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Como criar um mercado mais brasileiro

Para a Agência Nacional do Cinema (Ancine) a aprovação do Projeto de Lei 29/2007 representa o estabelecimento, pelo Congresso Nacional, de um novo marco regulatório para o setor, que deve levar em conta o fato de o processo de convergência digital envolver duas camadas de serviços: a de telecomunicações e a camada de audiovisual. Para atender a essas duas frentes, o marco regulatório tem que ser flexível, defende Manoel Rangel Neto, diretor-presidente da Ancine. "Nosso entendimento é que o marco regulatório não devia estar preso à tecnologia, nem à empresa que opera uma determinada atividade, mas deveria haver regras para cada uma dessas atividades, estabelecendo apenas uma vedação de que aqueles que operam na atividade de distribuição, dentro da camada de telecomunicações, operassem na atividade de produção e programação dentro da camada de audiovisual."

Para o cineasta, essa premissa permitiria, primeiro, uma forte expansão na oferta de serviços de comunicação eletrônica de massas por assinatura, com redução de preços e, segundo, fortaleceria a oferta de conteúdos audiovisuais brasileiros. "Nosso raciocínio é de que tanto para a oferta de serviços, quanto para que o Brasil possa ter força no mercado de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais, são fundamentais maior atenção e maior espaço para o conteúdo brasileiro", explica. Nesta entrevista, Rangel também analisa o mercado de audiovisual, que considera pequeno e aquém das potencialidades da economia, e fala das medidas para estimular o setor, que fatura R$ 18 bilhões.

O Ministério da Cultura lançou o novo Plano de Cultura. De que forma a Ancine se enquadra nele e o que muda?
O Plano Nacional de Cultura é uma previsão posta numa emenda constitucional – aprovada, se não me engano, em 2004 ou 2005. O Ministério da Cultura está trabalhando junto à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados para a constituição de um plano nacional de cultura. Esse plano, tal como está desenhado pelo ministério e pelo Conselho Nacional de Políticas Culturais, prevê o estabelecimento de um conjunto de diretrizes de políticas públicas para um período estimado em dez anos. No corpo dessas diretrizes, há questões que o ministério, o Conselho Nacional de Políticas Culturais e o Congresso Nacional devem definir em relação ao universo do cinema e do audiovisual.
Nós, evidentemente, fornecemos subsídios para esses debates. Essas diretrizes devem se converter em orientações de atuação para o próprio ministério, para o conjunto dos órgãos de políticas públicas de cultura e também para a Agência Nacional de Cinema. Na medida em que emana de deliberações do Congresso Nacional, são orientações que transcendem os governos e transformam-se em orientações para o desenvolvimento nacional como um todo. A princípio, nos parece que caminham numa boa direção as discussões sobre o plano e, em particular, as diretrizes sobre o universo do cinema e do audiovisual.

Como está o papel da Ancine? Como você vê hoje a questão da produção cinematográfica brasileira, do audiovisual e como você vê isto frente às novas mídias?
Quando assumi a presidência da Ancine, o enfoque que procurei dar no colegiado da agência, e esta é a visão do conjunto da diretoria colegiada, é que devemos exercer o conjunto das competências que estão reservadas para nós no âmbito da Medida Provisória 2.228 – medida que criou a Ancine e reorganizou o marco legal da atividade cinematográfica – e o conjunto das leis que lhe sucederam, como a Lei 2.454 e a Lei 11.437. A nossa diretriz tem sido levar ao limite a aplicação do conjunto dos comandos legais estabelecidos nessa legislação, dando conta das questões de regulação do setor de cinema e de audiovisual, naquilo que nos compete. Nós cuidamos da gestão da política de fomento ao setor, sobretudo ao desenvolvimento do mercado e, evidentemente, atuando na questão de fiscalização desse mercado. Tudo isso está sob o seguinte viés: nós temos convicção de que é preciso trabalhar para um amplo crescimento do mercado de cinema e do audiovisual do país. Nosso diagnóstico parte da percepção de que temos um mercado pequeno, aquém das potencialidades da economia brasileira e das potencialidades do país.

Quando você fala do mercado pequeno, você está falando de produção?
Estou falando do mercado de audiovisual como um todo, tanto no aspecto da produção, quanto nos serviços audiovisuais de distribuição desses conteúdos. Nós temos um mercado de televisão aberta que se expandiu, está presente no conjunto do país, chega ao conjunto da sociedade brasileira, mas não está potencializado no conjunto das suas possibilidades de geração de receitas.
Nós temos um mercado de TV por assinatura aquém das dimensões econômicas do país e do seu mercado de consumo. Portanto, um serviço de televisão por assinatura restrito às camadas A e B da população, e mesmo nesse universo, não atinge a sua totalidade, está aquém da sua potencialidade.
Nós temos um mercado de salas de cinema aquém da sua potencialidade e dos indicadores, por exemplo, de países como a Argentina e o México. O Brasil tem uma sala de cinema para cada 84 mil habitantes, enquanto o México tem uma sala de cinema para cada 30 mil habitantes e a Argentina para cada 38 mil habitantes. Não estou nem comparando com os Estados Unidos, que tem uma sala para cada 8 mil habitantes. Nós estamos bastante aquém do mercado das salas de cinema.
Nós temos um mercado de DVD bastante espraiado com uma ocupação presente, mas que vive situações de dificuldade. Portanto, o nosso diagnóstico é de um mercado pequeno, tanto no que diz respeito à produção de conteúdos audiovisuais, quanto no que diz respeito aos serviços de distribuição desses conteúdos audiovisuais.

Você está falando tanto da produção nacional quanto da produção internacional, ou não?
No conjunto.

Isso significa quanto de faturamento por ano dessa indústria?
Essa indústria tem faturado no Brasil ao redor de R$ 18 bilhões. Esse faturamento equivale a mais ou menos 1,5% do faturamento mundial com serviços audiovisuais.

Desse total, quanto representa a produção nacional?
Eu não consigo fazer uma afirmação peremptória sobre o conteúdo nacional. Esses dados não estão abertos e discriminados em cada uma das cadeias. Agora, consigo dizer que a maior parte da exploração desse mercado audiovisual, responsável por girar esse faturamento de R$ 18 bilhões, em grande medida, está assentado na exploração de direitos de obras estrangeiras. Com exceção da televisão aberta, onde há uma incidência forte e o principal motor é o conteúdo brasileiro, que dinamiza sua operação, nas outras mídias todas – DVDs, salas de cinema, canais de distribuição, segmentos de mercado e televisão por assinatura – o principal é a obra estrangeira no nosso mercado. Mesmo na televisão aberta, a quantidade de conteúdo dramatúrgico, documentário, produtos audiovisuais para a televisão que se veicula ainda é de produção estrangeira, muito embora você tenha como carro chefe o conteúdo brasileiro. O carro chefe da operação da televisão aberta. Portanto, embora não tenha os dados abertos, é essa natureza do mercado e como ele está estruturado.

Como estimular o crescimento desse mercado?
Nós temos operado através de um conjunto de medidas de estímulo ao setor. Essas medidas foram se intensificando ao longo dos últimos anos. Hoje, há um investimento da ordem de R$ 140 milhões a R$ 150 milhões por ano pelas leis de incentivo fiscal. Há produção de conteúdo brasileiro.

Esses R$ 140 milhões são só da Ancine ou todas as verbas, da Lei Rouanet, etc?
Não, são as verbas geridas pela Ancine, em relação ao investimento em produção audiovisual. Aí estão um conjunto de mecanismos de incentivos fiscais administrados por nós. Além disso, nós temos em recursos orçamentários uma disponibilidade ao redor de R$ 20 milhões anuais para investimentos no setor. Nós aprovamos, no final de 2006, a Lei 11.437 que estruturou o fundo setorial do audiovisual. Esse fundo tem um orçamento de aproximadamente R$ 50 milhões/ano. Neste ano de 2008, seu orçamento é de R$ 58 milhões e, em 2007, foi de R$ 38 milhões. Este fundo tem uma forma de operar que permite uma dinamização não apenas no aspecto de produção de conteúdos audiovisuais, mas também de operar o conjunto da cadeia econômica do setor e os diversos segmentos que operam aí. Ou seja, esse fundo tem liberdade para operar na área de infra-estrutura, de serviços audiovisuais e tem liberdade para operar na área de exibição e distribuição, portanto, permite uma intervenção sistêmica na atividade.
A diretriz é ampliar os mecanismos de fomento à produção e atuar para a expansão do consumo audiovisual. Procura-se constituir programas que estimulem o consumo de audiovisual. Hoje, nós estamos encarregados de ajudar a estruturar o projeto do vale cultura, para que permita um estímulo direto ao consumo de audiovisual e ao consumo cultural como um todo, de tal forma que isso possa cumprir um papel de dinamizador da economia da cultura no país.

O que é o vale-cultura?
O vale-cultura é um projeto de lei, já apresentado pelo ministro José Múcio (Relações Institucionais) quando deputado federal no Congresso. Há uma outra medida, elaborada pelo Ministério da Cultura com o nosso apoio para constituir o vale-cultura que está em debate no governo federal desde o final de 2006. Há uma tramitação bastante avançada no interior do governo. A intenção é que o vale-cultura possa ser oferecido às empresas, a possibilidade de que elas concedam um vale-cultura aos seus trabalhadores, muito similar ao vale-refeição, onde elas poderão abater suas despesas com essa operação no seu Imposto de Renda a pagar, de forma que disponibilize ao trabalhador um instrumento de consumo cultural. Esse vale poderia se utilizado em salas de cinema, teatros, shows.

Isso ainda não foi para o Congresso?
Não.

Ainda está sendo fechado no governo?
Sim. Há no Congresso um projeto tramitando do ministro Múcio e uma negociação no interior do governo para chegar ao pacote final. As estruturas onde se atua no esboço de expansão do mercado, portanto, uma segunda dimensão é a expansão do consumo audiovisual, seja com medidas de estímulos como esta que estou falando, seja via operação do marco legal que permita destravar obstáculos ao crescimento do setor. Nesse sentido, nós temos defendido há algum tempo a idéia de que o mercado de TV por assinatura em particular precisa de uma alteração do seu marco legal que impulsione a oferta dos serviços de audiovisuais.
Um terceiro aspecto que eu destacaria é o esforço de maior sinergia entre os diversos agentes econômicos que atuam no setor de produção e distribuição de conteúdos. Para isso, também na Lei 11.437 (institui fundos setoriais e novos mecanismos de fomento à atividade audiovisual) criamos um mecanismo, introduzido também na Lei do Audiovisual, pelo qual as televisões abertas e as programadoras de TV por assinatura terão a possibilidade, em toda a remessa que fizerem ao exterior decorrente de aquisição de obras e de direitos de veiculação de eventos aqui no Brasil, de abater do Imposto de Renda devido. Elas poderão reter 70% do Imposto de Renda devido para uma conta especial para aplicar em co-produção de obras brasileiras de produção independente. Isso vai criar uma sinergia entre a televisão aberta e a produção independente.

Ao invés de mandar o dinheiro de hoyalties dos estrangeiros ela colocaria no fundo, é isso?
Não. Ela faz uma remessa ao exterior para quem ela deve. Há um imposto de 15% que ela é obrigada a pagar. Desse imposto de 15%, ela poderá reter 70% para essa conta especial, para aplicação em produção independente e os outros 30% ela deverá recolher à Receita Federal normalmente.

Isso já está regulamentado?
Isso já foi regulamentado por decreto em dezembro de 2007. A consulta pública foi concluída em junho para a instrução normativa de disciplina. Essa instrução normativa deverá estar publicada até o final de julho, o que vai permitir que as TVs comecem a dispor desses recursos para investir em produção independente. As TVs e as programadores de TV por assinatura.

As próprias programadoras também?
As próprias programadoras. Este é um exemplo dessas medidas de busca de sinergia entre os diversos agentes econômicos do setor. De tal maneira que haja mais solidariedade e compromisso dos agentes que detêm os meios de distribuição e programação com aqueles que produzem conteúdo. De tal forma que isso crie uma dinâmica de acelerar a expansão da oferta e acelerar, portanto, o crescimento do mercado audiovisual.
Estamos baseados no fato de que o mercado de audiovisual no mundo se estrutura havendo uma forte solidariedade entre o segmento da produção de conteúdos com os segmentos responsáveis pela distribuição e programação desses conteúdos. Essa forte sinergia existente aqui é alimentada, na maior parte dos países, por mecanismos que criam uma segregação entre a produção e a distribuição, criando obrigações dessa cadeia distribuidora de trabalhar com a miríade de produtoras que produzem esses conteúdos. O caso norte-americano está lastreado em mecanismos de regulação que, no passado, impulsionaram a conformação desse mercado nesses termos, e que segue ainda hoje a partir do fato de que aí gera um dinamismo especial na operação do mercado audiovisual.

Com relação à TV por assinatura, a votação do PL-29 está complicada, a maior programadora e distribuidora, a TV Globo, acabou se recusando a apoiar o projeto dos 10 canais independentes. Você acha que o projeto consegue ser aprovado sem a questão da cota da produção independente? Você acha que há uma saída do ponto de vista do conteúdo nacional?
Nós da Ancine temos acompanhado essa discussão do PL-29 com o máximo interesse. Evidentemente, nós não temos uma posição da Ancine sobre o tema, não nos compete definir políticas setoriais, então aguardamos as definições do próprio governo sobre a matéria. Mas sabemos que há um forte empenho do Ministério da Cultura na aprovação do PL-29 e um entendimento forte de que isso é absolutamente indispensável de ser tratado na sua íntegra, lidando com o conjunto do universo do serviço de comunicação eletrônica de massas por assinatura.
O acompanhamento que temos feito da matéria e nos momentos em que a Ancine foi chamada a se pronunciar, nas audiências públicas, a nossa opinião se dirigiu no sentido de afirmar a necessidade de que o Congresso Nacional estabelecesse um novo marco regulatório para o setor. Um marco que deveria levar em conta o fato de que estamos lidando com duas camadas de serviços envolvidos na comunicação eletrônica de massas por assinatura ou duas camadas de serviços envolvidos nesse processo da convergência digital como um todo. Ou seja, a camada de telecomunicações e a camada de audiovisual. E que se nós temos duas camadas, deveríamos construir um marco regulatório flexível o suficiente para lidar com as particularidades de cada uma delas, e no interior de cada uma dessas camadas, lidar com flexibilidade suficiente para tratar de cada uma das atividades exercidas dentro de cada uma dessas camadas.
Ou seja, no caso do serviço de comunicação eletrônica de massas por assinatura, nós temos a camada das telecomunicações e a de audiovisual. Na camada de audiovisual, nós identificamos pelo menos três atividades exercidas hoje no Brasil, em torno desse serviço: as atividades de produção, de programação e de empacotamento. Na camada de telecomunicações, nós identificamos duas atividades: de distribuição e de provimento. Ocorre que as empresas, ao exercerem essas atividades, nem sempre são empresas diferenciadas. Às vezes, uma mesma empresa exerce o conjunto dessas atividades das duas camadas. Nosso entendimento, portanto, é que o marco regulatório não devia estar preso à tecnologia, nem à empresa que opera uma determinada atividade, mas deveria haver regras para cada uma dessas atividades, estabelecendo apenas uma vedação de que aqueles que operam na atividade de distribuição, dentro da camada de telecomunicações, operassem na atividade de produção e programação dentro da camada de audiovisual. Essa seria a única vedação para que uma mesma empresa operasse outras atividades dentro das duas camadas.
Nós nos pronunciamos nessa direção em duas premissas. Uma, a de que isso poderia resultar numa forte expansão na oferta de serviços de comunicação eletrônica de massas por assinatura, portanto, caminhando na direção da redução de preços, a presença do serviço em localidades que não contam com ele em custos acessíveis. E segundo, trabalhando com a perspectiva de que este movimento deveria estar fortemente associado à oferta de conteúdos audiovisuais brasileiros. Por duas razões, porque é a oferta de conteúdos audiovisuais brasileiros que tem a capacidade de conduzir um processo de expansão desses serviços, dado que na própria televisão por assinatura a principal procura do consumidor é pelo conteúdo brasileiro. Isso se traduz nos índices de audiência dos canais abertos. Baseado no fato de que foi isso que comandou o processo de expansão vertiginoso da TV aberta no Brasil e deu a força que ele teve. E nos dados que temos do setor de cinema, do papel sazonal que o aumento da produção brasileira e da oferta da produção brasileira ocasionam sobre a rentabilidade do conjunto do mercado, sempre puxando o número dos ingressos vendidos nas salas de cinema, puxando os indicadores para “maior” no mercado.
Com base nisso, nosso raciocínio é de que tanto para a oferta de serviços, uma maior atenção e maior espaço para o conteúdo brasileiro são fundamentais, quanto para que o Brasil possa ter força no mercado de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais, que é o traço distintivo no cenário internacional, aos diversos países do mundo. Hoje ele se divide entre países que são meramente consumidores e produtores. O Brasil detém know-how para isso e nós deveríamos incrementar essa capacidade de produzir.
Nós nos pronunciamos no sentido de que não se pode lidar com o serviço de comunicação eletrônica de massa por assinatura sem lidar com essas duas dimensões. Qualquer solução que tente dar conta de apenas um desses aspectos é uma solução canhestra. Não enfrenta o problema que está em cima da mesa, de forma que equacione de maneira positiva para o desenvolvimento do mercado e preserve o interesse público de uma forte economia audiovisual e de uma forte economia de telecomunicações dentro do Brasil.
Nós não acreditamos num tratamento parcial da matéria, porque julgamos que ela não enfrentará de maneira satisfatória o desafio presente. O desafio no ambiente convergente é dar conta do conjunto dos aspectos que estão postos aí com a maior leveza possível. É isso o que acreditamos que os parlamentares têm buscado na Câmara dos Deputados.

Vocês têm algum projeto específico para estimular o desenvolvimento de conteúdo nacional para as novas mídias, como o celular e outros dispositivos móveis? Como você vê a questão da Internet?
O fundo setorial do audiovisual tem discutido com a Finep – que é o seu agente financeiro – algumas ações no campo da inovação que permitem lidar com a oferta de conteúdos diferenciados para esse universo digital. Aí está se pensando desde televisão digital, conteúdos para telefonia móvel até desenvolvimento de conteúdos que dialoguem especialmente com o ambiente da Internet, não a Internet como canal de distribuição, mas como uma mídia com características próprias. Aí entra, inclusive, o tratamento do universo de visualização, o universo de jogos eletrônicos como uma dimensão importante.
Esse é um tema que já ocupa a atenção da Finep, principalmente, no campo da visualização, as pesquisas em visualização. A Finep teve um papel importante no desenvolvimento do midleware, por exemplo, da TV digital. Ocupa a atenção do Ministério da Cultura que já teve um projeto e o mantém, o Jogos BR, de desenvolvimento de jogos eletrônicos. Agora está em exame a possibilidade de dinamizar centros de pesquisa junto às universidades e institutos que procuram trabalhar com o desenvolvimento de novos formatos adequados a esse universo.
Do outro lado, nós procuramos acompanhar as diversas movimentações dos agentes privados. Esse é um terreno que, por excelência, o Estado ou a agência reguladora devem cumprir um papel de observador, sobretudo porque é algo que está no início do seu desenvolvimento. O que precisamos fazer é acompanhar as principais tendências que vão se conformando, de tal forma que possamos estimular o que desponta como o caminho mais produtivo, para que se possa perceber eventuais problemas decorrentes dessa nova forma de operação.
O caso da Internet tem uma particularidade, porque à medida em que ela é ao mesmo tempo um espaço próprio, com uma linguagem própria a ser trabalhada, ela também vai se constituindo num canal forte de distribuição que mimetiza outros canais de distribuição existentes, sem impedimentos para isso.
Aquilo que circula como um novo espaço, um novo ambiente de formato, o que é simplesmente ambiente de troca de informações e comunicação entre as pessoas, isso é a Internet tal como pensada. Mas tem uma outra coisa aqui dentro, que é o momento em que ela vai se conformando como canais de distribuição que entra em concorrência direta seja como modelo de televisão aberta ou televisão por assinatura, seja como modelo de vídeo por demanda ou modelo das videolocadoras, a oferta de conteúdo segmentado. Neste terreno, mais cedo ou tarde, vão surgir desafios que demandarão uma atenção diferenciada. Algum tipo de atenção especial que possa dar conta, sempre sem ferir aquilo que constitui o seu principal trunfo que é esse novo espaço de troca de informações gratuitas e de comunicação livre.

Esse novo olhar que precisará ser dado à Internet, você acha que levará cinco, dez, quinze anos?
No ritmo que vai, eu diria que dentro de cinco anos, será preciso começar a pensar sobre essa matéria. É preciso estar pronto para começar a ter um diálogo com o conjunto dos agentes econômicos envolvidos, no sentido de como vamos organizar e normatizar isso. Alguns países já têm feito isso. Toda a atividade de comércio eletrônico já tem recebido uma forte atenção e atuação dos Estados diversos. Basta pegar um serviço como o Skype para verificar que naquilo que é o alimento de créditos para a voz IP, ofertada pelo Skype, passou-se a cobrar ICMS no Brasil, IVA numa série de países mundo afora. Ainda com mecanismos pouco eficientes de controle, porque auto-declaratórios, mas passou a fazer o recolhimento de impostos aos países.
Esse tipo de desafio que parece muito distante de nós, quando falamos do universo audiovisual e de telecomunicações, é um tipo de problema que demandará um outro tipo de atenção, porque, se é admissível a presença do Estado parametrizando com impostos o consumo nesse universo, há uma série de discussões correlatas a essa no que diz respeito às obrigações que cada um dos serviços prestados, fora do ambiente da Internet, acaba tendo por obrigação. Nesse momento, este é um debate bastante prematuro. O melhor a fazer é observar e ir lidando com a outra parte do universo das telecomunicações e da comunicação, alterando o marco legal no sentido de transformá-lo num marco legal mais simples e mais flexível. Ou seja, abandonando a regulação por tecnologia muito amarrada, apesar da difícil operação nesse ambiente convergente para construir esse marco legal. Essa é a principal virtude dos debates que estão ocorrendo na Câmara dos Deputados nesse um ano e meio em torno do PL-29. A grande virtude é que esta lógica da regulação para o ambiente convergente seja a lógica de uma regulação leve o suficiente para que se acople ao conhecido e ao desconhecido e ela tem sido perseguida sistematicamente.
Alguns agentes econômicos pressionam para que ela não tenha essa leveza, para que fique bastante presa ao que está presente, o que diminui a flexibilidade em relação ao que o futuro vai nos apresentar. Esse futuro não é distante, é um futuro de 2, 3, 4 anos, e é inimaginável que você se dedique a produzir leis nesse intervalo de tempo. É melhor que você tenha uma lei construída com leveza suficiente para que ela vá se adequando nesse universo, tateando as transformações que o ambiente convergente oferece.

Do ponto de vista da produção de material para a TV digital, uma coisa que me impressionou é que o BNDES abriu uma linha de financiamento para isso e até hoje não houve nenhum pedido. Você acha que ainda falta, do ponto de vista do produtor brasileiro, saber o que é preciso fazer?
A linha ofertada foi uma linha dirigida às televisões.

Não, são duas, uma para televisão e outra para produção.
A de produção envolve a parceria das televisões, não é uma linha onde um produtor qualquer chega lá e pega. Até porque em televisão você não pode simplesmente oferecer linhas de crédito. Oferecer pode, o que não tem é viabilidade. Oferecer linha de crédito para um produtor ir lá e produzir, sem ter um compromisso com um canal de distribuição. Na televisão, o canal de distribuição vem na origem. No cinema, o canal de distribuição pode surgir no decorrer do processo. Um dos desafios e problemas postos com a linha ofertada pelo BNDES é muito provavelmente o único fato de que não houve uma mudança significativa na televisão brasileira com a entrada da operação da televisão digital. Seja porque a televisão digital ainda não está implantada em território suficiente para isso, seja porque o consumidor ainda não aderiu a ela com força, porque os terminais de recepção ainda são muito caros, seja porque ainda não se induziu a pensar sobre novos formatos. Portanto, essa demanda não se apresentou como grande novidade.
Por outro lado, talvez isso queira indicar, já que a linha não tem uma vedação nesse aspecto, de que disponibilidade de recursos para investir não é um problema nas televisões brasileiras. Talvez indique que à medida em que é uma linha de financiamento de custos baixos – o mais baixo do mercado – e não foram utilizados, é razoável supor que as emissoras de televisão têm outros caminhos para financiar sua produção de conteúdo, que são mais baratos do que o caminho ofertado pelo BNDES. Na medida em que são mais baratos, elas seguem produzindo assim.

Em maio de 2009, quando termina o seu mandato, o que você espera ter mudado na sua gestão? Qual seria o marco para o qual você está trabalhando? É o aumento do consumo?
Nós temos trabalhado para o aumento do consumo, para dar mais capacidade às empresas brasileiras de lidarem com o mercado na base da auto-sustentabilidade, então, há um esforço de trabalhar o subsídio do Estado como uma alavanca para uma operação que independa do investimento público, portanto, que possa estar mais lastreado no investimento privado.
Nós temos feito um terceiro esforço de internacionalização da produção brasileira. O Brasil tradicionalmente esteve muito voltado para si mesmo na produção audiovisual. Desenvolveu grande capacidade nesse sentido e sempre acreditou que seu mercado interno era auto-suficiente para essa operação de audiovisual. E nós temos apontado que essa internacionalização é necessária, não apenas como instrumento de complementação dos recursos que sustentam a capacidade de produzir no mercado interno, mas também como forma de renovação da nossa capacidade de produção, de contaminar com as melhores práticas e tudo. Os nossos esforços vão nessa direção.
Evidentemente, na escala de tempo que me foi dado – estou na presidência da agência, praticamente, desde janeiro de 2007 – o nosso movimento tem sido construir as bases para esse processo. O que espero é que essas bases estejam solidamente implantadas e que isso permita um novo curso de desenvolvimento do setor.

Dados do Instituto Observatório Europeu do Audiovisual mostram que a produção mundial de cinema é de 4 mil filmes por ano; os EUA não produzem muito, mas tem distribuição global; a Índia produz muito e o indiano vê muito cinema indiano; enquanto no Brasil, embora tenha uma produção boa, a penetração fora do território brasileiro é muito pequena. Uma saída para romper o bloqueio da distribuição seria a co-produção?
Os dados da produção internacional, na maneira de encarar o papel de cada um, é esse mesmo desenho. Os valores são mais expressivos. A produção norte-americana gira em torno de 600 títulos/ano para cinema, a produção indiana em torno de 800 a 900 títulos e há uma produção bastante expandida no mundo inteiro, que chega com tranqüilidade a 3, 4 mil filmes sendo produzidos no mundo. De fato, o único que conta com uma estrutura de distribuição mundializada são os Estados Unidos. Essa estrutura de distribuição tem uma outra força adicional, ela é também a alavanca do processo de produção dentro dos Estados Unidos. Lá, você não vai encontrar, a não ser residualmente, produções fora de uma associação com essa estrutura de distribuição mundializada. Isso significa que os produtos partem com uma capacidade de penetração nos mercados, que conta com um forte mercado de consumo na sua partida no consumo interno – o mercado norte-americano é fortíssimo, um mercado de 35 mil salas de cinemas – e conta com todo o mundo como complementação desse mercado. Aqui estamos falando dos diversos segmentos do mercado, salas de cinema, televisão por assinatura e aberta, DVD e diversos outros pequenos que também são importantes, hotéis, aviões, paperview, vídeo por demanda etc.
O Brasil, para se inserir dentro dessa estrutura internacional precisa, primeiramente, expandir o seu mercado interno. Ele não pode abrir mão do mercado interno como alavanca. É nos países em que são produzidos que os produtos têm mais força. E é da força que têm, nos países onde são produzidos, que eles arrancam força para percorrer o mercado internacional. Um produto que não tenha sucesso no seu país de origem pode até vir a ter sucesso em outro mercado, mas a probabilidade é muito menor, porque não há quem acredite. Esse é um mercado movido por expectativas. Então, ele tem que ter o mercado interno forte como alavanca e no mercado internacional, precisa ter parceiros que tenham tanto compromisso com aquela obra quanto você que deu origem a ela. Isso se obtém através da co-produção.
A co-produção oferta algumas vantagens. A primeira é o encontro de um parceiro compromissado com a obra, no processo de fatura da obra e que dê um tratamento para o seu mercado – onde está o co-produtor – como se ela fosse nacional. Ele tem os caminhos para viabilizar a criação da expectativa em torno daquela obra.
A segunda é que abre fontes de financiamentos adicionais para o processo de produção, seja com base nos mecanismos de apoio públicos que os Estados europeus e diversos outros estados nacionais mantêm mundo afora, Canadá, Austrália, Coréia e outros, seja através de financiadores privados locais.
A terceira é que esse produto recebe um tratamento, em geral, favorecido pelas legislações de apoio local. Por exemplo, a Comunidade Européia mantém a diretriz televisão sem fronteiras que está sendo atualizada como diretriz de novas mídias – de mídia sem fronteiras – em que recomenda que haja pelo menos 50% de conteúdo europeu nos diversos canais de distribuição europeus, independente dos patamares de conteúdos nacionais estabelecidos em cada legislação. Portanto, tendo essa nacionalidade ofertada por outro país, esse produto passa a ter força. Nós acreditamos nesse caminho, temos trabalhado na renovação dos acordos de co-produção brasileira.

Quantos são?
Hoje nós temos ao redor de 15 acordos de co-produção, mas alguns deles, por exemplo, o acordo ibero-americano, envolve 18 países. Portanto, é bastante ampla a gama de países envolvidos nos nossos acordos. Temos trabalhado na atualização de vários desses acordos para adequar as bases financeiras. No passado, era muito grande a participação de um co-produtor minoritário e a prática mundial hoje reduziu essa participação financeira dos co-produtores minoritários. E visamos abrir esses acordos para além do cinema e abranger outros formatos audiovisuais. Nós renovamos, recentemente, com a França e a Alemanha; assinamos com a Índia; renovamos o acordo ibero-americano; estamos negociando a renovação com a Itália; abrimos conversações com a Rússia, a China e a Austrália; e temos conversações com a Inglaterra, que tem uma peculiaridade, ela funciona como um mercado ponte do mercado americano, isso cria outros tipos de problemas no processo de co-produção. Há um esforço sistemático nosso.
Nós temos apoiado três programas de exportação, fortemente incentivados pelo Ministério da Cultura, pela Apex e por nós da Ancine: o programa de exportação do cinema, que é o Programa Cinema do Brasil; o programa de exportação de televisão, chamado Brazilian TV Producers; e o programa Filme Brasil, que é o programa de expansão de publicidade.

Todos poderemos ser cibercriminosos

[A entrevista foi originalmente publicada pelo Boletim G-popai em 7 de julho. Na noite de 9 de julho, o Plenário do Senado aprovou o PL-89 com alterações pontuais. Por ter sido alterado no Senado, deverá voltar para a Câmara dos Deputados, para nova apreciação.]

Aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o substitutivo do senador Eduardo Azeredo ao Projeto de Lei 89/2003 que trata de crimes eletrônicos tem preocupado militantes e especialistas da área de informática e do direito. O substitutivo aglutina três projetos de lei que tramitavam no Senado e altera o Código Penal incluindo treze novos crimes. Segundo o gabinete do senador Azeredo, ele pretende “tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares, de rede de computadores, ou que sejam praticadas contra rede de computadores, dispositivos de comunicação ou sistemas informatizados e similares”.

No entanto, o texto vago da redação do projeto pode enquadrar atividades cotidianas dos usuários de Internet entre os novos crimes eletrônicos. O sociólogo Sérgio Amadeu afirma em seu blog que “ao aprovar o projeto Substitutivo ao PLC 89/2003, PLS 137/2000 e PLS 76/2000, redigido pelo senador Azeredo, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara quer transformar milhares de internautas em criminosos”.

Entre as medidas consideradas mais preocupantes pela sociedade civil está a que dá aos provedores de acesso à Internet poder para identificar usuários que estejam violando a lei e denunciá-los para as autoridades, o que pode implicar a violação da privacidade dos usuários da rede – através da vigia dos provedores – ou o bloqueio ao acesso a determinados conteúdos. Outro artigo do substitutivo tipifica como crime o compartilhamento de dados eletrônicos sem a autorização do títular, a pena seria de um a três anos e multa. O projeto tramita em regime de urgência e aguarda votação no plenário do Senado. Uma vez aprovado, segue para sanção presidencial.

Leia a seguir entrevista com o professor Pedro Rezende, da Universidade de Brasília, sobre o PL 89/2003.

Como se deu a elaboração da proposta de substitutivo apresentada pelo Senador Azeredo? Qual foi a participação da sociedade civil neste processo?
No Senado, passaram a tramitar juntos dois projetos ali propostos, o PLS 76 e o PLS 137/2000, e um aprovado na Câmara, o PLS 89/2003 que você cita. Desta tramitação, surgiu em 2006 um substitutivo. Dela desconheço muitos dos detalhes, mas os que conheci muito me inquietaram e me inquietam.

Em 2006 o relator desses projetos havia submetido, como é de praxe, sua proposta de substitutivo à Consultoria especializada do Senado. Um parecer que revisava esta proposta foi então elaborado pela Consultoria. Este parecer foi encaminhado para a primeira votação destinada a avaliar o seu mérito, na Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, na pauta da reunião de 23 de maio de 2006.
Foi então que, para surpresa dos não familiarizados com os meandros obscuros da política, algo notável aconteceu. Quando a matéria entrou em deliberação, o relator anunciou que poria em votação a versão do substitutivo que ele havia enviado à Consultoria, e não a versão revisada pelo parecer que estava em pauta, da qual os votantes da Comissão teriam tomado conhecimento.
Diante disso, um dos senadores votantes, Heráclito Fortes, pediu vistas e a votação foi adiada. Mas a versão original do relator acabou depois ali aprovada, em 20/06/06, desprezado o parecer elaborado pela Consultoria do Senado. Foi aí que ficamos sabendo como os profissionais que são pagos com nossos impostos para nos representar com neutralidade na análise de propostas legislativas foram descartados da tramitação deste substitutivo.
Depois, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), houve duas tentativas de se colocar em votação alguma versão deste substitutivo sem nenhuma audiência pública para debatê-la. A primeira, em novembro de 2006, frustrou-se devido a um grande clamor na mídia, contra distorções e aberrações com as quais até os leigos puderam se alarmar, se lhes dirigida a devida atenção.
A segunda tentativa, em maio de 2007, foi com uma versão do substitutivo até então desconhecida do público e da quase totalidade dos votantes da CCJ. E ainda, com entidades civis interessadas em debater publicamente a proposta, tais como o Centro de Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas e o Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática, alijadas da versão pautada e do debate legislativo de maneira degradante.
Mas na hora da votação houve um pedido de vistas, do Senador Pedro Simon, que resultou em audiência pública. A lista de nomes para debater a proposta se tornou, então, objeto de disputa política. Houve veto aos interessados que já haviam criticado a proposta em seminário organizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, até que se chegou a um acordo permitindo que a lista de convidados incluísse um só daqueles críticos, que é autoridade judicial. A audiência foi então realizada, mas de forma assaz curiosa.
Esta audiência na CCJ aguardou cerca de dois meses por uma definição de data, a qual foi marcada com menos de 24 horas de antecedência. Pessoas na lista foram convidadas por telefone, em 3/7/07, para comparecerem à audiência no dia seguinte às 11 horas. Foram assim contactadas logo que uma delas, a Subprocuradora-Geral da República e Coordenadora de Defesa dos Direitos Humanos e do Cidadão, que havia opinado sobre a inconstitucionalidade de vários dispositivos da proposta no seminário na Câmara, saiu de férias.
Mesmo assim, graças à intervenção da Senadora Serys Slhessarenko, a preponderância de interesses de instituições financeiras na proposta e a "carona" que a mesma busca pegar em temas de forte apelo popular, como a pedofilia, puderam ali finalmente ser expostas e registradas nos anais do Senado. Com as posições que ali assim se desenhavam, os próximos "debates" foram então presumidos a ocorrerem num detour por outras Comissões do Senado.

Houve algumas modificações no texto do substitutivo até se chegar a versão aprovada recentemente pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Houve avanços desde a primeira versão? Na sua opinião que problemas ainda persistem?
Não sei o que poderia se chamar de avanço, mas certamente houve recuos em algumas disposições esdrúxulas. Foram oito versões até aquela que foi aprovada na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), em 11 de junho de 2008. Ao examinar tal versão, vemos que o problema mais sério persiste, na forma de tipos penais excessivamente vagos e abertos, com várias sobreposições de conduta ilícita, expondo o ordenamento jurídico pátrio, já excessivamente marcado pela tradição positivista, ao perigo da radicalização normativa. Radicalização que já fecundou desastres sociais na História recente, e que agora se renova com os desafios ao Direito postos pelo virtual.
Talvez o mais inquietante nisso tudo seja a forma como a proposta foi finalmente aprovada na CCJ. No final de uma sessão cuja pauta não incluía a matéria, apenas sete dias após a mesma ter sido aprovada sabe-se lá como na CAE, onde as entidades civis alijadas do debate anterior não foram ouvidas. Sem qualquer debate ou mesmo leitura do que constava na versão da vez, nona ou décima de um polêmico substitutivo que pretente alterar profunda e radicalmente o ordenamento jurídico Brasileiro, como quis, nas tentativas anteriores nesta CCJ, o relator.

O que a medida que obriga os provedores de acesso à Internet informar às autoridades denúncias em relação a possíveis crimes pode implicar?
Creio que a natureza subjetiva da linguagem empregada para insculpir tal obrigação, em especial a que refere o que deve ser denunciado "ao conhecimento" do provedor de acesso, implica em efeitos colaterais difíceis de se mensurar, mas fáceis de se perceber danosos aos sub-representados nesta tramitação. Receio que tal dispositivo possa, por exemplo, induzir prestadores inclinados a lucrar com espionagem ou violação de privacidade, em posição técnica de poder faze-lo de forma indetectável, a se abrigarem na sombra desta subjetividade para se desimputarem de culpabilidade caso efeitos desta inclinação emerjam.
Doutro lado, temos o fato de que legislar sobre o virtual é sempre uma tarefa difícil e incerta, pois produz efeitos colaterais além de um certo ponto imprevisíveis, já que a própria evolução tecnológica sofre influxos dos possíveis efeitos da norma, enquanto neles influencia. O que permite a interesses investidos em radicalizações normativas, como os que movem esta proposta, banalizarem credulamente qualquer crítica a este radicalismo impingindo-lhes a pecha de alarmistas, retrógrados ou anarquistas.
Porém, se quisermos buscar, não precisamos nem mesmo aguardar a vigência de propostas como esta para encontrar indícios de como a imaginação criativa pode deitar e rolar sobre tanta latitude jurídica. Indícios de como a imaginação de quem tem bolsos fundos pode riscar na hermenêutica positivista formas capazes de materializá-la em jurisprudência. Tomemos o caso do art. 285-B, por exemplo, que diz:
"285-B – Obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de compudadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, pelo legítimo titular, quado exigida: Pena – reclusão de 1(um) a 3(três) anos e multa. Parágrafo único: Se o dado ou informação obtida desautorizadamente é fornecida a terceiros, a pena é aumentada de um terço"
Em 15 de Novembro de 2006, por ocasião da primeira tenativa de se aprovar coisas do gênero na CCJ, em matéria para um jornal na cidade de origem do relator (arquivado em http://web.archive.org/web/20070212131244/ http://www.otempo.com.br/cidades/lerMateria/?idMateria=71260), o jornalista Ernesto Braga relata: a Febraban (Federação de Bancos Brasileiros) "discute a possibilidade de as agências não arcarem com as despesas de clientes lesados, se esses clientes utilizam softwares piratas nos seus computadores".
Se o objeto de tutela jurídica referente ao "legítimo titular" em 285-B for a rede de computadores, o "dispositivo de comunicação" ou o "sistema informatizado", tal possibilidade enquadraria, neste momento por exemplo, segundo estatísticas circulantes mais da metade dos usuários brasileiros de home banking. Estes estariam, se lesados, sofrendo um dano enquanto praticam crime, pois estariam obtendo seus próprios dados e informações, inclusive a de que foram lesados, de um sistema informatizado (com sistema operacional proprietário) em desconformidade à autorização do legítimo titular (licença de uso "não-genuína"). Quem reclamar por se achar lesado estará se expondo a três anos de reclusão e multa, com o dolo devidamente registrado pelo primeiro clique algum dia cravado numa mensagem do "Windows Genuine Advantage".
Doutra feita, se o objeto de tutela referente ao "legítimo titular" em 285-B for o "dado" ou a "informação", tal possibilidade enquadraria o Estado Brasileiro como braço armado para instrumentos contratuais particulares dos mais peculiares, para empresas transnacionais que queiram imputar responsabilidades e/ou instalar taxímetros virtuais sobre quem usa ou circula dados em formato digital. Como a Associated Press, por exemplo, que quer cobrar US$ 12.50 por cada uso de cada sequência de cinco palavras que tenha ocorrido em algum dos seus artigos. A imaginação para interpretações abusivas, neste caso, não teria limites com uma hermenêutica puramente positivista, como aventado em "Prioridades na segurança digital".

Finalmente, na sua opinião, o que uma legislação que pretenda regulamentar os crimes de informática deve considerar?
Melhor seria opinar sobre o que um legislador numa república platônica deve considerar. Um legislador deveria considerar que quando o interesse maior a motivar tão vesga fúria legiferante for indizível, e equiparável ao interesse em se conter o custo de produção de provas para crimes já tipificados mas praticados por meio eletrônico, o objetivo comunicável deste interesse, qualquer que seja, só pode ser buscado ou alcançado em paralelo com efeitos colaterais socialmente nocivos.
Efeitos que produzirão crescente insegurança jurídica na medida em que o uso indevido das tecnologias digitais evolui sob influência deste relaxamento dos critérios tradicionais de tipificação e de prova. Efeitos que, a julgar pela curta história dessas tecnologias, produzirão tal insegurança em ritmo e escala mais ágeis do que a hermenêutica e a legiferância possam controlar, devido à natureza dessas tecnologias, à natureza do Direito e das práticas jurídicas, e ao caráter cumulativo da evolução e do uso indevido destas. A corrida por leis mais radicais, mais severas na pena e dissolutas no tipo à guisa do fato ser virtual, é como a corrida de um cachorro atrás do próprio rabo. Basta ver como caminha hoje a economia globalizada. Em vertigem.
Crescendo em paralelo com a miniaturização, com a agilidade e com a complexidade das tecnologias digitais de informação e comunicação, o custo da eficácia probante na esfera virtual é nada mais, nada menos, que o outro lado da moeda da crescente eficiência que estas propiciam. Ceder ao fascínio dessas tecnologias como se fossem elas um bem por si mesmas, em favor de interesses econômicos privados que buscam socializar esses custos enquanto auferem e concentram os benefícios desta eficiência, é uma tentação que contabiliza seu preço contra uma sociedade cada vez mais dependente delas. E para cobrá-lo, nalgum momento, o Cobrador de última instância virá.

 

O campo minado da classificação indicativa

Foi com bastante surpresa que vários setores da sociedade receberam a notícia de que José Eduardo Elias Romão, até então diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus), da Secretaria Nacional de Justiça, tinha deixado o cargo no dia 10 de junho. Diretor do órgão desde fevereiro de 2004, José Romão esteve diretamente envolvido com o processo de regulamentação da classificação indicativa de programas de TV, filmes para o cinema, vídeo e DVD, jogos eletrônicos, espetáculos cênicos e musicais. Desses, com certeza, o trabalho mais emblemático de sua gestão foi o processo de regulamentação da classificação dos programas de televisão. Alvo de acusações de propor a volta da censura, José Romão foi duramente criticado, principalmente pelas emissoras de TV, embora também tivesse recebido apoio de renomados juristas, artistas e personalidades brasileiras. A elaboração da atual portaria 1.220/07, que estabelece as diretrizes da classificação, foi fruto de um amplo debate público, que, mesmo não sendo divulgado pela grande imprensa, conseguiu envolver boa parte da sociedade brasileira, seja integrando o Grupo de Trabalho, instituído em 2005 pela então secretária Claudia Chagas, seja participando das consultas e audiências públicas. Tendo acompanhado de perto e noticiado, ao longo destes anos, todo o processo de trabalho, o Rio Mídia entrevistou esta semana, por e-mail, José Romão. Nesta entrevista, ele explica os motivos que o levaram a se afastar da Secretaria Nacional de Justiça e faz um pequeno balanço da gestão. Interinamente quem ocupa o cargo de diretor do Dejus é o advogado Davi Ulisses Brasil Simões Pires, até então diretor-adjunto do próprio departamento. No início desta semana, o Rio Mídia também enviou, por e-mail, uma entrevista ao diretor. No entanto, até esta sexta-feira (27/06), a Secretaria Nacional de Justiça ainda não tinha autorizado a publicação das respostas dadas pelo novo diretor do Dejus. Acompanhe a entrevista concedida por José Romão.

Por que o senhor deixou o Dejus? Houve alguma pressão por parte das emissoras de TV? Algum desentendimento interno na condução do trabalho no Dejus?
Para deixar de fazer qualquer coisa que você gosta muito e que lhe propicia inúmeras realizações, um só motivo não basta. São várias as razões que justificam e, espero eu, que explicam minha saída da direção do Dejus. A primeira delas, e a mais importante, é que concluí o Plano de Trabalho ao qual me vinculava desde 2004. Depois de quatro anos e quatro meses de trabalho, felizmente consegui realizar, com o auxílio de inúmeras pessoas, todos os objetivos previstos no planejamento institucional do Departamento e também outros tantos objetivos relevantes e estratégicos que foram agregados ao trabalho, sobretudo por demanda da sociedade civil organizada. A segunda diz respeito à realização de uma pesquisa de doutoramento iniciada em 2006. Portanto, sinto-me obrigado a deixar o trabalho cotidiano de gestão do Dejus para poder desenvolver uma pesquisa sobre o processo de constituição dessa nova classificação indicativa. É hora de refletir detidamente sobre o que foi feito, sobre o quanto conseguimos avançar por esse campo “minado” do controle democrático dirigido à comunicação social. E antes que você me pergunte, explico que uso “minado” para me referir às acusações que explodem a cada movimento: “é censura”, “é moralismo”, “é dirigismo” etc.
Há, é claro, razões de ordem pessoal não menos importantes, como ter mais tempo para a família, por exemplo. Portanto, saio porque acredito ter cumprido esta missão executiva como gestor público e porque preciso realizar agora minha outra missão, como pesquisador da Universidade de Brasília.
Nesse contexto, não há por que falar em pressão das emissoras comerciais contrárias à classificação indicativa. Além do mais, desde o inicio de 2007, quando a pretexto da transição entre o ministro Marcio Thomaz Bastos e o ministro Tarso Genro se especulava em Brasília sobre a “oportunidade” de minha saída, o governo demonstrou claramente não estar aberto a esse tipo de pressão.
Do mesmo modo, devo responder à pergunta se “algum desentendimento interno na condução do trabalho no próprio Dejus” poderia ter motivado minha saída. Depois de tudo o que vivemos – e estou me referindo especialmente aos momentos mais difíceis –, não poderia ser um “desentendimento interno” a razão de minha saída. Muito pelo contrário, aí é que eu me sentiria obrigado a permanecer.

De qualquer forma, alguns setores da sociedade temem que a sua saída signifique um “afrouxamento” no processo de classificação indicativa. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
É compreensível que setores da sociedade civil, sobretudo aqueles que participaram intensamente do processo de construção da nova classificação indicativa, vejam com algum receio meu desligamento do cargo e que o fato pareça indicar um retrocesso ou, como queira, um afrouxamento na classificação indicativa. Afinal de contas, muitos de nós se entregaram tão completamente à realização desse trabalho que acabamos, naturalmente, nos confundindo com ele e parecendo parte dele. Acho que senti algo semelhante, que é menos temor do “novo” e mais receio de descontinuidade, quando a dra. Ela Wiecko deixou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF; e também quando o Zico Góes deixou a direção da MTV/Brasil. Mas creio que não sou parte da classificação. Talvez eu seja – tanto quanto o Guilherme Canela, o Gustavo Gindre, o Gabriel Priolli, o Fernando Martins e tantas outras pessoas que lutaram pela constituição dessa política – parte da história da classificação. O que é muito diferente.
Essa política pública que denominamos de “nova classificação indicativa” é hoje uma instituição republicana, isto é, um sistema normativo capaz de promover democraticamente a realização dos direitos humanos de crianças e adolescentes sem depender deste ou daquele governo.
É verdade que um bom gestor sempre ajuda, mas o fundamental é dispor de normas e procedimentos fortemente instituídos. Tenho a impressão de que se essa política resistiu, sem qualquer alteração, à portaria 1.220/07, às fortes pressões para que fosse removida a obrigatoriedade da observância dos diferentes fusos horários na exibição dos programas de TV, não pode haver retrocessos. Contudo, isso não significa que podemos simplesmente virar a página e partir para outra batalha.
O desafio agora é o da ativa vigilância, o do controle social. É preciso continuar exigindo total transparência em cada ato praticado.

Então o senhor acredita na continuidade do processo de classificação indicativa tal como está instituído?
Não só acredito na continuidade do trabalho, isto é, na busca incessante pela efetividade e pela legitimidade da política, como tenho certeza de que haverá aprimoramentos. E são dois os principais motivos que me fazem vislumbrar avanços. Primeiro, no Plano de Trabalho do Departamento para 2008 estão previstas ações estratégicas que vinculam a classificação às políticas educacionais e culturais do governo federal e ainda regularizam a participação da sociedade civil organizada no procedimento de análise; e o segundo motivo é que, muito embora eu reitere que a política não possa depender das pessoas que estão no MJ, atualmente há no Dejus uma equipe renovada e bastante qualificada para enfrentar quaisquer desafios. Pude trabalhar com o dr. Davi Pires, o atual diretor do Dejus, tempo suficiente para atestar suas qualidades como gestor e como mediador.

O senhor esteve à frente do Dejus por quanto tempo? O que ficou de aprendizado?
Entrei em fevereiro de 2004 e saí em junho de 2008. E por incrível que pareça foi a mais longa gestão da história do Departamento. A rigor, da perspectiva da administração do Estado, não é lá tanto tempo assim. Mas a julgar pela intensidade, pela qualidade e pela quantidade das experiências que vivi nesse período, sinto-me uns quinze anos mais velho. Ainda bem que tenho cara de menino…
“O que ficou do aprendizado?” Nossa, é tanta coisa que só depois de uns meses pesquisando e refletindo teria condições de responder a essa pergunta. Agora, assim na lata, só me ocorre um verso do Drummond que diz: “Tarde a vida ensina uma lição discreta/ A ode cristalina é a que se faz sem poeta”. Quem sabe não seja isso, reforçando um pouco o que tentei dizer acima: a melhor política pública é aquela que se faz sem o burocrata, e com a população movimentando a burocracia.

Analisando sua gestão, qual foi o maior obstáculo superado, a grande vitória?
Aqui é preciso esclarecer que o Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, o Dejus, tem outras atribuições relevantes além da classificação indicativa. Por isso, pensando na gestão como um todo, creio que a grande vitória (de todas as pessoas que ao longo dos anos integraram a equipe) foi ter modificado tão radicalmente as estruturas do Dejus. Que aquilo que era considerado o “quartinho dos fundos do Ministério da Justiça”, onde se podia despejar até o entulho autoritário, se transformou num órgão-símbolo do moderno Estado Democrático de Direito. Transparência, participação, pluralidade, legitimidade e efetividade são mais do que princípios para nós: são hoje perspectivas institucionais alcançadas.
Mas, para não fugir ao tema da classificação, devo dizer que para mim o maior obstáculo superado não foi a refutação da acusação leviana da “volta da censura”. A maior vitória foi ter demonstrado que a classificação indicativa não podia ser um “servicinho” gratuito do Estado prestado às emissoras de televisão.
A maior vitória foi ter, portanto, estabelecido claramente que a verdadeira “clientela” da classificação indicativa são os pais, os educadores e os demais responsáveis pela proteção de crianças e adolescentes.

Sua gestão é prova de que os interesses da sociedade podem e devem se sobrepor aos interesses comerciais, principalmente dos meios de comunicação?
Sinceramente, espero que sim. Não é por outra razão que tentarei sustentar no trabalho de tese que a classificação – não podendo ser contrária a interesses comerciais – pôde caracterizar uma espécie de controle ao que eu chamo de “totalitarismo de mercado”, que nada mais é do que a ação predatória e colonizadora do dinheiro. Nada contra o lucro, desde que a cidadania não tenha que arcar com os prejuízos.

O que o senhor gostaria de ter concretizado e que não foi possível?
Como eu disse, tudo o que foi descrito como ação e previsto em orçamento, felizmente conseguimos realizar. Mas é claro que ficaram muitas idéias e propostas que recebemos de diferentes parceiros e que não consegui sequer organizar como projetos. Porém, várias delas ficaram como patrimônio do Dejus e já estão sendo trabalhadas pela nova direção.
Em especial, gostaria muito de ter podido discutir a formação de um Conselho ou Comitê para a Classificação Indicativa, com participação paritária da sociedade civil, tal como proposto pelo Conselho Federal da OAB.

Qual conselho o senhor daria para o novo diretor do Dejus e toda equipe que ficou?
Sem falsa modéstia, não tenho ainda experiência suficiente para dar conselhos. Contudo, todas as sugestões, dicas e palpites que julgava relevantes pude oferecer ao dr. Davi Pires e a parte da equipe nos últimos meses. Muito embora, o essencial todos já soubessem: só há direito enquanto houver democracia e, portanto, só pode haver política pública de classificação enquanto houver ampla e irrestrita participação social.

No contexto da classificação indicativa, o Brasil de hoje é um país que protege e respeita os direitos das crianças e dos adolescentes?
Mesmo considerando que a proteção e o respeito dependem tanto da atuação do Estado (Ministério da Justiça, Ministério das Comunicações, Ministério Público e Judiciário) quanto da atuação das emissoras, que são concessionárias de um serviço público, pode-se afirmar que sim. A classificação indicativa brasileira é um instrumento eficaz de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Porém, é bom lembrar que a resposta é positiva apenas porque a sociedade assim o exigiu

A explosão da mídia alternativa

CartaCapital acompanhou o I Fórum de Mídia Livre, no último fim de semana (14 e 15 de junho), e entrevistou Ivana Bentes, integrante do comitê organizador e coordenadora da Escola de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde aconteceu o evento. No fórum, que reuniu cerca de 300 pessoas, foram discutidas medidas para a democratização da comunicação e o fortalecimento dos veículos alternativos. As metas aprovadas neste primeiro encontro ainda engatinham, mas criam uma base para a realização de futuras discussões. Ivana Bentes, colunista do site de CartaCapital, fala sobre a situação da mídia no Brasil e avalia os resultados do Fórum.

Qual era a situação da mídia há 14 anos, quando CartaCapital foi lançada?
Nessa época, não havia a menor chance de se construir um outro discurso, como aconteceu no segundo mandato de Lula. Na eleição de Fernando Henrique, não havia a internet, o Youtube e os sistemas de busca não hierarquizados, como o Google. Era um quadro bastante desolador. A pauta era negativa e reativa.

E hoje?
Hoje os movimentos de mídia têm pautas positivas, propositivas, para além dessa pauta clássica histórica em relação aos monopólios de comunicação, a essa centralidade dos meios. Hoje discutimos democracia participativa, ligada à emergência da possibilidade de se ter uma democracia online, o voto online e uma descentralização. Estamos num momento de transição de modelo. O modelo do monopólio e de centralização estão em crise.

Que tipo de crise?
Uma crise de várias estruturas tradicionais de centralização das mídias e dos monopólios. A pauta e o contexto mudaram. De 94 para cá, temos mudanças no funcionamento do capitalismo, como a financeirização e os fluxos de capitais. O capitalismo está globalizado e em rede, mas os movimentos sociais também, as lutas hoje são globais e potencializadas pelas redes colaborativas, uma mudança que empondera os movimentos sociais, muda as formas de se fazer política, muda os discursos e traz um novo uso para as novas tecnologias.

Quais as razões para a crise dos monopólios?
A queda da venda dos jornais e revistas é um sintoma de crise das mídias clássicas. Sem dúvida, a internet divide espaço com a mídia impressa, que é cara e fordista. Ao mesmo tempo, as próprias mídias corporativas incorporaram as novas mídias, como os blogs e o eu-repórter. A própria audiência da televisão foi pulverizada. Hoje é a metade da de 94. A TV perdeu audiência em seus principais programas, como as novelas e os telejornais. Isso é uma constatação de que essa multiplicidade de veículos de comunicação deslocaram o poder de fogo, inclusive da mídia de massa. Esse deslocamento começa a se fazer sentir. O horizonte de autonomia, liberdade, barateamento das novas mídias produz essa crise.

O que significa esse deslocamento?
O telespectador vai encontrar na internet o seu veículo de produção de mídia, onde ele não é só consumidor. Passa a ser o que chamamos de "prossumidor", ou seja, o consumidor que produz informação. A possibilidade da sociedade se apropriar dos meios de comunicação é uma mudança enorme. O conceito de público e a idéia de comum não existiam no Brasil. Existia a idéia de TV Pública confundida com estatal. Começamos, de maneira sistemática e reiterada, a discutir o que é público. O acesso à rede se tornou condição de cidadania. As pessoas começam a reivindicar um canal de televisão, pois o mais importante para eles não é mais aparecer na tela, mas ter um canal, uma rádio ou um provedor na internet grátis. Isso me parece uma mudança muito importante.

Por quê?
O monopólio das telecomunicações passa a ser pensado numa vertente radical. Produzir mídia passa a ser visto como uma questão de política pública. Essa mentalidade não existia no Brasil. As pessoas discutiam qual era a tarifa de telefone mais barata. Hoje a discussão está em outro patamar. A questão hoje é: "não vai ter telefonia pública nesse país?". Se as pessoas tiverem acesso à tecnologias, se tornam mais autônomas, livres e produtivas, inclusive para o mercado.

A mídia dita "alternativa" amadureceu de lá para cá?
Ela explodiu. Houve uma mudança muito grande. Saiu desse discurso alternativo e independente. Quando falamos em "livre", falamos da liberdade de expressão e da autonomia de sustentabilidade. Sabemos que a liberdade é um horizonte, mas ela amadureceu ao incorporar parcerias com o mercado e com o público. A mídia livre vai depender, sim, de investimento do Estado, organização social e empreendimento privado. O sistema é híbrido, por isso não podemos demonizar o mercado ou uma emissora. Trata-se de discutir princípios novos, que não a do dualismo e das velhas oposições.

O que achou do Fórum?
Foi muito bom. Para um primeiro encontro, superou as expectativas. O mais interessante foi a heterogeneidade dos participantes. Essa diversidade aumenta as chances de se produzir algo novo. Eu ficaria apreensiva se existisse no Fórum um tipo de discurso dominante. Apesar das divergências, convergimos na idéia da necessidade de se criar conceitos novos, com tecnologia nova. A garotada deu um banho no sentido de aporte de experiência, colaboração, descentralização, horizontalidade e autonomia para além da mera reivindicação do Estado provedor e da demonização do mercado. É muito interessante ver a garotada da música conversando com o militante da década de 60 que enfrentou lutas históricas.

Quais foram os resultados práticos do Fórum?
Entre as metas estão fóruns regionais, um Fórum de Mídia Livre dentro do pré-Fórum Social Mundial, em 2009, e um II Fórum Nacional de Mídia Livre. No documento, que possui questões objetivas e de princípio, há uma proposta de estrutura de funcionamento horizontal e descentralizada com representantes estaduais.

“A imprensa não pode ficar imune a críticas”

Casado com a psicóloga clínica Ivanisa Titelroit, pai de três filhos, vai completar 60 anos em outubro. Quarenta anos atrás, ele iniciava sua militância política como presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em setembro de 1969, já na clandestinidade, integrou o grupo formado por militantes da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que seqüestrou o embaixador americano Charles Elbrick para obrigar o governo militar a soltar 15 presos políticos.

Exilado primeiro em Cuba, onde fez treinamento de guerrilha rural, de lá foi para o Chile e, depois, voltou para o Brasil, vivendo clandestinamente em São Paulo. No início de 1974, quando vários companheiros seus foram presos, partiu para novo exílio, desta vez na França, onde aproveitou para se formar na Ecole de Hautes Études em Sciences Sociales, da Universidade de Paris.

Passou boa parte da sua carreira de jornalista no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”, no qual chegou a diretor da sucursal de Brasília. Ganhou fama como comentarista político da TV Globo – também ocupando o cargo de diretor da sucursal. Após sua saída, que foi bastante traumática para ele, teve uma breve passagem pela TV Bandeirantes e pelo iG, de onde saiu para trabalhar no governo.

Apesar desta vida, que não pode ser chamada de monótona, Franklin Martins tem observado o mundo, do alto dos seus dois metros de altura, com certa compreensão. E confessa que tem acordado com o “espírito de flor de laranjeira”, mesmo sabendo que uma jornada de trabalho, nunca inferior a 13 horas por dia, espera por ele.

Como é trocar a carreira de jornalista por um cargo de ministro no governo e passar a trabalhar do outro lado do balcão? O que mudou na sua percepção do Brasil real, para o bem ou para o mal?
A primeira coisa que mudou é que eu ganho muito menos do que eu ganhava antes. Muito, muito menos. Trabalho mais, se é que era possível, porque eu já trabalhava muito. Trabalho em média 13 horas por dia. Eu entro às 8h30 e saio às 21h30 e, às vezes, ainda tenho um jantar de trabalho. E o estresse é muito maior. A grande diferença que existe, entre um jornalista e alguém que está na minha função, é que o jornalista só precisa falar ou escrever, não precisa fazer nada que vá muito além disso. Evidentemente que ele procura fazer bem o seu trabalho, mas eu tenho que falar: aqui você tem que colher os resultados. Apesar disso, tem sido uma experiência extraordinária, riquíssima, eu estou aprendendo muita coisa, vendo muita coisa. Isso é muito interessante e, às vezes, você ajuda a fazer com que as coisas aconteçam.

Por exemplo…
Talvez a coisa mais gratificante que eu tenha ajudado, embora não tenha tido um papel decisivo, foi o processo de construção do projeto banda larga nas escolas, que vai colocar, até 2010, acesso de banda larga em 55 mil escolas públicas. São todas as escolas públicas urbanas do país, atingindo 37 milhões de jovens adolescentes. Uma coisa extraordinária, a custo zero para o governo, com duração de 18 anos. Foi um processo complexo de negociação com as telefônicas fixas, etc. Momentos duros, de tensão…
Muitas vezes você ajuda com que algumas coisas aconteçam; noutras, que elas não aconteçam, mas isso não vou te citar… Você pode evitar que certas coisas sejam feitas. Você tem uma visão do conjunto do País, das possibilidades do governo que são maiores do que se imagina.
Estado é uma coisa muito forte, então, você pode fazer as coisas acontecerem. E há também as limitações da máquina pública, que acredito serem maiores do que se imagina. Apesar de tudo, é uma experiência importante.
Eu vim para cá me propondo uma tarefa. A minha avaliação é que as relações entre o governo e boa parte da imprensa estavam absolutamente intoxicadas. Eu achava que poderia contribuir para desintoxicar essas relações, a meu ver, cruciais para o País. Estas relações melhoraram. Nem tanto por mérito meu. As circunstâncias políticas do País favoreceram este processo. Hoje estas relações com a imprensa são mais fluidas, mais civilizadas, mais rotineiras, têm um caráter menos dramático.
A relação entre governo e imprensa deve ter característica de atividade cotidiana. É como escovar os dentes, amarrar os sapatos, tomar banho. São coisas que você tem que fazer porque são parte da comunicação do governo com a sociedade. Não é o único canal.
É claro que existe a publicidade, temos as pesquisas de opinião, as campanhas políticas, os eventos públicos, os comícios, mas a relação com a imprensa é a mais orgânica que existe com todas as suas contradições. Então era fundamental que ela passasse por um processo de desintoxicação. As relações são tensas mesmo e acho isso normal. Por definição, ela deve ser de tensão, de cobrança, não é uma coisa para ser um passeio pelo Nirvana. Embora nós tenhamos casos no Brasil recente onde as relações do governo com a imprensa eram um passeio pelo Nirvana. Mas aí cabe à imprensa refletir sobre isso. O importante é que dentro dessa tensão sejamos profissionais. O que caracteriza o profissionalismo? O respeito pela sociedade, respeito às divergências, entender que as pessoas precisam de uma informação mais qualificada possível para tomar suas decisões, formular suas opiniões. Da parte do governo, o princípio básico é garantir a liberdade de imprensa.

Você está satisfeito com o seu trabalho?
Eu estou satisfeito com o progresso que o governo fez e com os progressos da relação entre governo e imprensa experimentados nesse período. Acredito que eu tenha contribuído com isso.

Como é trabalhar tendo como chefe o presidente da República? O senhor chega a sentir saudade dos seus antigos chefes e da vida nas redações?
Acho que são coisas diferentes. Evidentemente, tenho saudades dos meus colegas das redações porque hoje não tenho muito tempo para ficar com eles. Jogar conversa fora em redação é uma coisa muito agradável. Falar mal de jornalista. O esporte preferido de jornalista é falar mal de jornalista e do governo, que é o esporte preferido de todo mundo. Não há nisso nenhuma anomalia. O dos engenheiros é falar mal dos engenheiros. Dos botânicos, é falar mal dos botânicos; dos artistas, falar dos artistas. A gente fala de quem a gente conhece mais. Eu tenho saudade da redação.
A minha relação com o presidente é boa. Eu nunca tive maior intimidade com o Lula. Talvez, o mesmo tipo de intimidade que repórteres com 20 ou 30 anos de profissão tinham com o presidente. Eu o entrevistei várias vezes, conversei bastante com ele, mas não tive intimidade. Eu acho que o Lula é uma pessoa muito fácil de trabalhar: ele fala o que pensa, ele é leve. Eu acho que ele possui hoje em dia uma percepção muito profissional sobre o trabalho da imprensa, do papel que a imprensa joga e de qual deve ser o comportamento dele. E isso facilita muito. Minha relação de trabalho com o presidente é positiva e, mesmo pessoalmente, é muito boa, tranqüila, seguramente melhor do que com os outros chefes que tive.

Eu levava muitas broncas. Você costuma levar broncas?
Não. Talvez o presidente tenha mudado. Nem sempre concordamos na apreciação dos problemas, e aí prevalece a opinião dele, é claro. De modo geral, as divergências são muito pequenas. Trabalhar com ele é leve. As broncas foram no seu período.

O presidente Lula faz críticas quase diárias ao comportamento da imprensa. Isso ajuda ou atrapalha o trabalho do ministro?
Não sei se atrapalha o trabalho do ministro. Acho que ajuda o trabalho da imprensa. A imprensa deve gozar de absoluta liberdade para noticiar o que quiser, dar opinião sobre o que quiser. Isso é básico na democracia. Não existe meia liberdade de imprensa. Existe liberdade de imprensa e ponto. Agora, a imprensa não está imune às críticas. Ao contrário, para fazer bem o seu trabalho ela deve ser criticada. Aliás, como qualquer um de nós. Ao exercer o meu trabalho de pai, eu devo poder ser criticado pelos meus filhos; para exercer o meu trabalho de jornalista, eu devo ser criticado pelos meus leitores. Eu acho que ajuda a imprensa ser criticada. Uma imprensa que não é criticada é uma imprensa que não convive bem com a liberdade dos outros de darem opinião.
Não é o caso da nossa imprensa, evidentemente. Acho normal que, se o presidente tem uma critica a fazer, ele exprima essa opinião de modo educado e razoável. Vamos ser claros: a imprensa, como instituição, é um espaço de disputa política. Quem não entender isso não entende o papel da imprensa dentro de uma sociedade moderna, democrática e de massas. Então, é normal que o presidente, ou mesmo a oposição, ou qualquer pessoa que participa da disputa política, possam criticar, fazer avaliações do trabalho dos outros da mesma forma.
A imprensa pode fazer o trabalho de avaliação do trabalho do presidente, mas o presidente ou o líder da oposição pode fazer isso também. Em minha opinião, o maior crítico do trabalho da imprensa não é o presidente da República, não é o líder da oposição, mas o leitor do jornal, o telespectador, o ouvinte que, ao contrário do que muita gente pensa no Brasil, é perfeitamente capaz de formular juízos e de fazer avaliações do trabalho da imprensa.
Ele sabe avaliar a imprensa, sabe a importância da liberdade da imprensa, aprendeu isso na sua experiência. Ao mesmo tempo, ele sabe se tem sido bem atendido ou mal atendido naquilo que é vital para ele, que é, basicamente, a notícia. Quer ter notícias confiáveis, fidedignas e, ao mesmo tempo, opiniões que contribuam para o debate público qualificado, concorde ou não com aquelas opiniões. Desde que estas opiniões não estejam desqualificando às outras, entendendo que a divergência faz parte do processo, com tolerância para o contraditório, não tentando esmagar quem pensa diferente.
Acho que o leitor, o telespectador e o ouvinte, no Brasil, formam a sua opinião e sabem distinguir o que é notícia daquilo que é uma invencionice ou daquilo que é um erro normal no trabalho da imprensa. E a imprensa erra muito. Isso é normal e o leitor tem a visão disso, ele sabe diferenciar um erro normal de um erro de má fé. O que é divergência e o que é campanha. O que é uma coisa que é parte de um ambiente político e o que na verdade está tentando conduzir o leitor ou o telespectador, puxando o leitor pelo nariz de um lado pro outro. Quando acontece, o leitor percebe isso. O leitor é muito crítico. Os órgãos de imprensa que cometem esses erros, o leitor cobra. É de forma implacável.

Até algum tempo atrás, o Brasil tinha meia dúzia de formadores de opinião. Hoje, são milhares. Quem forma os formadores de opinião? De que forma é formada a opinião dos formadores de opinião?
Acho que isso se multiplicou muito. Estamos assistindo a um processo extremamente importante que tem a ver com as mudanças que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos. Acho que aquela época da teoria da “pedra no lago” acabou. Você joga uma pedra, ela cai na classe média e nos chamados formadores de opinião, e vai provocando ondas concêntricas que vão até a margem. Você tinha um centro formador ativo e uma sociedade passiva que recebe aquilo. Isso de certa forma existiu no Brasil até algum tempo atrás e é fruto de uma sociedade que se dividia entre um centro ativo e uma periferia passiva.
Eu acho que isso mudou no Brasil, e mudou porque o Brasil está mudando. Você passou a ter a emergência da classe C, e os números mostram que isso é uma coisa fortíssima, é a principal classe em termos numéricos no país, que não se reconhece exatamente na classe A/B, na classe média. Ela até tem aspirações de chegar lá, mas ela sabe que tem trajetória diferente, interesses diferentes, e está em um momento diferente nesse percurso, e que olha e diz: “Eu sei pensar com a minha própria cabeça, eu sei defender meus interesses”.
Por exemplo, no processo da crise política de 2005, os formadores clássicos de opinião da classe A/B davam sua opinião sobre o governo Lula e isso chegava na classe C e voltava. Batia e voltava. Isso é sinal que o Brasil está ficando mais complexo, mais heterogêneo, mais sofisticado e mais moderno. Porque isso é característica da sociedade moderna. Nos Estados Unidos, não existe essa coisa de centro formador de opinião e a massa amorfa. Na Inglaterra, na França, isso também não existe. Em alguns outros países, ainda existe. Mas acho que mudamos de patamar e isso tem impacto na política, na imprensa, na televisão. O crescimento de outros canais de televisão, em comparação com a TV Globo, tem um pouco a ver com isso.
A Globo fez um modelo altamente bem-sucedido que falava para a classe A e a Z ao mesmo tempo. E fez isso durante 40 anos. Hoje em dia, está sendo obrigada a fazer flexões e se segmentar porque a Record entra aqui e outra entra ali com um programa mais popular que dá audiência.

Que mudanças você nota na imprensa brasileira desde que assumiu o cargo?
Na imprensa escrita, por exemplo, os jornalões estão com a circulação estagnada há vários anos. A venda dos grandes jornais e revistas de hoje e a de três anos atrás é mais ou menos a mesma coisa. Aí você pega os jornais populares, que são muitas vezes da mesma empresa dos jornalões, mas têm um crescimento espetacular. São jornais que custam um real ou menos até, com muitos serviços, vendidos nas ruas e sem assinaturas. São jornais mais vibrantes, que não estão preocupados em fazer a cabeça das pessoas, mas só em contar o que está acontecendo.
Dos 15 principais jornais, em termos de circulação no País, sete são populares. O jornal de maior circulação hoje no Brasil é um jornal popular, o Super Notícias, de Belo Horizonte. Tem uma vendagem em bancas de 300 e poucos mil exemplares. É um fenômeno que começa a se estender para todas as capitais.
E você tem a internet. Não acho que vá acabar com os jornais de papel. O homem sempre vai necessitar do papel que os jornais cumprem – que é alguém, em um oceano de notícias, coletar as informações, hierarquizar, editar e te entregar pronto: isso é importante. O papel do editor não é botar matéria na página, é jogar matéria sem importância fora. No fundo, é dizer o que não é tão importante e o que é muito importante. Selecionar, editar. Isso é o papel do jornal.
A internet, por sua vez, torna mais viva a crítica sobre os jornais. Os jornais saem do limbo. Os jornais não podem mais ficar como se fossem os donos absolutos da notícia. Os leitores estão criticando e trocando informações sobre eles, dizendo “isso aqui não foi bom”, “isso aqui está errado”. Às vezes, isso é feito de uma maneira muito selvagem, meio agressiva, o que é muito ruim. Deveríamos encontrar mecanismos para tornar isso mais civilizado. Ao mesmo tempo, significa que existe um debate e isso funciona como um fiscal sobre jornais, revistas e televisão. Força a grande mídia a ser mais humilde, o que muitas vezes é positivo.

Sob tiroteio cerrado, desde que seu nome surgiu como candidata à sucessão do presidente Lula, até onde a ministra Dilma agüenta? Foi prematuro o lançamento de seu nome? O governo já pensaria em alternativas? Como está a candidatura do governo à sucessão do presidente Lula?
Eu não acho que a Dilma esteja lançada. Acho que é um nome que aos poucos vai emergindo como possibilidade. Eu nunca vi um comentário do Lula em público dizendo: a minha candidata é a Dilma. O que eu vi nos jornais hoje é que houve um almoço e ele teria falado. O que acontece hoje é que você tem um governo muito bem avaliado, que não tem um candidato natural. Eu acho que hoje, que já diminuíram aquelas especulações meio sem sentido sobre terceiro mandato, sempre repelidas pelo Lula, mas que boa parte da imprensa e dos analistas políticos consideravam que era apenas um jogo de cena, que isso seria uma possibilidade. Eu digo, revelo que não vejo a menor possibilidade depois de conversas que tive com o presidente.
Um governo muito bem avaliado que não tem um candidato natural que haverá de ser construído durante esse período. Aí existem nomes que começam a despontar. O nome da Dilma é um deles. Eu acho que dentro do PT existem nomes possíveis e é normal que o PT aspire a ter candidato. Acho que o nome do Patrus é um nome possível, o nome do Jacques Wagner é um nome possível, o nome do Tarso Genro é um nome possível, o nome do Fernando Haddad. Todos esses nomes precisam se viabilizar. Eu acho que, até o momento, o nome da Dilma é que tem ganhado mais consistência. Ela parece assim, vamos dizer, como a primeira da fila.

E fora do PT o governo poderia apoiar outros nomes?
Temos outros nomes também no campo do governo. O Ciro é um candidato natural. Embora não sendo do principal partido da base de sustentação do governo, já foi candidato duas vezes, já foi ministro, o Lula tem enorme apreço por ele e é uma pessoa com qualificação. O Sérgio Cabral é um nome possível, se o PMDB vier a construir as condições para lançar um nome. Tudo isso são possibilidades.

E como ela agüenta essa pancadaria que já dura meses?
Essa pancadaria tem a ver com o fato, eu não tenho muita dúvida, dos adversários da oposição perceberem que ela é a primeira da fila no PT, que ela reúne qualidade políticas e pessoais para vir a se viabilizar. A Dilma tem uma relação muito forte com o Lula e o Lula será um grande eleitor. Neste nosso estilo de fazer política no Brasil, as pessoas acham que desqualificar o adversário é parte do processo para se credenciar para alguma coisa. É algo que tem a ver com a velha política. O Brasil é mais moderno do que isso e a Dilma já passou por coisas na vida muito difíceis. Foi presa, torturada, sobreviveu à prisão e à tortura e depois reconstruiu a sua vida. Possui condições para agüentar o tranco. Agora, ninguém é atacado de forma injusta, ninguém passa por processo destrutivo desse tipo sem se ferir e carregar cicatrizes depois. Agora, o que se vai fazer? Ceder àquilo que no fundo é um certo tipo de chantagem política, ou seja, “não faça política, não aspire a determinados cargos, se não nós o liquidamos”? Essa tentativa de destruição de reputações é uma forma totalmente abjeta de se fazer política.

Com a democracia consolidada e um crescimento econômico como há muito tempo não havia, acompanhado de estabilidade com distribuição de renda, qual será o principal legado do governo Lula e qual deve ser a prioridade em um projeto para o Brasil a ser defendido pelo próximo presidente? O que fica do governo Lula e qual deve ser a proposta do próximo?
O principal legado do governo Lula é que a questão da inclusão social entrou definitivamente na agenda do País. E isso não é uma coisa pequena em um País extremamente injusto e excludente. Eu acho que o Brasil era um País pretensamente arrumado para 40, 50 milhões de pessoas. Como ele tem quase 200 milhões, quiseram fazer com que ele fosse um País desarrumado na verdade. Acho que o grande legado do Lula é criar um processo para que o País se arrume para 200 milhões de pessoas. Isso não se faz de estalo, imediatamente, mas você tem uma perspectiva de que o País só se arruma quando se arrumar para todo mundo. Esse processo a meu ver não tem volta. Porque as pessoas começaram a experimentar mudanças, a melhorar de vida. Eu não sei quem será o próximo presidente, mas ele não conseguirá, seja qual for o partido dele, fazer com que a questão da inclusão social deixe de ser prioridade.
Existe um segundo legado do governo Lula extremamente importante: o País voltou a confiar em si mesmo. Acho isso de enorme importância. Se o País continuasse a ter o complexo de vira-lata – para usar a expressão do Nelson Rodrigues -, que ele tinha, ele não chegaria ao atual patamar. Um País só chega a algum lugar se ele aprende a confiar em si mesmo e entende que é capaz de resolver os problemas que estão em seu caminho. Isso vale para qualquer pessoa, mas vale para o País também. Acho que isso é uma coisa positiva. Acho que o Brasil voltou a gostar de ser brasileiro.

Qual será a marca deste governo no plano internacional, que mudanças você tem observado nas viagens que faz com o presidente ao exterior?
O Brasil tem uma inserção nova no mundo. É uma inserção que vem se dando de forma paulatina, suave, não arrogante. Mas o Brasil tem um peso maior nas discussões do mundo e tem um peso maior na África e na América Latina. O Brasil está com um peso maior para organizar o Sul e isso é algo que terá impacto. Estamos mudando de patamar e isso é o desafio para os próximos governantes, ou seja, não só para o próximo presidente. Para os próximos 15, 20 anos, é preciso ter projeto para esta mudança, quer dizer, para um País de 200 milhões e não de 40. Para um País que gosta de si mesmo e que não quer ser colonizado e não quer mandar em ninguém, mas que tem um peso próprio e acredita na sua capacidade de se projetar em função disso. E é um País que terá um peso próprio na economia mundial. Isso vale na agricultura, na indústria, no serviço, na energia. Terá um peso muito maior que hoje. As tarefas dos últimos 25 anos foram tarefas de arrumar a casa.
Eu sempre digo o seguinte: o Brasil tem cinco pontos de agenda que são defendidos por 85% da população e das forças políticas. Primeiro: democracia. Custou muito para conquistar. Hoje, o Brasil voltou a ser um País democrático. Segundo: inflação. Ter moeda, voltar a ter moeda. Terceiro: responsabilidade fiscal. Quarto: crescimento econômico. Isso tudo é muito bom, mas a gente precisa crescer. E quinto: inclusão social. Essa agenda, hoje em dia, não tem como fugir. Com base nela, temos que resolver como é a educação de um País que não será periférico, mas com papel relevante no mundo. Como serão as Forças Armadas, que não podem mais ficar no acostamento, como nos últimos 25 anos. Elas têm um papel institucional importantíssimo; papel político, a meu ver, zero. E que precisam estar aí preparadas para defender o País, ser capazes de ter uma capacidade de dissuasão que não permitam aventuras contra o País no futuro.
A gente fala em pré-sal. Evidente que o pré-sal, colocando o Brasil entre os maiores produtores de petróleo no mundo, tem enormes oportunidades, mas também tem riscos. Basta ver as disputas e as guerras pelas áreas que concentram essa energia. Precisamos ter uma política de ciência e tecnologia que seja capaz de fazer com que o Brasil acompanhe esta mudança que estamos observando. Por exemplo, o petróleo: nós não precisamos ser um País produtor e exportador como tantos países do mundo. O Brasil não precisa ser um País de Sheiks… O Brasil precisa ter um modelo como o da Noruega ou dos Estados Unidos que usaram o petróleo para se alavancar economicamente, sofisticar-se, e não para ser um comprador de coisas fora trocadas por petróleo. Precisamos desenvolver a ciência e a tecnologia. O Brasil mudou de patamar. Ele não vai ser um País médio, um País do futuro. Ele será um País de 200 milhões de habitantes com um peso muito importante no mundo e tem que se preparar para isso.

Com essa força toda que está mostrando para defender o governo e o Brasil até parece que você é o candidato.
Não sou candidato a nada. Sou candidato a voltar para casa.

Sai a CPI dos Cartões, entra o caso Varig. De crise em crise, a aprovação do presidente sobe nas pesquisas. Entre uma e outra, a imprensa volta falar no terceiro mandato. Como é viver nessa gangorra com boas notícias na economia e sempre com o fim do mundo sendo anunciado para amanhã?
Acho que talvez a coisa mais dramática que estejamos assistindo no Brasil é a incapacidade, revelada pelo menos até o momento, e espero que isso mude, da oposição e de alguns setores com influência na mídia de botar o pé no chão e olhar para a realidade. Por que nós temos essa sucessão de falsos escândalos? Mês de janeiro, eu olhei e pensei: “vou ter um pouco de tranqüilidade porque o Congresso está de recesso”. Vã ilusão. Veio um negócio que era um apagão iminente de energia. O Brasil ia ter uma crise de energia. Ninguém mais fala nisso, os reservatórios estão cheios. A febre amarela tomaria conta do País. A coisa da imprensa foi tamanha que teve gente morrendo por tomar mais de uma dose da vacina, por reação. Por quê? Porque fizeram um sensacionalismo em torno daquilo.
Depois, veio o negócio dos cartões corporativos. Parecia que era um escândalo monumental. Sempre disse que o cartão corporativo era um escândalo de titica. Porque ele era coisa da miudeza. A CPI era CPI da miudeza porque, por definição, cartão corporativo e conta tipo B são para pequenos gastos. Ninguém ia fazer caixa de campanha, desviar dinheiro para ficar rico. Podia ter uma determinada irregularidade de um coordenador de despesa, podia ter uma despesa feita que não tivesse cobertura legal, erros contábeis. Aliás, como qualquer grande empresa tem nas pequenas despesas, qualquer um sabe disso. Quem já dirigiu uma Redação sabe que na prestação de contas, nas notas de viagem, há de tudo, aceitam tudo. Nesse sentido os cartões corporativos são um enorme avanço sobre as contas tipo B que aceitam tudo. Parecia que o mundo vinha abaixo e não tinha nada acontecendo. Aí veio um escândalo atrás do outro.

E esse mais recente da Varig preocupa o governo?
Isso é uma brincadeira. As decisões foram todas tomadas pelo juiz da 8ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro e confirmadas pelo STJ depois. Não tem ato do poder executivo fazendo aquilo. Eu não sei por que essa senhora, doutora Denise Abreu, fez isso. O que me espanta é que a imprensa dê o tipo de tratamento que deu às declarações dela. Até poucas semanas atrás, eu só tinha visto foto da doutora Denise Abreu de charuto na boca. De repente, vejo a doutora Denise posando e escolhendo qual o lado do rosto melhor para fotografar. Tudo bem, mas o que tem de concreto? Não tem nada nas denúncias.
Sinceramente, acho que os filtros da imprensa caíram muito. Tudo bem que dessem a entrevista, ela está fazendo acusações, que dêem as acusações, mas vamos atrás para ver o que existe de real, de possível. Aí se esbarraria em uma coisa que é a seguinte: as decisões são tomadas pelo juiz. Hoje [quinta-feira passada] mesmo tem uma entrevista dele longa no “O Globo”, mais curta no “O Estado de S. Paulo”, e ela já havia dito isso antes, e ninguém tinha ido atrás, desde o primeiro dia. “As decisões foram tomadas por mim e eu não sofri pressão”, disse ele. Então, sinceramente, esses são assuntos para se trazer à tona, fazer essa ebulição, esse burburinho e que não se sustentam. Por quê?

A que você atribui esta sucessão de escândalos sem fim desde a grande crise política de 2005?
Eu acho que a oposição tem uma enorme dificuldade para travar o debate político, que precisa ser travado por uma razão simples: a oposição tem vergonha de defender o que ela pensa. Ela sabe que o que ela pensa não tem respaldo da maioria do País. Um exemplo disso foi a campanha do Alckmin. Ele era a favor das privatizações e foi posar com um jaleco, que parecia macacão de piloto de Fórmula-1, cheio de adesivos de Banco do Brasil e não sei mais o quê. A oposição era contra o Bolsa-Família, achava que era Bolsa-Esmola e não teve coragem de afirmar isso claramente na campanha. Porque, se afirmar, se defender seus pontos de vista, perde a eleição. Por outro lado, ela se sente mal em defender os pontos de vista com os quais ela não concorda. Então, o que ela faz? Dribla a disputa em torno das questões essenciais para o País e parte para uma questão periférica.
Isso não é um problema novo no Brasil. As décadas de 50 e 60 são marcadas por esta política. A UDN, em especial o Carlos Lacerda, fez isso o tempo todo. Já que não conseguiam ganhar as eleições, faziam uma campanha com um moralismo exacerbado, como se fossem catões de um lado e, do outro lado, um bando de ladrões. Botavam a questão moral com uma ênfase que enraivecia suas bases políticas, a ponto de se tornarem prisioneiros delas, e não ganhavam a eleição. Só que, naquela época…( toc toc toc, bate na madeira], batiam à porta dos quartéis. Bateram em 54, no suicídio de Getúlio. Bateram em 55 para negar a posse a JK. Bateram em 61 para negar a posse a Jango. E olha que eu pulei Aragarças, Jacareacanga, episódios menores. Eu estou só falando de coisas grandes até que, em 1964, conseguiram. Naquela época, batiam na porta dos quartéis e iam pedir ajuda dos Estados Unidos para interromper o processo democrático porque sabiam que não ganhariam a eleição.
Hoje em dia, no Brasil, não tem mais isso. As Forças Armadas não entrariam mais numa aventura dessas e o ambiente internacional não permitira isso. Então elas ficam fazendo uma coisa que não vai dar em nada. Porque não conseguem defender o que pensam. Acho que a cada escândalo desses se produz um processo muito desagradável para o País. Um mal-estar, um clima ruim que para o governo é ruim. O governo é obrigado a gastar energia para estar respondendo a coisas menores e coisas que não tem nem pé nem cabeça, como no caso da Varig agora. Quem é o maior prejudicado com isso é a oposição. Os caras falaram em cartão corporativo. Perderam quatro meses e o fato é que as eleições de 2010 estão se aproximando. A areia da ampulheta está caindo e a oposição continua sem discurso, sem saber o que fazer, sem saber o que propõe, sem saber como disputa o eleitorado. E com uma agravante: o Lula teve 62% de votos nas duas eleições e, segundo pesquisas, ele teria hoje uma aprovação maior do que isso. Mas fiquemos no 62%. A oposição, a menos que o governo viva um processo político de um desgaste monumental, uma crise na economia – e eu não vejo nenhum cenário apontando para isso – como é que a oposição pode aspirar a conquistar a maioria do eleitorado, fazendo com que parte do eleitorado que votou no Lula se desloque dessa posição e passe a apoiar as bandeiras da oposição.

Quais seriam estas bandeiras?
A primeira providência: a oposição precisa tratar os apoiadores do Lula com respeito. “Vocês votaram no Lula porque receberam a esmola do Bolsa-Família, porque vocês foram corrompidos, é um novo coronelismo”. Quando entra com o discurso “esse sujeito é um ladrão”, “esse governo é um governo de patifes”, ela não estabelece pontos de contato para ser ouvida. O apoiador do Lula vai dizer: “é a oposição que não se conforma de não mandar mais no País”. Então ela não consegue dialogar, conversar com a fatia de eleitorado do Lula, e assim não consegue sequer promover um inicio de deslocamento do lado de lá para poder ganhar.
Por isso, a oposição não sabe o que dizer, não tem programa, não tem acordo e agride ou pelo menos trata de forma pejorativa o eleitor do outro lado. Eu não entendo onde ela quer chegar. Eu não falo isso com jubilo, falo isso chateado. Seria ótimo ter uma oposição forte no País. Mas uma oposição forte precisa ser uma oposição séria, uma oposição que pega os erros do governo, aponta, critica e força o governo a ser melhor, a se aproximar dos pontos de vista dela. Ela não propõe uma ação política que constrói politicamente para fazer disputa política na sociedade. Para isso, teria que defender o que ela pensa. Ela não pode esconder o que ela pensa e querer com esse artifício introduzir um elemento que é artificial na política hoje. E a população percebe isso.

No início do seu primeiro governo, o presidente Lula fez um apelo à sua equipe: “nós só não podemos errar na política”. A imprensa e a oposição temiam o caos na economia. Aconteceu exatamente o contrário: com indicadores favoráveis na economia e nas áreas sociais, é na política que se concentram as maiores dificuldades do governo, mesmo tendo maioria nas duas casas do Congresso. Como o senhor explica essa contradição? Há uma solução à vista?
Eu concordo que, no primeiro mandato do Lula, os principais problemas do governo estavam na política. Embora ele vivesse um momento muito tenso na questão econômica, pelo ajuste que teve que fazer e pela incompreensão que isso gerou na base dele. Do primeiro para o segundo mandato, o governo reequacionou os instrumentos de ação política dele. A relação com a imprensa, que é parte disso, tornou-se mais profissional, embora permaneça com um grau de tensão grande. Mas ela é administrada de forma mais profissional. Acho que a relação com os partidos e o Congresso melhorou. Hoje em dia você tem um Conselho Político, tem 14 partidos na base aliada, o governo entendeu a importância de um partido como o PMDB na sua base e isso dá condições ao governo de um trabalho parlamentar menos tumultuado que o do mandato anterior.

Mas recentemente o governo sofreu uma dura derrota na votação da CPMF.
Na CPMF não me surpreendeu. Nunca achei que o governo tinha os 60% dos votos no Senado. Mas acho normal. Vai ganhar algumas votações, vai perder outras, e isso faz parte do processo político. Acho, no entanto, que essas dificuldades não têm a ver com o governo, têm a ver com o nosso sistema político. Eu continuo com a avaliação que tinha antes de vir para o governo e apenas se consolidou de que o Brasil precisa desesperadamente de uma Reforma Política.

Por que então o governo não toma esta iniciativa?
Porque quem vota a Reforma Política são os políticos. A Reforma Política tem que ser aprovada no Congresso. Em determinadas circunstâncias, ela tem que ser aprovada por 3/5 do Congresso, da Câmara e do Senado duas vezes. Vamos pegar o início desse governo: começou-se a discutir a necessidade da Reforma Política. Apareceram as propostas de voto em lista fechada. Porque daria condição de fortalecer os partidos, embora com o risco de fortalecer excessivamente a burocracia dos partidos. Tenderia em médio prazo a ter um processo de consolidação de alguns partidos e permitiria uma coisa muito importante, o financiamento público. Porque aí você financiaria o partido, e não os candidatos. Se você financia individualmente o candidato, daqui a pouco, vira profissão. A pessoa se candidata para receber dinheiro. Começa a discussão e, nesse caso, não se precisaria 3/5, não alteraria a Constituição.
Setores da oposição fazem a seguinte avaliação: isso favorece principalmente o PT. Porque é o partido com identificação com o presidente e como a sigla mais forte isso fortaleceria o PT. “Então nós somos contra”, disse a oposição. O PSDB respondeu o seguinte: só aceito reforma com o voto distrital. Voto distrital precisa reforma da Constituição, precisa dos 3/5. Então, quer dizer: não haverá reforma alguma. Chegamos a um emparedamento nessa questão. O que eu defendo como sistema adequado seria um sistema misto, mais ou menos como o que existe na Alemanha, onde a Câmara é formada com base no voto proporcional. O eleitor vota duas vezes, no distrito e num partido nacionalmente. A Câmara é formada proporcionalmente pelos votos no partido. Uma parte dela é formada pelos distritais e uma parte por lista fechada. Eu acho que é o melhor sistema.

Com uma oposição fraca e sem rumo e uma mídia forte, alguns setores da imprensa e jornalistas acabam assumindo o papel de partidos políticos. Como é lidar no dia-a-dia com essa anomalia institucional?
Com humildade. Eu sei que não está sob meu poder mudar isso. Se existe um determinado jornalista ou órgão de imprensa querendo ir além de suas chinelas, eu não posso evitar isso. O que posso fazer é tratar todos de forma profissional e respeitosa e confiar nos leitores, telespectadores e ouvintes. Eu estou absolutamente convencido que o Brasil não é um País de coiotes, de jacus, que acreditam em qualquer coisa que falam para ele. A população pode se confundir, ser objeto de algum tipo de manipulação, por um período curto, mas em um período histórico mais amplo os fatos aparecem, a verdade aparece. Como no caso da TAM. Nunca vi tanto especialista em grooving como naquela época e hoje em dia as pessoas sabem que não teve problema de grooving, as pessoas sabem que houve uma falha mecânica combinada com uma falha humana.

E como ficou o governo nesta história do caos aéreo?
Isso quer dizer que não houve erros do governo na administração do setor aéreo? Claro que houve, mas isso não quer dizer que aqueles erros provocaram o acidente. A população forma sua avaliação quando consegue debater, discutir, por isso que a democracia é importante. Ela acaba formulando avaliações muito mais equilibradas. Eu sou muito tranqüilo quanto a isso. Às vezes, eu ponho em dúvida essa crença porque você olha e diz: “de novo? Será que nunca aprendem?”. A vida é assim mesmo e vamos em frente.

Nas muitas viagens que o senhor já fez com o presidente Lula pelo Brasil, quais foram as cenas que mais o marcaram e que simbolizam o atual momento vivido pelo País?
Foram duas coisas que me marcaram muito. Elas ocorreram em abril deste ano. A primeira aconteceu no dia em que o presidente foi dar a autorização para o início das obras, assinar a autorização do início das obras nas favelas do Alemão, da Rocinha, de Manguinhos. A descida da favela da Rocinha me deixou arrepiado porque eu sou do Rio, conheço bem a Rocinha. O ato foi no alto da Rocinha, onde tem uma espécie de campo de futebol, uma quadra onde será construído um hospital, as obras já estão avançadas. Na descida pela antiga estrada da Gávea, a população ocupou a rua e formou assim um corredor dos dois lados ao longo de 1,5km, 2km, que é o que tem aquele trecho.
Uma coisa absolutamente espontânea e com uma enorme alegria. E então você via os acenos, ouvia aplausos das pessoas nos pequenos prédios e apartamentos que tem ali. A Rocinha tem muitos sobrados de três andares… As pessoas foram chegando nas janelas, algumas com bandeiras do Brasil. E você sentia o seguinte: havia uma enorme alegria na favela porque ela estava sendo tratada com respeito. Isso para mim foi uma coisa que marcou.
Duas semanas depois, o presidente foi ao Rio Grande do Sul. Na cidade de Rio Grande, visitou as obras do dique seco, que a Petrobras está construindo lá, que vai ser uma fábrica de cascos de navio, de plataformas, etc. E lá que estão construindo a P-53 que está quase finalizada. Ou seja, um local em que a indústria naval hoje em é uma indústria de peso. E ela praticamente não existia antes. A P-53 é uma coisa que impressiona, é do tamanho de um Maracanã. Ela está fundeada junto ao cais e na chegada você tinha ali, provavelmente, uns 5 mil operários. A reação dos trabalhadores foi de uma força, também absolutamente espontânea. Foram gritos de entusiasmo, de alegria, vários dizendo coisas positivas para o Lula. “Lula, você é um operário que chegou lá”, “Você é um como a gente que está aqui”, “A nossa dignidade você restituiu, hoje em dia nós temos emprego”.

“Você é um como a gente”, parece que resume tudo…
É uma coisa fortíssima, pessoas chorando ali e até na comitiva do presidente. Então você sente o seguinte: pessoas que há dois, três anos não tinham emprego, agora acham que está dando certo e confiam que vai dar certo. O clima que existe é o seguinte: o Brasil tem jeito, o Brasil pode ser o que a gente acha que ele deveria ser. As pessoas voltaram a confiar no País e na sua capacidade. E isso não tem preço. Como no anúncio do cartão de crédito: isso não tem preço.

Quais são seus planos para o final do seu trabalho no governo Lula em 31 de dezembro de 2010: voltar para as redações, entrar na carreira política ou pendurar as chuteiras?
Entrar na carreira política não está nos meus planos. Eu não sei o que eu vou fazer. Eu sei o que eu não vou fazer. Eu não vou mais ler jornal ruim. Só vou ler jornal que eu acho que é bom.

Quais?
Aí não posso ir tão longe. Eu quero terminar um trabalho que eu tive de interromper sobre música brasileira que estava quase pronto. De 1902 para cá, tenho as gravações, desde a primeira do Isto é bom.

Há quanto tempo você trabalha nisso?
Pesquiso há sete anos. Eu tenho 600 músicas levantadas desde 1902 para cá. Tenho os capítulos escritos até quase o golpe, até 1964. Precisaria ainda de mais ou menos quatro meses de trabalho, porque a pesquisa, que era o mais importante, falta pouco para terminar. Quando sair do governo, vou fazer isso. Primeiro, porque eu gosto; segundo, acho que fará bem ao País, terceiro, é uma coisa que pode ser uma contribuição para a história da nossa música. O que eu vou fazer depois eu não sei, eu quero dar um tempo para mim. A idéia é que seja um livro e que tenha uma coleção de músicas que está tudo em mp3. Eu não quero fazer uma coisa com 600 músicas, mas algo com 350, 400… Eu tenho uma seleção já feita, o resto eu boto em um site e quem quiser vai lá. A idéia do título seria “A música e a República: 1902 – 2002” porque iria até a primeira eleição do Lula. Depois que eu terminar quero dar um tempo pra mim pra ficar um pouco mais à vontade.

Onde você pretende morar depois que sair do governo?
Há 21 anos estou em Brasília. Eu quero continuar aqui. Eu gosto muito de Brasília.

É raro alguém falar isso.
Em geral, é gente que não mora em Brasília. É quem vem de fora e fica em hotel. Quem mora há muito tempo aqui, gosta de Brasília. Meu ideal de felicidade é comer peixe frito na beira do mar… andar na praia de manhã… pescar… Pescar, não, não gosto de pescar. Não dá.

* Esta entrevista foi originalmente publicada em quatro partes pelo jornalista Ricardo Kotscho, em sua coluna para o Último Segundo.