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“Fust tem de alavancar a banda larga no Brasil”

Fechado o acordo com as teles para levar o ponto de presença da banda larga a todos os municípios, Rogério Santanna, secretário de Logística e Tecnologia da Informação, do Ministério do Planejamento, diz que a meta, agora, é democratizar o acesso à última milha. Em primeiro lugar, diz que a Anatel precisa atualizar urgentemente o preço da EILD – venda de capacidade de infra-estrutura no atacado, que é bem acima do praticado no mercado, segundo ele. Defende o uso dos recursos do Fust para financiar redes comunitárias de banda larga e quer reservar espectro, de preferência nas faixas mais baixas, como a de 700 MHz, para uso público compartilhado.

Você integrou o grupo de trabalho do governo que negociou com as concessionárias de telefonia fixa a troca de metas. Concluído o processo, que vai permitir estender a infra-estrutura de banda larga a todas as cidades brasileiras, qual é o passo seguinte para democratizar o acesso do cidadão à internet, ou seja, a chamada última milha?

Eu acho que o passo seguinte é atualizar a regulação do preço das EILDs (exploração industrial de linha dedicada) no Brasil, porque as EILDs só têm um preço atribuído pela Anatel até 2 Mbps, um preço que está defasado em relação ao que já é praticado no mercado, porque está muito acima dos valores de mercado. Na prática, se houver uma disputa, por exemplo, do pequeno provedor com alguma oferta de serviço por EILDs, o valor que a Anatel vai arbitrar já é por si só um valor muito acima do praticado no mercado, o que inviabilizaria os pequenos provedores em qualquer conflito que exista com quem detenha a infra-estrutura.

Você diz que o preço é elevado. De quanto é o sobrepreço?

Eu considero muito acima em relação ao que, calculo, seria um preço aceitável … O que precisamos, para garantir a competição, é que o preço da EILD seja atualizado, ou se crie um modelo de custo desenvolvido pela Anatel, ou uma tabela de preços que possa servir de referência para eventual arbitramento, o que permitirá a democratização da infra-estrutura. E essa medida depende exclusivamente da Anatel.

Qual é o passo seguinte?

Eu acho que tem outro movimento que pode ser bastante  interessante para democratização do acesso, que é o projeto de lei de alteração da Lei do Fust (Fundo de Universalização das Telecomunicações) do senador (Aloizio) Mercadante, já aprovado no Senado e que agora tramita na Câmara dos Deputados. Ele vai precisar ser atualizado, pois seu foco não pode ser só a educação, já que as escolas serão atendidas pelas teles, que vão doar banda larga – 84% dos alunos serão atendidos por esse acordo. Assim, acho que o projeto tem de abrir para a inclusão digital de uma forma mais ampla.

Como você imagina que os recursos possam ser utilizados para democratizar o acesso à última milha?

Eu acho que os provedores de SCM (Serviço de Comunicação Multimídia) também poderiam ter acesso aos recursos do Fust para estender suas redes. Eu já defendi essa proposta na Câmara dos Deputados, nas audiências para discutir o projeto do Fust. Mas as redes financiadas com recursos do Fust não seriam propriedade de um provedor, mas de propriedade coletiva, das prefeituras, para que todos os agentes públicos daquela região pudessem usar. O dinheiro do Fust não pode mais ser dedicado apenas à telefonia fixa, como prevê a Lei. Ele tem de ser usado para alavancar a banda larga no país.

Essa rede atenderia aos pontos públicos?

Sim, mas não só isso. Ela tem de dar acesso aos telecentros, à rede de unidades da prefeitura e aos serviços que já são oferecidos por prefeituras. Hoje, as prefeituras enfrentam dificuldades para expandir seus serviços por falta de infra-estrutura de banda larga. Esteve comigo a prefeita de Tauá, no Ceará, que me disse que teve a possibilidade de criar 400 postos de atendimento de call center no município. Ela procurou a companhia telefônica que pediu R$ 1,5 mil/mês para colocar o link. O interessado desistiu frente ao custo da conexão. Então, os recursos do Fust podem servir para estimular e financiar infra-estrutura para esses lugares onde não tenha atendimento.

Outra proposta sua para democratizar o acesso à última  milha se refere à reserva de uma faixa do espectro para uso público e coletivo…

Reservar essa faixa de freqüência é fundamental para que se possa desenvolver o que eu estou chamando de rede comunitária de uso público, onde se define uma regra de uso não baseada em zoneamento espacial ou taxas de freqüência mas, sim, no protocolo de compartilhamento. Isso quer dizer que quem mais doa à rede, mais prioridade terá na hora de ser roteado. Então, cria-se uma rede comunitária tipo a internet, onde quem doa mais para a rede tem preferência na hora do seu pacote ser roteado.

Você defende a reserva numa faixa específica, ou existem várias faixas que poderiam ser usadas?

Precisa ser uma faixa onde haja oferta para equipamentos comerciais. E quanto mais baixa a freqüência, melhor para uma cobertura mais ampla de acesso, freqüências mais baixas permitem ir mais longe. Então, isso nos permitiria, por exemplo, ter mais eficiência e ficaria mais barata a infra-estrutura de antenas e permitiria a cobertura em locais mais distantes como escolas rurais, com custo mais baixo.

Você chegou a propor que fosse reservado espectro para uso público, na faixa de 3,5 GHz do WiMAX. Mas alguns técnicos argumentam que seria melhor freqüências mais baixas por conta do custo dos equipamentos …

Eu havia defendido a faixa de 3,5 GHz, porque a Intel tinha defendido como sendo a freqüência para a qual ela iria dispor o equipamento. Mas o Estados Unidos definiram usar a faixa dos 700 a 800 MHz. O que cria uma ótima alternativa, pois eles entrando vai haver equipamento barato.

Além da democratização da banda larga, qual o ganho mais imediato que você vê para as prefeituras. O que pode mudar na gestão?

Um benefício importante é a simplificação da relação entre governo federal e município. O governo federal tem uma relação com os municípios de transferências de recursos através de convênios. São milhares de convênios que todos os ministérios fazem, e toda essa relação de prestação de contas de funcionamento do convênio em si é uma relação complicada para a união e para os municípios. Para cinco convênios, por exemplo, com cinco ministérios diferentes, o município tem de apresentar cinco vezes o mesmo documento, prestar conta cinco vezes das mesmas coisas, o que acaba tornando o trabalho irracional. Hoje, tudo isso é feito em papel e nós temos 92 mil convênios para fiscalizar. Com a infra-estrutura de banda larga tudo fica mais fácil. Ganha-se tempo, racionalidade, economiza-se retrabalho. Foi para começar a por ordem nesses convênios, a torná-los mais transparentes com a divulgação das informações, que nós desenvolvemos um portal de convênios. Isso vai simplificar muito a relação com os municípios, a sociedade vai poder acompanhar o que é transferido de recursos aos municípios, estes vão prestar conta online e nós vamos então ter uma gerência mais eficiente.

Que outras iniciativas você considera necessárias no que diz respeito à banda larga?

Eu acho que o país não pode descartar a hipótese de dispor de uma infra-estrutura nacional pública. Um governo tem informações de caráter estratégico e não  pode ficar transitando suas informações em redes privadas, controladas até por estrangeiros. Não posso, por exemplo, ter sistemas de monitoramento da Amazônia sendo roteados em Miami. Da mesma forma que o governo americano tem a sua própria infovia, o governo canadense tem sua própria infovia, o governo brasileiro também tem que ter seus próprios meios para proteger suas informações estratégicas. Já vimos vários casos de vazamentos de informações envolvendo espionagem de operadoras, casos de monitoramento de e-mails até de ministros, rumorosos casos de espionagem industrial…

A exemplo do Portal dos Convênios, que outras medidas estão sendo adotadas para apoiar a inclusão digital das prefeituras?

Nós vamos criar uma suíte de programas em software aberto para oferecer às prefeituras. Isso foi anunciado pelo presidente Lula no recente encontro com os prefeitos. No momento, estamos em fase de escolher uma das que já existem e que possa atender melhor a todas as necessidades. Certamente vai ter que ter um ou outro desenvolvimento complementar. A importância de uma suíte desse tipo, a exemplo de outras que já disponibilizamos, é que temos uma grande comunidade de software livre, então temos um grande conjunto de desenvolvedores em cada comunidade. São comunidades muito ativas. Uma comunidade nova como a do Ginga (o middleware sobre o qual rodam as aplicações de interatividade da TV digital) já tem mais de 2 mil colaboradores. O governo brasileiro precisa incentivar essas comunidades, premiar os que mais contribuem como estamos fazendo, tem de lançar mão do conhecimento coletivo no país. Dados a dinâmica e a velocidade da informação, toda organização precisa de mais colaboradores, não bastam os talentos internos. A forma de dar conta dessa obsolescência da informação são as redes de compartilhamento. E também podemos aproveitá-las para gerar um ambiente de negócios. Vamos fazer com essa suíte o que fizemos com o software de gestão de uma companhia de água. Ele foi financiado pelo Ministério das Cidades, mas no lugar de ser propriedade de alguém é um software aberto que pode ser usado por todas as empresas. Dois estados do Brasil já instalaram esse software.

Comenta-se que o governo, e isso não é atributo só da União, é muito ágil na informatização quando se trata da arrecadação, mas caminha lentamente quando se trata de oferecer serviços ao cidadão. Essa afirmação procede?

É verdade que, no passado, privilegiou-se a área relacionada à arrecadação. Mas muita coisa já foi feita para atender o cidadão. Primeiro, é preciso lembrar que o governo federal tem poucas áreas que têm interface direta com o cidadão. Só a Saúde e a Previdência. Todas as demais se relacionam com os estados e municípios. Tanto na Saúde como na Previdência desenvolvemos iniciativas para oferecer serviços seja na internet seja via telefone. No caso do MEC, criamos o portal do Prouni que já oferece 120 mil vagas, praticamente dobrando o número de vagas em universidades públicas oferecidas anualmente. Os convênios do MEC via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, FNDE, também estão na web. Agora vamos conectar em banda larga todas as escolas urbanas, por meio da negociação feita com as teles, e vamos lançar um programa de aquisição de micros pelos professores, no molde do Computador para Todos. Tudo isso vai ter um impacto brutal.

E em relação à Previdência?

Pelo perfil do seu público, avaliou-se que o canal mais adequado para a oferta de serviços seria o telefone. Em 2006, criamos uma central 0800, com todo o trabalho dos atendentes apoiado na web; é por aí que fazem todo o agendamento. Também fizemos um censo dos aposentados, com a requalificação do cadastro, que resultou em uma economia de R$ 600 milhões. Mas o esforço maior que fizemos foi no sentido de dar transparência tanto às compras quanto aos gastos do governo, usando a web para tornar as informações disponíveis para o cidadão.

Você está falando do Portal da Transparência?

Dele e agora também do Portal dos Convênios. Não fosse o Portal da Transparência não haveria a crise do cartão corporativo, nem a CPI. Como todas as informações estão na web, qualquer cidadão pode ir lá e checar. E vamos abrir ainda mais as informações. Os saques em dinheiro vão ser documentados, e as contas tipo B, que eram sigilosas, deixam de existir a partir deste mês. Só o governo federal abre tanto as suas contas.

E quanto às compras? Pode-se dizer que o pregão eletrônico é um sucesso?

Mais de 90% das compras já são feitas via pregão e o governo federal movimentou, em 2007, só no pregão eletrônico, R$ 16,5 bilhões quando todo o comércio eletrônico privado, à exceção da indústria automobilística, se não me engano, foi de R$ 6 bilhões. Elevamos as compras das micro e pequenas empresas de 17%, em 2006, para 48%, em 2007, e só no pregão eletrônico sua participação nas compras totais passou de 12% para 37%. Isso significa geração de emprego. De acordo com o Sebrae, a cada R$ 1 bilhão comprados de pequenas e micro empresas são gerados 800 mil empregos diretos.

“A mídia é arma poderosa na mão do capital”

Semana sim, semana não, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e seus dirigentes, dentre eles João Pedro Stedile, vêem seus nomes mencionados em controvérsias jornalísticas que abrem debates extensos sobre o papel da mídia na constituição da democracia desigual que caracteriza o Brasil. Nesta entrevista ao Núcleo Piratininga de Comunicação, Stedile dedica-se a pensar exclusivamente sobre a mídia. Mostra, principalmente, que ela pode e deve ser uma aliada do povo, mas até agora, funciona como "arma poderosa na mão do capital". Da TV pública à exigência do diploma para o exercício do jornalismo, passando pelo papel do MST na briga por uma Conferência Nacional de Comunicação, a entrevista dá conta de uma avaliação contundente da mídia por um dos lados da história normalmente vitimizados por ela.

Leia a íntegra da entrevista:

O Senhor comentou sobre essa questão da mídia assumir hoje o papel de disseminar a ideologia da classe dominante. A solução a esse contexto seria a criação de uma mídia da classe trabalhadora?

Quando a sociedade brasileira, estava ainda sob a égide do capital industrial, os trabalhadores tinham diversas formas de organização social, tinham o sindicato, a associação de bairro, o partido e a escola. O capital industrial reproduzia a sua ideologia, a sua hegemonia, a sua forma de ver o mundo nesses espaços onde a classe trabalhadora estava organizada. O capital dirigia a escola, dirigia o sindicato e influenciava por aí o partido porque os partidos nasceram na República não só para eleger pessoas, mas para reproduzir o projeto da burguesia. Agora nós estamos em uma outra etapa do capital, em que ele usa outras formas de dominação. Basicamente é o capital financeiro, são as empresas internacionalizadas, e para esse capital financeiro e para as empresas internacionais é muito difícil dirigir ideologicamente os trabalhadores porque, inclusive, eles não estão mais organizados como antes.

Aqui mesmo, no Brasil, só 51% da população economicamente ativa tem carteira assinada, isso significa que a metade dos trabalhadores está dispersa no trabalho informal, sem nenhuma forma de organização.

Nessa etapa que ficou mais conhecida como neoliberalismo, como o capital reproduz a sua forma de ver o mundo? Através da televisão, dos grandes meios de comunicação, jornal e revista mais para a classe média, pequena burguesia, setores intelectualizados, das universidades, e a televisão e o rádio para a grande massa, que agora está dispersa.

Então, o balanço crítico que nós fizemos, as reflexões que temos com esses setores que acompanham mais a imprensa, é que a grande imprensa se transformou em uma arma poderosa na mão do capital. Primeiro porque ela não se preocupa com a neutralidade da informação, ela usa a informação como uma mercadoria, então, ela tem que ganhar dinheiro vendendo uma idéia.

O segundo problema é que a imprensa virou um monopólio, sete ou oito grupos no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, na Europa. Esse monopólio é importante para a classe dominante porque é a maneira deles controlarem; por isso é que no Brasil, quando algum jornal resolve nos atacar, todos atacam porque é um monopólio.

O terceiro fato é que a imprensa está misturada com grandes grupos econômicos, não são mais aquelas famílias, aqueles jornalistas históricos, nem sequer são os Marinho, os Marinho são frutos do período anterior. Agora a grande imprensa se mistura como grupo econômico, em todos os grupos econômicos do capital financeiro e internacional.

Não é por nada que a Abril foi vendida para um banco da África do Sul, não é por nada que a Telefônica tem ações na Folha, e assim sucessivamente, ou seja, o grande capital controla por meio de acumulação.

Bem, para fazer frente a isso, é preciso primeiro que a classe trabalhadora se conscientize, saia daquela visão, daquela ilusão de que a imprensa é democrática, republicana, ouve os dois lados e é neutra e ao mesmo tempo construa novos meios de comunicação. Esses novos meios têm que representar em primeiro lugar um avanço em termos democráticos, ou seja, eles têm que levar a informação mais ampla possível para as massas. Segundo, tem um componente ideológico que é explicar o mundo e os fatos pelo olhar dos trabalhadores.

Então não seria uma imprensa neutra?

Tampouco é uma imprensa neutra. Isso no ideológico, mas ela tem que ser democrática no sentido de apresentar as várias formas que a classe trabalhadora tem de interpretar o mundo, também não há uma só visão da classe trabalhadora de ver o mundo. Há várias visões, então nisso ela tem que ser plural, não pode ser única, mas ela tem que ser um olhar das maiorias da classe trabalhadora.

E combater o uso da imprensa como mercadoria, como forma de ganhar dinheiro, de explorar, que é isso que está, inclusive, na base das distorções dos próprios profissionais de imprensa, que reproduziu a mesma desigualdade social nos meios de comunicação. Os editores que são os zeladores da linha editorial ganham fortunas. Uma editora aqui no Brasil ganha mais do que nos Estados Unidos e na Europa. E por outro lado, como vocês dizem, os foquinhas, os repórteres recém formados, ganham salários abaixo do que a classe trabalhadora humilde ganha – mil e duzentos reais, três salários mínimos – isso não é nada.

O senhor mencionou a televisão, mas talvez esse meio, juntamente com o rádio, apresente dificuldades maiores para que seja de fato da classe trabalhadora, por causa da legislação restritiva e outros fatores. Quais seriam os caminhos, então, para construirmos efetivamente essa mídia da classe trabalhadora?

Eu acho que a maior restrição da televisão é o poder econômico mesmo, porque no caso brasileiro, inclusive o território é grande, para você chegar a amplas massas tem que ter canais de difusão potentíssimos, que custam milhões de dólares, e isso a classe trabalhadora não tem. Mas para a nossa sorte aquela forma da classe dominante de usar os meios de comunicação tem contradições também, não é assim, passe de mágica.

Tudo no mundo tem contradições e uma das contradições da televisão é que ela é efêmera, ela te dá uma informação e tu esqueces porque tu viras um espectador. A segunda contradição é que a juventude já cansou, a juventude sempre quer mudar, então entre quatorze e vinte e oito anos os índices da audiência são baixíssimos, são ridículos; a televisão hoje consegue influenciar ideologicamente as camadas de maioridade, acima de 50 anos, e abaixo de dez anos. Então, a juventude procura outras alternativas, e isso é positivo para nós.

Agora, a segunda parte da sua pergunta, essas mudanças em construir outros e novos tipos de comunicação, essas mudanças para deixar a nossa sociedade mais democrática, não aconteceram separadas das mudanças gerais da sociedade. Só vão acontecer quando o Brasil fizer um grande movimento de massas que derrote o neoliberalismo, derrote o capital financeiro e o capital internacional, ou seja, derrote essa forma de dominação do capital. Com isso então abrirá espaços para mudanças estruturais na sociedade brasileira nos vários campos, abrirá espaços para termos uma educação universalizada para todo o jovem entrar na universidade, abrirá espaço para todo mundo ter direito à sua casa, uma moradia digna, abrirá espaço para a reforma agrária e abrirá espaço, então, para que a sociedade organize de uma maneira diferente a forma de se comunicar.

A TV Brasil, chamada de TV Pública, atende essa demanda dos movimentos sociais ou está aquém disso?

A TV pública é uma boa iniciativa no sentido do Estado chamar para si, sem ser governamental. Mas se o Estado, o público no Brasil, ainda é dominado pelo capital financeiro e internacional, o espaço de manobra da TV Pública, embora na sua origem a idéia é boa, vai ser limitadíssimo. Porque o Estado é que vai controlá-la, não são os movimentos sociais, e o Estado está sob a hegemonia ideológica e do poder econômico do capital financeiro e internacional. Então eu acho que é uma idéia que só vai alcançar plenitude quando houver essas outras mudanças que eu falei, quando houver mudanças do modelo econômico do Brasil. Paralelamente eu poderia comparar com a Petrobrás. A Petrobrás é uma empresa estatal, embora já metade do seu capital seja estrangeiro; na idéia é importante, o petróleo que é uma energia importante tem que estar sob o controle do estado para beneficiar a todos, mas o jeito que o capital financeiro fez, manteve 51% da administração do Estado e se apropriou das ações para ter o lucro da Petrobrás. Então a Petrobrás do jeito que está hoje apenas reproduziu o modelo do capital financeiro, ela não serve. Ah, então você é contra a Petrobrás? Não, mas eu acho que a idéia boa da Petrobrás só vai se realizar em plenitude quando tivermos um outro modelo econômico, que reorganize a economia para atender as necessidades da população, aí sim vai ser fundamental termos uma empresa pública como a Petrobrás a serviço do povo.

Qual deve ser o papel dos comunicadores com vistas a esse novo modelo? Só para complementar a pergunta, o senhor é a favor da obrigatoriedade do diploma para jornalista?

Não faz sentido, todo o povo se comunica. É claro que existem técnicas de você fazer o melhor, mas as pessoas não necessariamente podem dominar essas técnicas em um banco escolar. Eu acho que nós devemos estimular que todos os militantes sociais sejam comunicadores, que eles escrevam notícias, que eles falem, que eles saibam editar um programa de rádio. Sem desmerecer o papel que a universidade como um centro acadêmico tem de aprimorar as técnicas, de preparar profissionais mais capacitados, mas esse papel não pode ser exclusivo, sobretudo porque a comunicação é, acima de tudo, um direito, uma forma de expressão cultural do povo, então não pode ser restrita a alguns profissionais só porque tem o diploma.

Mas então qual seria o diferencial dessa pessoa que tem um diploma, uma formação acadêmica, dos demais comunicadores populares, diríamos?

Eu acho que ele tem muitas funções em um outro modelo, ele pode ajudar a formar melhor os comunicadores populares que não têm formação acadêmica, ele pode aprimorar a técnica nas redações, nas rádios, ele pode contribuir para que as coisas sejam feitas de uma maneira mais profissional, mas não pode ser exclusiva dele essa missão. Vou comparar com outro exemplo, para você pregar uma doutrina religiosa não precisa ser padre, não precisa ter o título de teólogo, qualquer pessoa se estudar um pouco, ler, pode ser um pregador de uma idéia religiosa, e para isso não precisa ser teólogo. E às vezes os melhores pregadores são os pregadores populares que dominam a cultura. Isso não quer dizer que não é necessário teólogos, eles vão se aprimorar, vão fazer a exegese, no caso de vocês, como profissionais da comunicação, vão fazer a exegese da luta de classe, vão interpretar melhor, mas não pode ser exclusivo de quem passa na universidade.

Essa seria, então, nossa função? Se o senhor estivesse em nossas universidades o que o senhor falaria para os estudantes de comunicação sobre a forma pela qual eles podem contribuir, por exemplo, para a luta do MST?

Não pretendo ser pedante, nem existe manual com regra, faça isso, faça aquilo. Mas eu acho que os estudantes de comunicação, assim como qualquer outro estudante universitário de outras carreiras, a sua missão principal na conjuntura atual, e é disso que nós estamos falando, é serem pessoas conscientes, terem conhecimento da realidade em que vivem.

Esse é o primeiro passo, deixar de ser alienado, de ser manipulado por outros, e isso as pessoas só adquirem com estudo, participando da luta social, vivenciando os problemas da nossa sociedade. É assim que as pessoas viram conscientes, ou seja, como vem do latim, conhecer a realidade, isso é que é ser consciente. Então esse é o primeiro passo, até porque os estudantes universitários são privilegiados na sociedade atual, só oito, dez por cento de jovens chegam às universidades, então, os que chegam deveriam ter a consciência de conhecer melhor a realidade e ajudar a organizar para que outras pessoas também se conscientizem para mudá-la.

Evidentemente que eu não estou colocando a responsabilidade de achar que os estudantes universitários vão mudar a realidade brasileira, isso é uma tarefa de milhões e do povo, mas os estudantes universitários, por serem um setor social privilegiado que tem acesso ao conhecimento, podem colocar os seus conhecimentos para ajudar a conscientizar outras pessoas e organizá-las. Isso seria então a segunda missão histórica, embora nessa conjuntura, ajudar a conscientizar outras pessoas. E você ajuda de muitas formas, fazendo um boletim, fazendo um programa de rádio, fazendo uma reunião no centro acadêmico, fazendo uma reunião onde tu mora; as formas dependem do meio onde tu vive, e são infinitas, não há regras e nem grau de prioridade. Terceiro, como missão, eu acho que os estudantes de comunicação deveriam então contribuir também para levar essa leitura de que todos os movimentos e setores da classe precisam se comunicar, terem seus meios de comunicação. E assim, com a sua profissão e a sua consciência, ajudar que a classe organize esses meios de comunicação para que ela se comunique com a base, com seus vizinhos e com a sociedade em geral. Tudo isso só tem um sentido se as pessoas obviamente se colocarem também, como missão histórica, de que querem lutar contra as injustiças e mudar a sociedade. Se você está satisfeito com a sociedade brasileira, com o jeito que ela funciona, então, as três missões anteriores não tem sentido nenhum. Então, faz parte também da missão do jovem consciente, se dispor a lutar para mudar a sociedade.

Tem uma música do Rappa que diz que hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa. As tecnologias permitiram uma pulverização da produção da mídia o que acabou sendo uma individualização, a pessoa que tem um computador pode produzir um vídeo, um blog, uma mídia qualquer, só que a recepção é muito menor, poucas pessoas ouvem as web radios, poucas pessoas acessam os blogs.

O que você acha desse fenômeno de facilidade de produção, mas também dificuldade de recepção dessa produção midiática?

É essa pluralidade que eu estava falando antes, eu acho que nós não podemos nos ater, ah o prioritário é isso ou aquilo, mas procurar potencializar todas as formas de comunicação. É claro que algumas são mais massivas, outras são mais individualistas, mas eu acho que na soma todas são importantes.

Mas também não é uma luta de Davi contra Golias, de um lado a grande imprensa, de outro, as pequenas imprensas alternativas, com dificuldades de financiamento e sem conseguirem ter uma audiência tão grande quanto a grande mídia?

Não se preocupe com isso, com você bem usou o exemplo bíblico, no final da história o Davi vai ganhar. Vocês são jovens e não viveram o período da ditadura militar, o período da ditadura militar foi ainda mais hegemônico do capital e dos meios de comunicação, tanto é que essa estrutura atual, se formou lá. Aí as pessoas que queriam mudar a sociedade, que queriam lutar contra a ditadura se sentiam ainda mais fracas, frágeis diante do tamanho do Golias. Mas se você considerar que o que muda a sociedade é a consciência das pessoas, e que a consciência das pessoas não se compra, nem se vende, em algum momento as massas vão despertando, vão tendo conhecimentos que levam a elas se moverem contra as injustiças. E aí é que tu vê que tudo que você fizer para levar algum conhecimento para as massas é importante. O que eu acho é que nós devemos ser criteriosos nessa pluralidade dos meios de comunicação é com o foco para levar informação, levar consciência. Nesse sentido devemos priorizar os trabalhadores, os pobres. Se você ficar fazendo comunicação de internet para informar outro pequeno burguês ou camada da classe média que já está acomodada, aí a sua comunicação não serve para nada porque ela vai ser uma comunicação pequeno burguesa, no fundo vai ser alienante. Aí seria unicamente pelo exercício de exercitar, para ser redundante, um meio de comunicação novedoso como a internet, como um blog. Então, eu acho que aí o diferencial não está no instrumento, mas para quem ele se dirige, tu pode fazer um bom programa de rádio para as massas populares, e pode fazer um programa de rádio muito bem feito mas uma porcaria, porque vai ser só para a classe media que está interessada na última moda de Paris. Você pode fazer um bom programa jornalístico, explicando as tendências da moda, quais são os principais estilistas, qual foi o último lançamento em Paris, e ser um programa de rádio agradável, todo mundo ficar ouvindo, mas serve para que? Quem é que está ouvindo? Mais do que o instrumento é para quem se dirige. Então, se é para eu dar algum conselho eu daria esse: se preocupem em fazer comunicação que ajude a classe trabalhadora, que ajude os pobres, para que eles possam entender melhor o mundo, porque somente eles poderão transformá-lo. Não há outra força que possa transformar a sociedade, mudar a sociedade, deixar a sociedade mais progressista, mais democrática, mais justa, se não a força das massas organizadas.

O Senhor pode comentar a atitude recente da companhia Vale do Rio Doce em entrar com uma ação na justiça contra o senhor…

Primeiro para os leitores ou ouvintes de vocês entenderem a natureza da nossa luta contra a Vale é preciso explicar que há dois tipos de luta que estão sendo travadas agora. Uma de caráter mais macro, mais político, que é a luta de todo o povo brasileiro para reestatizar a Vale, da qual o MST é um mero figurante. O plebiscito que consultou o povo do qual participaram cinco, seis milhões de pessoas, foi organizado por 280 movimentos, alguns locais, outros nacionais, participaram como mesárias de urnas, 150 mil pessoas, portanto é um movimento popular, cívico, e essa luta pela reestatização tem vários componentes. Tem um componente jurídico, que nós já ganhamos uma sentença no Tribunal Regional Federal de Brasília anulando o leilão, tem componentes políticos, tem componentes sindicais porque a previdência do Banco do Brasil é dona de 15% das ações da Vale, a Caixa Econômica eu acho que também tem, então, até parcelas do movimento sindical estão envolvidas nesse processo, e essa luta vai ser prolongada. Não é uma luta do MST, é uma luta do povo brasileiro, quando vai ter um desfecho? De novo, eu acho que vai ter um desfecho feliz para o povo com a reestatização da Vale, mas vai depender desse reacenso do movimento de massas que leve a outras mudanças na sociedade brasileira. Para daí o povo se dar conta que os minérios e o subsolo não podem estar a cargo de uma empresa privada, tem que ser a velha Vale estatal, para que o lucro da Vale seja distribuído para todos os brasileiros e não só para os seus acionistas. E há um outro contencioso com a Vale, que são os problemas localizados que a Vale, por suas operações econômicas cada vez mais buscando unicamente o lucro, tem afetado comunidades que tem relação com o MST. Vou citar três exemplos que são emblemáticos. Nós temos um assentamento em Açailândia, com 250 famílias, em uma fazenda de 10 mil hectares que nós ocupamos, foi desapropriada e as famílias estão lá há dez anos. A Vale comprou uma fazenda vizinha, instalou uma carvoaria com 70 fornos industriais e aquela fuligem do carvão alterou o clima completamente, os companheiros não conseguem produzir mais na agricultura, nem arroz dá, e agora começou a dar doenças, então, está aí um conflito. Ou a Vale põe filtro, ou sai de lá, ou desapropria uma outra fazenda, mas do jeito que está as pessoas vão morrer. E essas pessoas têm direito, até porque chegaram antes no assentamento do Incra, a lutar contra a Vale, então essa carvoaria foi ocupada no dia 8 de março. Outro exemplo, também relacionado com o 8 de março, a Vale está construindo com a Camargo Correia, uma hidrelétrica no Rio Tocantins, na região do estreito no Maranhão e Tocantins. Isso vai atingir 13 mil famílias, entre elas, três assentamentos nossos, três reservas indígenas, ribeirinhos, fazendeiros, quilombolas, tudo o que puder imaginar. A Vale não apresentou nenhum plano de reassentamento, as pessoas até se dão conta, “bom nós não vamos conseguir parar a barragem, né, mas e onde nós vamos morar? Qual é a terra? Para onde vão me levar? Quem vai me indenizar?” Ninguém falou nada para essas pessoas, então, elas ocuparam o canteiro de obras, e exigiram um processo de negociação. A maioria delas nem é do Movimento. Então, se não resolver o problema do reassentamento, o conflito vai ser permanente, porque é a vida delas, é um problema de direitos humanos. Bem, depois a Vale tem outros contenciosos com outras comunidades, seja de garimpeiros, seja dos próprios trabalhadores que estão mais próximos do trem. Essas comunidades que tem alguma demanda contra a Vale pararam o trem duas vezes. Eles param o trem como se fosse fazer uma greve, para forçar a Vale a negociar, e muitos desses movimentos que aconteceram lá no município onde está a Serra dos Carajás, a própria prefeitura local apoiou. Por que? Porque a Vale está devendo para a prefeitura de Paraopebas 500 milhões de reais em impostos atrasados. Isso não sai em lugar nenhum, está lá na dívida ativa da prefeitura, isso nos últimos dez anos, depois da privatização. Então, nós temos três assentamentos nesse município, o prefeito puxa lá o balanço da prefeitura e diz “oh, não temos dinheiro, estamos em déficit, porque que nós estamos em déficit? Porque a Vale não pagou imposto”. Então a turma faz a associação: “vamos pressionar a Vale para pagar a prefeitura aí teremos escola”. Claro, não precisa ser muito inteligente para isso. Estou eu um dia dando a aula magna no inicio do ano letivo na universidade e chega a oficial de justiça com uma intimação da juíza. A Vale entrou com um processo como se eu fosse o responsável por aquelas mobilizações, eu e o MST. A sacanagem é que esses processos em geral são demorados, mas em dois dias a Vale entrou, eles tem o maior escritório de advocacia do Rio, eu nem moro aqui, mas eles monitoraram tudo, sabiam que eu estaria na universidade, vieram, inclusive, com uma produtora de vídeo independente para filmar tudo, e me coagiram a assinar, embora não seja meu domicílio aqui, e ao assinar, pelos prazos legais eu tive só oito dias para contestar. O mais absurdo é a natureza da ação. Eles alegam o seguinte: essas populações param o trem, a carvoaria e causam prejuízos econômicos, portanto, eu tenho que ressarcí-los. E a multa por esses prejuízos econômicos, eles pediram inicialmente para a juíza, quinhentos mil reais por ação, a juíza no despacho da sentença já botou menos, cinco mil reais. Mas não é o problema do valor, o problema da natureza, ou seja, eu moro em São Paulo, toda a opinião pública sabe, qualquer sociólogo num primeiro ano de faculdade sabe que o movimento social decide as coisas por assembléia, eles que decidem o que fazer, quando fazer, como fazer, não é de minha responsabilidade. Agora o mais grave é, você até pode ilustrar a sua matéria, compre a revista Exame dessa semana[ 5 a 11 de maio], a revista tem uma matéria que era para sair na Veja. A Veja tentou fazer aquelas páginas amarelas comigo, eu mandei eles tomarem banho. O editor da Veja, um tal de Alexandre me ligou, querendo me entrevistar para as páginas amarelas, aí nós explicamos para ele que o movimento não tem a prática de dar entrevistas para meios de comunicação mentirosos e não idôneos como é a Veja. A matéria, que é uma paulada no MST, que eu acho que ia sair na Veja, eles deslocaram para a Exame. Porque é a mesma linha, né, bem direitista. A Vale fala na matéria que organizou um sistema de vigilância 24 horas sobre o MST e os movimentos, que inclui escuta telefônica, espionagem, acompanhamento das lideranças, filmagem, eles atribuíram a si agora o poder de polícia, o poder de estado, o poder de justiça, quem são eles para fazer isso. Eu acho que cabe um pedido de explicação judicial.

A ação continua correndo?

Sim, nossos advogados contestaram. A primeira contestação que nós fizemos foi a seguinte: meu domicílio é em São Paulo então o processo não pode ser aqui, ou é lá em Açailandia ou em São Paulo. Mas o Tribunal de Justiça do Rio, tão ponderado que é, diz que não, que pode ser aqui. Sabe-se lá porque né? Só porque passei aqui, poderia ter passado em Nova York. Então já por aí você vê as influencias. No escritório de advocacia da Vale tem o ex ministro Sepúlveda [Pertence], tem aquela mulher que era do BNDES que fez a privatização da Vale, a [Elena] Landau, então é um escritório poderoso. Tem filhos de ministros do supremo e, evidentemente, as influencias que eles tem são enormes. Segundo passo, eles contestaram então a natureza da ação e isso está correndo. E os advogados me informaram que como na sexta-feira houve mais uma ação de garimpeiros na Vale, a Vale entrou com uma espécie de agravo no processo dizendo “estão vendo como ele não obedece” e pedindo para aumentar para um milhão.

O MST está preocupado com isso?

Nem um pouco, eu falei no dia que era uma idiotice, e falo agora de novo. Digo que é idiotice não para ficar ofendendo o poder judiciário, idiotice no sentido de falta de idéia da Vale, isso que é idiota, o cara que não tem idéia. Porque é obvio, qualquer pessoa que pensa um pouquinho, que tem idéia, deve se dar conta de que se há uma população que vai ser despejada por uma hidrelétrica da Vale, enquanto não for resolvido o problema dessa população, pode prender o João Pedro, pode botar multa, que a população vai continuar protestando. Se há um assentamento sem terra ao lado de uma carvoaria e que as pessoas e as crianças amanhecem todo o dia tossindo, cuspindo cimento preto, é obvio que aquela população vai continuar protestando contra a Vale, não sou eu o responsável. Então, só tem uma maneira de resolver problemas sociais, se tu resolver, se não o problema vai continuar lá. Por isso é uma idiotice, no fundo o verdadeiro objetivo da ação judicial é amedrontar as lideranças, e dar uma resposta para os acionistas da Vale, “vejam como estamos tomando medidas energéticas”. Porque como devem ter vendido a imagem do Brasil para os acionistas estrangeiros que aqui é o paraíso, que voltou a ser colônia, ninguém reclama, aqui é Barbada, tu investe e só leva dinheiro de volta. Esqueceram de combinar com o povo!

O MST está participando do movimento pró Conferencia Nacional de Comunicação. Quais as expectativas de vocês?

Em geral eu acho que nossa participação nesse tipo de evento é coadjuvante, nossos companheiros vão lá para se somar a esse esforço político de democratizar a comunicação e ao mesmo tempo trazer o acúmulo do debate que vai gerando para dentro do movimento. Mas nós não queremos ser hegemonia, nem dirigir, nem ter um papel vanguardista, por isso sempre ficamos mais na retaguarda aprendendo com esses companheiros que tem uma visão mais aprofundada, que tem uma clareza maior sobre quais são os caminhos para democratizar os meios de comunicação.

Imagens sem poesia

Um dos mais importantes artistas gráficos brasileiros, Elifas Andreato é um autodidata. Alfabetizou-se na adolescência, trabalhou como operário, aos vinte e poucos anos iniciou uma carreira vertiginosa na Editora Abril, foi militante político durante a ditadura. Tornou-se referência no meio artístico e intelectual e foi professor da Universidade de São Paulo. Amante da música brasileira, fez célebres capas de vinis para artistas consagrados, de Pixinguinha a Zeca Pagodinho, passando por Toquinho, Chico Buarque, Paulinho da Viola e muitos outros. Hoje, dirige a Andreato Comunicação. O que poucos sabem é que realizou vários trabalhos para a televisão. Nesta entrevista, Elifas Andreato fala de estética visual e linguagem artística na TV a partir de sua trajetória.

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Você se tornou um dos maiores nomes das artes nacionais sem nunca ter tido uma relação formal com os estudos, ou mesmo com as artes plásticas. Como foi esse processo?
Venho da área rural do Paraná. Quando meu pai ficou doente, no final da década de 1950, viemos para São Paulo; éramos seis irmãos. Ele praticamente abandonou a família e eu, mais velho, com 12 para 13 anos, trabalhava para ajudar minha mãe. Morávamos na Vila Anastácia, bairro industrial, onde trabalhava como operário – e também desenhava no jornal da fábrica. Um dia, transformaram o refeitório em salão de festas e um gerente me pediu para decorar os bailes. Eu esticava papel Kraft numa moldura e cada semana fazia um desenho diferente. Com esse trabalho, fiquei conhecido em toda a Lapa, fui até para a televisão como “menino prodígio”. Aquela fama não parecia real para mim e continuei trabalhando ali. Mais ou menos nessa época, com 15 para 16 anos, aprendi a ler num curso de alfabetização para adultos. Pouco depois, uns ingleses vieram visitar a fábrica e ficaram encantados com o cenário que eu havia feito.  Quando descobriram que eu era apenas um menino, me deram uma indenização para estudar artes. E assim deixei a vida de operário. Mas não fui estudar e meu pai bebeu todo o dinheiro. Aí fui trabalhar no que podia. Foi nessa época o meu primeiro trabalho na TV, como assistente de cenografia do programa Eu Show Luís Vieira, na Record. A TV não me pagava, fui então para uma agência de publicidade e pouco depois fui parar na Abril. Descobri um mundo, desenhava sem parar: tinha tinta, pincel, papéis e a generosidade de uma porção de grandes jornalistas. Foi minha grande escola. Me adotaram, mas eu tinha só 26 anos! Era um moleque e não queria ser capataz. Se eu tivesse ficado lá, teria ficado rico e virado um dos grandes diretores. Eles estavam me preparando para isso, mas eu não queria aquela vida. Dois anos depois que saí de lá, explodi: fiz capas de discos, livro, teatro… E por aí foi.

Seu trabalho artístico é reconhecido em diversas áreas culturais, mas você chegou também a realizar algumas coisas para a televisão. Quais foram esses trabalhos?
O começo disso está lá atrás, no Eu Show Luís Vieira, como falei. Nessa época também cheguei a fazer os slides do canal 3, que era a TV Cultura do Chateaubriand. Eu desenhava esses slides, que eram a propaganda do momento, uns cartões focados pelas câmeras. Depois me afastei completamente e só em 1979, ano internacional da criança, escrevi uma história para a Declaração dos Direitos da Criança e fiz a Arca de Noé, com o Toquinho. Nessa época fiz também a cenografia da Ópera do Malandro, na TV Tupi. Em 1987, convenci a Globo a transformar num especial de TV o que inicialmente eu tinha concebido como uma peça de teatro para escolas públicas, que acabou virando o programa Canção de Todas as Crianças. Já tinha sido cenógrafo e assessor do programa Som Brasil. Criei e organizei, junto com a TV Globo, a Primeira Semana Elis Regina e a Semana de Arte Paulista. Coisas desse tipo.

Como foi realizar esses trabalhos, no sentido de adaptar sua arte à linguagem televisiva?
Foi bastante dramático, principalmente no que se refere ao especial Canção de Todas as Crianças. Com muita insistência, consegui convencer a emissora a exibir isso. Fui sacaneado do começo ao fim e fiz literalmente tudo – cenário, produção, maquete, abertura, até a locução final. Tive dificuldade em emplacar o roteiro, que eles queriam mudar a qualquer custo, achavam que os atores convidados não participariam – e todos participaram, nomes como Lima Duarte, Chico Anísio, Marieta Severo. Enfim, tudo foi feito com muito sacrifício. Depois, o Silvio Santos me chamou para transformar aquele especial em programa infantil, com os meus personagens, no SBT. E foi um desastre total. Isso era em 1988, 1989 e eu fui lá discutir meio ambiente, ecologia, direitos da criança. Acabei me tornando um E.T., a começar pelo fato de que eu proibia merchandising nocivo aos pequenos. Isso significava ausência de jabá e, conseqüentemente, descontentamento da equipe. Bom, eu tinha um personagem extraordinário: um mímico, em homenagem ao Chaplin, chamado Charlito. Ele fazia o papel de ensinar higiene pessoal, meio ambiente, e não usava uma palavra, apenas gestos e poesia. Era um personagem artístico, delicado. E as crianças o adoravam. Mas percebi que nada daquilo daria certo porque um dia me chamaram e disseram assim: “o mudinho tem que sair”. Eu disse: “o quê?”. E eles: “olha, TV é para ouvir, o mudinho precisa sair”. Quer dizer, não tinha lugar para o encantado, para outra forma de imagem, mais sutil, mais poética. E acho isso exemplar porque reflete exatamente aquilo que a TV deixa de lado hoje.

Como você vê essa questão da estética visual na TV atualmente? Existe espaço para experimentação artística?
A TV é essencialmente redundância, repetição. Vemos programas de televisão que eu via quando vim morar em São Paulo. Mudaram um pouco, a tecnologia evoluiu, mas são essencialmente os mesmos. Mas, para falar de estética e televisão, precisamos também separar claramente o que é TV comercial e o que não é. Porque nas emissoras abertas, a busca pela audiência é uma luta encarniçada que não deixa espaço para mais nada. Há exceções, claro, mas o grosso da produção a que a maioria da população tem acesso é lixo puro. A estética é medonha, porque mostra um certo hiper-realismo, representações que tornam tudo aquilo muito explícito, nivelado por baixo. E isso se dá em função de uma busca desenfreada pela hegemonia da audiência. A lógica comercial dessa busca não permite experimentações, novidades ou sutilezas no que se refere à estética. Se hoje temos TV de alta definição, é para mostrar esse lixo com mais nitidez. Além disso, arte para mim é aquilo que alguns seres humanos são capazes de produzir e que toca as outras pessoas, é uma deliberada intenção de melhorar o mundo. E não parece não haver muito espaço para isso na televisão aberta.

Um modelo para o Brasil

“Fiquei muito bem informado, pela BBC, sobre a bomba em Belfast que resultou em dezenas de mortos sem ver uma gota de sangue […] É a diferença entre a informação necessária e o espetáculo mórbido”. O episódio contado pelo professor Laurindo Lalo Leal Filho é bastante representativo do que acontece na mídia brasileira. Para Lalo, sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e da Faculdade Cásper Líbero, um contraponto ao modelo comercial brasileiro pode ser observado no Serviço Brasileiro da britânica BBC, objeto de seu mais recente livro, “Vozes de Londres”, lançado no último dia 12 de maio, em São Paulo, e que retoma os estudos do autor sobre a emissora. Nesta entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, Lalo ataca o sensacionalismo da mídia privada brasileira, deposita esperanças na TV Brasil e afirma que a BBC deve sim ser usada como referência para a formação de um sistema público no Brasil.

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De onde surgiu a idéia do livro? Por que escrever sobre o serviço brasileiro da BBC?
A idéia foi minha. Conheço o Serviço Brasileiro desde os meus tempos de repórter esportivo. Nas minhas andanças profissionais e acadêmicas pela Inglaterra sempre estive próximo desse serviço. E percebi a importância que ele teve para o Brasil em diferentes ocasiões, como a 2ª. Guerra Mundial e o período da ditadura militar. Nesses momentos o Serviço Brasileiro foi uma fonte de informações importante, não só do que ocorria no mundo, mas até do que acontecia por aqui. Há casos, contados no livro, em que a notícia de algo ocorrido no Brasil foi transmitido primeiro pela BBC e só mais tarde por emissoras nacionais. E de outras notícias que nem foram veiculadas por aqui. Além da presença de figuras ilustres que passaram por lá como funcionários da BBC ou como entrevistados. Lembro, no primeiro caso, dos escritores Antonio Callado e J.J.Veiga, de políticos como Emílio Carlos, de poetas como Vinícius de Moraes, de jornalistas como Fernando Pacheco Jordão, Vladimir Herzog, Jader de Oliveira e Ivan Lessa que, alíás, ainda está por lá. No segundo caso de figuras como Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Caetano Veloso, Carmen Miranda entre tantos outros. Achei que tudo isso valia um livro, e valeu.

A BBC tem uma série de recomendações e normas que atribuem parâmetros à atuação de seus profissionais, e também uma reiterada preocupação com a imparcialidade e a diversidade de opiniões. Por que o Brasil não consegue ter essa clareza em relação à função pública da mídia?
Acredito que a raiz da dificuldade está nas origens institucionais da radiodifusão no Brasil. Aqui, com exceção dos anos iniciais, ela sempre foi vista como negócio, nunca como serviço público. Ao entregar para a iniciativa privada a exploração do espectro eletromagnético o primeiro governo Vargas instalou uma relação promíscua entre o Estado e os concessionários privados que perdura até hoje. A lógica estabelecida foi a do capital. Empresas recebem a concessão como favor do Estado e retribuem dobrando-se a ele. Mas não de forma dócil e automática. Exercem pressões, estabelecem pautas, impõem vontades. Se, em algum momento, sentem-se contrariadas não hesitam em retaliar. E os governos, todos eles, temem essa retaliação, sabedores do poder que as emissoras têm junto à sociedade. Nesse cenário torna-se impossível o estabelecimento de regras claras para a atuação do rádio e da TV. Qualquer iniciativa nesse sentido será sempre subordinada aos interesses comerciais de quem opera as concessões públicas. Entre uma cobertura objetiva e cautelosa de um caso policial e o espalhafato sensacionalista que pode render alguns pontos a mais nos índices de audiência, as emissoras optam pela segunda opção, mandando às favas qualquer escrúpulo que ainda possa restar de compromisso público.

À época da criação da EBC, o Sr. defendeu que a BBC seria uma boa referência para a constituição do sistema público brasileiro e muitos o criticaram alegando que os contextos históricos não permitiriam comparações. Quais são seus argumentos?
E continuam achando. Achando não, tendo certeza absoluta. A BBC, com todas as possíveis críticas que possa se fazer a ela (e ela é seguidamente criticada, especialmente dentro do Reino Unido), ainda é o modelo mais bem acabado de serviço público de radiodifusão que existe no mundo. Mantida pelo público e por ele controlada de perto através de mecanismos institucionais eficientes, a BBC consegue prestar um serviço de radiodifusão reconhecido mundialmente por sua qualidade. Claro que são realidades distintas, mas nem por isso deve-se descartar como referência um exemplo como esse. Seria o mesmo que dizer que o acesso universal à saúde alcançado na Grã-Bretanha deveria ser deixado de lado no Brasil porque aqui a realidade é diferente. No caso da radiodifusão é perfeitamente possível um engajamento maior da sociedade no financiamento e no controle do rádio e da TV Pública. Principalmente para fortalecê-las diante dos ataques persistentes dos grupos e setores da sociedade que não admitem as suas existências.

O serviço brasileiro da BBC pode contribuir com a construção de um serviço internacional da EBC? De que forma?
Talvez possa, ainda que de forma indireta. Não institucionalmente, já que são organizações autônomas de países distintos. Mas a partir das experiências adquiridas por várias gerações de profissionais brasileiros que passaram pela BBC. Inúmeros jovens, muitos recém-formados, atuaram e atuam na BBC Brasil. Acredito que a maioria experimentou a agradável sensação de fazer jornalismo livre das pressões do mercado, algo raro por aqui. E, além disso, trabalhar numa organização de âmbito global, que cobre praticamente o mundo todo 24 horas por dia. São experiências individuais que, talvez somadas, possam contribuir para a construção de um serviço internacional da EBC. Que, aliás, herdou da Radiobrás o Canal Integración, voltado para a América Latina. Ele pode ser o embrião de um serviço internacional mais amplo.

O diretor-geral da BBC, Mark Thompson, em 2005, atribuiu à experiência prática o sucesso do jornalismo público da emissora. Falta isso ao Brasil? Como superar essa falta?
Infelizmente o modelo comercial adotado no Brasil e que, ao longo dos anos tornou-se hegemônico impediu uma prática mais ampla e constante de um jornalismo voltado para a sociedade e não apenas para o mercado. Já houve épocas melhores. No entanto, com o acirramento da competição por índices de audiência, a lógica da programação geral das emissoras contaminou o jornalismo. Não interessa se o público está sendo bem ou mal informado. O importante, para as emissoras, é que ele não mude de canal e, para isso, vale quase tudo. Dentro desses princípios editoriais fica difícil desenvolver uma prática jornalística diferenciada. E quem tenta, nas emissoras comerciais, corre o risco de perder o emprego. Acredito que o fortalecimento das emissoras públicas pode contribuir para mudar esse quadro. Mas para isso é preciso que elas não se deixem levar também pela busca da audiência a qualquer preço. Esses índices não podem ser desprezados, mas não podem se transformar em valores absolutos. Operando a partir desses parâmetros torna-se possível refletir sobre a qualidade editorial do jornalismo e, indo além, investir na formação de profissionais capazes de distinguir a informação qualificada do espetáculo midiático.

Um caso recente no Brasil tem sido usado como exemplo do sensacionalismo dos órgãos de imprensa: a morte da menina Isabela Nardoni. A BBC, por sua vez, tem regras claras sobre a relevância pública da notícia. Como uma emissora pública brasileira deveria tratar um caso como esse?
Acredito que a TV Brasil tenha feito uma cobertura séria do caso. Foi um bom começo. Evitava imagens, mas dava as informações necessárias para que o telespectador estivesse bem informado sobre os acontecimentos. A questão não é sobre informar ou não, mas como informar. Um caso como esse, dadas as suas trágicas circunstâncias, despertam o interesse do público e acabam se transformado em um assunto de interesse público. Sua cobertura deve ser, no entanto, cuidadosa. Ela não pode, como fazem as emissoras comerciais, aumentar ainda mais a dimensão da tragédia. Houve momentos, e foram vários, que não havia mais o que informar e os telejornais continuavam chamando os repórteres postados na frente das delegacias ou das casas dos suspeitos. Eles diziam apenas obviedades, repetiam informações ou informavam que estavam chegando mais repórteres e começava a chover, como fez uma pobre repórter do SPTV. É isso que a TV Brasil e qualquer emissora séria, pública ou privada, não deveria fazer. Para ficar em outra comparação lembro o dia de um atentado do IRA na Irlanda do Norte que coincidiu com um assalto sofrido numa estrada de São Paulo por um ator da Globo. Fiquei muito bem informado, pela BBC, sobre a bomba em Belfast que resultou em dezenas de mortos sem ver uma gota de sangue. Aqui as equipes chegaram ao local do assalto, obviamente, bem depois do crime. Mas para não perder a viagem e a audiência colocaram no ar, por longos minutos, as manchas do sangue que a vítima deixou no asfalto. É a diferença entre a informação necessária e o espetáculo mórbido.

Como o Sr. vê o atual estágio de desenvolvimento da EBC? O que está no caminho certo e o que pode ser melhorado?
Não é um processo fácil construir uma empresa pública de comunicação em tão pouco tempo. A programação ainda é a mesma da antiga TVE do Rio com dois programas da Radiobrás e os dois telejornais remodelados. É pouco para julgar. Acredito que a nova grade a ser colocada brevemente no ar dará ao telespectador uma alternativa real de programação em relação ao que é oferecido hoje pelas demais emissoras. Documentários, filmes de qualidade e sem intervalos, análises mais aprofundadas e abrangentes de temas importantes do cotidiano nacional e internacional estão previstos. Tudo isso é quase inédito na TV aberta brasileira. Mas ainda há muito mais a avançar. Registro três pontos, entre vários outros: a universalidade de acesso, a participação institucional da sociedade e a formação de quadros. É fundamental que o governo ofereça condições a EBC, através da Anatel e do Ministério das Comunicações, para que o seu sinal chegue gratuitamente a todos os domicílios brasileiros. Trata-se de um serviço público pago por toda a sociedade que, por sua vez, tem o direito de usufruí-lo em qualquer parte do território nacional.  É necessária também a ampliação da participação da sociedade na gestão da empresa. A primeira renovação do Conselho Gestor abre essa possibilidade. É preciso que ela seja concretizada não apenas para que a EBC absorva as aspirações da maior parte possível da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, receba desta o apoio necessário ao seu pleno desenvolvimento. E é também fundamental a articulação da empresa com os cursos profissionais e acadêmicos da área, auxiliando-os na formação de quadros voltados para o serviço público de radiodifusão, algo ainda desconhecido nas escolas brasileiras.

A velocidade reproduzida

Maria Rita Kehl é polivalente. Aos 56 anos, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, atende em seu consultório desde 1981. Antes, já freqüentava o mundo da literatura com o livro de poesias Imprevisão do Tempo (1979), experiência que repetiria com O Amor é uma Droga Pesada (1983) e Processos Primários (1996). E, além de se dedicar intensamente ao complexo universo dos indivíduos, costuma passear os olhos clínicos pelo mundo e transformar em ensaios questões coletivas da humanidade (leia em www.mariaritakehl.psc.br). Há cerca de um ano tenta terminar um novo livro, sobre depressão. Para tanto, utiliza as poucas horas vagas, e às vezes ainda tem de ceder um pedacinho delas para entrevistas como esta, feita em “prestações”. Talvez seja também ela uma vítima desse tempo, que segundo Antonio Candido, antes de ser apropriado pelo ritmo alucinante do capitalismo, deveria ser tratado como o tecido da vida. Mesmo pressionada pelo relógio, ela conversou com desenvoltura com a Revista do Brasil sobre processos de comunicação, política, família, juventude, amor. Pena que o tempo acabou.

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Em casos como o da menina Isabella, é o interesse do público por tragédias que move a mídia ou o exagero na cobertura que move o público?
As pessoas se interessam pela tragédia há 3.000 anos. Esse assassinato, em particular, inquieta e satisfaz as pessoas. Quase todo mundo conhece o sentimento de irritação extrema, de não conseguir lidar com as emoções. Então, a primeira reação é de prejulgar, é de fúria, é “eu jamais faria isso”, “eu não conheço esse sentimento”, “eu sou completamente diferente”… O que não é verdade. No inconsciente, a gente reprime sentimentos parecidos. Outra coisa é a possibilidade de haver um sentimento contra a figura da madrasta. Ser mãe biológica não é garantia de bons sentimentos, mas colocamos a mãe sempre num altar e usamos a madrasta para representar o lado escuro da mãe, desde os contos de fadas. E tem, ainda, um pouco da idéia de que família boa é aquela que tem o pai e a mãe biológicos e os filhos. Casou de novo, “olha aí, está vendo…” E como a gente está numa sociedade muito carente de valores públicos, em que pouco se faz em nome do bem comum, a família está muito idealizada. Um crime dentro de uma família, ou a suspeita de, deixa as pessoas indignadas e, como tudo o que nos enfurece, também excitadas e curiosas. Mas por que não quiseram influir nos outros casos? Por que contra as outras atrocidades e impunidades o povo não se mobiliza com tanta energia? As pessoas não se mobilizam contra crime que envolve criança pobre. Antes daquela brutalidade com o menino João Hélio, no Rio (em fevereiro de 2007, que gerou muitos protestos, comoção social), havia acontecido a chacina em Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense (em março de 2005), em que policiais abateram 29 pessoas na rua, incluindo crianças e adolescentes. Não houve grandes protestos.

E a exploração pela mídia também teve dimensões diferentes.
É evidente que os temas de grande interesse popular são sempre os mesmos, erotismo ou pornografia, crime, violência, acidentes, porque são os grandes temas do inconsciente. Por que quando há um atropelamento a maioria das pessoas pára para olhar? É porque a morte nos fascina. A morte, a violência fascinam, como todos os temas ligados àquilo que é mais reprimido na gente. Mas não há espaço de destaque para o assassinato de criança negra e pobre.

É por isso que o público aceita, por exemplo, que o autor da novela da noite leve o grande vilão, um crápula que roubou tudo da mãe de seu filho, a se redimir, quem sabe até ficar com a moça?
Isso tem a ver com essa tese de que os valores sentimentais é que contam. Impressiona muito nas novelas que seja raro o bandido ser punido na forma da lei. No final, ou morre num desastre, ou alguém o mata – é a vida que castiga. É raro uma novela terminar com o bandido preso e julgado. No Brasil, no nosso imaginário, primeiro a gente ouve muito que “Deus vai castigar”. E há essa pressa em perdoar. Basta ver o modo como terminou a ditadura: terminou, terminou, não se fala mais nisso. Não houve pressão para punir os ditadores. Agora acontecem algumas indenizações, mas não houve julgamento. Todo mundo foi perdoado e nem sequer pediu perdão. Nem se dá nome aos responsáveis. O brasileiro tem horror ao enfrentamento do conflito.

Isso é sintoma de depressão? Ou apenas omissão?
Isso produz depressão. Nós ficamos, digamos, fatalistas, “deixa Deus resolver nossos problemas”. É um pouco conseqüência daquilo que o Sergio Buarque detectou também no que chamou de homem cordial. E também não é omissão, tem a ver com o coração. É a idéia de que valores da vida privada é que regem a vida pública, os valores do sentimentalismo ou mesmo a cordialidade que faz com que o povo comum diga “ah, vamos perdoar ele, não vamos mais nos ocupar disso, vamos curtir a vida, bola pra frente”. Cordialidade é isso, os valores do coração. Os sentimentos regem a vida pública. O que pode dar em linchamento também.

Você acha que a competitividade nas várias circunstâncias da vida esteja levando a algo epidêmico?
Não seria epidêmico, mas trato a depressão como um sintoma social, e o principal fator contemporâneo que produz o aumento da depressão é o aumento da velocidade com que a gente vive nosso tempo. Eu mesma estou aqui contando os minutos (daqui a pouco tenho de atender). É como se a gente tivesse uma urgência temporal que faz com que a vida perca completamente o valor. O tempo da experiência, da reflexão, todo o tempo da chamada vida subjetiva está sendo atropelado pelo tempo do capitalismo. Esse é o primeiro fator da depressão, essa desvalorização do tempo como tempo de vida. Como diz o professor Antonio Candido: “O capitalismo se considera o senhor do tempo. Essa idéia do ‘tempo é dinheiro’ que rege a nossa vida é uma brutalidade. O tempo é o tecido da nossa vida”. Então, se você negocia a matéria-prima da sua vida, valendo dinheiro, a vida se desvaloriza. Se a vida se desvaloriza, para que viver? A depressão tem um pouco a ver com isso.

Para se adequar às exigências.
Vivemos numa sociedade do capitalismo avançado, de consumo, toda voltada para a felicidade, para o gozo, para festas. Então, por que há estatísticas sérias da Organização Mundial da Saúde dizendo que a depressão está aumentando e pode vir a ser, daqui a dez anos, a segunda principal causa não de morte diretamente, mas de morbidade?

Em tese, existem melhores condições de vida hoje do que antigamente.
Aparentemente. Mas temos notado uma coisa muito importante. A indústria farmacêutica vem sofisticando, desde os anos 70, as pesquisas de antidepressivos. Existe uma oferta grande de medicamentos e ao mesmo tempo uma divulgação não do remédio, mas da depressão. Você vai a um consultório, a um posto de saúde, e vê na sala de espera uns folhetinhos bem-intencionados perguntando “você tem isso, isso, e isso?” Aí tem uma lista de sintomas que qualquer um em algum momento difícil da vida já sentiu: falta de sono, perda de apetite, desânimo, falta de ar, angústia…

Como alguns horóscopos: qualquer situação se encaixa em qualquer dia para qualquer signo…
Exatamente. Então, tem uma procura enorme por antidepressivos. Li numa reportagem do Valor Econômico que a venda de antidepressivos no Brasil cresce algo próximo a 22% ao ano e movimenta US$ 320 milhões. É muita grana. As pessoas começam a tomar antidepressivo porque estão numa sociedade que não tolera a tristeza, o abatimento, ou que você não esteja sempre apto a achar que a vida é maravilhosa.

Mas precisam recorrer a médicos para usar?
Mesmo que seja um picareta, mas sem receita você não compra. Há médicos convencidos de que você tem de tratar aquilo que a gente chama de “dor de viver” – que é vital no ser humano – com antidepressivo. Até amigos dizem “ah, você tem de tomar um antidepressivo, você está muito caído”. A ideologia é esta: não tente curar suas dores pela reflexão, não dê o tempo que o luto precisa, tome um remédio e toque em frente. O trabalho é cada vez mais competitivo, quanto mais depressa o cara estiver bombando de novo, melhor. E não tem a ver só com trabalho, mas com os imperativos do consumo. É isso que impede que as pessoas tenham o tempo que precisam para se recuperar das quedas, perdas, crises. Tenho observado e conversado com psicanalistas, e há um aumento alarmante de suicídios entre adolescentes, pelo menos de classe média. Alarmante! Não sei se isso significa que os adolescentes estão passando por crises mais graves do que as crises de adolescência de 20 ou 30 anos atrás. A adolescência dos anos 60, 70 tinha um prestígio. O adolescente em crise juntava os amigos para falar, tinha uma certa rede de solidariedade e de interesse, a crise significava que você estava amadurecendo.

Não estou enaltecendo um clube da fossa, como a gente brincava. Mas o adolescente não se sentia um subumano por estar em crise. Hoje não há espaço, amigos e adultos não querem saber. Os adultos vão correndo levar o filho para o psiquiatra porque não sabem como acompanhá-lo solidariamente. Os pais se sentem culpados: “O que eu fiz de errado? Meu filho não está enturmado, não está indo trabalhar, não está indo para a balada”. Quando ele vai para a balada todo sábado, os pais se preocupam porque ele corre outros riscos. Mas quando ele se recolhe no quarto os pais acham intolerável. Tenho um colega que é orientador num colégio de classe alta. Ele me contou que de 40 e poucos adolescentes, meninos e meninas, que naquele ano tinham passado por perdas graves na vida, apenas um diz que conversou com um amigo. Os outros diziam: “Imagina, ninguém quer saber…” O ambiente solidário que permitia contar com os companheiros vai se substituindo por um ambiente de competitividade. Quem fica ou transa mais, quem vai para mais balada, quem é o mais popular. Então, o adolescente que passa por uma crise se recolhe. E ao sofrimento com a própria crise se acrescenta outro – na adolescência muito grave – , que é se sentir por baixo, errado.

E medicação, nesse caso, não quer dizer remédio.
A depressão é um sentimento de empobrecimento da vida subjetiva. Eu não estou falando contra medicação. Mas medicação como panacéia, que dispensa o trabalho de terapia, de a pessoa tentar elaborar o que está acontecendo, acaba favorecendo esse empobrecimento da vida psíquica. O sujeito automatiza alguns comportamentos, consegue estar mais ativo, regular o sono, comer, ir para o trabalho, mas não sabe por que depois de alguns anos continua deprimido. Como diz uma paciente após muito tempo de medicação: “Sou um fantasma que anda; faço tudo, mas não sinto nada. Então, prefiro me arriscar a sentir a tristeza que sentia antes mas falar dela, a ficar nesse automatismo”. É importante redescobrir até o valor da sua tristeza. A tristeza exige um tempo psíquico diferente do tempo do capitalismo. Mesmo o lazer, principalmente entre jovens, está muito dominado pela velocidade, por performance. Tempo é dinheiro, não perca tempo, manda ver. Essa modulação de ritmo, que permite que você tenha em contraposição ao ritmo acelerado do trabalho um tempo do lazer ou do ócio, vai se perdendo. E o que a gente tem como ócio hoje em dia? Deitar no sofá em frente à TV. As pessoas falam: “Ali eu me desligo”. Mas uma parte está ligada, senão você não ficaria vendo televisão; ficaria ouvindo música ou em silêncio, pensando. A televisão reproduz essa velocidade.

E nesta sociedade acelerada o amor também estaria mais veloz? Casais se separam mais rapidamente, aumenta o número de casamentos. Esse fenômeno não leva a um novo perfil da família?
Eu não gostaria de abordar as transformações do amor fazendo uma defesa da antiga família patriarcal, monogâmica, fechada sobre si mesma etc. Freud começa a observar o sofrimento das mulheres histéricas, dos neuróticos, dos filhos incestuosos grudados na saia da mãe no apogeu dessa família perfeitinha, desse casamento-para-sempre que é a família moderna burguesa. Isso vem do século 19 até metade do 20. É uma família construída para manter uma tal estabilidade e uma tal garantia de que os filhos vão herdar não só o patrimônio, os padrões de comportamento. Essa idéia dos pais dentro de casa, a mãe dentro de casa, dedicada aos filhos, é um celeiro de neuroses.

O que vem substituindo essa família?
Aí tem uma contradição interessante. Por um lado, com os valores da vida pública tão esfacelados, o amor virou o grande valor da vida individual. A gente o idealiza. Esse casamento burguês (em termos de conduta, não de classe) antigo não é necessariamente por amor. Tem a ver não raras vezes com conveniência. Claro que podia haver amores e paixões, mas o casamento se mantinha muito além da duração do amor, porque era a regra. Mesmo depois do divórcio já legalizado, a lei moral era manter esse casamento até a morte. Hoje essa lei moral não existe e o casamento passa a ser mais baseado no amor e paixão. O que por um lado é muito interessante porque as pessoas buscam os parceiros que realizam suas fantasias amorosas, o seu erotismo, as mulheres têm liberdade sexual, elas podem escolher, “com esse não deu, vou com aquele”. Tem um lado mais legal principalmente para as mulheres. Acabou a esposa que casa virgem com o único homem da sua vida e passa a vida inteira sem conhecer a felicidade sexual. Às vezes o homem achava que estava autorizado a procurar outras, ela não.

Agora, o amor virou uma espécie de mercadoria também. Sexo e amor já estão tão associados ao discurso das mercadorias que viraram uma espécie de valor agregado delas. As pessoas têm uma pressa muito grande de encontrar um grande amor, têm uma pressa muito grande de definir essas relações eróticas do começo da vida. Há uma liberdade sexual muito maior, os jovens já podem morar juntos, ou levar a namorada para a casa dos pais, as parcerias sexuais se intensificam muito rapidamente. E ao mesmo tempo somos uma sociedade tão voltada para o prazer imediato que o amor resiste pouco às suas crises, que são próprias do amor, as decepções, a pessoa não estar o tempo todo naquele estado de apaixonamento.

As pessoas não têm paciência para cuidar?
Menos paciência. Fazer renúncias (a outras formas de prazer) em nome de quê? E tem um apego muito grande. Se a vida pública, social não favorece, se você pertence só à sua familinha, ao seu parceiro, você se apega muito rapidamente, espera muito do outro, sobrecarrega o balaio do amor. Todas as situações da vida têm de ser compensadas por uma felicidade amorosa, digamos, para usar uma linguagem banal, seis dias de semana de trabalho cansativo, avassalador, exaustivo, para um sábado à noite no motel. Aí não resiste. Fica pesado para o amor. Aí as pessoas têm a ilusão de que se resolverá trocando de parceiro – e às vezes precisa trocar mesmo, há desentendimentos importantes, por isso que não faço a defesa do antigo casamento. Mas também há uma certa impaciência, principalmente entre os jovens, de “ah, não está mais rolando”. Passou a fulaninha, com sorriso mais legal, então vai rolar com ela… (pausa, olha para a parede) Pronto, já estou aqui de novo, na frente do meu relógio!