a de se inserir os direitos dos usuários em serviços que tenham quantidade grande de clientes pessoas físicas. O Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), por exemplo, é corporativo, por isso acho que deve-se esperar um pouco para criar direitos de usuários, pois, com eles, vêm muitas obrigações. Acho, contudo, que no acesso à internet banda larga, já se deveria começar a pensar em fazer um regulamento estabelecendo esses direitos.

E a competição? Como o sr. avalia?
A competição também está na lista de sucessos. Sem dúvida nenhuma, ela ocorre na telefonia móvel, uma competição muito grande.

E por que ainda uma tarifa de celular tão acima dos padrões internacionais? Pelo estudo da Merril Lynch, o minuto móvel do Brasil é um dos mais caros do mundo.
Esse preço vai cair. O preço só começa a cair quando o mercado se estabiliza. Enquanto há uma demanda muito grande – e no Brasil ela ainda existe, pois a densidade está na ordem de  50%  –, não há muita disputa de preço. Quando o mercado se estabiliza, as empresas passam a competir mais agressivamente na qualidade e no preço.

E os fracassos?
Leite – O maior fracasso foi a não utilização dos recursos do Fust (Fundo de Universalização das Telecomunicações). A  falta de sua utilização distorceu muito o modelo. O modelo previa que, nos locais  onde não houvesse interesse de as empresas investirem, e nas camadas sociais que não tivessem poder aquisitivo adequado, o Fust seria usado. Como ele não foi gasto, pressionou os outros atores a resolverem o problema. Esse foi o maior problema dos dez anos, pois se restringiu muito o acesso banda larga no Brasil. É um problema e uma frustação, porque nunca houve vontade política para resolvê-lo.

Outros erros?
Tenho também algumas outras pequenas frustrações. Entre elas, a do relacionamento com os usuários. Falta à Anatel se posicionar  na questão da proteção dos direitos dos usuários.

São duas as questões: uma é o usuário ter o direito, e quem dá esse direito é a regulamentação. Outra, é a fiscalização para certificar se esse direito está sendo obedecido pelas empresas. E é nesse ponto que acho que está a fragilidade da Anatel. De início, a agência assumiu que faria essa fiscalização para assegurar a proteção dos direitos dos usuários. E ela, objetivamente, não tem capacidade para isso. Por outro lado, existe um sistema enraizado na sociedade – os Procons, e Ministério Público. Acho que Anatel deve deixar que, principalmente, os Procons façam essa fiscalização.  

Notei, ao longo desses anos, que a Anatel não consegue fazer isso bem, e, se fosse fazê-lo bem, deixaria de cumprir com suas outras atribuições principais. Que são regular e ser um agente de equilíbrio entre os investidores, o Poder Público e o próprio consumidor.

A agência, ao desempenhar o papel de ser o ponto de equilíbrio entre esses agentes, e a sociedade, no que diz respeito ao consumidor, não tem conseguido desempenhar bem esse papel. Se não existesse uma organização como o Procon, a Anatel teria que se aparelhar para isso. Mas, como existe, acho que merece uma reestruturação nesse sentido.

Quanto à regulação, algum problema?
Do ponto de vista da organização da regulação, acho que a Anatel precisa resolver a questão das outorgas.

Caminhar para a licença única?
Entendo que não dá para caminhar para a licença única, mas a Anatel deveria  reduzir o número de licenças e criar outorgas de classes de serviços, para poder ficar com o mínimo de outorgas possíveis e evitar que a outorga seja um empecilho à convergência tecnológica. Está totalmente antiquada a existência de 34 outorgas de serviços, e muitos deles nem são mais utilizados.

Trabalhar nessa direção significa também dar mobilidade plena a todos os serviços que utilizem radiofreqüência, pois não tem sentido se poder fazer tecnicamente uma coisa e acabar sendo impedido por empecilhos regulatórios.

Outros desejos?
Acho também que a Anatel precisa resolver melhor a questão da arbitragem. A Anatel não tem conseguido fazer a arbitragem entre as grandes empresas, nem entre as pequenas. E para melhorar esse desempenho, a agência poderia incentivar o aparecimento de câmaras de arbitragem fora de sua estrutura. As questões que vão parar em arbitratem dizem respeito apenas a algumas empresas, por que, então,  elas teriam que vir à Anatel? Elas poderiam ir a uma Câmara de Arbitragem e poderiam conseguir uma solução muito mais rápida para as divergências.

O sr. não acha que se deveria estimular outros mecanismos de competição para a banda larga, ou seja, evitar que as incumbents locais também controlem esse mercado?
Os efeitos da convergência são todos positivos, portanto, aumenta também a competição. No caso no Brasil, a convergência não traz maiores riscos do que os que já existem,  pois, como não há qualquer restrição para as incumbents, a não ser no caso da TV a cabo em suas áreas de concessão, não há nenhuma complicação para elas terem outras licenças. Por sinal, todos os grandes grupos no Brasil já têm. Ter vários papéis ou ter um papel só, dá no mesmo.

Se há algum problema de concentração por causa de licença de outorga, ele independe da convergência tecnológica, pois não existe qualquer vedação para as empresas terem as diversas outorgas. A convergência traz, mesmo, a competição, isso sim.

Mas acho que a Anatel deveria continuar a trabalhar no Poder de Mercado Significativo. Ou seja, procurar definir os mercados relevantes. A Europa definiu os 18 mercados que considera mais importantes. O Brasil poderia também pensar na mesma coisa.

Esse papel deveria ser da Anatel ou do Cade?
Da Anatel, porque é ela quem conhece bem as aplicações de telecomunicações e, portanto, pode também definir os mercados relevantes.

E quanto à empresa nacional? Qual a sua opinião?
Leite – A empresa nacional já existe e existe uma outra quase nacional.

E a fusão das duas?
Na verdade, tenho receios de que uma empresa puramente nacional acabe significando um tiro no pé. Pode haver uma empresa preponderamente brasileira, mas não se deveria descartar os investidores estrangeiros. Por exemplo, a Telecom Italia, agora, continua com mais de 50% nas mãos do capital italiano, mas autorizou o ingresso de um investidor estrangeiro, no caso a Telefónica.

Já de fora, para o sr. qual será o maior desafio da Anatel para o próximo ano?
O modelo de custos, para que efetivamente ele possa atender às necessidades do consumidor. Se o regulador não estiver muito preparado para o modelo de custos, ele vai perder para as empresas, que estarão muito mais bem preparadas só que elas terão, a partir de então, uma justificativa regulatória para cobrar a tarifa. Não podemos correr o risco de repetir a Holanda. Lá, depois de implantado o modelo de custos, a tarifa aumentou.

Depois da quarentena, o sr. pretende continuar na área?
Não poderia virar dentista de uma hora para outra.