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“Nas eleições pós-Collor a mídia manteve a centralidade no processo político”

[Título original: "Os jornais estão cada vez mais ideológicos e partidarizados". Por Gilberto Maringoni, Igor Fuser e Maria G. Juvencio Sobrinho, em 7/9/2010.]

 

Venício Artur de Lima é um dos mais agudos críticos do processo de monopolização dos meios de comunicação. A partir da formação em Sociologia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, no início dos anos 1960, Venício especializou-se no exame da mídia e de suas decorrências para a vida política, social e cultural brasileira. Aposentado como professor titular no departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília, esse mineiro nascido em Sabará há 65 anos não teme a polêmica. Sua vida foi impactada pelos acontecimentos que resultaram no golpe de 1964 e no fechamento da democracia a partir dali. "Eu comecei minha trajetória acadêmica com uma participação política estudantil forte, alterando minha percepção da sociedade em todos os sentidos". Ex-militante da Ação Popular, organização da esquerda católica – que teve entre seus dirigentes José Serra, Duarte Pereira, Herbert de Souza (Betinho), Aldo Arantes e Renato Rabelo –, Venício manifestou cedo seu interesse pelos meios de comunicação. Antes de se iniciar na vida acadêmica, trabalhou vários anos como publicitário.

Em 1971, ingressou como professor na UnB. "Fui para lá e comecei a dar aula em comunicação, onde fiquei vinte anos. Lecionei teoria da comunicação, fui chefe do departamento que implantou o programa de mestrado, o terceiro do Brasil, depois da USP e da UFRJ". No final dos anos 1980, tranferiu-se para o departamento de Ciência Política. Mestre, doutor e pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois (EUA), Venício moldou sua visão teórica especialmente pelo estudo da obra de três autores, Raymond Williams (1921–1988), Stuart Hall (1932 – ) e Antonio Gramsci (1891–1937).

Em 1989, coordenou uma pesquisa sobre o papel da mídia nas primeiras eleições presidenciais diretas após a ditadura. "Eu queria saber se a Globo tinha colocado o Fernando Collor para vencer as eleições", diz ele. O resultado foi publicado no Brasil e no exterior. Articulista dos sites Observatório da Imprensa e Carta Maior, Venício é autor de onze livros, entre eles A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007) e Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2001). Em junho último lançou Liberdade de expressão vs. liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia (Publisher Brasil). A seguir, os principais trechos da entrevista com Venício Lima.

 

 

Como o senhor começou a se interessar pela análise da mídia?
Eu estudava sociologia em Belo Horizonte, no início dos anos 1960, depois de ter iniciado engenharia em Ouro Preto. A capital mineira era uma cidade na qual um único grupo de comunicação – o dos Diários Associados – controlava praticamente toda a mídia. Era Estado de Minas, o Diário da Tarde, a Rádio Mineira, a Rádio Guarani, a TV Itacolomi e a TV Alterosa. Um negócio avassalador. Aquilo me impressionou muito e comecei a tentar entender como ocorriam aquelas manifestações que resultaram no golpe de 1964, a exemplo da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que teve ampla repercussão na imprensa. Eu queria entender como as pessoas entravam naquela. Logo depois, consegui um emprego em uma agência de propaganda, porque achava que eu ia estudar psicologia social, propaganda. Foi assim que aconteceu. Essa coisa de uma concentração muito grande da propriedade cruzada dos meios de comunicação lá, na minha cara, teve uma influência danada. Na década de 1970, quando eu fui para Brasília, estávamos vivendo o momento mais duro do regime militar. Havia uma situação surpreendente nessa época. No governo Geisel (1974–1979), o Ministro das Comunicações era Euclides Quandt de Oliveira. Na segunda metade do governo, ele fez uma série de pronunciamentos falando sobre o perigo da televisão, que o governo era o corresponsável por isso. Há um discurso famoso na época, no qual ele classificava a televisão brasileira como uma Hidra criada pelo sistema. Só que, segundo ele, o sistema tinha perdido o controle daquele bicho com sete cabeças e tal. Há uma tendência de se achar que durante o regime militar foi tudo homogêneo. Não foi. Houve um momento, a partir da segunda metade do governo Geisel, no qual o regime claramente se dá conta de que as condições tinham sido criadas para a formação de um grande grupo privado de comunicação no Brasil. É a Rede Globo, que saíra do controle deles e que passou a ter tanta força que às vezes enfrentava o regime. No governo Figueiredo (1979–1985), o Ministro da Comunicação Social Said Farhat prestou um depoimento na Comissão de Comunicações da Câmara, falando que vivíamos uma situação de monopólio. Logo depois, o governo Figueiredo repartiu o espólio da TV Tupi [que havia falido em 1979] para o Grupo Sílvio Santos e para a Manchete.

O senhor montou um grupo de pesquisa para analisar a influência dos meios de comunicação nas eleições de 1989. Como foi isso?
No final da década de 1980, eu me interessei pela relação da mídia com as eleições. Eu tinha uma bolsa do CNPQ e um conjunto de auxiliares de pesquisa trabalhando comigo. Começamos a acompanhar o processo eleitoral de 1989. Os principais postulantes eram Lula, Leonel Brizola e Fernando Collor. Me dei conta de que a campanha eleitoral acontecia fora dos espaços de jornalismo político e alcançava sobretudo na programação de entretenimento, como as novelas… Eu me convenci de que, se não fosse a Globo, o Collor não seria eleito.

Como assim?
Nesse período, comecei a desenvolver um conceito que ficou conhecido como cenário de representação. Eu percebi a construção de um cenário para um candidato, no caso, o Collor, acontecendo muito além da cobertura política dos telejornais. Falo especificamente no caso da televisão, construído nas novelas, nos programas de entretenimento, na presença do candidato em programas partidários que não eram programas de campanha eleitoral etc.

E a que conclusões vocês chegaram?
Uma das conclusões está em um texto que escrevi, intitulado "Televisão e política: hipótese sobre o primeiro turno da eleição presidencial de 89", publicado em 2001 em meu livro Mídia e Política. Em minha avaliação, o Collor venceu o primeiro turno das eleições por ter sido um candidato apoiado pelo principal grupo de mídia do país, as organizações Globo. Havia uma ação articulada entre a maior empresa de comunicação e o candidato, de tal forma que, tanto no entretenimento quanto na cobertura jornalística, criava-se um cenário determinado. Era aquele negócio de caçador de marajás, da valorização do jovem e da beleza masculina que ele representava. Tudo isso era construído nesses diversos cenários.

E havia um certo voluntarismo, aquele negócio de que, para se mudar o país, bastaria ter vontade…
Sim, a história do herói… O Collor foi um candidato construído na mídia. A campanha dele se ajustava a uma série de providências, como deslocamento de repórteres da Globo para Alagoas, desde o tempo que ele era governador. Mais tarde, eu fiz uma coletânea de textos detalhando esse conceito de cenário de representação política, aplicando-o a eleições municipais, estaduais, nacionais etc. Acho importante registrar que esse grupo de trabalho foi criado quando eu passei da área de Comunicação para a de Ciência Política. Ele acabou se transformando no Nemp (Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política), da UnB, e reúne gente de áreas diferentes. Existe até hoje. Tenho muito orgulho disso.

A eleição de 1994 foi muito diferente, não? O candidato construído pela mídia tinha pelo menos um plano econômico… O senhor poderia comentar se houve interferência da mídia na disputa política e na disputa de hegemonia na sociedade?

Quando você fala em hegemonia, é preciso ressaltar que esse conceito de cenário de representação é gramsciano. É uma tentativa de examinar o papel que aparelhos privados, como a mídia, exercem na construção da hegemonia. O conjunto dos veículos de comunicação de massa ocupa um papel central na vida contemporânea. Não se trata apenas da esfera política. A grande mídia tem o poder de pautar na sociedade o que é tema público e o que não é tema público. Ela constrói a percepção das pessoas, como é o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem terra) no Brasil. O MST é totalmente satanizado. Só aparece na agenda da mídia de forma negativa. A médio e a longo prazo, o efeito é muito maior do que o efeito eleitoral. Boa parte da população pensa tratar-se de um movimento criminoso. Diante disso, eu não tenho nenhuma dúvida de que nas eleições pós-Collor – as duas de Fernando Henrique e as duas de Lula – a mídia manteve a centralidade no processo político. Ela foi um dos fatores determinantes da vitória ou da derrota dos candidatos. Mais do que isso. Para ser eleito, o candidato teve de fazer acordos com a mídia. Em 2006, Lula venceu apesar da oposição às vezes explícita dos meios de comunicação. Aí entrou o fator Internet. Embora não tenhamos um quadro totalmente claro, seu alcance está alterando a importância e o poder da mídia de massa.

O senhor não acha que em 2006 houve outra mudança? Essa mudança teria se dado pela abertura de um canal direto entre um presidente de origem popular e a população e por programas sociais eficazes? Não lhe parece que outro tipo de comunicação, por fora da mídia, teria acontecido? A Internet também parece ter tido um papel importante na consolidação desse novo cenário…

Sim, é correto isso. Há quatro anos, eu organizei para a Editora Fundação Perseu Abramo um livro chamado Mídia nas eleições de 2006. Eu me apoiei em pesquisas de institutos completamente diferentes, o Observatório Brasileiro de Mídia, o Iuperj e a ESPM. Ficou muito claro pra mim, sobretudo na passagem do primeiro para o segundo turno, que houve um momento de inflexão. Foi a primeira vez em que circulou na Internet uma versão oposta à versão da mídia dominante sobre o caso da montanha de dinheiro, dos aloprados etc. Já naquela época, lideranças populares de movimentos, de organizações sociais tiveram acesso a essa contrainformação e elas passaram a fazer o papel de formadores de opinião. Isso até então era monopólio exclusivo dos articulistas e dos colunistas que tradicionalmente estavam na grande mídia. Em 2006, começamos a observar um certo deslocamento desse papel de formação de opinião que os grandes meios de comunicação se autoatribuem. A intermediação das lideranças foi capaz de se contrapor à informação hegemônica. Isso evitou que o candidato da grande mídia fosse vitorioso no segundo turno.

Um jornal importante de São Paulo, em seu projeto editorial, elaborado em 1986, alega textualmente possuir um mandato dos leitores para fiscalizar o poder. O senhor acha que esse suposto mandato estaria em questão?
Olha, eu acho que esse mandato é uma invenção liberal. Há outras. No início dos anos 1940, nos Estados Unidos, os próprios grupos privados de mídia perceberam não existir algo como um livre mercado de ideias, propagado pelos meios de comunicação. A partir daí, foi criada a Comissão pela Liberdade de Imprensa – ou Comissão Hutchins, em alusão ao seu dirigente, Robert Hutchins, reitor da Universidade de Chicago. Após cinco anos de trabalho, em 1947, o grupo lançou, entre outras coisas, a ideia de responsabilidade social da imprensa. Foi de certa forma a constatação da não existência de um mercado livre de ideias, como propagado anteriormente. A noção de que a imprensa reproduziria a mesma lógica do mercado de bens, com a existência de tantos veículos quanto as diferentes ideias, opiniões etc. mostrou-se fictícia. Com a tendência de oligopolização, ficou impossível defender a existência do livre mercado de ideias. Aí inventaram esse negócio da responsabilidade social da imprensa. Logo surgiu a história da objetividade, dos dois lados, de você ouvir os diferentes e tal. É uma tentativa de se trazer o tal livre mercado de ideias para dentro do próprio jornal. E a comissão disseminou a ideia da autorregulamentação da mídia, que os empresários brasileiros estão ressuscitando agora. Trata-se de uma forma de evitar a regulação. Em vários países, a autorregulação em diversas áreas nunca impediu que o Estado exerça seu papel regulador. No caso brasileiro, a Constituição é absolutamente explícita sobre as necessidades de tais leis. Se os empresários querem implantar a autorregulação deles, eu não tenho nada contra, que façam. Agora, isso é diferente de regulação feita pelo Estado, com controle social, coisa absolutamente necessária, como ocorre em outros lugares do planeta.

O senhor acha que existe uma tentativa de cerceamento da mídia na América Latina?
Vários candidatos ligados ao campo popular no continente venceram eleições presidenciais em diversos países. Pela primeira vez, a grande mídia, articulada no hemisfério pela SIP (Sociedade Interamericana de Prensa), se viu derrotada em seus próprios países. Em alguns casos ela foi coautora de golpes, como no caso da Venezuela em 2002. Nesses países, dentre os vários compromissos eleitorais dos candidatos, estava uma revisão da regulação da mídia. Os grandes grupos do setor sempre estiveram associados às elites dominantes, apoiaram golpes de Estado dos anos 1970 e 1980. No Equador, por exemplo, o presidente Rafael Correa criou uma comissão para rever a legislação das concessões de rádio e TV. A gente tem de entender a reação dos grupos de mídia dentro do contexto histórico da América Latina. Daí a tentativa de se convencer o conjunto da população de que a liberdade de expressão está sendo ameaçada no continente. Isso chega a ser um acinte à inteligência das pessoas. Tenta-se confundir liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Essa é uma batalha de ideias na qual os grandes grupos de mídia estão apostando. Esses setores afirmam que a regulação externa, a regulação pública, estatal ou o controle público dos meios de comunicação seria uma forma de censura. O exemplo maior vem do jornal O Estado de S. Paulo, ao alegar que estaria sob censura. Na verdade, o que houve foi uma decisão judicial sobre partes de um processo que não podiam ser divulgadas, por questões de segredo de justiça. Isso faz parte de um jogo maior.

Para terminar: teremos ou não em um futuro próximo uma comunicação mais democrática no Brasil?
Vamos por partes. Há mais de 15 anos, tenho tentado dizer que a mídia impressa não tem a importância que se atribui a ela. A circulação dos maiores jornais é baixa. O principal diário tem uma tiragem de 250 mil exemplares, em um país da dimensão do nosso. Esses jornais, que se dizem nacionais, são na verdade locais ou regionais. As tiragens são ridículas, mesmo se comparadas ao tamanho da elite brasileira. Por isso, eu tenho esperança de que a mídia alternativa se fortaleça. Penso no fortalecimento da imprensa contra-hegemônica, no movimento da Altercom, a associação dos pequenos e médios empresários de comunicação, no fortalecimento dos sites alternativos da Internet, no esforço que a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) está fazendo para ser uma empresa pública. Enfim, tenho esperança que esse quadro mude, por força da realidade. Eu acho que a geração mais nova já não tem o hábito da leitura impressa como a minha tinha. Há alguns anos, era um hábito quase religioso uma pessoa de classe média acordar e, no café da manhã, ler o jornal. Isso mudou. Com isso, o poder da grande mídia, sobretudo da mídia impressa, vai se reduzir. Hoje, a informação está muito fragmentada de muitas formas diferentes. O ouvinte e o leitor cada vez têm mais acesso à pluralidade da Internet. Não é mais possível ver a mídia falando da política externa brasileira como faz atualmente. Ela quase fala sozinha. Como diz o Bernardo Kucinski, na mídia impressa, a elite é a protagonista, a fonte e a leitora principal. Se lermos a imprensa estrangeira – mesmo a imprensa americana –, que tem um pouco mais de diversidade do que a nossa, vemos o absurdo da cobertura sobre as ações de política externa brasileira. Os jornais estão cada vez mais ideológicos e partidarizados. Eles vão falar cada vez mais para seus próprios nichos e, espero, deixarão de ter essa importância atual. Parece até que o que sai no Globo, no Estadão e na Folha é o sentimento nacional a cada dia. Não é e isso está ficando cada vez mais evidente.

 

 

 

 

 

 

 

“Blogues crescem por culpa do péssimo serviço de informação da velha imprensa”

[Título original: Blogues assumem a contra-infromação no Brasil]

323 jornalistas e comunicadores se juntaram para discutir o poder e o alcance dos blogues e debater a comunicação – de maneira geral – em São Paulo (SP), durante o 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas. O encontro ocorrido entre os dias 20 e 22 de agosto aproximou uma rede em expansão na internet de blogueiros conhecidos por fazerem o contraponto jornalístico dos fatos e opiniões da grande mídia.

Os jornalistas se classificam como independentes e ativistas dos movimentos sociais. O uso do blog foi a maneira que encontraram para driblar o bloqueio midiático a determinados assuntos e combater a concentração dos veículos de comunicação no Brasil.

A Radioagência NP conversou sobre o Encontro de Blogueiros com um dos organizadores do evento, o jornalista Rodrigo Vianna. Rodrigo também é diretor de Comunicação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, que articulou o fórum. Acompanhe.

Rodrigo, a partir do encontro, os blogueiros se dispuseram a fazer reuniões em pelo menos 19 estados brasileiros. Você considera que esse primeiro encontro foi um marco da comunicação social no Brasil?
Sim, foi um marco da comunicação no Brasil, inclusive isso acabou entrando até na agenda da campanha eleitoral. Um dos candidatos que está meio nervoso nas últimas semanas chegou a fazer uma declaração desqualificando os blogues. Mas, na verdade, passou um recibo da importância relativa que os blogues já tem no debate em comunicação no Brasil. Em muitas cidades há dezenas de blogueiros que conseguem ser um contraponto à imprensa escrita tradicional, ou seja, a velha imprensa brasileira que é controlada por meia dúzia de famílias. Então é um marco porque ele colocou frente a frente as pessoas que estão fazendo esse contraponto e essa rede dos blogueiros, que já é forte, vai ficar mais forte ainda a partir do Encontro.

O que seria o Partido da Imprensa Golpista (PIG)?
Olha esse termo PIG, que é um termo bem-humorado para se referir a esse Partido da Imprensa Golpista, surgiu a partir de um discurso de um deputado federal Fernando Ferro (PT/PE). Ele estava fazendo justamente a análise da grande imprensa brasileira, no momento específico de 2005 e 2006, e isso criou uma onda que aparentemente queria derrubar o governo federal. E a partir disso o jornalista Paulo Henrique Amorim cunhou esse termo PIG e a gente usa esse termo nos blogues para se referir a essa velha imprensa, que tem tido um papel no mínimo complicado nos últimos anos no Brasil.

Como a afirmação de Serra sobre os “blogues sujos” foi recebido pelos Blogueiros Progressistas?
Foi tratado na base da galhofa que é como merece ser tratado um candidato se referir dessa maneira aos blogues, ele que tem uma relação tão próxima com a velha imprensa. Ele na verdade fez o porta-voz da velha imprensa. A gente já não sabe mais se a imprensa que é porta-voz desse candidato ou se ele é porta-voz da velha imprensa. Então foi tratado assim na base da galhofa porque não dá pra levar a sério um negócio desse.

O Blog Cloaca News vai pedir explicações de Serra na Justiça sobre o que seria "os blogues", é isso
É, vai pedir que ele nomeie, pois ele fez uma referência genérica. Aí o Cloaca News – que é um blog que mistura investigação com bom humor – disse que vai interpelar o Serra judicialmente, para que o candidato diga quem são esses blogues que ele considera “blogues sujos”. E o Paulo Henrique Amorim, durante o Encontro de Blogueiros, propôs que a gente desse um prêmio ao Serra de twittero cascão por disseminar sujeiras em certos momentos pela rede de computadores.

Como você avalia o papel dos blogues nesta eleição?
Aquilo que a gente faz é um contraponto, eles já não falam sozinhos. De 2005 para cá, os jornais e as revistas – que eu chamo de velha imprensa – caminharam de um lado só. Todos passaram a fazer oposição ao governo federal. Não que o governo não mereça críticas, há muitos temas em que a crítica deve ser feita e quando há corrupção o jornalista tem que mostrar, mas foi uma coisa unilateral. A tal ponto que a presidenta da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, que é também diretora da Folha de S. Paulo, disse que dada a fragilidade da oposição partidária a imprensa passava a fazer o papel de oposição. Eles dizem que são isentos, mas não existe essa história de isenção completa na imprensa. Eu acho que a pessoa pode ter um lado, mas deve se prender a verdade factual. Por isso que os blogues crescem tanto, por culpa também do péssimo serviço de informação que a velha imprensa brasileira faz em nosso país.

Durante o encontro vocês também deixaram claro o apoio à Ação Direta de Inscontitucionalidade (Adin), que o jurista Fábio Konder Comparato entrou no Supremo Tribunal Federal. Essa ADIN é para regulamentar artigos da Constituição sobre comunicação?
O professor Fábio Konder Comparato vai ingressar, ele ainda não ingressou. Ele vai ingressar em nome de entidades na área de comunicação, com apoio de centrais sindicais e sindicatos e dos blogueiros do Encontro Nacional dos Blogueiros. É uma ação pedindo que o Estado faça cumprir o que está na Constituição. Há vários artigos da área de comunicação que não são cumpridos, por exemplo, o que diz que não pode existir oligopólio e propriedade cruzada dos meios de comunicação. [Hoje] uma única família é dona do rádio, da televisão, do jornal, da internet, da TV a cabo. Não dá. É muito poder concentrado e a Constituição veda isso. Mas o Brasil não coloca isso em prática por causa do poder dessas famílias. Então o Brasil tem que questionar o poder dessa meia dúzia de famílias que ainda mandam na comunicação brasileira.

“Anatel distancia-se do caráter de política pública em benefício da sociedade”

[Título original: Anatel, focada no mercado, esquece os interesses da sociedade]

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) está se afastando da sua missão de implementar políticas públicas. Criada em 1997 para promover o desenvolvimento do setor com serviços eficientes e adequados, defendendo os interesses da sociedade, a Agência está focada no mercado, segundo José Zunga Alves de Lima*, representante da sociedade civil no seu Conselho Diretor. Trabalhador do setor de telecomunicações há 30 anos, Zunga considera que a agência atua hoje de forma equivocada.

Em entrevista para o e-Fórum, Zunga defende a descriminalização das rádios comunitárias e considera que a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) pressiona a Anatel manobrando a opinião pública – quando justamente a Agência é que deveria traduzir a opinião pública e os interesses da sociedade, no que diz respeito à sua área.

Para o Conselheiro, o Governo Federal errou ao deixar a Anatel e o Ministério da Justiça fora do Grupo Interministerial que estudará um novo marco regulatório das comunicações brasileiras. Ele reclama a correção desse erro.

Leia a seguir.

O governo criou um Grupo Interministerial para estudar o marco regulatório da comunicação e não incluiu a Anatel. Isso significa que está fazendo uma avaliação negativa sobre o modelo de agente normativo e regulador das telecomunicações representado pela Agência?
Acho que não. Eu entendo que a linha atual do governo é de reconhecimento da eficácia do instrumento regulatório. Não só do setor de comunicações, mas de todas as agências regulatórias. O governo vem trabalhando no sentido de fortalecer o órgão regulador nas suas ações setoriais, tanto no caráter orçamentário, quanto na indicação de seus quadros.
Pontualmente, no que diz respeito às telecomunicações, no momento em que se trata da revisão do marco regulatório, podemos fazer um parêntese aí do que é a Anatel hoje. A Anatel tem se distanciado do caráter de política pública em benefício da sociedade nos últimos 10 anos. Na medida em que a Anatel se pauta pela sua lentidão no processo regulatório, por decisões que não são eficazes ao benefício do usuário direto, como metas de competitividade, condições para entrada de novos competidores, ela se distancia.
Observando politicamente a Anatel, como ela funciona hoje, o seu quadro fragmentado interno mostra também que a interlocução de dentro para fora da agência está totalmente prejudicada. Observe que recentemente, no mesmo mês em que o governo lançou o grupo de trabalho interministerial, a Anatel, através de sua Presidência (o presidente da Anatel é Ronaldo Mota Sardenberg), fez uma consulta para reestruturação da agência, num ato monocrático, sem sequer consultar os demais conselheiros, rompendo o caráter colegiado do órgão regulador. Entendo que isso é extremamente antidemocrático e fere a ética da gestão participativa.

E como resposta a essa ação da Anatel, o que o governo faz? Repreende?
Não, porque estamos tratando de um órgão que tem independência do Executivo na sua configuração. Os órgãos reguladores são instrumentos de Estado, mas não diretamente ligados ao Executivo, têm certa independência, embora seja o Executivo que nomeie através de sabatina no Senado, os membros do Conselho Diretor. Mas isso, por si só, não garante que a política pública pensada pelo governo seja implementada numa rapidez que gere benefício social.
Por isso é que vemos, ultimamente, uma série de manifestações de outros segmentos do governo, como, por exemplo, a Justiça Federal, que tem, repetidas vezes, interferido no processo regulatório com ações, em função da lentidão do órgão regulador.
A Anatel precisa passar por um choque de realidade. Acho que as características atuais do Conselho Diretor prejudicam esse processo. Diferentemente do Conselho Consultivo, que abre o seu processo de funcionamento e aproxima da sociedade, o Conselho Diretor faz exatamente o inverso, aumentando o fosso da interlocução com a sociedade.

Mas o relatório anual de atividades da Anatel, de 2009, foi recentemente aprovado pelo Conselho Consultivo.
Foi aprovado com ressalvas extremamente críticas, por unanimidade do Conselho Consultivo (CC). Mas a peça da Anatel sofreu uma grande mudança – é claro que nisso pesou muito a decisão do CC, no ano passado, de rejeitar o relatório de 2008. Hoje, a Anatel apresenta as suas ações, em seu documento, de uma forma mais transparente.
No entanto, quando nós [CC] listamos as ressalvas, elas são as mesmas que fazemos historicamente, realtivas ao distanciamento, mecanismos ineficazes, mecanismos de sanção com caráter protelatório em benefício ao irregular, que maltrata o usuário e que justamente deveria ser alvo de benefício. O CC listou uma série de elementos críticos e o relatório do conselheiro Israel Bayma constroi essa linha, observando uma série de erros (o relatório está em fase final de redação, será disponbilizado após sua entrega na Anatel).

Por que o relatório anterior foi rejeitado?
No ano passado, a rejeição do relatório tinha como pilar todas essas limitações que estamos enumerando agora e ainda o agravante da manifestação do TCU (Tribunal de Contas da União), que fez uma série de solicitações de comunicação de informação, porque também recebeu o documento pela metade.
Então, nós do Conselho Consultivo, que é uma peça de controle da sociedade dentro da Anatel, o rejeitamos pela forma incompetente como a Agência preparou o documento e o encaminhou ao CC e aos órgão externos, que são o Tribunal de Contas da União, a Controladoria Geral da União e a Advocacia Geral da União,.

Qual foi o resultado disso?
O efeito de sanção é mais político do que jurídico. O CC é um organismo político. O Relatório 2008 passa a ser uma peça de observação especial pelos órgãos de controle externos. Fica constando nos anais da Anatel que na análise desse documento houve rejeição por parte do CC.
Ao aprovar o relatório, este ano, aprovamos a letra fria, porque o relatório veio completo. No entanto, na análise política, que é subjetiva, nós enumeramos uma série de ressalvas.

Então vocês concluíram que a Anatel não cumpriu o seu papel?
Ela começou a avançar, inclusive pelas pressões externas, mas ainda precisa avançar muito mais. Esse exemplo do presidente da Anatel, que na semana passada pediu ao Ministério das Comunicações para iniciar a reestruturação da agência sem sequer consultar os conselheiros, mostra que, a seguir nesse ritmo, ela caminha para trás, porque cria um clima interno de desconforto. Ele foi autoritário e antiético. Isso só aumenta a crise interna de gestão.

São procedentes as críticas de que a Anatel defende as telecoms?
Acho que a Anatel precisa defender a sociedade. Enquanto ela tiver a agenda focada no mercado e não fizer o equilíbrio, estará equivocada. A Agência precisa preparar o processo de competição, o ingresso de novos competidores, com busca da melhoria da qualidade de serviços. Enquanto isso não acontece, ela passa a ser um órgão de regulação das empresas instaladas e não reguladora de mercado.
Quando se observa que a quantidade de reclamação dos usuários aumenta cada vez mais, a sociedade está descontente e o órgão regulador parece concordar com isso, é porque alguma coisa está errada.

E quanto as denúncias de que a Anatel fiscaliza as rádios comunitárias e não as comerciais?
Realizamos, até por iniciativa minha, dentro do Conselho Consultivo, duas audiências públicas, inclusive ouvindo a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), e na linha do projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, de descriminalização das rádios comunitárias (o PL está tramitando na Câmara Federal). E também acolhendo resoluções da Confecom, estamos tentando melhorar este caráter. Acho que a ação de polícia da Anatel em relação às rádios comunitárias é um tratamento diferenciado de outros segmentos que também cometem irregularidades.
Não devemos pedir ao órgão que feche os olhos às irregularidades, mas não pode dar tratamento diferenciado e agir com poder de polícia. Estamos falando de um serviço a favor da sociedade e a Anatel não deve comparecer com força policial, com a Polícia Federal para lacrar uma rádio comunitária, quando não o faz contra uma empresa de radiodifusão vinculada à Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), por exemplo.
Então, é uma ação descriminalizadora. Acho que a Abert, por estar dentro dos órgãos de comunicação, acaba exercendo um poder de opinião pública muito forte na Anatel. Isso é equivocado, porque a Anatel é a opinião pública propriamente dita, dos interesses da sociedade. E nós defendemos que o processo de descriminalização das rádios comunitárias seja aprovado urgentemente pelo Congresso Nacional e temos que trabalhar para isso.
No Conselho Consultivo, estamos criando um grupo de trabalho que vai preparar, dentro de uma análise que é o projeto de lei das resoluções da Confecom, uma série de sugestões ao Conselho Diretor sobre a discriminalização das rádios comunitárias.

Os números relativos à repressão às comunitárias estão nos relatórios da Anatel?
Na audiência pública, foi tratado uma série de denúncias feitas pela Abraço, relativas à postura da Anatel frente à fiscalização das rádios comunitárias. Todas as denúncias estão sendo observadas, inclusive aquelas em que o fiscal comparece a uma determinada rádio já acompanhado da polícia e determinada televisão já filmando tudo. Ou então, quando a fiscalização comparece, com suposto patrocínio de empresas de comunicação, a determinado local.
Estamos aguardando um parecer da Anatel se são procedentes ou não essas denúncias. Os números que a Abraço coloca são preocupantes. Há uma criminalização e isso deve ser abominado, transformado em coisa do passado. Temos que tratar a radiodifusão comunitária como um serviço de relevante interesse social e o tratamento, dentro do marco regulatório, deve ser tão respeitoso quanto o que é dado às demais empresas outorgadas e autorizadas que estão operando no setor.

Na sua opinião, a Anatel deveria fazer parte do grupo interministerial para o marco regulatório?
Eu sugeri ao CC que não só a Anatel, como também o Ministério da Justiça, em função desse projeto de descriminalização das rádios comunitárias, fossem convidados a compor o GT. Acho que construir uma revisão do marco regulatório sem incluir esses organismos pode fragilizar as suas resoluções.
Penso que o governo errou quando criou esse grupo excluindo esses elementos. O Ministério da Justiça, tem a tarefa de fiscalizar e até poder de polícia em determinadas situações, e também tem caráter social, e a Anatel, que tem o papel regulador e de fiscalização. Acho que isso precisa ser corrigido.

*José Zunga Alves de Lima já foi presidente da CUT DF e da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel). É fundador do Instituto Observatório Social de Telecomunicações (IOST).

“Concessão sem fiscalização é doação”

[Título original: Sem fiscalização, as concessões públicas de rádio e TV são consideradas propriedade privada]

No Brasil, os concessionários de emissoras de rádio e televisão agem como se fossem seus proprietários. O Estado brasileiro, que fundamenta como serviço público o seu sistema de radiodifusão, tem dificuldades para controlar o setor. Parte deste “descontrole” se deve à estrutura dividida entre o Ministério das Comunicações e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Mas o que falta, realmente, é vontade política de fazer valer os princípios constitucionais, entende o procurador regional da República no Rio Grande do Sul Domingos Sávio Dresch da Silveira*.

O modelo brasileiro sofre pela ausência do Estado no papel que é fundamental na relação do poder público com os concessionários – a fiscalização. E concessão sem fiscalização é doação, resume Domingos.

A elevada abrangência dos meios de comunicação de massa os torna instrumentos de poder especialmente significativos na vida política, cultural e econômica da nação. Em modelos de radiodifusão privados – o norte-americano, por exemplo – a figura do órgão regulador e fiscalizador é decisiva e os veículos têm sua autonomia controlada pelo Estado. No Brasil, onde o modelo caracteriza-se pela concessão pública, as restrições deveriam ser, no mínimo, igualmente severas, mas o sistema funciona “como se fosse uma rede de McDonalds”.

Nesta entrevista para o e-Fórum, Domingos aborda a histórica distorção na condução do relacionamento entre o poder concedente e os concessionários. Leia a seguir.

As emissoras de TV e de rádio são consideradas serviço público e precisam de concessão do governo. O que caracteriza “serviço público”e “concessão”, do ponto de vista jurídico e social?
Há dois modelos no mundo para organizar o serviço de comunicação. Um deles é o totalmente privado, como o norte-americano, onde não tem a figura da concessão. Neste modelo, existe a figura das Agências Reguladoras – no caso americano, é a FCC [Federal Communications Commition], que desde 1934 existe com uma dupla função: a de controlar as radiofrequências, a não-intromissão de uma frequência na outra, ou seja, de garantir a qualidade do sinal. Por outro lado, a FCC tem também a função de garantir o respeito a alguns princípios, como contra o racismo, a igualdade e a pluralidade, a proibição da propriedade cruzada [quem tem a rádio não pode ter o jornal, quem tem a TV não pode ter o rádio], que compõem o modelo americano.
E tem o modelo da Europa, que é o mesmo do Brasil e da América toda, fora os EUA, que é fundado na ideia de serviço público. Sempre esteve na nossa Constituição a ideia de que a radiocomunicação – como se chamava no início, hoje telecomunicação -, a comunicação de massa é um serviço público federal que pode ser exercido diretamente pelo poder público ou pode ser concedido a particulares.
Todo o funcionamento do serviço público no Brasil tem essa marca. Ou ele é realizado diretamente pelo poder público – como acontece notadamente na saúde – ou ele transfere ao particular a possibilidade de uma concessão temporária, para que seja exercido com o mesmo fim, com o mesmo objetivo público, pelo particular.
Portanto, tem uma diferença importante: no modelo americano, existe o controle da utilização de algo que é privado. No Brasil, há o controle estatal sobre algo que é público, o direito de explorar as radiofrequências, a comunicação social – porque mesmo quando ela não tem a forma de radiofrequência, como no caso da TV a cabo, ela também é um serviço público.
Para nós, toda a telecomunicação está marcada pelo modelo de serviço público [prestado diretamente pelo Estado ou por particular, em razão de uma outorga, ou autorização ou permissão]. As linhas de ônibus, por exemplo, são serviços públicos prestados por particulares.
Uma novidade muito rica da nossa Constituição Federal [CF], é que ela própria diz quais os deveres desse concessionário de serviço público. Eles estão dispostos no artigo 221 da CF. A concessão não tem livre exercício. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, portanto todo o seu conteúdo, deve atender aos quatro princípios apontados no artigo 221: preferência a finalidades educativas, educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; a regionalização da produção cultural, artística e jornalística e o respeito aos valores éticos e morais da pessoa e da família.

Em que medida esses princípios são respeitados, na nossa radiodifusão?
Mesmo antes da CF, o contrato padrão da concessão que todo concessionário assina – e desde a década de 1960 é o mesmo – impunha essas obrigações. Entretanto, a forma como os concessionários [no Brasil] se relacionam com as concessões é como se fosse o modelo americano, como se eles fossem donos daquele serviço. É como se fosse uma rede de McDonalds.
Esse nunca foi o nosso modelo, apesar disso sempre vivemos desta forma por uma razão: a ausência do Estado no papel que é fundamental na relação do poder público com os concessionários, que é a fiscalização. E concessão sem fiscalização é doação. Como na época das capitanias hereditárias, quando os capitães das terras eram donatários, numa mistura de privatização com concessão, porque era autorizado o exercício do poder judiciário, a aplicação de penas [desde que não fosse a pena de morte], e então doado parte do território àquelas pessoas. Acho que essa noção perdurou até hoje em alguns campos das concessões, como as estradas brasileiras, por exemplo.
Na área da comunicação social, o que se vê, sistematicamente, é uma omissão do Estado. Portanto, há uma forma muito evidente de descumprimento do poder público federal [concedente] em fiscalizar, exigir o cumprimento dos deveres dos concessionários. Esse fiscalizar fica restrito, quando muito, àquele controle de vizinhança, de verificar se uma concessão não vai interferir na outra. E fica por aí. É mais um “fiscal da propriedade”. Então, temos concessionários que parecem que não têm deveres para com a sociedade e o Estado que concedeu a licença para exploração da emissora.

Então o que falta é fiscalização?
Falta a vontade política, que começa pela fiscalização. Esta é uma tarefa do Ministério das Comunicações. Interessante que antes isso tudo estava dentro do Dentel, antigo Departamento Nacional de Telecomunicações. Depois, esse Dentel passou toda sua estrutura física para a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações, órgão regulador] e praticamente todo o poder de fiscalização, de controle. Tanto que, quem faz a atuação repressiva às rádios comunitárias é a Polícia Federal junto com a Anatel.
Mas a fiscalização das emissoras de rádio e TV ficou a cargo do Ministério das Comunicações [MC]. É antagônico, porque o MC ficou sem estrutura nenhuma para fazer isso. Assim, age como um mau cartório, porque até mesmo para a coisa mais burocrática que é o exame dos pedidos de renovação das concessões, o MC leva mais de dez anos para fazer.
Fica ainda pior, porque a cada dez anos é preciso que se renove uma concessão de TV, por exemplo. E essa renovação começa um ano antes, com o pedido da concessionária para a renovação. Esse pedido tem que tramitar administrativamente e depois ser submetido ao Congresso Federal, que, salvo se houver a deliberação de três quintos da bancada contrários, a renova automaticamente.
Tem acontecido que a tramitação de um pedido de renovação leva mais de 10 anos, e aí a concessionária de TV segue funcionando – porque ela tem esse direito até que seja tomada uma decisão contrária. Assim, uma concessão emenda na outra e ela nunca é apreciada. E quando é, já passou o tempo. Isso é um não fiscalizar, é controle nenhum.
E a gente podia imaginar várias situações interessantes nesse sistema de controle funcionado, por exemplo, incidindo sobre a má utilização da concessão. Vamos imaginar um caso limite como aquele sempre lembrado do programa do Gugu (SBT), quando ele entrevista o falso representante do PCC [Primeiro Comando da Capital,organização criminosa originada em São Paulo], ou o programa do “sushi humano” no Faustão (Globo), essas baixarias fora de qualquer dúvida.
No primeiro caso, parece que houve uma sanção administrativa do MC. Esses descumprimentos deveriam, pelo menos, serem catalogados e verificados quando do pedido de renovação. Então, a cada dez anos, verificaríamos se as infrações foram adequadamente tratadas. Isso na Europa é muito comum. Então, a sanção mesmo que seja pecuniária e sem relevância é considerada no momento da renovação. Deveríamos exigir isso do Ministério das Comunicações. E para isso não precisa mudar a lei. O Ministério Público tem essa função. A Procuradoria da República tem ficado atenta a isso.
Existem diversos procedimentos e ações contra o Ministério das Comunicações para tentar obrigá-los a cumprir com esse dever mínimo de fiscalização. Mas, infelizmente, nem isso tem sido cumprido.

Nesse cenário, qual é função social dos meios de comunicação social?
Essa história de função social não pode estar no coração, que aí vira um perigo, vira subjetivismo. Ao meu ver, a função social dos meios de comunicação social está descrito no artigo 221 da CF. Ali estão os deveres fundamentais dos titulares das concessões de rádio e TV. Assim como também a função social da propriedade urbana, da propriedade rural está na Constituição. Todas elas têm determinada função social.
De alguma forma, é tudo aquilo que a gente não vê. Tem um jurista conservador, tradicional, que costuma dizer que o artigo 221 da CF é o mais descumprido de toda a Carta. Acho que, infelizmente, ele não está errado.

E quanto à qualidade do conteúdo na TV brasileira?
Do ponto de vista do conteúdo, eu acho que a TV comercial segue sendo a grande inimiga da televisão de qualidade. Como não há controle, é um espaço de vale-tudo para obter índices de audiência . O que a gente tem vivido é esse quadro crescente de perda de qualidade.
É uma realidade dura, fruto também dessa falta de fiscalização, de um modelo da TV comercial, da falta de estímulo de investimento público na produção de uma TV de qualidade, até de ver o que é produzido com o apoio de fundos públicos pelo mundo afora, como na Austrália, Canadá, Europa, e o que se produz aqui no Brasil.
Em uma análise que fiz, durante um ano de programação de uma emissora de TV a cabo – a gente tem ideia de que elas têm mais qualidade -, sobre quatro temas: sexo, drogas, nudez e violência, tentei verificar como eles apareciam no horário reservado ao público infanto-juvenil. A constatação é assombrosa. Mais de 60, 70% da programação, dependendo do mês, aborda sexo, drogas, nudez e violência, isoladamente ou em conjunto, e é veiculada no horário reservado ao público infantil.

De maneira geral, a opinião pública não simpatiza e não compreende que há regras para a concessão em radiodifusão e que uma emissora pode ser fechada se não cumpri-las. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, por exemplo, é muito criticado por não ter renovado licenças e fechado emissoras de rádio e TV que não estariam de acordo com as normas para funcionamento. Como aplicar as regras?
De forma muito clara, isso tem a ver com aquela ideia inicial de que o empresário de comunicação no Brasil age como se fosse dono do canal e não um prestador de serviços. Essa distorção inicial produz todo o resto.
Há pouco tempo, o Supremo [Supremo Tribunal Federal] tomou uma decisão interessante sobre as rádios no país inteiro [leia aqui] que vinham entrando com ações – e conseguindo – para não transmitir a Voz do Brasil em cadeia, no horário das 19h. Isso tinha virado moda, tanto que as rádios aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, transmitiam a Voz do Brasil às 10h, às 4h, afirmando que estavam exercendo a liberdade de imprensa, a liberdade de comunicação. Agora, com a propaganda eleitoral, invariavelmente, essas emissoras dirão “vamos ter que interromper a nossa programação para cumprir essa obrigação de transmitir a propaganda eleitoral”, e tal.
Ora, primeiro ela [a propaganda eleitoral] não é gratuita, as emissoras têm uma série de benefícios fiscais para compensar em parte o tempo de não utilização do serviço público, coisa que eu acho absurda. Esse sentimento de privatização da concessão é tão forte que até mesmo no caso dessas cadeias de serviço público para transmitir pronunciamentos como o do Presidente da República,ou a Voz do Brasil, ou a propaganda eleitoral gratuita [grátis só para os candidatos], as emissoras se apresentam como vítimas, censuradas. Na verdade, são raros os momentos que elas deixam de lado a atividade comercial e passam a exercer algum serviço público.
Esse sentimento de privatização da concessão pública, que vem lá das capitanias hereditárias e se esparrama por esse latifúndio invisível do espectro eletromagnético que a gente vive hoje, da concentração das concessões na mão de poucos – sempre os mesmos, os mesmos grupos, ligados ao poder, aristocracias, direta ou indiretamente – manifesta-se de forma muito violenta sobre qualquer tipo de controle.
No Brasil, as emissoras rejeitam o controle administrativo, para fazer respeitar as obrigações de concessionário; rejeitam as obrigações de controle judicial, como em casos limites, em que alguém que se sinta lesado entra com uma medida judicial, ou quando o Ministério Público entra com ação civil pública, por exemplo, para obrigar o titular da concessão a respeitar a Classificação Indicativa [serviço de análise e de produção de informações objetivas sobre conteúdos audiovisuais previsto na CF e regulamentado pelas leis federais nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei nº 10.359/01].
A máxima que a gente ouve sempre nos debates, por parte dos representantes dos comunicadores, é que depois da CF de 1988, a única forma de controle possível é o controle remoto. Essa situação, porém, não existe nem nos Estados Unidos, onde o modelo é o privado. Porque lá, o FCC tem a tradição de uma atuação muito dura. São inúmeros os casos em que o órgão de controle norte-americano determinou intervenção no conteúdo da programação. E mesmo quando esses casos foram submetidos à Suprema Corte americana, ela concluiu que a intervenção estava correta, com base em dois fundamentos: porque eram valores que precisavam ser protegidos e porque os meios de comunicação eletrônica têm um poder extraordinário de intrusão na sociedade.

Controle e censura são confundidos. Como diferenciá-los?
Essa liberdade que as nossas emissoras reclamam aqui não existe nem nos Estados Unidos, que é o “reino encantado” dos comunicadores. O fundamental é que uma coisa é controle, outra é censura. A censura é a proibição fundada em juízos de valor que não tenham base na Constituição, que partem da subjetividade do administrador e não se submetam a nenhum processo em que se assegure a ampla defesa.
O sensor proíbe o que lhe parece atentatório – como toda nossa tradição de censura no regime de Getúlio Vargas [de 1937 a 1945], da ditadura militar [1964 a 1985]. Nessas situações, o que marca é a subjetividade. Quando a gente fala em controle, seja judicial ou administrativo, é para fazer valer valores que estão na Constituição Federal, portanto não foram inventados na hora, e só podem ser aplicados depois de um processo administrativo em que se assegure a ampla defesa. Essa é a garantia que vale para qualquer um.
Quando a gente pensa em controle social, temos que pensar, primeiro, que isso não é coisa de comunista. A Europa toda tem inúmeros sistemas de controle social. Isso é, talvez, o tipo de prática mais avançada em termos de controle de meio de comunicação social, porque compatibiliza a ação de Estado – que vai estar presente nos organismos de controle social – e a participação direta da população no exercício da democracia direta, ao definir o alcance através dessas concessões.
Então, a ideia de controle social é de democracia em uma dimensão e qualidade maior. No Brasil, existem já institucionalizados dois instrumentos de controle social, o Conselho de Comunicação Social e os Conselhos Tutelares. O Conselho de Comunicação Social [CCS] é previsto na Constituição, mas foi reduzido, pela regulamentação, no seu âmbito de atuação e de incidência.
A nossa Constituição copiou o CCS do modelo português, só que ele foi regulamentado como um órgão consultivo, quando não seria essa sua razão de ser, de acordo com a Carta. A ideia é de que o CCS seja uma instância onde se reúnam representantes dos comunicadores, da sociedade, dos trabalhadores na comunicação e do Estado, indicados pelo Parlamento e pelo Executivo, para definir modelos mínimos de exigência daquilo que está no artigo 221.
Seria muito mais rico, por exemplo, se os parâmetros da classificação indicativa fossem definidos ou tivessem uma instância de controle no CCS, não ficassem só sob a instância do Ministério da Justiça como é hoje. Infelizmente, o Brasil não consegue concretizar isso, porque a forma como a lei regulamentou o Conselho o restringiu, justamente para atender os interesses dos parlamentares donos de meios de comunicação, que não queriam nem mesmo esse tipo de participação. A gente vem vivenciando essa situação triste, e hoje em dia o CCS nem se reúne mais.

Os critérios para a concessão das outorgas no País são adequados? Não estão defasados?
Não há muita clareza, São critérios técnicos. Quando abre-se a disputa para uma determinada concessão, se habilitam diversos concorrentes, há uma análise técnica da possibilidade da empresa, de manter, de capacidade financeira, mas o critério último é sempre político. Aí há pouca clareza, pouco controle democrático ou controle nenhum. É um juízo de conveniência e oportunidade que determina todo o resto.
Uma coisa interessante é que a Constituição mudou e estabeleceu a aplicação do artigo 221 a todos os meios de comunicação eletrônica. Portanto, também à internet.
A internet, de alguma forma, vai colocando em crise o modelo mais clássico de radiodifusão, porque tem rádio e TV na internet, que já é algo bem mais próximo da população e daqui a 10 anos será tão comum quanto a energia elétrica. Ninguém duvida disso.
Acho que daí surge uma crise interessante, que vem da pluralidade de oferta. Isso tende a mudar, nos próximos dez anos, o perfil desse mercado e da forma de comunicar. Vejo aí uma possibilidade muito grande de democratizar esse direito de acesso ao meio para poder informar – porque hoje esse direito ainda pertence aos donos dos meios de comunicação, não à população como um todo.

Acontece muito, atualmente, a sublocação de horários nas emissoras. Isso criou um mercado grande, especialmente para programas religiosos.
A Procuradoria [Regional da República] já tem inúmeras ações pelo país afora pedindo o cancelamento de concessões [o cancelamento de concessões é uma possibilidade, antes de vencido o prazo, que depende decisão judicial]. Existem muitas ações civis públicas nesse sentido, porque se entende que esta prática é ilegal, atenta contra todo o sistema de concessão, estatal, direto, sob controle. Essa sublocação importa, sim, em ofensa ao dever do concessionário, e portanto tem levado a muitas ações pelo país todo. Nenhuma ainda foi concluída.
Uma outra coisa interessante é que as emissoras religiosas têm uma programação de telepregação. Isso atenta, a meu ver, e ao ver da Procuradoria, contra esse dever de pluralidade no conteúdo da comunicação, tanto nas TVs exclusivamente comerciais, quanto nas TVs exclusivamente religiosas – claro que no caso destas tem algo mais delicado, que é o direito de crença e culto.
A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, diz que a ideia de liberdade religiosa não permite que se possa usar meios de comunicação para atingir outras religiões. Acho que os canais telepregadores atentam contra esse dever de pluralidade que não é só do espectro, é também da programação.

Em que países as concessões são melhor administradas?
Gosto de três exemplos. Não por acaso, a melhor TV que se tem no mundo é a inglesa, onde um sistema dentro do âmbito do Estado concilia a participação da população, dos comunicadores e dos detentores das concessões. Pratica um sistema de controle onde há também uma presença bastante marcante da TV pública alternativa às comerciais. Esta TV pública é financiada por um tributo que incide sobre os proprietários de TV [dizem que é muito sonegado]. O modelo inglês é rico porque tem nele este aspecto da participação das várias instâncias, não é só estatal, o que é muito bom, e consegue produzir padrões de qualidade, relatórios anuais de análise crítica, fixando padrões.
O segundo modelo é o francês, com o Conselho Superior do Audiovisual na França, fundado na ideia estatal. Ele consegue desenvolver um papel de orientação, de definição de standarts e de patamares muito interessantes com a participação da população.
Um terceiro modelo é o da Catalunha, na Espanha, com o Conselho de Audiovisual da Catalunha. Ele monitora toda a programação de TV e produz relatórios, instaura procedimentos, quando necessário, assegurando a defesa do comunicador. Este Conselho não tem um poder de sanção, mas tudo aquilo que apura é remetido ao Parlamento para ser considerado no momento da renovação da concessão. Interessante é que hoje em dia, lá, tem havido pouca infração, porque as emissoras se adequaram aos critérios e há uma interlocução com a comunidade muito interessante.
No Brasil, temos uma coisa muito avançada – e eu cometo a ousadia de dizer que nesta matéria não existe nada melhor no mundo -, que é o nosso sistema de Classificação Indicativa, implantado nos últimos quatro anos, que criou uma metodologia própria e tem se mostrado muito rico neste vazio de controle de comunicação que a gente tem no País.
Poucos são os sistemas de classificação indicativa tão avançados como o nosso. Noutro dia eu estava visitando esse Conselho de Audiovisual da Catalunha e eles mostraram que tinham um manual nosso de Classificação Indicativa e que eles esperavam um dia ter uma classificação assim. Isso foi uma construção muito bonita que se fez nos últimos anos, e que também vem apresentando uma coisa que é do próprio processo, que é uma restrição ao poder – da detenção da concessão do meio de comunicação.

Por que, após oito anos de um governo de centro-esquerda, não mudou essa relação do país com os donos da mídia?
Suspeito que a questão mais grave, quando a gente pensa em controle da mídia, seja em qualquer das formas – controle social, administrativo, e até mesmo o controle judicial – é como controlar o poder. Esta questão se propõe à democracia, hoje, como uma grande interrogação. Como controlar, em qualquer das formas de poder?
A concessão de emissoras de rádio e TV é hoje, talvez, uma das principais fontes de poder numa sociedade em rede como a que a gente vive. A comunicação social é fonte de poder. O Bordieu [Pierre Bordieu, sociólogo francês, falecido em 2002, autor de vasta bibliografia] disse de uma forma muito adequada, que a televisão é o grande perigo à democracia. Segundo Bordieu, ela tem o poder de conferir a existência social – é o árbitro da existência social. É ela que vai dizer – isso ele refletia pensando na televisão, mas eu acho que vale para comunicação social como um todo -, que vai arbitrar, dizer quem existe e quem não existe. E quem está fora da TV todo o dia não existe.
Não há coisa mais terrível para o poder, para os políticos, do que estar fora da mídia – ou tê-la contra si, o que é muito pior. A gente vê a mídia construir e desconstruir trajetórias de uma forma muito notável. Isso pode ser uma pista para a gente compreender por que um governo de centro-esquerda conseguiu tão pouco nesse sentido, ficou tão refém das grandes redes de comunicação, dos donos da mídia.

*Domingos Sávio Dresch da Silveira é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e funcionário do Ministério Público Federal. Atua principalmente com os temas censura, cidadania, controle, direitos humanos, Direito Constitucional e informação.

“O monopólio da mídia atrasou o movimento da sociedade”

[Título original: País não tem dirigentes comprometidos em mudar o quadro regulatório das comunicações]

No Brasil, a legislação não estabelece limites à concentração e à propriedade cruzada dos meios de comunicação. Ainda ocorre, no país, o chamado "coronelismo eletrônico", que compromete as relações entre os poderes público e privado, imbricados numa complexa rede de influências. Para enfrentar o problema, é preciso mexer no quadro regulatório do setor. Propostas não faltam, e elas vêm basicamente do movimento social. Mas não há governantes que se comprometam de forma definitiva com a formulação de políticas públicas de comunicação, nem mesmo a partir dos resultados e demandas da 1ª Confecom.

De acordo com Israel Bayma*, engenheiro eletrônico, conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), militante há mais de duas décadas pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, não há sequer candidatos às próximas eleições presidenciais que estejam realmente interessados em transformar o quadro caracterizado pelos "donos da mídia" no país. Leia a entrevista concedida ao e-Fórum.

O que mais contribuiu para a prevalência da concentração de mídia no Brasil?
A legislação. O Código Brasileiro de Telecomunicações é de natureza concentradora. Ele não estabelece restrições à propriedade cruzada [quando uma empresa ou grupo possui diferentes tipos de mídia]. E os limites estabelecidos, ele os mascara, à medida que permite ao mesmo proprietário deter em algumas regiões o número máximo de emissoras, e em outras regiões também um número máximo de emissoras. Não estabeleceu limites à concentração e à propriedade cruzada.

Podemos dizer que o chamado “coronelismo eletrônico” ainda vigora no País?
Segundo a professora Suzy dos Santos quando o termo “coronelismo” foi usado por Victor Nunes Leal, referindo-se ao final no século XIX, início do século XX, definia as características das relações de produção que se estabeleciam no Brasil naquele momento, que saía do estado agrário para um estado industrial.
Esse termo ainda se aplica hoje. Só que as relações de produção se dão por aqueles que detêm o poder e a propriedade dos meios de comunicação. Seja de que natureza midiática for – rádio, televisão -, ainda continuam exercendo o mesmo papel de controle político. Haja vista as recentes alianças que são tomadas no âmbito de sustentação do atual governo, e provavelmente das mesmas bases de sustentação do próximo governo. [Suzy dos Santos, juntamente com Sérgio Capparelli, define coronelismo eletrônico como “um sistema organizacional da recente estrutura brasileira de comunicações, baseado no compromisso recíproco entre poder nacional e poder local, configurando uma complexa rede de influências entre o poder público e o poder privado dos chefes locais, proprietários de meios de comunicação”. Leia mais aqui ]

Frente às novas tecnologias, como as grandes empresas de comunicação estão se organizando para manter o controle?
Elas buscam estender seus tentáculos às novas mídias. Há uma denúncia dos grandes oligopólios mundiais, que controlam não só a mídia tradicional [rádio, televisão, cinema], mas também as novas mídias, como a internet. Haja vista os grandes grupos – Google, por exemplo – de tecnologia da informação, que estão se estendendo aonde é possível. Acho que nada se alterou. Marx continua atual no que ele previa: que os oligopólios capitalistas tenderiam a crescer. O modo de produção é o mesmo.

A participação dos políticos como donos dos meios de comunicação continua a mesma?
Até 2008 [quando Bayma sistematiza no livro “Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa” – publicado pela FGV Editora – um estudo traçando um mapa do financiamento político do setor de comunicação nas eleições de 1998-2004], não identifiquei nenhuma mudança. De lá para cá, não verifiquei. Mas não vejo mudanças que possam ter levado a alterar aquele quadro. A não ser a composição acionária [das emissoras de propriedade de políticos], de um proprietário transferindo cotas para os filhos, os parentes, os “laranjas”, ou comprando de outros.
Mudanças que podem ser identificadas são as que envolvem autorizações para rádios comunitárias. Houve um aumento muito grande de concessões para essas rádios pelo governo federal – e isso, evidentemente, muitas vezes em troca de apoio político. Então o coronelismo eletrônico ocorre bastante nas radicoms.

É possível pensar em desenvolvimento nacional, mantido o oligopólio nas comunicações?
Eu não tenho elementos para afirmar se o oligopólio amarra ou não o desenvolvimento. Do ponto de vista da democracia, ela tem avançado independente dos meios de comunicação. Aqui ou alhures. Aonde os meios de comunicação tentaram impedir o avanço democrático nas últimas décadas, eles foram empurrados, a exemplo do que aconteceu na Venezuela.
Não vejo como um jornal que tenha perdido tiragem, uma televisão que tenha perdido audiência, ou um grande grupo televisivo que tenha perdido audiência para outro grande grupo televisivo possa impedir o desenvolvimento do país. Também a qualidade das produções tem caído independente da democracia. Há um movimento da sociedade que questiona vários programas de televisão. Mas isso tem ocorrido a bem da democracia.
E também não é pela concentração, porque tem veículos até de natureza pública em que a produção é de péssima qualidade. Não tenho elementos para uma análise mais precisa, mas claro que, em vários países do mundo, a história mostra que o monopólio da mídia atrasou o movimento da sociedade. Seja aqui, seja, por exemplo, no socialismo real da Europa.
Veja a eleição do Chávez [Hugo Chávez, presidente da Venezuela], apesar do monopólio midiático lá no país, ele foi eleito. Aqui no Brasil, com o Lula, idem. E não se pode dizer que não houve avanço democrático aqui.
O próprio debate eleitoral ocorre. Hoje, apesar do monopólio dos grandes grupos, com suas candidaturas próprias, não se pode dizer que não esteja havendo um debate público e democrático sobre as eleições. Estamos vivendo um ambiente democrático que é liberal. Mas estamos.

E para a comunicação em geral, qual o efeito desse monopólio?
Ele não pode se perpetuar sob hipótese alguma, porque há de ter um momento que eles [os donos dos grandes veículos de comunicação] vão intervir, quando sentirem seus interesses mais profundos ameaçados.
O monopólio, o oligopólio nunca é benéfico. Aqui no Brasil, ele está dentro dos limites. Houve alguns momentos que eles se insurgiram, como na questão do Conselho Federal de Jornalismo, na tentativa de se criar uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica. Na própria Conferência Nacional de Comunicação eles se insurgiram. São momentos em que a gente se sente ameaçado, mas existe uma atuação da democracia.

Então, a democracia avança, apesar disto. Por quê?
Porque a humanidade avança democraticamente. As conquistas dos trabalhadores ao longo da história da humanidade têm empurrado os atrasos dos grilhões do capitalismo. Até para a experimentação de modelos menos repressivos. As experiências socialistas do Leste europeu que amargaram derrotas e amordaçaram em vários momentos as liberdades, elas foram vencidas e vem algo novo aí pela frente. Eu não sou pessimista nesse sentido, agora, o caráter revolucionário das novas mídias é que eu não vejo.

As novas mídias não são revolucionárias? Por quê?
Porque os grandes grupos já as controlam. Independentemente dos tuiteiros, dos blogueiros. A internet só avança para a classe média, que tem acesso. No Brasil, só 13 milhões de pessoas têm acesso à internet. Dos mais de 190 milhões de habitantes [191,5 milhões em julho de 2009, segundo o IBGE], 40 milhões não têm nem telefone. Tanto faz estar no twitter ou fora dele. No interior do Maranhão, onde mais de 200 mil famílias não têm energia elétrica, isso não faz diferença. Lá, ouve-se e assiste-se a rádio e a TV Mirante, do grupo Sarney [O grupo é dono de 22 veículos no Maranhão. Veja aqui a participação do Sistema Mirante na região.

Os novos meios digitais de comunicação não poderão minimizar o poder dos donos da mídia?
Não. Como já falei, eles [os donos da mídia] estão participando direta ou indiretamente das novas mídias. Acho que apenas vai mudar o modo de produção. A ferramenta, ou vai ser banda larga/internet ou televisão, mas os meios vão ser os mesmos. Não vai haver alteração.
O número de pessoas no país que têm acesso é muito pequeno, comparativamente, ao número de leitores de jornais e livros, e nada foi alterado com a internet. A natureza revolucionária da internet é tão relativa quanto foi a imprensa escrita no início do ano de 1700, quando Gutenberg inventou a imprensa escrita e não houve grandes transformações de natureza revolucionária.
Para mim, a internet não tem essa base revolucionária, porque ela foi apropriada pelo Estado e os grandes meios de produção. Nem sou desses sonhadores que acredita que a internet vai ser a grande mídia nos próximos anos – haja vista a eleição do Obama [Barack Obama, presidente norte-americano] nos Estados Unidos, presidente que pouco se diferencia do seu antecessor [ex-presidente, George W. Bush].

No Brasil, quais políticas de comunicação poderiam eliminar a concentração dos meios?
Não acredito que nenhum dos candidatos tenha interesse em mexer no quadro regulatório dos meios de comunicação no país. Participei do debate nas últimas seis eleições, na formulação de políticas públicas para a democratização da comunicação e ninguém quis colocar em prática essas formulações. Não creio que isso seja possível. Senão, era só implementar tudo o que o movimento social propôs e repropôs, em 1989, 1994, 1998, em 2002, em 2006. Mas já não creio que haja um governo comprometido com o que se propunha lá, como, por exemplo, o fim do monopólio dos meios de comunicação.

Hoje, o que você acrescentaria nessas formulações?
Banda larga para todos os brasileiros. Como no caso da energia elétrica. Eu fui um dos formuladores do Luz para Todos, coordenador na Amazônia do programa, e sempre defendi também banda larga para todos.

Você diz que nenhum candidato tem interesse em acabar com o monopólio. Mesmo com a Conferência Nacional de Comunicação, nada mudou?
Eu quero que nos próximos debates seja cobrado de cada candidato [a presidente do País] uma posição clara, item por item, do que foi aprovado na Confecom [Conferência Nacional de Comunicação, realizada de 14 a 17 de dez/2009, em Brasília]. As decisões da Conferência são resultado do acúmulo dos debates da comunicação nos últimos 20 anos. A maioria do que está escrito ali, foi Daniel Herz quem escreveu, eu mesmo copiei, o PT assumiu e disse que ia implantar, mas não implantou nada. Tem que impor objetivos, senão é perda de tempo.
Para mim, a Confecom que tivemos foi apenas a conferência possível. Ainda não me sinto contemplado, não me satisfaço só com a boa vontade. Eu quero é transformar.
Mesmo assim, viva a Conferência! Não posso deixar de ressaltar o mérito da sociedade civil, porque é uma luta histórica nossa, e eu fui testemunha ocular dessa luta ao longo de vinte e poucos anos.
A Conferência prestou uma homenagem emocionante ao Daniel Herz, mais do que merecida. Tenho certeza de que se ele estivesse aqui, com todas as dificuldades que se teve, com os poucos avanços, ele estaria vibrando com a realização da Conferência. E acho que ele iria pegar o resultado dela, botar debaixo do braço e andar o Brasil inteiro cobrando a implementação das resoluções. E todos aqueles de boa índole, íntegros e com compromisso com as transformações têm que fazer disso uma bandeira. Mesmo que os candidatos não atendam.

*Israel Bayma – Engenheiro eletrônico, conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), pesquisador do Laboratório de Políticas em Comunicação (LapCom) da Universidade de Brasília e do Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia política da Informação e da Comunicação (PEIC) da UFRJ. Ex-assessor especial da Casa Civil da Presidência da República, ex-assessor da Liderança do PT na Câmara, já atuou como diretor de Planejamento e Engenharia da Eletronorte e assessor da Companhia Energética de Brasília. Também foi diretor do Comitê de Incentivo ao Software Livre e Gratuito – CIPSGA.