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“É um tapa na cara, de quão distante de um jornalismo independente e crítico a gente está”

Surpreende o fato de que um Estado árabe, monárquico, teocrático e ultra-conservador é o responsável pela maior experiência mundial de TV voltada para o interesse público. Estamos falando da Al Jazeera, emissora estatal do Qatar, um pequeno e rico país do Oriente Médio. E quem nos conta detalhes sobre este projeto raro de jornalismo sério e independente é a jornalista Bia Barbosa, que passou um mês na redação de um dos canais da emissora. Atualmente ela integra o Coletivo Intervozes e colabora com veículos da imprensa alternativa. Para exemplificar o enfrentamento da Al Jazeera à lógica dominante nos meios de comunicação, Bia lembrou que todo o conteúdo da rede é licenciado em creative commons, que dispensa qualquer título de propriedade sobre a informação.

De onde surgiu essa ideia de ter uma experiência na Al Jazeera e como você chegou até lá?

Eu sempre acompanhei a Al Jazeera, todos nós jornalistas da imprensa progressista e alternativa temos nela uma fonte de informação importante, e tive a felicidade da minha família morar em Doha por um ano. O meu pai está trabalhando num projeto para o governo do Qatar. Quando eu decidi que ia para lá no final do ano passar férias, achei que era uma possibilidade interessante de tentar uma experiência na Al Jazeera. Então entrei em contato com eles solicitando a possibilidade de fazer um estágio.

Meu objetivo não era fazer um trabalho remunerado e eles acharam interessante o meu currículo, e precisam sempre de gente lá. Eles têm vários canais e eu fiquei no canal de notícias em inglês. São 65 escritórios em países diferentes, mas a sede é em Doha, onde fica a maior parte da estrutura dos canais. O canal inglês é como se fosse uma CNN, uma BBC, um canal de notícias 24 horas. A Al Jazeera já existia no país mas virou uma televisão internacional durante a guerra do Iraque, e o canal inglês foi lançado em 2006.  Ele é voltado para o exterior, mas também passa na televisão aberta do Qatar em inglês. Até porque o Qatar é um país que tem 2/3 da sua população de estrangeiros.

Eles estão presentes em mais de 60 países com correspondentes?

O English Channel, como eles chamam, tem escritórios em 65 países e os dados oficiais falam em jornalistas em 60 países em todos os continentes, inclusive na América do Sul e África. Eles têm um correspondente no Brasil, chamado Gabriel Elizondo, que fica em São Paulo mas viaja por todo o Brasil, cobre muito o Congresso também. Eles têm alguns colaboradores freelancers também. Já o canal de notícias em árabe, também 24 horas, não tem correspondente no Brasil. Não me peçam para fazer uma avaliação desse canal porque eu não falo árabe (risos).

O que você fez nesses 30 dias por lá em janeiro? Trabalhou como qualquer outra jornalista?

Trabalhei como jornalista. O English Channel da Al Jazeera tem dois grandes departamentos:  o que a gente pode chamar de hard news e o de programas. Naquele são notícias que vão entrando 24 horas com um apresentador de estúdio, com notícias que se repetem ao longo da programação. Essa parte é gerada por 4 países ao longo das 24h, de acordo com o fuso horário: 12 horas são geradas da sede de Doha, no Qatar, e 4 horas de Kuala Lumpur (Malásia), 4 de Londres e 4 de Washington. Se eles quisessem poderiam manter um equipe 24h gerando isso de Doha, mas tem ai também uma questão de ter sedes em outros países e uma geração local desses centros de informação.

O outro departamento é de programas de meia hora, veiculados ao longo do dia. A grade de programação é dividida entre meia hora de programa e meia hora de jornalismo ao vivo. Inclusive o padrão de estúdio é muito parecido com esses grandes canais internacionais de jornalismo. Eu fiquei no departamento de programas, e senti que é onde a Al Jazeera mostra seu diferencial na cobertura jornalística, à exceção da cobertura dos países árabes, porque ali eles têm especialidade e muito mais equipes. Onde a Al Jazeera aprofunda os temas, é plural de forma mais explícita, faz um enfrentamento editorial nas pautas em que acha necessário, é nos programas jornalísticos.

Eu trabalhei para eles basicamente como auxiliar na elaboração de um programa de economia sobre mercados emergentes. Eles queriam falar do Brasil, da China e da Índia. E estavam começando a produzir um piloto desse programa que ainda não foi para o ar. Eu levantei informações e contribui um pouco para eles montarem esse programa de economia.

Você tem algum exemplo latente para demonstrar o diferencial editorial dos programas?

Na última semana em que estava lá, começou a ocupação da Praça Tahrir e os protestos contra Mubarak. Eles faziam esses programas de meia hora indo fundo na questão do Egito, muito além do que você conseguia dar no noticiário 24 horas. Nesses programas eles aprofundavam a história, as origens e consequências dos protestos, e entrevistavam pessoas. Programas de debate, é uma coisa que a gente só tem no Brasil na TV por assinatura para quem pode pagar, são muito comuns lá. Na grade de programação há programas de debate sobre literatura, sobre conjuntura, uma série de documentários de meia hora, programas sobre a Ásia, etc.  Não é que não haja diferença na cobertura do hard news, claro que há, mas é  nesses programas que eles conseguem mostrar um diferencial maior.

Saindo um pouco dessa questão jornalística, indo um pouco para a política, a Al Jazeera é uma TV estatal do governo do Qatar?

Ela é estatal porque é totalmente financiada pelo governo do Qatar, mas o ethos dela, se a gente pode falar assim, é público. Ela não tem mecanismos de participação popular, mas a programação não é de uma emissora estatal, é de uma emissora pública. Eu não consegui avaliar a cobertura do canal árabe, que é onde talvez a influência do governo se manifeste de forma mais explícita porque é o canal diretamente voltado para a população de lá. Mas no canal inglês eu não senti na cobertura que era feita e nem nos programas onde eu estava qualquer ingerência do Qatar. Não tem propaganda. Nesse mês que eu fiquei lá só vi uma matéria sobre o Qatar que falava de uma parceria do governo com os países árabes para a exploração de um poço de petróleo descoberto no Golfo Pérsico.

A rede também promove vários eventos públicos e debates sobre temas da conjuntura. Participei na última semana em que estava lá de um fórum sobre liberdade de expressão e jornalismo online. Eles estavam discutindo a conjuntura com blogueiros do mundo árabe, a partir da questão das redes sociais que tinha sido utilizadas nos protestos no Egito e na Tunísia; nos outros países ainda não tinha estourado as revoluções. E eles levaram blogueiros de todos os países pró e contra seus respectivos governos, e fizeram a transmissão ao vivo do evento no canal árabe por dois dias inteiros. E houve críticas ao governo do Qatar em relação a determinadas restrições da liberdade de imprensa no país em outros veículos, e os dois dias do evento foram transmitidos ao vivo sem nenhum tipo de corte.

A Al Jazeera compra um tipo de enfrentamento político com vários governos da região, com uma autoridade jornalística maior porque tem gente in loco e conhecimento maior do que CNN e BBC para cobrir essas questões. Em vários países as equipes da Al Jazeera já foram expulsas por denunciarem fatos e informações que desagradam politicamente os governos dos países árabes. A Al Jazeera é adorada pelo povo e muitas vezes detestada pelos governantes.

Essa linha editorial de enfrentamento a outros governos árabes é uma coisa da redação ou uma orientação política pelas relações que o governo do Qatar tem com outros países na região?

O pouco tempo que eu fiquei lá e o contato que tive com a direção da empresa não me permitem responder isso com certeza. A minha avaliação pessoal é que não. Acho que não é orientação do governo do Qatar, é jornalística. Inclusive porque não é um tipo de jornalismo meio factóide, é uma cobertura da realidade, do que está acontecendo. Então se o país está em greve, se os sindicatos estão nas ruas, se a população está protestando contra alguma coisa, se está morrendo gente nos hospitais, tem fatos ali que precisam ser mostrados e eu sinto que a Al Jazeera não se nega a mostrar isso independente de divergências políticas que ela vai ter com o governo desses países.

Se a gente for olhar, é claro que tem contradições no governo do Qatar. Por isso não posso dizer não há ingerência editorial. A Al Jazeera  é uma emissora muito crítica no seu jornalismo ao governo dos Estados Unidos, daí inclusive o espaço que ela ocupou internacionalmente, além de ter informações que grandes emissoras internacionais de notícias não têm. Mas se você for olhar, o governo do Qatar abriga uma base de soldados americanos no seu território, tem uma cidade no norte do Qatar que é base deles no Golfo, o que mostra que tem interesses de governo em manter algum tipo de aliança com o governo dos EUA. Mas se a gente for olhar a cobertura da Al Jazeera é quase como se fosse de um governo inimigo do governo dos Estados Unidos, porque ela é muito crítica.

A questão econômica e militar geralmente prevalece sobre a questão jornalística, ou seja, no caso da Venezuela eles metem o pau mas não param de vender petróleo para os EUA.

Mas isso também nos dá uma boa medida para a gente fazer uma avaliação sobre se há ingerência. A questão da liberdade jornalística atrai muito os jornalistas que vão trabalhar lá, e no English Channel a imensa maioria dos que trabalham na sede de Doha já passou por outros veículos, como CNN e BBC. Então o fato de ser uma cadeia gigante, porque a Al Jazeera não é só o jornalismo, o fato dela ser totalmente financiada pelo governo do Qatar não impede, não sei se contraditoriamente, que esses jornalistas trabalhem com mais liberdade do que a que eles têm dada pelo mercado.

E qual a abrangência da Al Jazeera?

Os números oficiais são de 220 milhões de casas recebendo o sinal da emissora em mais de 100 países. A rede Al Jazeera tem 3 mil funcionários, dos quais 400 jornalistas, nesses 65 países. A maior parte desses escritórios está no hemisfério sul. Eles têm uma opção de cobrir mais o sul mas cobrem muito bem o norte, tanto que geram conteúdo a partir de Washington e Londres. Esses funcionários fazem parte de uma rede que não atende somente ao English Channel ou ao canal árabe. Um passa o campeonato espanhol de futebol, o outro o brasileiro, outro inglês… Eu assisti jogo do Palmeiras lá. Os canais de esportes são promotores de eventos. Antes dos jogos da Copa da Ásia, que aconteceu em Doha,   havia shows de cantores árabes com banners da Al Jazeera no palco e gente distribuindo brinde da emissora pro povo. Então se você pensar em termos de marketing de televisão, a Al Jazeera é muito mais poderosa do que a nossa Globo aqui, por exemplo.

Tem muita gente do ocidente na produção da Al Jazeera, então o oriente acaba sendo visto pelo ponto de vista ocidental. Não rola uma disputa de linguagem?

O English Channel não se apresenta como um canal oriental, ele não afirma isso na sua linguagem. Eles se reivindicam uma emissora internacional de jornalismo. Eles falam que têm a maior expertise para cobrir a diversidade do mundo, é por isso que eles têm muitos correspondentes na Ásia, África e no mundo Árabe como um todo. Mas eles trabalham com jornalistas locais. Em Washington repórteres americanos que trabalham na Al Jazeera, que estão lá para ouvir a posição dos Estados Unidos.

 

Você teve contato com os jornalistas ou pessoas lá, a ponto de sentir como eles percebem a apresentação do Oriente pela mídia internacional?

Eu trabalhei diretamente com uma sulafricana e outra inglesa que tinha trabalhado na BBC, e muita gente de origem e família árabe. Mesmo que as pessoas sejam de outros países, se você tem algum tipo de vínculo com o mundo árabe isso te favorece de alguma forma no processo de seleção para trabalhar lá. O que eu senti é que eles têm um conhecimento muito maior que o das outras emissoras internacionais para falar da realidade do Oriente. E o que eles buscam fazer é justamente ouvir a população. É uma rede internacional mas com um olhar local, feita a partir do locus original.

Então tem muitos estrangeiros na redação?

No canal árabe são todos árabes, de vários países da região. Mas como eu não fiquei na redação, não sei dizer se a maioria era de qataris. Já entre os jornalistas a maioria era de estrangeiros. As pessoas do país eram assim mais a secretária, os funcionários. Tinha um jornalista de origem árabe que veio do Canadá, tinha gente da Palestina, do Iraque, gente muito boa. Conheci um cameraman que cobriu a gerra do Iraque. Ele até virou blogueiro, esteve na batalha de Falluja, em 2003, um dos massacres da Guerra do Iraque. A cidade ficou cercada e só tinha dois câmeras lá dentro, e ele foi um deles.

A Al Jazeera é só TV?

Não. A rede tem um site com produção própria, com várias matérias e uma seção de análise com uma equipe própria. Não há veículos impressos na Rede. Em relação ao rádio, não ouvi falar, mas como a rede é de “broadcast” (radiodifusão), é possível que tenham alguma emissora. Na internet você pode assistir ao vivo a programação do English Channel e do canal árabe. Eu perguntei por que o canal internacional não passava no Brasil, e eles responderam: é uma boa pergunta! Deu a entender que existe uma dificuldade em função da concentração das empresas que controlam a TV por assinatura no Brasil, mas ninguém me falou isso oficialmente. Mas a Al Jazeera faz uma campanha para ampliar seu alcance no mundo. Há uma campanha no site deles para você, se for cidadão americano, pedir a transmissão da Al Jazeera nos Estados Unidos, porque ela não passa em algumas cidades. Na América Latina só tem na Argentina.

Você falou que o povo gosta muito da Al Jazeera, o povo tem voz na emissora?

Não tem mecanismos diretos de participação popular, mas conversando com os jornalistas, eles contam que, em campo, sentem uma receptividade muito grande. Uma jornalista brasileira esteve na Jordânia, num Fórum de comunicação, e contou que todos os jornalistas que estavam lá falavam diziam que o povo árabe gosta muito da Al Jazeera, porque ela fala a verdade sobre os governos que as respectivas emissoras estatais não deixam vir à tona. Ela compra esse tipo de enfrentamento.

Quando eu estava lá, a Al Jazeera divulgou uma série de documentos que revelavam segredos da negociação da Autoridade Palestina com o governo de Israel. O caso foi chamado de “Palestina Papers”, um vazamento de documentos que mostravam que a Autoridade Palestina estava entregando o jogo para o governo de Israel. E a Al Jazeera tem um posicionamento institucional em defesa da causa palestina, eles cobrem sistematicamente, mostram todos os massacres feitos por Israel.

Qual é a desse governo do Qatar? Que país é esse politicamente falando?

O emir que dirige o Qatar é filho do emir anterior. Lá é uma monarquia, o país é um emirado. É um Estado islâmico, que tem na sua constituição a religião. E não há um questionamento da monarquia, já é fato que vai haver um herdeiro, tudo é a família real que decide. Não há congresso, não há representantes eleitos pelo povo, e o filho mais velho do emir vai ser o próximo emir. Tanto que nos grandes eventos, como quando o Qatar ganhou a Copa, a cidade ficou enfeitada de fotos do emir com o filho dele carregando a taça.

O emir tem mais de 20 filhos com três esposas, cada um deles é ministro de alguma coisa. Por que o pai desse emir saiu antes de morrer? Porque começou a haver um tipo de enfrentamento mais duro aos Estados Unidos pelo Qatar nos anos 90, de questionar posturas e falar publicamente contra, e havia suspeitas de corrupção e de desvio de recursos para fora do governo. Essas duas coisas se somaram e os Estados Unidos mandaram um recado: “você sai do governo ou a gente não vai mais considerar o Qatar um país parceiro”. E o atual emir se aliou com os Estados Unidos para derrubar o próprio pai em 1995. Então o atual chefe de Estado chega ao poder com um apoio considerável dos EUA, que, em função do recrudescimento da posição dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, vai diminuindo. Depois de 1995 houve a guerra do Kwait, do Iraque, a questão de Israel e Palestina se intensificou, então houve uma diminuição dessa parceria. Ainda mais agora com esses conflitos todos.

Por outro lado o Qatar tem seus interesses também, a ponto de fazer uma aliança com a Otan para tirar o Kadaf da Líbia, por exemplo. Então se você me perguntar se é um governo progressista, não é, mas  é um governo mais progressista que a sociedade. Tem várias questões de cultura islâmica muito arraigadas na sociedade que o governo tenta mudar e encontra uma resistência muito grande. A sociedade é mais conservadora que o governo. O maior problema do Qatar na minha avaliação, é a questão dos trabalhadores migrantes. Como o país não tem mão de obra e está crescendo, é o segundo maior exportador de gás do mundo, com a construção civil bombando, e os qataris se recusam a fazer o trabalho braçal, eles chamam gente de fora. Não tem trabalhador clandestino. Entra todo mundo com visto de trabalho, com moradia, com contrato definido, só que há uma exploração brutal desses trabalhadores. São pessoas de várias partes, mas a maioria de países árabes e do sudeste asiático.

Mas por outro lado o país não tem miséria?

Não tem miséria, não tem ninguém morando na rua, sem trabalho ou passando fome. Inclusive eles têm moradia, alimentação e transporte pagos pelas empresas, eles têm essas garantias. Só que é um trabalho quase escravo, porque se eles quiserem ir embora antes do contrato final de trabalho, por exemplo, a empresa retém o passaporte dos trabalhadores. O governo começou a consultar a população, abrir diálogos públicos, sobre a flexibilização da chamada “lei de patrocínio” a ida dessas pessoas para o país, e 80% da população qatari é contra mudar a lei. Porque, afinal, eles vão perder os seus escravos particulares.

O que você, como militante pela democratização da comunição, acha disso e o que podemos fazer aqui no Brasil?

O modelo da Al Jazeera é muito diferente. Ela nasce como uma empresa estatal e o fato de você ter o governo do Qatar botando dinheiro nisso para levar seu sinal para o mundo inteiro, inclusive com essa campanha de pedir para a Al Jazeera passar nos Estados Unidos, é algo muito diferente do que temos aqui. Por mais que a Telesur, por exemplo, tenha buscado a parceria dos outros governos para fazer esse tipo de enfrentamento ela não encontrou respostas no Brasil. A gente ainda está engatinhando em relação a isso, estamos lutando para conseguir ter uma televisão pública nacional de fato. Uma TV com participação popular e que reflita os anseios da população brasileira em termos do seu exercício do direito à comunicação. A Al Jazeera vai ser sempre uma inspiração para a gente, não para copiar um modelo, porque isso nunca vai acontecer aqui, de o Estado brasileiro colocar recursos desta ordem numa emissora, nem acho que esse deveria ser o caminho, mas uma inspiração pelo seu jornalismo.

Eu acho que assistir ao jornalismo que a Al Jazeera faz nessas 24 horas por dia é um tapa na cara, de quão distante de um jornalismo independente e crítico a gente está. E acho que é para a gente assistir e ver como é possível fazer um jornalismo diferente. Um jornalismo crítico e que provoque o telespectador a pensar, e isso inspira a gente a seguir lutando por transformações no Brasil.

“O governo nunca quis fazer política de universalização”

Lançado em maio de 2010 o Plano Nacional de Banda Larga ainda gera dúvidas em diversos de seus quesitos, como a definição dos serviços públicos, o preço de acesso a massificação ou universalização do acesso.

O professor do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcos Dantas, reconhecido por transitar bem dentro dos movimentos sociais, governos e até segmentos empresariais, avalia o desempenho do governo até o momento e os novos rumos sinalizados pela nova gestão do Ministério das Comunicações.

 

As últimas intervenções do governo no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) têm frustado a sociedade?

Estou sentindo nas pessoas que a expectativa otimista, inicial, caiu bastante. Existe o sentimento que o governo teria recuado nos seus propostos originais. Particularmente, sempre fui crítico de como o PNBL foi formulado. Tenho impressão que agora estamos caindo na realidade sobre o plano.

O pessoal ficou muito entusiasmado, o que se justifica. O fato do governo ter uma política para ampliar o acesso da banda larga merece aplausos de todos. E acabou por permitir uma articulação social e política favorável. Mas o plano tem problemas sérios, antes, ainda no governo Lula, e continua tendo.

Quais são os principais problemas?

O principal problema é a não definição do plano em regime público. Isso é uma questão estrutural. Minha expectativa é que do jeito que está formulado teremos dois tipos de atendimento a banda larga. Os que podem pagar vão ter acesso as melhores condições. E quem só pode pagar R$ 35,00 vai acessar um sistema de má qualidade. O que é muito típico de nossa sociedade. É a mesma situação que temos na educação. Os pais que podem pagar escola, acreditando que dará melhor formação aos filhos, pagam! Só vai para a pública quem não tem condições e sabemos que a escola pública no Brasil é de péssima qualidade.

O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, acena para ampliar a concorrência no mercado, como forma de acelerar o Plano, quais as consequências desta iniciativa?

As iniciativas do Paulo Bernado vão resultar num aprofundamento do modelo herdado por FHC. Qual foi o modelo? Tem um serviço em regime público (a telefonia fixa) que vai acabar. Uma porção de tecnologias está nascendo, algumas bem visíveis, como o celular e internet, outras coisas vão surgir, como o wi-fi. Tudo que surgir daqui pra frente será resolvido pelo mercado por ser regime privado. E o regime público acaba por morte.

Poderíamos esperar que os governos Lula e Dilma restaurassem o princípio do regime público. Mesmo que continuasse o regime privado em muitas áreas, as que fossem consideradas essenciais para sociedade ou estratégicas para o país, serem de regime público. O celular é um exemplo: hoje ele não é mais apenas de elite. Mas a maioria das pessoas usa pela metade. Como os celulares pré-pagos têm tarifas proporcionalmente mais caras que os pós-pago, acaba fazendo com que o rico pague menos que o pobre. Numa situação dessa é preciso uma política que aponte regime público, tarifário, universalize e acabe a necessidade ter três ou quatro telefones para receber ligação.

A Telebrás não está citada no documento “Brasil Conectado” – publicação do Governo com o diagnóstico e estratégias do PNBL. Porém ocupa espaço relevante na agenda política em relação aos rumos do Plano. Como você enxerga o papel da Telebrás?

A Telebrás, por ser ferramenta que criaria essa dicotomia (usuários que podem pagar acesso de qualidade x usuários com internet de má qualidade por falta de renda) já é passível de questionamento. Qual o principio dela? Fomentar a concorrência. Primeiro, não se faz política de universalização através de concorrência. O governo nunca quis fazer política de universalização: ele propõe massificação, ampliação do acesso. Ao permitir essa massificação, a Telebrás teria um papel de dar acesso a quem só pode pagar R$ 35,00.

Quais os impactos da saída do Rogério Santana da Telebrás?

Isso é disputa de poder. Não é essencial. É muito mais aquela coisa: “dois bicudos não se beijam”. O mais importante nessa história é manutenção da concepção de que é preciso aumentar a concorrência para gerar massificação e a repulsa do governo em discutir o regime público para a banda larga.

A decisão da Anatel de considerar o backhaul um bem reversível é demonstração de que a Agência tem avançado para ações mais progressistas?

Lamento, acho que não. Todas as críticas que a sociedade faz às concessionárias são justas, mas elas deviam ser endereçadas a Anatel. A concessionária é uma empresa privada que detém concessão do Estado para executar determinadas tarefas. O conceito é de uma empresa que está fazendo algo por delegação do Estado. Cabe ao Estado, que tem o poder de delegar, acompanhar pra saber se os concessionários estão cumprindo as tarefas.

Havia hipertrofia no papel da Anatel, ao formular e executar a política, isso tem sido atenuado pelo Ministério das Comunicações (Minicom)?

O Minicom está querendo assumir o protagonismo na formulação. Para isso, ele precisa ter capacidade de pensar, coisa que rigorosamente não tem. Porque foi esvaziado no governo Fernando Henrique Cardoso e não foi reconstruído no governo Lula. Então a Anatel acaba cumprindo esse papel. A Agência, tem hoje, mal ou bem, uma equipe técnica que lhe permite pensar em algumas coisas.

Atualmente não dá pra afirmar que o Minicom irá se reconstruir e assumir o papel formulador, parece que tem essa intenção, mas não dá para afirmar. Daqui um ou dois meses, será possível um diagnóstico melhor.

Esse problema não está ligado apenas ao esvaziamento do Minicom, o problema também está na lei (Lei Geral de Telecomunicações) criada no governo Fernando Henrique. Ela dá ao Executivo poder de fazer decretos sob algumas minimas questões, como criar uma modalidade de serviço público. Na verdade, nas condições que a lei está, o poder executivo só pode baixar o decreto se receber da Anatel um estudo necessário. O que deixa o Minicom refém da iniciativa da Agência, quando deveria depender apenas dele. Deveria ter a máquina trabalhando para formular política. Infelizmente no governo Lula não se avançou nisso. Vamos ver o que a Dilma pretende fazer de fato.

O PNBL tem realmente revitalizado o parque tecnológico brasileiro na indústria das tecnologias da informação e comunicação?

Isso foi o grande positivo deste projeto: utilizar o poder de compra do Estado brasileiro para desenvolver a industria nacional. Nas primeiras licitações da Telebrás, tentou-se aplicar esse princípio: isso é fato. Tentou-se organizar os remanescente dos antigos membros da área, para que pudessem entrar na disputa. Até onde eu saiba, existe um esforço nesse sentido. Se esse esforço vai pra frente, é uma questão a se avaliar mais pra frente. Mas tenho expectativa que isso avance.

 

“Temos de induzir o ambiente regulatório para existir concorrência”

A Telebrás assinou dia 8 de junho o primeiro contrato do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Do outro lado da mesa, estava um provedor de acesso à internet, a Sadnet, que alugou a rede de cabos administrada pela Telebrás por um preço menor do que cobrava o fornecedor antigo, privado. Com isso, os moradores de Santo Antonio do Descoberto, em Goiás, poderão, se quiserem, comprar acesso a uma internet mais veloz (um mega) por uma mensalidade mais barata (R$ 35).

Esse é o espírito original do PNBL, concebido ainda no governo Lula. Colocar os cabos estatais sob a guarda da Telebrás e usá-los contra as telefônicas privadas, que cobram caro do cliente final e ainda oferecem velocidades baixas. A possibilidade de a própria Telebrás ir à casa das pessoas para vender, ela mesma, acesso à internet, em vez de ter um parceiro privado, como a Sadnet, não será usada, se depender do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo.

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o ministro diz que a atuação da Telebrás como provedor seria “completamente insensata” e um “despautério” para uma empresa com menos de 200 funcionários. O entendimento sobre o papel da Telebrás, segundo ele, foi a causa da demissão do ex-presidente da empresa, Rogério Santanna, que estaria mais interessado em botar a estatal para operar de porta em porta.

De acordo com o ministro, o início da atuação concreta da Telebrás na banda larga, cujo objetivo inicial era “massificar” a penetração da internet veloz no país, permite que o governo comece a pensar na efetiva “universalização” do serviço. “É um desdobramento natural do PNBL”, afirma Bernardo, que acha que pode ser necessário dar “subsídios” a brasileiros mais pobres para quem uma mensalidade de R$ 35 ainda é cara.

Na entrevista, o ministro fala também sobre marco regulatório da radiodifusão, revisão das regras de outorgas de rádio e televisão e dos Correios, entre outros assuntos. Abaixo, o leitor confere os principais trechos da entrevista, concedida no mesmo dia em que a senadora Gleisi Hoffmann, esposa de Bernardo, foi indicada pela presidenta Dilma Rousseff como chefe da Casa Civil, no lugar de Antonio Palocci. Até então, Bernardo era um nome ventilado para o cargo.

Ministro, a conjuntura política impõe que a primeira pergunta desta entrevista seja: qual será o prazo de validade dela? Tem gente dizendo por aí que o senhor pode sair daqui no fim do caso Palocci…

Paulo Bernardo: Não faz sentido a presidenta me tirar daqui. Eu ainda não fiz quase nada até agora, tenho uma agenda importante, ela já vai me mandar para outro lugar?

Tudo bem… Por que houve a troca na presidência da Telebrás?

O Rogério Santanna trabalhou comigo no ministério do Planejamento, quando cheguei lá, ele era secretário de Logística e ficou até sair para a Telebrás, com meu apoio inclusive. Aqui no Ministério das Comunicações, achei que devia mantê-lo, até porque já o conhecia. Tive pelo menos duas conversas muito claras com ele sobre qual era nossa estratégia de trabalho, e me convenci de que ele não concordava, a visão dele é outra. Deixei claro para o Rogério que não vejo cabimento na Telebrás pretender fazer venda de internet no varejo, de casa em casa. A empresa tem 150 funcionários aproximadamente, talvez um pouco mais, não chega a 200. Vamos querer ter atuação nacional no varejo? É uma coisa completamente insensata.

A possibilidade de a Telebrás atuar no varejo esta descartada?

Essa possibilidade sempre foi apresentada pelo governo, desde a época de discussão do Plano Nacional de Banda Larga, de que participei. Na hipótese de ninguém querer fazer determinado serviço em determinda região, nós teríamos um agente do Estado para fazer. Mas isso não pode ser transformado numa regra, numa aspiração. É uma coisa completamente inviável para a realidade do Brasil e da Telebrás.

Mas sem essa possibilidade colocada, é possível levar banda larga mais barata e mais veloz para as pessoas? As teles privadas não precisam pelo menos do fantasma da concorrência?

Elas precisam do fantasma não, elas precisam de concorrência efetiva. E eu acho que nós temos de induzir o ambiente regulatório para elas terem uma concorrência. Claro que setores que fazem cabo subterrâneo para fazer ligação tendem a ser monopolistas. Nos países desenvolvidos, cada localidade tem pelo menos dois atores, às vezes, três, quatro… Nós temos de fazer isso aqui também, e a Telebrás é preciosa nesse aspetco. Mas a concorrência não é só no varejo, é no atacado. A Telebrás vai ser decisiva no estabelecimento de um mercado competitivo aqui, mas no atacado. Vender de casa em casa é um despautério.

A universalização da banda larga é algo que já se começa a construir dentro do ministério ou é uma idéia que, por enquanto, está só na sua cabeça?

É um desdobramento natural do PNBL. Vamos ter que olhar quem pode comprar e quem não pode. Ao preço de 35 reais por mês, nós vamos ter uma redução de preços expressiva, mas ainda assim vai ter gente que não vai poder pagar. E aí acho que é o caso de o Estado pensar uma política de dar acesso, dar subsídio. Mas isso é uma coisa para ser pensado junto com outros ministérios.

Qual a situação do marco regulatório da radiodifusão hoje?

Ele foi nos entregue quase pronto. Falo “quase” porque, quando o Franklin Martins [ex-ministro da Comunicação Social] me apresentou, ele disse que não teve tempo de acabar. Fizemos uma revisão completa do texto, para ver o conteúdo que foi colocado e se eventualmente tem incorreção. Tenho uma visão muito clara: se tiver qualquer escorregão de redação, uma expressão mal colocada, essa vai ser a discussão. Há interesses muito poderosos que são contra fazer um marco como esse. Nós também pretendemos ampliar o projeto, porque a opção do ministro Franklin Martins foi de não entrar em discussão na área de telecomunicações, e nós achamos que isso precisa ser feito. A mídia tende a ser convergente, vai cada mais embaralhando o que é radiodifusdão com o que é telecomunicações, um vai fazer o que é suporte para o outro. Estamos conversando já com outros ministérios sobre isso. Aí teremos de resolver se vamos colocar em consulta pública.

A revisão do texto já acabou?

Está praticamente pronta. Esses dias falei com a presidenta, apresentei um rápido relato para ela. A opção que foi feita pelo ministro Franklin é de propor duas agências reguladoras. Eu sei e entendo porque ele fez isso. Mas apontei pra ela: acho que temos uma dificuldade muito grande de separar o que é uma coisa, o que é outra, qual vai ser a atribuição de cada uma… Se nós formos fazer uma opção apenas conceitual, vamos propor apenas uma agência só. O problema é que nós temos duas agências hoje. Mas, conceitualmente, sou a favor de uma agência só.

E qual foi a reação da presidenta?

Ela quer conversar, está interessada no assunto. Essas coisas não podem ser despachadas no corredor, no avião… Temos de decidir se vamos propor um único projeto, que era a proposta do Franklin, ou se vamos dividir. Mandar uma coisa só é mais coerente, mas é mais difícil de aprovar no Congresso. Vou dar só um exemplo: o PL 116 que está no Senado, que foi aprovado na Câmara, é uma briga enorme. A radiodifusão tem uma visão, a telecomunicação tem outra, os distribuidores de TV a cabo não querem nem ouvir falar em conteúdo nacional… É um projeto que é só um pequeno setor da mídia eletrônica e nós estamos lá com uma briga medonha. A gente recebe carta aqui… Esses operadores, distribuidores de TV a cabo, não querem nem ouvir falar em conteúdo nacional, acham que tem de ser livre. Isso vai pegar também lá [no marco].

O ex-ministro Franklin tinha uma visão de que seria mais fácil aprovar o marco regulatório juntanto, numa única discussão, os interesses das teles privadas, que têm poder econômico maior, com os interesses da radiodifusão, que tem mais poder político. O senhor tem visão diferente?

Não, acho que é muito sensato.

Mas por que fazer a separação, então?

Não estou dizendo que vamos fazer, mas que talvez a gente faça. Por que temos de botar todos esses interessantes conflitantes contra nós? Enquanto eles estiveram brigando entre eles, é uma relação de força. Na hora em que estiverem todos unidos contra o mesmo projeto… A mudança naturalmente provoca temor de que você vai sair prejudicado, que nós queremos controlar mais, garantir direitos da sociedade sobre esse setor, isso provoca resistência, nós vamos colocar todas essas resistências do mesmo lado contra o projeto? Mas acho que é uma avaliação que nós vamos fazer.

O mandato do presidente da Anatel vence no segundo semestre. O governo já está discutindo nomes para o cargo?

Não. Até porque estamos devendo um conselheiro para a Anatel. Tínhamos começado a conversar sobre o conselheiro, estava mais ou menos formatado, mas também tem a participação do [ex-]ministro Palocci, e aí nós paramos. Vamos retomar agora. Mas a questão do presidente da Anatel só vai ser discutido no segundo semestre.

Recentemente, houve uma audiência pública na Câmara sobre bens reversíveis, que teles privadas compraram da Telebrás e não podiam vender, na qual a Anatel reconheceu que houve ilegalidade. O deputado que propôs a audiência acha que o ministério das Comunicações tem de se manifestar também…

Não sei quem é o deputado, não sabia da audiência. Agora, se foi ilegal, acho que alguém tem que tomar as providências. O deputado deveria ser o primeiro a tomar providências.

O ministério tem um agenda macro com três temas prioritários: banda larga, marco regulatório da mídia e outorgas. Nestes seis meses de governo já deu para descobrir alguma outra situação que mereça uma atenção maior?

Não, essas são as nossas grandes prioridades. No caso das outorgas, que o senhor não perguntou ainda, estamos refazendo o processo de outorga de rádio e TV educativa. Já está praticamente pronto e pode ser feito por portaria do ministério. Estamos preparando uma consulta pública sobre retransmissão de televisão, e também podemos fazer por portaria. E estamos finalizando um decreto que vai mudar o processo de licitação de outorgas de rádio e televisão. Vamos mandar para a Casa Civil e pedir para a presidenta Dilma assinar. Estamos optando por fazer mudanças que não dependem de lei. Até porque isso pode ser feito rapidamente, em agosto pode estar resolvido. Lei num setor sensível como esse tem uma tramitação bem mais demorada.

A revisão das regras de outorgas é só para combater laranjas?

Não é só isso. Colocamos normas que protegem o interesse do Estado e do usuário do serviço. Temos casos, não são poucos, de pessoas físicas e jurídicas que disputam uma outorga, vencem e têm um ano para pagar tudo, só que aí tentam vender a outorga antes daquele prazo. Isso aí não é laranja, é negócio. Vamos tornar a licitação mais difícil. Quem entrar vai ter de deixar caução de 20%, vai ter de pagar tudo pela outorga até a assinatura do contrato. Também vamos exigir parecer de auditoria com demonstração de capacidade financeira, não só de pagar o valor do leilão como de montar uma emissora. Como, adicionalmente, estamos divulgando todos os sócios de rádio e televisão, vai ficar mais difícil fazer um processo viciado, que não seja de interesse público.

Essa publicação dos nomes dos sócios no site de ministério já produziu algum resultado, alguma denúncia?

Vários já nos procuraram para dizer: “olha, eu não sou mais o dono da emissora”. E, de fato, em uma boa parte dos casos, a pessoa saiu da sociedade, comunicou aqui, mas, como temos um atraso grande de processos, não foi registrado ainda. Em alguns casos, estamos fornecemos uma certidão para a pessoa de que a saída está sendo analisada

Mas alguma denúncia?

Não apareceu ainda.

E reação contrária de político? Tem muito político sócio de rádios e TVs naquela lista…

Não. As pessoas gostam de transparência…

 

O senhor tem certeza de que todas gostam?

Essa questão, na minha opinião, é importantíssima. Obedece a um preceito constitucional de dar publicidade e transparência aos atos públicos. Mesmo que a pessoa fique contrariada, não vai vir aqui, seria muito complicado…

No início do governo Lula, a Previdência divulgou a lista de devedores, houve reação contrária e o governo desistiu…

Você vê, as coisas evoluem… Não vi ninguém reclamar até agora. Achei até que deu pouca repercussão. Tinha uma cobrança enorme em torno disso, nós divulgamos. Daqui a dois três meses, vamos atualizar e fazer um banco de dados novo. É ruim fazer um relatório, divulgar e botar uma pessoa que já saiu da sociedade.

O projeto do marco regulatório da mídia vai proibir concessão para parlamentar?

Sou a favor de proibir e de propor, e o Congresso que explique por que vai aprovar ou não vai. Só não mandaremos se dentro do governo chegarmos a conclusão que não deve mandar. Mas não sou ingênuo de achar que não vai ter reação…

A medida provisória 532 permitiu aos Correios prestar serviços financeiros. O que os Correios podem fazer nessa área?

Em vários países, você faz bancarizaçao pelo telefone, faz operações de pagamento ou pode sacar dinheiro pelo celular. O Correio poderia ajudar a fazer isso. O banco com certeza não quer fazer isso, e eles até têm tecnologia. Na África faz, por que aqui não? Mas você acha que o banco vai fazer? Não aposto nisso. Agora, se tivesse alguém fazendo, principalmente uma empresa de envergadura nacional, nós poderíamos ter um avanço extraordinário.

Essa é uma possibilidade teórica ou o governo já trabalha concretamente em torno dela?

Temos estudos feitos no Correio que mostram que poderíamos explorar esser tipo de serviço, só que para tomar uma decisão, precisamos ter algo mais consistente. Teríamos de fazer um avaliação da viabilidade econômico-financeiro, precisaríamos de um parceiro para ajudar com tecnologia. Mas o Correio precisa fazer mesmo hoje é entregar as coisas na hora certa, cumprir aquilo que é tarefa essencial dele, então, acho que tem muita coisa ali para melhorar e estamos atacando isso. Estamos melhorando a gestão e nos habilita a fazer outras coisas depois.

“O inventário é uma peça essencial ao contrato de concessão”

A Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) , entrou, no dia 23 de maio, com uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a União Federal. O processo pede, principalmente, a apresentação dos inventários dos bens reversíveis sob responsabilidade das teles e a anulação da Consulta Pública nº 52/2010, que flexibiliza o tratamento dado aos bens das concessionárias de telefonia fixa.

Em janeiro, a associação já havia pedido à Anatel o acesso à lista de bens de 1998, apurada em 2005 – quando foi feita a primeira prorrogação contratual. A agência, porém, se negou a atender à solicitação, alegando que a informação é sigilosa.

Nesta entrevista, a advogada da entidade, Flávia Lefèvre, explica melhor os motivos que levaram à ação judicial e detalha a questão dos bens reversíveis à União.

Quais as finalidades da ação que a Proteste ingressou na Justiça Federal em maio?

Os pedidos da Proteste na ação judicial são dois.

Primeiro, a declaração de nulidade da Consulta Pública 52/2010, que propõe a alteração do regulamento de bens reversíveis para autorizar que as concessionárias vendam ou doem bens reversíveis com valor até R$ 1.500.000,00 sem prévia autorização da Anatel, bem como o que denomina como bens em desuso; isto porque a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) determina que, em qualquer hipótese, não só para vender, mas também para comprar e usar bens de terceiros, a concessionária deve pedir consentimento prévio para a agência.

E segundo, a apresentação dos inventários dos bens reversíveis e sua inclusão como anexos aos contratos de concessão assinados em junho de 1998 e dezembro de 2005.

Por que é importante comparar o que existia na época da privatização com as listas que devem ser apresentadas pelas teles e anexadas aos contratos para propiciar o controle na revisão da concessão?

A importância de haver o inventário como anexo aos contratos de concessão é garantir que bens essenciais para a prestação do serviço não serão perdidos e saber quais bens foram substituídos pelo quê. Ou seja, é fundamental para garantir que a concessão não será esvaziada e que não serão necessários investimentos duplicados, quando a União tiver de retomar a prestação do serviço ou concedê-la a outra concessionária.

Além disso, o órgão regulador deve ter o controle de tudo o quanto gera renda para as concessionárias, a fim de garantir que eventuais ganhos sejam compartilhados com os consumidores, revertendo em modicidade tarifária.

E por que a lista dos bens reversíveis deve constar obrigatoriamente como anexa ao contrato de concessão?

A LGT determina expressamente que é peça obrigatória dos contratos de concessão a lista dos bens reversíveis. E não poderia ser diferente, pois se trata de bens públicos de uso especial, já que estão destinados à prestação de serviços de telecomunicações cuja responsabilidade é da União, seu principal titular. Portanto, não se poderia celebrar um contrato sem tornar público o acervo de bens vinculados às concessões.

Existe um inventário preciso sobre todos esses bens?

Sabemos que deve existir um inventário desses bens. Mas o certo é que a Anatel, depois de nossa ação e de verificar que obtivemos documento interno de auditoria da agência, resolveu assumir que não tem essa lista. Tanto assim, que publicou dois atos no início deste ano determinando que as concessionárias apresentassem a lista dos bens. Ora, a Anatel está refém do interesse privado das empresas. Deveria ir buscar nos documentos que originaram as concessões, a lista dos bens que integram os acervos de cada uma das concessões.

Através do relatório ao qual tivemos acesso, pudemos verificar que a própria Anatel constata o fato grave de que a privatização ocorreu sem que o inventário constasse dos contratos. Outra comprovação feita pela agência na auditoria é que ela ficou nove anos sem editar o regulamento de bens reversíveis e sem fiscalizá-los. A primeira resolução é de outubro de 2006 e só entrou em vigor em 2007. E, depois da confusão com a cláusula de reversibilidade do backhaul e da fiscalização do TCU, que constatou a ineficiência da agência em resguardar os bens públicos de uso especial, resolveu alterar o primeiro regulamento aprovado com a Resolução 447/2006, para “acabar com a visão patrimonialista”. Por isso a Consulta Pública 52/2010.

Quanto à anulação da Consulta Pública nº 52/2010, quais as maiores conseqüências que a entidade enxerga com essa nova proposta em tramitação?

Há grande risco de que, aprovada a resolução, as concessionárias, para chancelar o descontrole e a venda ilegal de bens de uso público, saiam por aí alienando os bens com o respaldo desta possível norma. Foi por esse motivo que pedimos, em caráter liminar, a suspensão dos efeitos da CP 52/2010.

Existiu algum diálogo com a Anatel antes de entrar com a ação na Justiça Federal? Qual o argumento da agência para não listar esses bens?

No início deste ano, pedimos oficialmente à Anatel a apresentação da lista de bens reversíveis, mas ela se negou a apresentar, alegando que o inventário deve estar protegido por sigilo. Discordamos totalmente dessa afirmação, que está desconforme com a LGT. Se o inventário é uma peça essencial ao contrato de concessão, ele deve ser público. Deveria, inclusive, ter sido publicado junto com o Edital de Privatização.

Os bens são patrimônio público que apenas estão sob a tutela das empresas concessionária? Outro órgão faz esse acompanhamento ou apenas a Anatel?

A lei estabelece que, independente da titularidade da propriedade de determinados bens ser pública ou privada, o que importa é que, estando eles afetos à prestação dos serviços públicos, são considerados bens de uso especial e submetidos ao regime público. Portanto, para serem alienados é essencial a aprovação do Poder Público competente.

Também não se justifica a alegação de que muitos dos bens perderam a utilidade para a prestação do serviço, pois, para desafetar um bem destinado a determinado fim, é também essencial a atuação do Poder Público competente.

Todos os bens são classificados como reversíveis? Existe algum que deveria ser e não é?

A princípio, todos os bens que foram transferidos para a posse das concessionárias eram destinados à prestação dos serviços de telecomunicações e, portanto, reversíveis. Isto porque uma concessionária não poderia utilizar recursos públicos para a aquisição de bens que não fossem utilizados para a prestação de serviços, sob pena de estarem atentando contra o princípio da modicidade tarifária.

De qualquer forma, como nunca tivemos acesso à lista dos bens reversíveis não podemos afirmar nada quanto à classificação dos bens realizada pelas concessionárias e Anatel.

E existem falhas da Anatel no controle desses bens reversíveis? Se sim, quais são elas?

A Anatel não tem o menor controle dos bens reversíveis. Ainda que estivesse recém constituída quando da assinatura dos primeiros contratos de concessão, em 1998, o certo é que assinou a prorrogação desses contratos por mais vinte anos sem que, sequer, o regulamento de controle de bens reversíveis estivesse em vigor. Agora, ao invés de ir ao BNDES e à Telebrás – que era a concessionária geral dos serviços de telecomunicações e holding das subsidiárias estaduais prestadoras de serviços de telecomunicações – pede para as empresas apresentarem a lista de bens reversíveis. Trata-se de desrespeito claro ao art. 37 da Constituição Federal, que implica em malbaratamento (desperdício) de patrimônio público, nos termos da Lei de Improbidade Administrativa.

Os bens reversíveis, como as redes, devem ser devolvidos exatamente nas mesmas condições que foram adquiridas pelas teles?

As centrais telefônicas, as redes etc., que tenham sido atualizadas, passam a ser classificadas como bens reversíveis, pois são necessários para a prestação dos serviços. Por isso, a LGT determina que a compra de novos bens depende de aprovação da agência e, ainda, que, extinta a concessão, a POSSE dos bens é revertida automaticamente para a União.

A Proteste argumenta que centenas de imóveis das antigas empresas estatais de telefonia podem estar sendo vendidos ilegalmente pelas empresas privadas. Como foi feito este levantamento?

Fizemos alguns levantamentos por amostragem e constatamos isso. Talvez sejam mais do que centenas… Talvez estejamos falando de milhares. O prejuízo é muito grande. Significa que os investimentos que o Brasil fez desde 1972 até 1998, na Telebrás e suas subsidiárias, muito possivelmente estão sendo apropriados pelos grupos privados que adquiriram o controle acionário daquelas empresas. Ou seja, pode ser que, ao invés de receber pela transferência do controle acionário, a União esteja pagando para as concessionárias.

Hoje, como funcionam as vendas autorizadas? Esse dinheiro é divido entre a concessionária e a União?

A previsão de autorização de venda, compra e utilização de bens de terceiro se justifica em dois pilares.

O primeiro é garantir que a União, ao final do contrato de concessão, terá como prestar ou contratar com outra empresa a prestação dos serviços;

E o segundo é garantir que os ganhos decorrentes da venda dos bens públicos de uso especial irão reverter para a modicidade tarifária.

A Proteste possui uma estimativa de valores em relação a essas negociações?

Nossa estimativa é que os acervos devam custar, em valores históricos, mais de R$ 30 bilhões. Trata-se de patrimônio construído com receita pública (Fundo de Investimento de Telecomunicações e planos de expansão por meio dos quais se recolhia recursos da economia popular para promover os investimentos necessários). Os assinantes eram, também, acionistas das empresas concessionárias.

Ou seja, ao contrário do que falou o Secretário Cezar Alvarez, não estamos falando de fuscas 68 e computadores 386.

“A população não tem a quem recorrer para publicizar os seus problemas”

No dia Internacional da Liberdade de Expressão, os equipamentos de uma rádio comunitária localizada em uma favela do Rio de Janeiro foram apreendidos pela Polícia Federal e pela Anatel. Dois dos coordenadores da rádio foram levados para prestar depoimento.  Nesta entrevista, Emerson Claudio dos Santos, mais conhecido como MC Fiell, presidente da Rádio Comunitária Santa Marta, fala sobre o exercício do direito à comunicação em um cenário de legislação restritiva e favorecedora dos interesses das mídias comerciais. Como o próprio nome já diz, a rádio se localiza na favela Santa Marta e atualmente, devido à apreensão dos equipamentos, está transmitindo apenas pela internet. Nesta entrevista, Fiell ajuda na reflexão sobre o papel das mídias que se pretendem contra-hegemônicas — comunitárias, alternativas, populares ou institucionais.

Que desafios as rádios comunitárias têm hoje?

A burocracia da lei de rádio é para você não ter rádio mesmo. Um dos maiores problemas dentro do capitalismo é grana. É uma armadilha, eles mesmos fazem os trâmites para o povo não ter o acesso. Mas sabemos dos problemas e vamos avançando. Em nossa rádio, por exemplo, fazemos festa para arrecadar grana, vendemos produtos como as camisetas da rádio, dando jeitos sem comercializar a rádio. Essa lei precisa ser mudada, senão o povo não terá acesso a esse direito. Só as rádios comunitárias não podem fazer propaganda. Enquanto isso a maioria das rádios comerciais estão irregulares, e têm as concessões renovadas automaticamente. Só o povo é punido e podado dos seus direitos.

Que mudanças na legislação você considera como mais fundamentais?

A Lei das Rádios Comunitárias tem que ser mudada em tudo, temos que fazer uma nova lei. Não tem como uma comunidade, por exemplo, no interior do Ceará, ter como exigência para uma rádio comunitária se legalizar uma associação formada por mais cinco instituições no raio de um quilômetro. Como irá fazer isso? Aqui já é difícil, imagine em outros lugares. É preciso outra lei construída com participação dos comunicadores e do povo.

E você vê alguma perspectiva de mudança da lei?

Se não tivermos perspectivas estamos mortos, temos que avançar. Um dos principais motivos pelos quais não avançamos é o desconhecimento. Quando você publiciza alguma coisa, o povo fica sabendo e reage. A mesma coisa acontece com outros direitos, como o direito à saúde, à moradia. A comunicação hegemônica mantém o povo paralisado, engessado. As rádios comunitárias vêm para trocar ideias com o povo, mostrar seus direitos e deveres e tentar caminhar de outras formas, com escolhas. Há pouco interesse do poder público em mudar isso. Essa mudança se dará pela luta popular, das organizações em defesa da democratização da comunicação e de outros setores da sociedade que vão querer dialogar sobre isso e exigir que mude, que o povo tenha realmente acesso à comunicação, não só na teoria, mas na prática .

A rádio Santa Marta sofreu um fechamento pela polícia federal recentemente. Essa realidade se repete em todo o país?

A nossa rádio estava há oito meses no ar, cumpre tudo o que a legislação pede: não comercializamos, não vendemos programas, não temos partido, enfim, nós sempre buscamos exercer nossos deveres para conquistarmos nossos direitos. A rádio foi fechada de forma ilegal porque a Anatel, junto com a polícia federal, chegou aqui sem nenhum mandado, sem nenhum documento formal no nome da rádio Santa Marta e mesmo assim confiscaram o transmissor e nos conduziram à delegacia para prestar depoimento. Se nós estamos ilegais porque não temos a outorga, eles estão ilegais por não terem mandado de busca e apreensão.

Infelizmente isso é corriqueiro no Brasil. No país todo está havendo uma grande criminalização das rádios comunitárias: a própria mídia hegemônica publiciza que a rádio comunitária é pirata, que derruba avião, e isso é pura mentira. A gente costuma brincar que se rádio comunitária derrubasse avião, os terroristas montariam rádios comunitárias e não precisariam mais jogar bombas contra os aviões. E muitas pessoas, infelizmente sem informação política e sem visão crítica, acreditam, mas essa é só uma forma de criminalizar para não termos acesso a essas ferramentas. Há dados que mostram que o governo Lula, infelizmente, foi o que mais fechou rádios. Mas temos que lutar mesmo porque nada será dado de forma voluntária aqui no Brasil, terá que ser conquistado na marra, de forma organizada. Isso tudo só irá mudar quando entendermos uma coisa: que esses governantes precisam ser subordinados ao povo e não o povo subordinado ao governo. Quando entendermos isso, tudo mudará.

Como foi o depoimento que vocês deram na delegacia?

Eles perguntaram se a rádio é de pastor, se é de político, se existe comercialização, se eu tenho antecedentes criminais, se tenho marcas no corpo como tatuagem, se tenho bens materiais… Ter tatuagem não tem nada a ver com comunicação. Eu tenho tatuagem. Eu sou livre, eu faço o que eu quiser com o meu corpo. Eu falei: ‘se para vocês é crime, o único crime que eu faço é fazer rádio comunitária. O crime que eu cometo é prestar serviço à favela, de forma voluntária’. É surreal. E isso tudo aconteceu no dia 3 de maio, dia mundial da Liberdade de Expressão, e o que aconteceu só mostra que não temos liberdade de expressão.

Por que vocês acreditam que após oito meses de funcionamento da rádio a polícia e a Anatel foram até lá?

Temos diversas possibilidades para isso, mas temos pensado que é porque começamos a incomodar, temos feito um bom trabalho de alfabetização e de formação política para o povo. O povo está se apoderando de seus direitos. Infelizmente, no Brasil, quando você fala a verdade, é criminalizado e tirado de circulação. Quando você se organiza, alguma coisa acontece, e sempre terá repressões. Quando buscamos um coletivo, o poder para o coletivo, isso desagrada muita gente, e o próprio governo. Porque vivemos em um país capitalista onde a lógica é individual e da competição e conosco aqui a lógica é coletiva, todo mundo tem voz, todo mundo é igual e todo mundo pode fazer. Então, isso incomoda a quem não adere a essa filosofia. Por mais que tentem, nunca vão calar a voz do povo.

A mídia comercial esteve bastante presente no Santa Marta cobrindo a instalação e primeiras ações da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Qual a diferença no enfoque dado ao Santa Marta antes e depois da UPP?

Desde a primeira favela, esses espaços sempre apareceram na mídia de uma forma ínfima, violenta, mostrando o povo da favela como mau e violento. O Santa Marta não é diferente, o seu povo sempre apareceu nas páginas da grande mídia sendo tratado como traficante, e o morro como um lugar de perigo. Depois, em 2009, com a entrada da UPP, essa mesma mídia que relacionava toda a população com o tráfico de drogas, agora fala que essa população tem voz. É uma jogada de interesses. Essa própria mídia, no caso a Globo, ineditamente fica 30 dias dentro do Santa Marta, cobrindo, fazendo  link ao vivo, mas, na real, não deu voz ao povo. Esteve aqui para fazer uma jogada de marketing e mostrar o que ela queria, não mostrava os problemas da favela, não dava voz às lideranças críticas da favela, ela continua mostrando o que ela quer. E isso mostra que o poder está nas mãos deles.

A rádio comunitária Santa Marta também mostra o que quer, no entanto, sabemos que a construção do que sai na rádio é diferente. Qual é essa diferença?

A rádio Santa Marta mostra o direito do povo, ela é plural, isso é que é diferente. Uma rádio comunitária nasce para dar voz à população dessa favela; ela já começa diferente porque tem gestão, mas não tem dono,o dono é o povo. Quando o povo necessita, ela é acessível, fala dos problemas locais, da cidade, também do mundo. Mas as prioridades são os problemas, os projetos e os acontecimentos da localidade. O povo do Santa Marta nunca teve uma mídia que falasse dela igual a Rádio Santa Marta faz. Esse é o diferencial de uma rádio comunitária quando ela está a serviço do povo. Porque é importante salientar também que algumas outras rádios estão a serviço do lucro. A nossa, desde o princípio, está a serviço dos interesses do povo dessa favela.

Como isso se expressa na programação da rádio?

Nós temos uma programação plural, toda a diversidade cultural do Santa Marta está na rádio. São mais de 20 programas, começa às 6 horas e vai até meia noite. E tem programas jornalísticos, musicais, mas todos são informativos, porque a todo momento chegam notícias, e em todos eles a população tem linha direta: ela liga e participa e se, quer falar, é colocada ao vivo. Tem programas de entrevista sobre diversos assuntos – direito à moradia, alimentação, educação no Brasil, vida do trabalhador,  programas que contam a história de imigrantes, como o ‘Saudades da minha terra’. Nós pedimos para as pessoas enviarem emails com críticas, ideias e fazemos nossa reunião quinzenal principalmente para isso, para ficar sabendo como estão os programas. A população pode participar da reunião, é aberta. Incluímos sempre o povo nas ações da rádio, não decidimos nada sozinhos, é tudo pelo interesse do povo.

Existe uma polêmica sobre a participação de partidos e religiões nas rádios comunitárias. Alguns acreditam que a rádio pode abrir espaços para essas instituições desde que seja contemplada a pluralidade local. Já outros acham que isso não deve acontecer. Como vocês pensam essas questões?

Aqui tem um programa gospel. O que pedimos é que o locutor não fique pregando e nem condicionando o povo. Partido político não tem mesmo, não queremos isso, cada um tem o seu e temos que usar o espaço da rádio para outras coisas. Agora, religião, se tiver várias, elas precisam ter espaço para que possam divulgar os seus eventos, por exemplo, mas sem pregar. No caso desse programa gospel, ele não é de nenhuma igreja, é um morador que é evangélico e faz o programa. As pessoas pedem músicas gospel, mas ele também fala o que está acontecendo no Santa Marta. É um programa igual ao de hip hop, só que é gospel, porque as pessoas também gostam desse tipo de música.

Como a rádio comunitária tenta responder a esse desafio de cativar um público já acostumado com a estética da mídia comercial para passar outro tipo de mensagem?

A população aprova a rádio, inclusive estamos numa campanha de um abaixo-assinado [em defesa da rádio] e a população vem assinar, traz a família. Por ser rádio comunitária, não se configura que seja uma rádio menor. A programação tem o mesmo potencial de qualquer outra rádio, tem vinhetas de qualidade, programadores de qualidade, porque também fazemos capacitação de locução, de jornalismo dentro da rádio. Então, ela não deixa nada a  desejar, a única coisa diferente é que ela não abrange o Rio de Janeiro, mas apenas o raio de um quilômetro — Santa Marta e uma pequena parte de Botafogo —, com uma programação de altíssima qualidade.

O povo percebeu e aprovou que a rádio comunitária é ao mesmo tempo igual a qualquer outra e diferente porque fala dos nossos assuntos e do nosso povo e as outras não falam, a não ser quando é de interesse delas. Desde o início não nos preocupamos em fazer uma réplica de programas das rádios comerciais, falamos em nossa linguagem coloquial, não somos acadêmicos e isso não tem nenhum problema, o que importa é o povo entender a mensagem. Mas trazemos mensalmente algum curso de comunicação comunitária, de operação de som, para todos nós avançarmos juntos, continuarmos melhorando a programação e a própria rádio, entendendo sempre que a intenção é falar para o nosso povo. Infelizmente nosso povo não está nos devidos lugares, como as faculdades e escolas, é um povo escravizado de carteira assinada. Então, avançamos, mas sabendo que tem que ser sem muros na linguagem. ‘O parceiro’ e ‘a parceira’ não podemos perder, a linguagem da favela não podemos esquecer, a Dona Maria não vai sair da nossa linguagem. Então, avançamos sem perder identidade.

Como a rádio consegue se manter e também garantir essa formação?

Através de parcerias com movimentos sociais, sindicatos, instituições, que fazem um trabalho voluntário. Vamos buscando juntos o entendimento de que a rádio é importante para os sete mil moradores do Santa Marta. Como a rádio não pode fazer propaganda, vender comercial, os amigos da rádio doam algum valor financeiro, os locutores todos doam também, porque todos têm um trabalho voluntário na rádio e outros trabalhos remunerados fora da rádio. Todos nós entendemos que juntos manteríamos a rádio para continuar com a nossa voz viva e calorosa no Santa Marta.

Como um dos coordenadores da rádio, você percebe a comunicação hoje de uma forma diferente?

Para nós há duas maneiras de entender a comunicação. Uma comunicação é a que a classe dominante usa, para poder educar e dominar um povo. E a nossa é a que usamos para esclarecer o povo, para levar mais informações sobre a sua realidade de vida. Sempre houve essas duas maneiras de comunicação, uma hegemônica e outra da classe popular, que tenta de alguma forma esclarecer o povo. Infelizmente nem todos os trabalhadores têm essa clareza, quando vamos participando de alguns momentos de formação política é que vamos percebendo. Eu pude perceber isso quando fiz um curso de comunicação comunitária com o Núcleo Piratininga de Comunicação: até então eu sabia que existia desigualdade também na comunicação, mas não da forma como eu entendo hoje.