“O inventário é uma peça essencial ao contrato de concessão”

A Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) , entrou, no dia 23 de maio, com uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a União Federal. O processo pede, principalmente, a apresentação dos inventários dos bens reversíveis sob responsabilidade das teles e a anulação da Consulta Pública nº 52/2010, que flexibiliza o tratamento dado aos bens das concessionárias de telefonia fixa.

Em janeiro, a associação já havia pedido à Anatel o acesso à lista de bens de 1998, apurada em 2005 – quando foi feita a primeira prorrogação contratual. A agência, porém, se negou a atender à solicitação, alegando que a informação é sigilosa.

Nesta entrevista, a advogada da entidade, Flávia Lefèvre, explica melhor os motivos que levaram à ação judicial e detalha a questão dos bens reversíveis à União.

Quais as finalidades da ação que a Proteste ingressou na Justiça Federal em maio?

Os pedidos da Proteste na ação judicial são dois.

Primeiro, a declaração de nulidade da Consulta Pública 52/2010, que propõe a alteração do regulamento de bens reversíveis para autorizar que as concessionárias vendam ou doem bens reversíveis com valor até R$ 1.500.000,00 sem prévia autorização da Anatel, bem como o que denomina como bens em desuso; isto porque a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) determina que, em qualquer hipótese, não só para vender, mas também para comprar e usar bens de terceiros, a concessionária deve pedir consentimento prévio para a agência.

E segundo, a apresentação dos inventários dos bens reversíveis e sua inclusão como anexos aos contratos de concessão assinados em junho de 1998 e dezembro de 2005.

Por que é importante comparar o que existia na época da privatização com as listas que devem ser apresentadas pelas teles e anexadas aos contratos para propiciar o controle na revisão da concessão?

A importância de haver o inventário como anexo aos contratos de concessão é garantir que bens essenciais para a prestação do serviço não serão perdidos e saber quais bens foram substituídos pelo quê. Ou seja, é fundamental para garantir que a concessão não será esvaziada e que não serão necessários investimentos duplicados, quando a União tiver de retomar a prestação do serviço ou concedê-la a outra concessionária.

Além disso, o órgão regulador deve ter o controle de tudo o quanto gera renda para as concessionárias, a fim de garantir que eventuais ganhos sejam compartilhados com os consumidores, revertendo em modicidade tarifária.

E por que a lista dos bens reversíveis deve constar obrigatoriamente como anexa ao contrato de concessão?

A LGT determina expressamente que é peça obrigatória dos contratos de concessão a lista dos bens reversíveis. E não poderia ser diferente, pois se trata de bens públicos de uso especial, já que estão destinados à prestação de serviços de telecomunicações cuja responsabilidade é da União, seu principal titular. Portanto, não se poderia celebrar um contrato sem tornar público o acervo de bens vinculados às concessões.

Existe um inventário preciso sobre todos esses bens?

Sabemos que deve existir um inventário desses bens. Mas o certo é que a Anatel, depois de nossa ação e de verificar que obtivemos documento interno de auditoria da agência, resolveu assumir que não tem essa lista. Tanto assim, que publicou dois atos no início deste ano determinando que as concessionárias apresentassem a lista dos bens. Ora, a Anatel está refém do interesse privado das empresas. Deveria ir buscar nos documentos que originaram as concessões, a lista dos bens que integram os acervos de cada uma das concessões.

Através do relatório ao qual tivemos acesso, pudemos verificar que a própria Anatel constata o fato grave de que a privatização ocorreu sem que o inventário constasse dos contratos. Outra comprovação feita pela agência na auditoria é que ela ficou nove anos sem editar o regulamento de bens reversíveis e sem fiscalizá-los. A primeira resolução é de outubro de 2006 e só entrou em vigor em 2007. E, depois da confusão com a cláusula de reversibilidade do backhaul e da fiscalização do TCU, que constatou a ineficiência da agência em resguardar os bens públicos de uso especial, resolveu alterar o primeiro regulamento aprovado com a Resolução 447/2006, para “acabar com a visão patrimonialista”. Por isso a Consulta Pública 52/2010.

Quanto à anulação da Consulta Pública nº 52/2010, quais as maiores conseqüências que a entidade enxerga com essa nova proposta em tramitação?

Há grande risco de que, aprovada a resolução, as concessionárias, para chancelar o descontrole e a venda ilegal de bens de uso público, saiam por aí alienando os bens com o respaldo desta possível norma. Foi por esse motivo que pedimos, em caráter liminar, a suspensão dos efeitos da CP 52/2010.

Existiu algum diálogo com a Anatel antes de entrar com a ação na Justiça Federal? Qual o argumento da agência para não listar esses bens?

No início deste ano, pedimos oficialmente à Anatel a apresentação da lista de bens reversíveis, mas ela se negou a apresentar, alegando que o inventário deve estar protegido por sigilo. Discordamos totalmente dessa afirmação, que está desconforme com a LGT. Se o inventário é uma peça essencial ao contrato de concessão, ele deve ser público. Deveria, inclusive, ter sido publicado junto com o Edital de Privatização.

Os bens são patrimônio público que apenas estão sob a tutela das empresas concessionária? Outro órgão faz esse acompanhamento ou apenas a Anatel?

A lei estabelece que, independente da titularidade da propriedade de determinados bens ser pública ou privada, o que importa é que, estando eles afetos à prestação dos serviços públicos, são considerados bens de uso especial e submetidos ao regime público. Portanto, para serem alienados é essencial a aprovação do Poder Público competente.

Também não se justifica a alegação de que muitos dos bens perderam a utilidade para a prestação do serviço, pois, para desafetar um bem destinado a determinado fim, é também essencial a atuação do Poder Público competente.

Todos os bens são classificados como reversíveis? Existe algum que deveria ser e não é?

A princípio, todos os bens que foram transferidos para a posse das concessionárias eram destinados à prestação dos serviços de telecomunicações e, portanto, reversíveis. Isto porque uma concessionária não poderia utilizar recursos públicos para a aquisição de bens que não fossem utilizados para a prestação de serviços, sob pena de estarem atentando contra o princípio da modicidade tarifária.

De qualquer forma, como nunca tivemos acesso à lista dos bens reversíveis não podemos afirmar nada quanto à classificação dos bens realizada pelas concessionárias e Anatel.

E existem falhas da Anatel no controle desses bens reversíveis? Se sim, quais são elas?

A Anatel não tem o menor controle dos bens reversíveis. Ainda que estivesse recém constituída quando da assinatura dos primeiros contratos de concessão, em 1998, o certo é que assinou a prorrogação desses contratos por mais vinte anos sem que, sequer, o regulamento de controle de bens reversíveis estivesse em vigor. Agora, ao invés de ir ao BNDES e à Telebrás – que era a concessionária geral dos serviços de telecomunicações e holding das subsidiárias estaduais prestadoras de serviços de telecomunicações – pede para as empresas apresentarem a lista de bens reversíveis. Trata-se de desrespeito claro ao art. 37 da Constituição Federal, que implica em malbaratamento (desperdício) de patrimônio público, nos termos da Lei de Improbidade Administrativa.

Os bens reversíveis, como as redes, devem ser devolvidos exatamente nas mesmas condições que foram adquiridas pelas teles?

As centrais telefônicas, as redes etc., que tenham sido atualizadas, passam a ser classificadas como bens reversíveis, pois são necessários para a prestação dos serviços. Por isso, a LGT determina que a compra de novos bens depende de aprovação da agência e, ainda, que, extinta a concessão, a POSSE dos bens é revertida automaticamente para a União.

A Proteste argumenta que centenas de imóveis das antigas empresas estatais de telefonia podem estar sendo vendidos ilegalmente pelas empresas privadas. Como foi feito este levantamento?

Fizemos alguns levantamentos por amostragem e constatamos isso. Talvez sejam mais do que centenas… Talvez estejamos falando de milhares. O prejuízo é muito grande. Significa que os investimentos que o Brasil fez desde 1972 até 1998, na Telebrás e suas subsidiárias, muito possivelmente estão sendo apropriados pelos grupos privados que adquiriram o controle acionário daquelas empresas. Ou seja, pode ser que, ao invés de receber pela transferência do controle acionário, a União esteja pagando para as concessionárias.

Hoje, como funcionam as vendas autorizadas? Esse dinheiro é divido entre a concessionária e a União?

A previsão de autorização de venda, compra e utilização de bens de terceiro se justifica em dois pilares.

O primeiro é garantir que a União, ao final do contrato de concessão, terá como prestar ou contratar com outra empresa a prestação dos serviços;

E o segundo é garantir que os ganhos decorrentes da venda dos bens públicos de uso especial irão reverter para a modicidade tarifária.

A Proteste possui uma estimativa de valores em relação a essas negociações?

Nossa estimativa é que os acervos devam custar, em valores históricos, mais de R$ 30 bilhões. Trata-se de patrimônio construído com receita pública (Fundo de Investimento de Telecomunicações e planos de expansão por meio dos quais se recolhia recursos da economia popular para promover os investimentos necessários). Os assinantes eram, também, acionistas das empresas concessionárias.

Ou seja, ao contrário do que falou o Secretário Cezar Alvarez, não estamos falando de fuscas 68 e computadores 386.

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