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“O conteúdo precisa estar livre para circular por todos os canais”

[Título original: Ancine já prepara regras para as cotas e coligação entre programadores e empacotadores]

A Ancine tem muito a fazer. Com a sanção de ontem do PLC 116 – que agora é a Lei 12.485, publicada no Diário Oficial de hoje e que unifica as regras de TV paga -, o presidente da Agência Nacional de Cinema, Manoel Rangel, também tem muito a comemorar.  Afinal, o ingresso da agência do cinema na regulação deste mercado provocou grandes resistências dos radiodifusores e operadores de cabo.  Sem  abrir mão de seu novo papel conferido pela Lei, Rangel assinala que a Ancine já começa a trabalhar na regulação das cotas do conteúdo nacional,e nas regras que irão apurar as coligações entre programadores e empacotadores. "Tudo irá para consulta pública, e iremos entregar as propostas antes dos 180 estipulados pela lei", avisa.

Faça uma avaliação sobre a nova lei que muda as regras do mercado de TV por assinatura
A aprovação do PLC 116 tem vários significados. O primeiro deles, é ser o primeiro marco regulatório convergente, efetivamente.  Abrindo a cadeia de valor e conseguindo distinguir as condicionantes regulatórias de cada uma das atividades. Isso é importante, particularmente porque dá maior evidência aos dois universos que estão ligados neste ambiente da convergência, (de telecom e o audiovisual) e vai jogar luz sobre os entraves específicos de cada uma dessas áreas.

Quando você fala de convergência, o que você está se referindo? Aos serviços? Às plataformas?
As tecnologias já passaram a servir a prestação de qualquer serviço. A plataforma IP, por exemplo, é o veículo ideal para a transmissão de qualquer serviço. Isto tem algumas consequências econômicas, pois uma mesma empresa poderá prestar todo e qualquer tipo de serviço salvo os condicionantes de natureza econômica, cultural e política para cada um desses dispositivos. Até onde uma determinada empresa pode atuar, até onde ela não deve atuar, as condicionantes de prestação de cada tipo de serviço passa a ser um debate de conveniência e melhor organização do mercado.

Quais são os reflexos imediatos da aprovação da lei para o setor de conteúdo?
A mais notável delas ainda está no território da infraestrutura, que é a liberação da competição e unificação dos condicionantes à liberação da prestação do serviço de TV por assinatura a qualquer operador que assim o queira e a entrada das teles com a sua rede de infraestrutura e a sua força em termos de capital no sentido da expansão mais rápida do serviço. O segundo fator é que existe a necessidade de se prestar atenção nas condições em que se dá a competição pelo conteúdo, pela programação a ser veiculada e o conjunto dos reflexos da disputa no mercado por este conteúdo, ou seja, o risco de práticas anticoncorrenciais, a necessidade que o conteúdo esteja livre para circular por todos os canais de escoamento.

Mas hoje já não é assim?
Hoje, da forma que o mercado está organizado, se identificam um conjunto de travas. Problemas que dizem respeito a preços discriminatórios, que dizem respeito à dificuldade de entrada de um determinado canal no line up de determinada operadora. Fruto de uma situação onde se tem poucos operadoras com muita força, ou dois operadores concentrando 80% do mercado. Em um cenário onde a força entre operadores se distribua melhor entre iguais, a decisão sobre os canais em geral a serem carregados, não só canais nacionais, mas também estrangeiros, passa a ter maior possibilidade de se equacionar.

Essa relação precisa ser regulada?
Precisa de acompanhamento fino. E a maneira como o PLC 116 traz esta questão é a  plena articulação entre Agência Nacional do Cinema com o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, procurando acompanhar o conjunto dos elementos que organizam o mercado audiovisual.

Qual o impacto do projeto para o conteúdo brasileiro?
Teremos estímulo objetivo de surgimento de canais brasileiros, programados por empresas brasileiras, e teremos estímulo para produção de conteúdo  brasileiro de maior valor agregado como filmes, obras seriada para televisão, documentários, animação. As cotas cumprirão  uma importante função no sentido de criar laços entre os programadores, emissoras de TV e produtores de conteúdo. Isso vai criar mercado de trabalho para roteiristas, diretores,  produtores, técnicos, atrizes atores. Abre janela para circulação do conteúdo lá fora, pois os canais internacionais terão que carregar este conteúdo também para outros países, como forma de amortização do custo de  produção, e cria condições para que os canais brasileiros surgidos para atender a demanda do mercado interno brasileiro possa também trabalhar com a perspectiva de internacionalização.  E aqui reside uma questão que dedicaremos atenção especial: criar condições para que os canais brasileiros que surjam para atender esta demanda possam circular na América Latina, na Ásia, na Europa.

Qual é o tamanho do mercado hoje?
De cerca de R$ 25 bilhões, se considerarmos TV aberta, TV por assinatura, cinema.

E qual a expectativa com o PLC 116?
É preciso trabalhar melhor o número, mas se imagina que os assinantes de TV passem para 35 milhões (hoje são 11,3 milhões) até 2016,  o que elevaria o faturamento dos setor para R$ 35 bilhões.

E quanto ao preço? A Ancine chegou a fazer um estudo de preço,  não?
Nós fizemos uma levantamento em 2007  e um novo em 2010. Houve  efetivamente uma redução do preço com o ingresso de novos agentes – as teles, como DTH- no mercado. Para se ter uma ideia, sempre levando em conta o segundo pacote mais barato e excluindo os canais obrigatórios, o maior preço por canal dentro dos pacotes era de R$ 6,00 em 2007 de algumas operadoras. Este maior preço caiu para R$ 2,80 em 2010. A lei vai induzir a redução do preço geral das assinaturas, o que vai induzir o valor pago por canal.

Alguns setores alegam que, com o ingresso das operadoras de telecomunicações no mercado de TV a cabo, o risco da concentração é maior.
Em um primeiro momento, vai haver uma expansão para áreas onde o serviço não estava chegando. É verdade que nos últimos anos já estava em curso o processo de aquisição de  pequenas operadoras no Brasil inteiro. Já estava em curso por conta da dificuldade de as operadoras de receberem a programação em condições econômicas satisfatórias. O processo de aquisições vem ocorrendo sistematicamente, mas não é o PLC 116 que induzirá à concentração. Ao contrário, ele vai criar condições para que este processo de concentração que vinha ocorrendo não se dê apenas em torno de duas grandes operadoras.

Quais serão as primeiras providências regulatórias da Ancine?
O gesto inaugural do PLC 116 na esfera da Ancine é o processo de regulamentação das cotas e a sua entrada em vigor. Regularemos também a implementação dos mecanismos de aferição de coligação e controle, para fazer cumprir os dispositivos de segregação das atividades que o PLC 116 traz. Esta atuação relativa ao acompanhamento das relações de controle se fará em relação aos programadoras e na relação das programadoras  com as empacotadoras.

Qual agência vai fiscalizar a máxima do projeto que expressa que “quem produz não distribui, e vice-versa”?
A Ancine e a Anatel. Todas as operadoras de TV por assinatura, na condição de empacotadoras, terão que se credenciar na Ancine, e hoje significa grande parte do mercado.  É empacotador todo aquele que exerce a função de aglutinação de canais para a formação de pacotes. Hoje, a maioria das operadoras é distribuidora e empacotadora  de sua programação. A Sky, por exemplo,  é também empacotadora.

Qual a diferença para a Net ou o Via Embratel?
A Net Serviços tem uma empresa separada, a  Net Brasil, que faz o empacotamente para a Net Serviços. A Embratel, ao contrário, também empacota, então, ela vai ter que se cadastrar na Ancine.

Então, para a Ancine, a Globosat também não é empacotadora de canais?
Não, pois ela só vende os canais dela. Ela é sócia do Telecine, dos estúdios Universal. Ela não agrega os canais da Bélgica, no ESPN ou da HBO, ela só administra os canais 100% dela e os canais em que ela tem sociedade e controle.

Então não existe esta figura do empacotador?
Existem empresas que atuam como empacotadores, mas não exclusivamente. Um operadora quando faz a distribuição, antes disso precisa tomar as suas decisões  sobre a formação dos pacotes.

Afirmam que há várias inconstitucionalidades no projeto. A primeira delas refere-se à própria atribuição da Ancine..
Não há inconstitucionalidade no projeto. Quem definiu a Ancine como agência reguladora deste mercado foi a Medida Provisória 2228. O PLC 116  agrega atribuições pontuais a uma função original pré-estabelecida na MP. Não há vício de iniciativa. A Constituição diz que é privativo do Poder Executivo  a criação de órgãos  e de despesas. Nem uma coisa nem outra foi  estabelecida no PLC 116.

E quanto às cotas?
O argumento que questiona a constitucionalidade das cotas ignora os artigos 221, 215 e 216 da Constituição Federal.

E em relação ao dinheiro? Já que são recursos do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações) que passam para o fundo do cinema. Esse mesmo mecanismo foi criado para a TV pública, mas as teles depositam o dinheiro em juízo, deixando a EBC na penúria.
Não conheço o processo da EBC, mas no caso do PLC 116, não acredito que  vá haver questionamento por parte das teles. O projeto foi construído num amplo acordo. O princípio que rege a CID (Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico) é que o recurso recolhido na própria atividade precisa ser devolvido na própria atividade.  É bom lembrar que este projeto tem como  base  um grande acordo construído no setor. Ele foi feito em torno de sua integralidade – as cotas, o ingresso das operadoras no mercado, a segregação de atividades, e a criação do fundo público. Este acordo foi legitimado pelo debate no Congresso e está construído solidamente. Não receio que haverá resistência ao fundo, porque entendo que os negociadores fecharam o acordo de boa fé.

É possível regulamentar as cotas sem os recursos do fundo para a produção?
Claro. As cotas não têm vínculo direto com o fundo. Fundo e cotas correm paralelas. As cotas são obrigações dos canais, dos empacotadores. O fundo vai apoaiar o processo de produção, com reflexo na política de compra dos canais. Mas são dois mecanismos segregados.

No setor de telecom, há a portaria 101 que regula a relação de controle e é bem mais rígida do que a lei das sociedades anônimas, pois configura relação de controle a partir de 5% das ações em poder de um grupo econômico. Como a Ancine vai tratar disso?
A Ancine vai precisar estabelecer uma regra de coligação e controle clara. utilizamos, por analogia, apenas para conhecimento da estrutura societária, princípios muitos similiares ao da resolução 101 da Anatel. E a nossa intenção é manter o padrão de alinhamento com a Anatel nesta matéria.

 

Onde a Ancine terá que examinar a relação de controle. Somente para assegurar a máxima de “quem produz não distribui?”
Sim, mas poderemos ter que vir a analisar também para as políticas concorrenciais, ou seja, há situações hipotéticas onde um determinado operador pode estar recebendo programação em condições mais vantajosas do que um outro operador. Nesta situação, o sistema de defesa da concorrência e a Ancine teriam que conhecer as relações de controle mantidas entre programadores e distribuidores. Ou no caso  inverso, onde um determinado canal não consegue entrar no line up de determinada distribuidora.

Nesses dois casos, a quem o interessado deve recorrer? Ao Cade ou à Ancine?
Hoje recorre ao sistema de defesa da concorrência.

Mas o Cade e a SDE só agem ex-post. A Ancine poderá agir ex-ante, como a Anatel?
Estas são questões que ainda teremos que examinar. A lei pediu que  façamos um acompanhamento fino das atividades de programação e empacotamento, com a finalidade de manter o trânsito desobstruído entre programação e empacotamento e atividade de distribuição.

Há problemas deste tipo no mercado?
Recebemos informação, que não foram traziadas para serem apuradas, pois não tínhamos esta função, de que há prática de preço discriminatória, que há dificuldades colocadas em relação a entrada de canais no line up das operadoras.

E quanto às cotas?
Passaremos por um processo de diálogo intenso com os programadores nacionais e estrangeiros; ouviremos os produtores, os empacotadores, num processo de construção de norma que permita a mais suave  possível implementação das cotas.

A lei acaba com o papel do must carry para os canais digitais. Náo é uma relação desproporcional para os canais públicos, de cidadania, etc.?
A regra dos canais digitais se aplica apenas aos radiodifusores. Não se aplica aos canais comunitários, de cidania, universitários. Estes são obrigatórios em qualquer tecnologia. O PLC 116 traz também uma cláusula de inviabilidade técnica ou econômica que permite que um determinado distribuidor argumente junte à Anatel sobre a inviabilidade técnica de carregar tantos canais. Esta cláusua está mais voltada para a tecnologia MMDS, que sem o sistema de compressão digital trabalha com apenas 30 canais, ou seja, há um limite objetivo. No território do satélite não há qualquer problema técnico.

Não acha a aprovação deste projeo meio atrasada, visto que uma distribuidora de vídeo como a Netflix anuncia sua chegada no país sem qualquer compromisso de cota?
Evidentemente, o melhor para o país seria que o PL 116 fosse aprovado bem antes. Mas, mesmo no momento em que foi aprovado, traz uma base conceitual que organiza a maneira de lidar com as relações relativas a camada de telecom e a camada de audiovisual. Esta base consistente que a lei traz vai permitir uma evolução do acompanhamento do mercado. Entendo que o serviço de vídeo por demanda vai ter que ser observado levando em conta esses regramentos do PL. Não há um condicionante específico para o serviço de vídeo sob demanda, mas há uma base conceitual que permite fazer um acompanhamento deste serviço de entrega de conteúdo audiovisual. É preciso que o serviço se instale para que possamos verificar qual tipo de problemas ele pode ter gerado. Não cabe ao Estado se antecipar a estruturação do mercado.

“Pessoalmente acho que não dá mais pra esperar”

[título original: Para pesquisador, governo erra ao não propor marco regulatório da mídia]

A “ameaça à liberdade de imprensa” voltou a ser pauta nacional nesta semana, depois de o PT ter defendido, em seu 4º Congresso, o marco regulatório da comunicação. Debate travado há décadas no Brasil, a regulação do mercado das comunicações não avança pelo interesses das grandes empresas mas, também, pela ausência de uma proposta concreta do atual governo federal, que debate o tema há nove anos. A avaliação é do sociólogo e jornalista Venício Artur de Lima, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB).

Autor dos livros “Mídia: Teoria e Politica” e “Regulação das Comunicações: História, Poder e Direitos”, entre outras obras, Venício Artur de Lima sustenta que o marco regulatório da comunicação é uma regulação do mercado, e não uma censura aos veículos de imprensa. Questões como a formação de monopólios e oligopólios, propriedade cruzada de meios de comunicação e controle de emissoras de rádio e TV por parlamentares precisam ser regulamentadas.  ”O marco regulatório é uma regulação de mercado e a regulação do que já existe na Constituição, por exemplo, em relação a princípios e normas de programação, proteção de populações específicas como crianças em relação à publicidade, que existe no mundo inteiro”, explica.

Na entrevista, o pesquisador defende que o governo apresente logo a proposta, gestada pelo ministro Franklin Martins durante o governo Lula e trabalhada, este ano, pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Mas vê com pessimismo que as mudanças sejam aprovadas no Congresso Nacional. “Se você tomar como referência as duas últimas décadas, a possibilidade de haver alguma modificação no Congresso é muito difícil”, afirma.

Qual o significado de o PT ter defendido, em seu congresso, o marco regulatório da comunicação, apesar das notícias de que houve um recuo do partido?
Quem recuou na verdade foi o noticiário da mídia. Aqui em Brasília, provincianamente o Correio Braziliense, por exemplo, deu capa dizendo que o PT ia controlar a mídia. Ao invés de sair uma resolução, saiu uma moção. Na resolução política, saíram dois parágrafos, e mais ainda, na fala inicial do Rui Falcão (presidente do PT), o discurso de abertura tem um parágrafo e meio falando da questão da mídia. Para a mídia, não ter saído a resolução foi um recuo. Eu não sou do partido e não estava presente, mas não vi como recuo nenhum. O PT tirou uma posição do partido priorizando, colocando na agenda política a discussão da regulação da mídia.

Diz-se que o governo apresentaria uma proposta no segundo semestre. O senhor acredita nisso?
Passaram-se oito anos do governo Lula e a proposta do marco regulatório não aconteceu. No final do governo Lula, saiu um terceiro decreto pra fazer o projeto do marco regulatório, elaborado sob a coordenação do então ministro da Secretaria da Comunicação, Franklin Martins. A expectativa era de que esse projeto fosse divulgado, mas não foi. O que foi dito foi que o projeto foi passado para o novo governo e, desde então, espera-se que o novo governo divulgue. O atual ministro das Comunicações (Paulo Bernardo) deu declarações desencontradas e disse que a partir de julho o projeto seria colocado em consulta pública. Nós já estamos em setembro. As notícias que saem do ministério das Comunicações dizem que o projeto, ou pré-projeto, que teria sido preparado pelo ministro Franklin Martins, estaria sendo reexaminado por esse governo. Pessoalmente acho que não dá mais pra esperar. A explicação de que isso está sendo estudado, quer dizer, se esse governo é continuidade do outro, já são nove anos.

Segundo informações, o governo quer atualizar a Lei Geral das Telecomunicações, para ter o apoio das teles.
Do meu conhecimento, esse foi o último senão acrescentado pelo ministro Paulo Bernardo. “Não, agora está demorando porque vamos fazer um plano que vai rever também a LGT, de 1997”. Eu não sou mais menino, já ando velho, e escuto essas coisas a vida inteira. Para uma pessoa como eu, essas explicações não significam nada. Se o projeto existe, a divulgação dele está sendo protelada pelo governo, porque tempo para estudar e tempo para mudar e tempo para corrigir, é o tempo de sempre. O Brasil é totalmente desatualizado nessa área, é só olhar no que está acontecendo em volta, na América Latina, o que aconteceu em outros países de democracia liberal. Até a própria relação da grande mídia atual revela como nós somos atrasados nessa área. Um partido político vai reafirmar a posição de princípios que estão na Constituição, que já foi resultado de uma negociação extremamente penosa. Depois de 23 anos um partido reafirma, por exemplo,  que é contra a propriedade cruzada dos meios, que está implícita no parágrafo quinto do artigo 220, que diz que nos meios de comunicação não pode ter nenhum oligopólio nem monopólio, e provoca reações desse tipo. Nessa área há um nó que não consegue ser desatado.

Quais são os principais pontos que o senhor defende no marco regulatório da comunicação? Seria vetar propriedade cruzada, proibir políticos de controlar rádios e TV? O que é que mais urgente na regulamentação da comunicação no Brasil hoje?
A primeira coisa, quando se fala  em marco regulatório, e isso é absolutamente claro nas declarações de governo, é uma regulação do mercado, porque o mercado brasileiro dessa área é oligopolizado ou monopolizado em algumas regiões. Então, mesmo as regras que existem, por exemplo, com relação à concentração da propriedade, que estão no decreto 236 de 1967, não são obedecidas. E há casos gritantes de oligopólio que têm sido inclusive judicialmente confirmados, em função de ações no Ministério Público Federal, porque os juízes que tratam disso alegam que há decisões administrativas do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que não reconhecem a existência do monopólio. Há uma conduta do ministério das Comunicações que faz de conta que não existe um grupo que, em rede, controle um número grande de concessões de radiodifusão, porque as empresas individuais estão em nomes de pessoas, de indivíduos, são pessoas jurídicas distintas. No resto do mundo, há controle sobre a formação de redes. No Brasil não tem nada. O caso da RBS no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina é o mais evidente. Acabou de haver uma resolução legal, tomada em março desse ano por um juiz federal em Florianópolis, que não reconhece a existência de um oligopólio em Florianópolis. E da propriedade cruzada, que alega que o CADE não reconheceu e fala que as normas do artigo 221 e 220 da Constituição não foram regulamentadas. O marco regulatório é uma regulação de mercado e a regulação do que já existe na Constituição, por exemplo, em relação a princípios e normas de programação, proteção de populações específicas como crianças em relação à publicidade, normas para publicidade de alimentos nocivos à saúde, que existe no mundo inteiro.

Cotas de produção regional e independente também.
São esses tipos de questões, e as mais recentes ligadas ao desenvolvimento tecnológico. O PL 116, que foi aprovado outro dia no Senado, é complicado porque trata de um questão específica, a TV paga, num contexto muito mais amplo das transformações que hoje unem telecomunicações com radiodifusão e têm as suas diferentes manifestações na TV paga, na TV aberta. Há as questões das rádios comunitárias. Há outras questões que também estão na Constituição. Essa, de em exercício de mandato não poder ser concessionário, está no artigo 54. Mas tem interpretações diferentes, polêmicas, inclusive do judiciário. Essas coisas que precisam ser assentadas. Marco regulatório no Brasil é isso. E, no entanto, não consegue avançar.

Quais são as chances do marco regulatório avançar no Congresso, sendo que muitos parlamentares possuem concessão de rádio e TV, além de haver pressão das grandes empresas? E por que o governo não apresenta a proposta?
Nos últimos anos, se você tomar como referência o processo da Constituinte, que vai fazer 23 anos, não conseguimos avançar em nada em relação ao que já está na Constituição. Teve a decisão sobre a TV digital, que no meu ponto de vista foi um retrocesso, houve de positivo a criação da EBC, a realização da primeira Conferência Nacional de Comunicação. Mas avanço mesmo, não houve nada. Se você tomar como referência as duas últimas décadas, a possibilidade de haver alguma modificação no Congresso é muito difícil. A esperança sempre foi que um governo, um Executivo eleito com apoio popular, tivesse condições de mobilizar parcelas significativas da sociedade, mostrar a importância da questão, em ultima análise, do direito à comunicação, e conseguir fazer modificações tipo o marco regulatório. Eu não vejo essa vontade expressa, por exemplo, nas falas do ministro das Comunicações. Vejo com muita simpatia, como algo muito positivo, as decisões do 4º Congresso do PT, porque mostram que há uma diferença entre o PT e o governo. Quer dizer, o PT está no governo mas o PT tem que ter, como partido, as suas próprias posições e metas e lutar por elas. Nesse sentido, o PT reiterar posições que não têm nada de extraordinário… Eu não sou um otimista, em relação a estas questões, até porque eu já estou há muito tempo nesse negócio e não vejo luz no fim do túnel.

Algo que assusta a mídia é o controle social sobre a comunicação. O que significa esse controle social?
A Constituição fala na questão do controle social nas várias áreas de políticas públicas. Educação, saúde, assistência social. O controle social é uma forma de descentralização administrativa e de ampliação da participação direta da população na formação, acompanhamento, e até mesmo na gestão de políticas públicas. No caso da saúde, há mais de 40 anos existem no Brasil os conselhos. Porto Alegre é pioneira na experiência de controle social dos orçamentos, os chamados Orçamentos Participativos. Agora, na medida em que o governo federal não coloca na rua um projeto de marco regulatório, ele próprio dá margem a que os interesses contrários a qualquer forma de regulação, ou a qualquer coisa que seja diferente ao status quo, façam as mais estapafúrdias acusações, porque não se tem um texto de referência para fazer a discussão. Se você tiver um texto de referência de uma proposta do marco regulatório, vai ter que ser discutido o que está lá. O sujeito fala em conselhos estaduais de comunicação, por exemplo, como acontece aqui em Brasília. Vários setores dizem que se trata de censura. Mas na lei orgânica do Distrito Federal está aprovado desde 1993, tem um artigo que fala na criação de um conselho e tem que regulamentar. É um órgão de assessoramento do poder executivo para a formulação dos planos regionais de comunicação. Você vê que isso não tem nada a ver com censura, então a discussão fica mais fácil de ser feita, porque você tem um projeto.

Mas um dos exemplos que se tem é a Argentina, onde há uma disputa entre a presidenta Cristina Kirchner e o Grupo Clarín.
Mas, mesmo na Argentina, tem censura? O debate é falso, é porque existem certas bandeiras que são universais e uma forma de defender interesses é empunhá-las, mesmo quando você faz exatamente ao contrário. Quem faz censura na Argentina e no Brasil são os oligopólios de mídia. Porque a partir do momento em que são oligopólios, impedem que vozes se expressem. Eles não deixam que haja liberdade de expressão.  Eles dificultam a consolidação do direito à comunicação. Eles é que são os agentes da censura, mas empunham essa bandeira da censura e da liberdade. Isso é um recurso político histórico. Quem é contra a liberdade? Quem é contra a censura? Eles promovem a censura e impedem a liberdade de expressão da grande maioria da população, mas empunham a sua bandeira. Como têm o poder de gestão da agenda de debate público, isso passa a ser verdade para muita gente. Esse é o problema, por isso que essa área é tão difícil. Mas o que acontece na Argentina, com todas as letras, é uma regulação de mercado. Inclusive atribui cotas de participação no mercado, para vozes que não tinham voz. E regula áreas como a transmissão esportiva, que é uma forma de entretenimento vinculada a cultura desses países, Argentina e Brasil.

Em resumo, o senhor defende que haja um texto para que o debate seja feito em cima de algo concreto.
Eu falo isso há décadas. No governo Lula, há vários casos de projetos que nunca se materializaram, sequer na forma de projeto, e que foram combatidos com versões que foram vazadas, e ninguém assumia a paternidade. O exemplo mais óbvio é o da transformação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Faz um projeto, bota na rua e vamos ver as coisas que estão lá. O equívoco maior, no meu ponto de vista, foi a questão do Conselho Federal de Jornalismo. Os fatos mais recentes da conduta ética e profissional de alguns jornalistas de veículos da editora Abril mostram a necessidade de um conselho, tipo a Ordem dos Advogados do Brasil, que funcione como forma de acompanhamento do exercício profissional dentro de normas da própria profissão. Normas éticas, morais, de conduta. Isso está acontecendo no mundo inteiro. Na Inglaterra, com o caso do News of the World, mas no Brasil não tem nada, não tem autorregulação, não tem absolutamente nada. O Brasil só regula o que é do interesse da radiodifusão. Regula as concessões, fala que para poder renovar as concessões precisa de dois terços do Congresso. Para cancelar, precisa de decisão judicial. Regula as rádios comunitárias pra impedir que elas tenham autonomia e ameacem essas emissoras comerciais. Agora, o que interessa mesmo, a propriedade cruzada, a questão das normas de regionalização da produção, prioridade pra produção independente, tudo que está na Constituição, nada disso é regulamentado. Mesmo o Conselho de Comunicação Social, como órgão auxiliar do Congresso Nacional, é regulamentado mas não é cumprido. O conselho funcionou durante menos de quatro anos e depois não funcionou mais porque o Congresso não convoca os seus membros pra instalá-lo novamente. A situação é essa.

Inovação em verde e amarelo

Felipe Fonseca, o efeefe, participou de vários projetos de cultura digital e inclusão digital. Entre outros, é integrante-fundador da MetaReciclagem, uma rede auto organizada de pessoas que propõem a desconstrução da tecnologia e seu uso para a transformação social. Ele reflete há um bocado de tempo sobre as potencialidades e os rumos dessas iniciativas.

Hoje, pesquisa como as redes digitais livres podem se apropriar da ideia de inovação. Sempre se debateu este tema no Brasil, porque nosso investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação é muito pequeno. Compramos tecnologias desenvolvidas em outros países. Em 2009, investimos somente cerca de 1,19% do Produto Interno Bruto em inovação, de acordo com dados do Ministério da Ciência e Tecnologia – o equivalente a US$ 24,9 bilhões. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse investimento foi, em 2008, de US$ 398,2 bilhões.

Esse volume limitado de recursos é investido por governo e por empresas para gerar patentes, conhecimento proprietário, para exploração comercial. E os lugares onde se faz essa inovação, dentro desse modelo, são as empresas e universidades. Um espaço muito limitado, em um país onde a população tem uma tradição de empreendimento e inovação: fazem parte dos traços culturais presentes nas culturas brasileiras a ideia de gambiarra, a criatividade para resolver problemas do dia a dia, e o mutirão, uma maneira de se organizar para resolver esses problemas coletivamente.

Como juntar esses dois mundos distantes um do outro? Pensando em um tipo de inovação com relevância social e educacional. Baseada em tecnologias livres, produção aberta e em rede, afirma Felipe. Em um livro lançado em maio de 2011, o Laboratórios do Pós-Digital, livre para ser baixado na rede, ele discute essa ideia com maior profundidade. Nesta entrevista, explica como sua pesquisa pode se encontrar com o trabalho realizado em telecentros e Pontos de Cultura, e com as pessoas que inventam maneiras de se apropriar de tecnologia no Brasil.

Qual a sua visão sobre o papel da tecnologia para a inclusão social?
Há alguns anos critico as limitações do conceito de inclusão digital, que é muito simplista. Sugere que existe um jeito “certo” de usar as tecnologias. Eu acho que não existe esse jeito certo. Existem milhares de jeitos de usar tecnologias. Mas qual deles vai fazer mais sentido em sua comunidade? A gente fala em fazer cursos de editores de texto, de planilhas. Em muitos lugares, não faz o menor sentido. Tempos atrás, muitos projetos de inclusão digital proibiam as redes sociais. Proibiam Orkut, bate-papo, pois “as pessoas tinham que usar as tecnologias de maneira mais séria”. Na MetaReciclagem, a gente tentava chamar a atenção para o fato de que o uso divertido, inclusive para armar balada, descobrir coisas, ajuda a construir o ferramental necessário para se apropriar das tecnologias. Usar o potencial pleno das tecnologias passa por apropriar-se delas. A gente sai do foco na máquina, sai do foco específico no dispositivo que está usando, e passa a ter um foco em resolver problemas.

Os programas de formação de monitores orientados a projeto vão nessa direção?
Eles têm potencial, mas ficam formais quando adotam uma linguagem de gestão de projeto corporativo, em vez de uma linguagem de mutirão. As culturas populares brasileiras têm uma das melhores metodologias de solução de problemas, de gestão aberta de projetos, que é a ideia do mutirão. As pessoas identificam um objetivo comum, se juntam para resolver uma coisa, depois se separam. Acho que a formação orientada a projetos é extremamente positiva, um grande passo adiante da mera questão de usar coisas, do que a gente chama de “formação de manobristas de mouse”. Mas não dá para ficar somente nisso. Fui jurado de um desses programas, vi alguns projetos. Por conta até de falta de repertório, os projetos são  rudimentares, as pessoas acabam repetindo modelos. Não há uma formação de repertório orientada à inovação aplicada ao cotidiano. E os projetos que surgem são mulheres online, terceira idade, educação ambiental, modelos sugeridos por quem está fazendo aquilo. Claro que os problemas são parecidos em todos os lugares do Brasil e que qualquer espaço público de inclusão digital tem menos mulheres acessando. Portanto, fazer um projeto de mulheres online faz sentido. Mas há um potencial criativo nas culturas populares, e a gente não está atraindo as pessoas que têm esse potencial. Os espaços públicos de acesso à internet são um lugar ideal para desenvolver tecnologia socialmente relevante. A gente tem de atrair as pessoas certas e oferecer a elas desafios, não somente respostas. Os projetos de acesso à tecnologia estão preocupados em dar respostas e não em fazer perguntas.

Na MetaReciclagem, vocês resgatam o mutirão, a gambiarra. Como se dá o potencial criativo nessas iniciativas?
Nas primeiras fases do debate sobre inclusão digital dizia-se que o povo brasileiro não é inovador, não é empreendedor, porque as pessoas não abrem empresas, não seguem os modelos tidos como certos. Isso é um  preconceito com as culturas populares, que sempre foram, por necessidade, extremamente criativas, inovadoras, empreendedoras. Tudo depende da leitura. Você pode tratar um camelô como um contraventor ou como um empreendedor que usa as possibilidades que tem à mão. Desde o começo da MetaReciclagem, a gente teve a preocupação de valorizar o sotaque criativo típico do Brasil. A gente também dizia que não se tratava de as pessoas se adequarem aos modelos da sociedade superconectada, mas de transformar as tecnologias para que se adequem ao tipo de sociabilidade que existe no cotidiano. A gente começou a identificar um tipo de sociabilidade radical no Brasil. Uma coisa mais dinâmica, de certa forma superficial e também bastante acelerada de apropriação de tecnologia. O Fotolog.net, na época, fechou o cadastro para brasileiros, que estavam usando aquilo como loucos. No Orkut, todo mundo começou a reclamar que os brasileiros entravam em qualquer comunidade falando português. Havia uma sociabilidade que poderia ser potencializada pela rede e era muito mais natural para brasileiros do que para outros povos.

Vocês foram aprendendo isso ao longo do tempo?
Sim. E nesse movimento de identificar traços da cultura brasileira descobrimos dois vetores. Um é o mutirão, essa coisa dinâmica e informal de juntar pessoas para resolver problemas. Isso se opõe ao grande vício do século 20, que é a institucionalização de ideias interessantes. O outro vetor é a  gambiarra, que parte de uma inversão de perspectiva em relação à inovação, que também emerge por conta de todo o histórico de precariedade, de escassez de recursos do Brasil. Eu tenho de resolver um problema e em vez de esperar ter os recursos, o conhecimento ou o tempo adequados, resolvo do jeito que dá. Olho para o mundo. A gambiarra faz essa inversão, trata o mundo como um lugar cheio de recursos, abundante. E mesmo que eu não tenha as ferramentas certas, as pessoas necessárias, vou fazer.

Você falou da ideia da inovação aplicada à solução de problemas do cotidiano. Mas a ideia de inovação nunca foi muito usada, debatida, nos projetos de inclusão ou de cultura digital. Por que?
Porque a inclusão digital tem esse vício de origem, no Brasil, de ir na linha de dar acesso a pessoas, reduzir a desigualdade. Muitos projetos são para corrigir diferenças históricas, econômicas, sociais. Ficam no discurso de usuário. Fomos formados como consumidores. O Brasil foi formado como mercado, primeiro para os ingleses, para os poderes coloniais, depois para os Estados Unidos e o mercado globalizado. Daí o vício de tratar a inovação como algo que sempre vem de fora, em uma caixa preta. Um dos fundamentos da MetaReciclagem é a desconstrução. No começo, era uma metáfora de uma coisa mais concreta, de abrir o computador e ver como é feito, como se troca uma parte… Depois a gente entendeu que tem um gesto simbólico nisso, que é desconstruir a ideia de tecnologia e entender por que aquela tecnologia existe, por que foi desenvolvida daquela maneira, por que vai ser usada.

 

É o que vai acontecer com os tablets?
Aí, mais uma vez, é compra de inovação pronta. Estamos vendo e dizendo: “a gente também quer”. Dá para criar um paralelo com a declaração do Gilberto Gil, quando era ministro, de que o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe. Dizer “eu também quero isso” é importante, a gente não tem que ficar para trás. Mas há outra questão, que é “o que a gente vai querer depois”. Comecei a pensar em como estimular esse tipo de inovação. Como fazer para essa facilidade de criatividade, de solução de problemas não existir somente nas camadas populares, mas chegar às universidades, às pessoas que desenvolvem as tecnologias.

O desafio é juntar criatividade popular com desenvolvimento de tecnologias?
Vejo uma mudança, muito lenta, não nos programas de inclusão digital de maneira estrutural, mas nas pessoas da ponta, que implementam projetos. Quando os Pontos de Cultura iniciaram, vimos que tínhamos muito mais a aprender com aquelas pessoas do que a ensinar. Há maneiras de organizar o esforço de uma comunidade, de fazer a informação circular, de criar engajamento e mobilização que a gente não fazia ideia de que existiam. Esses conhecimentos são mais importantes do que saber usar um mouse, fazer tal software rodar. Quem está nas pontas dos projetos começa a enxergar um universo de possibilidades e relacionar isso com um repertório de tecnologia. E tudo isso  tem influência das tecnologias livres e abertas. Não só software livre, mas conhecimento livre, 
hardware livre.

E o que se pode fazer a partir disso?
Tirar as tecnologias da rede e trazer para o cotidiano, a comunidade. Por exemplo: ter, aqui no meu bairro, em Ubatuba (SP), sensores de temperatura e pressão que avisam quando vai chover. Qualquer marinheiro sabe que, quando há uma mudança brusca de temperatura e pressão, vai chover. E aí entra o ponto de que o grande complexo corporativo, acadêmico, dos países centrais, está investindo em tecnologia proprietária. No Brasil, a gente tem essa inventividade cotidiana, essa sociabilidade e esse discurso do software livre está assimilado pelos formadores alternativos de opinião. Temos o potencial de juntar essas coisas e desenvolver caminhos livres. Um dos vários campos onde isso pode acontecer é a internet das coisas, a rede de dispositivos conectados. A gente fala para uma universidade brasileira sobre internet das coisas e eles pensam em celular conectado, celular na internet. Não é só isso, são sensores, ativadores, resultados aplicados no cotidiano. Automação de iluminação das cidades… quanto de dinheiro se gasta porque os sensores não são bem calibrados? Vários usos positivos de tecnologia estão sendo desenvolvidos por empresas para gerar tecnologia proprietária. Como a gente faz, no Brasil, para desenvolver alternativas livres para essas coisas, antes de alternativas proprietárias dominarem o mercado?

Tem gente fazendo isso em outros lugares?
No ano passado fui à Espanha, para um evento do MediaLab Prado, o Interactivos. O foco do evento era em ciência de bairro, que é uma ampliação do conceito de ciência de garagem, do pessoal fazendo experimentos em casa. O que eles propuseram foi ampliar a ideia de ciência de garagem. Trazer essa facilidade de desenvolver experimentos científicos para ter resultados positivos nas comunidades. Eles desenvolveram captadores solares, maneiras de acumular e distribuir energia. Um inglês estava tentando transformar uma bactéria em sensor de poluição do mar – as bactérias mudariam de cor quando houvesse poluição. São coisas que surgem fora do ambiente esperado para a inovação acontecer, que geralmente é a academia ou as empresas. Essa é uma inovação com relevância social, não tem amarras de lucratividade, não tem que gerar rentabilidade. E tem dinamismo que não existe na academia porque a informação circula, não está restrita a autoridades e reconhecimento institucional.

Esse movimento existe aqui no Brasil?
Começam a surgir aqui mais 
hacker spaces organizados como tais, que se alimentam do referencial conceitual e prático de 
hacklabs, dos fablabs. O pessoal do Garoa, no subsolo da Casa de Cultura Digital, em São Paulo (SP), é um exemplo interessante. O Lab de Garagem, também de São Paulo. O Puraqué, em Santarém (PA). O pessoal de Fortaleza (CE), que estava fazendo estações de tocar música com CD ROM de computadores velhos. Também gente ligada de maneira indireta à academia, núcleos dentro das universidades que acabam dialogando com coisas fora. O Lab Debug, na Universidade Federal da Bahia. É gente que tem formação técnica forte e está se juntando, se aproximando de pessoas que atuam mais no campo simbólico, de projetos políticos, artísticos, sociais. Pessoas de várias áreas querendo contribuir. Mas não há apoio para fazer as coisas; o Brasil não tem como sustentar laboratórios experimentais.

O que é um laboratório experimental?
Nessa acepção que gente está usando, de laboratórios experimentais de tecnologia livre, de polos de tecnologia livre, são espaços dedicados a criação, transformação, modificação, desenvolvimento e desconstrução de tecnologias. O objetivo é juntar pessoas que têm interesse em desenvolver novas tecnologias e criar projetos e ações, de preferência colaborativas e livres. Laboratórios experimentais onde seja possível não só debater mas fazer protótipos de tecnologias. Mais importante do que a infraestrutura é a liberdade de experimentação, devem ser espaços livres de objetivos predeterminados. Não como uma universidade, uma empresa, uma escola, uma ONG, onde as pessoas precisam entrar já sabendo o que vão fazer. Um laboratório idealmente incorpora a liberdade de experimentação. A possibilidade do erro como resultado esperado. Isso é uma mudança de paradigma. Para transformar um telecentro, um ponto de acesso público, um laboratório de escola em um laboratório digital, não precisa de muito dinheiro, de muito equipamento, mas de uma mudança de postura. Os laboratórios não podem ser prestadores de serviços e as pessoas que atuam ali não podem estar dedicadas simplesmente a ensinar os outros a usar equipamentos, programas. É necessário apoiar o trabalho experimental. Essa é uma dificuldade que eu sinto, quando converso com pessoal de telecentros. Sempre me perguntam qual será o resultado do projeto que eu proponho. A gente tem de ter essa possibilidade de criar experimentação e as pessoas inclusive serem remuneradas para fazer coisas experimentais, mesmo sem resultados objetivos.

Como o Ministério da Ciência e Tecnologia poderia estimular essas iniciativas?
É importante a aproximação do Ministério com o mundo livre, hacker, maker. Mas tenho medo de que fique uma coisa de lidar com isso como se fosse peculiar, “olha que bonitinho que eles estão fazendo”… e continuem os 90% do orçamento destinados  à inovação que vai gerar patentes. Quando a gente fala em modelos de futuro, modelos potenciais de atividade econômica voltada à tecnologia e socialmente relevante, encontramos modelos que incorporam a facilidade que tem hoje de circular a informação e que liberam o conhecimento específico para fazer as coisas. No FISL 12, Jon Philips apresentou o Milkymist, um hardware que faz efeitos em vídeo em tempo real. Esse cara, junto com um grupo de cinco ou seis pessoas, criou um projeto desse dispositivo novo, que é fabricado na Ásia. A equipe é pequena e funciona como uma butique criativa de dispositivos, manda fabricar nas mesmas plantas de fabricação que todo mundo manda, só que a criatividade está contida no trabalho deles. Todos os esquemas para fazer o dispositivo estão na rede, para quem quiser fazer o equipamento sem precisar pagar, ou pagando quanto quiser. As características são essas:  um grupo pequeno, altamente inovador e que promove a liberdade de multiplicação, sem controle sobre quem vai fazer uso daquilo. Quanto mais gente usar, melhor. Eles podem inventar outro. Não tem a ganância da indústria baseada na propriedade intelectual.

Como isso se torna uma alternativa de desenvolvimento econômico, social?
O FCForum, fórum de cultura livre de Barcelona, na Espanha, publicou o estudo Modelos Sustentáveis para Criatividade na Era Digital, onde aponta caminhos de sustentabilidade para a criatividade e para a inovação. Os modelos do futuro não são os que a gente conhece, de uma grande indústria que domina a fabricação e cria um monopólio temporário. Em vez disso, o estudo trabalha com a ideia de sobreviver de generosidade, sobreviver em um mundo onde o conhecimento é abundante e não escasso. Há caminhos novos que a conversa com o MCT precisa incorporar. A ideia de software livre, de hardware livre e conhecimento livre pode ser aplicada a qualquer área – a mecânica de carro é conhecimento que pode ser liberado… Nessa perspectiva de conhecimento abundante circulando, a gente tem de criar novos modelos de sustentabilidade. E esses modelos são ligados à maneira com que o próprio software livre é desenvolvido, em pequenos grupos, dinâmicos, conectados em rede. O processo criativo é aberto e livre, documentando todas as etapas e fontes. Isso é mais profundo do que simplesmente publicar o resultado final como livre. O MCT tem de entender o que é esse livre, como faz para publicizar todos os processos, em vez de cair naquela coisa de “tem um instituto que vai criar tecnologia livre e está resolvido o problema”.

Você acha possível levar o modelo dos Pontos de Cultura para o Ministério da Ciência e Tecnologia?
Sem dúvida. Muita gente que participou do projeto da cultura é mais ligada à tecnologia, à comunicação. Entramos no Ministério da Cultura porque foi onde surgiu  a brecha, por várias confluências históricas e, principalmente, pelo papel do Gil. A ideia de levar para o MCT a inovação dispersa, distribuída, funcionando em rede, mais informal, que reconhece os saberes tradicionais e as demandas locais faz todo o sentido.

 

“Governo perdeu as rédeas do processo”

Hoje é dia de ouvir Luiz Fernando Gomes Soares, o principal pesquisador por trás da especificação do padrão de interação do SBTVD, o Sistema Brasileiro de TV Digital. A ideia da conversa surgiu a partir deste link , onde se diz que o SBTVD, lançado em 2007 [dezembro] tem até agora apenas 14 aplicações interativas comerciais. A isso, LF (como nosso entrevistado é conhecido no meio acadêmico) acrescenta que não existe nenhuma "narrativa interativa", comercial, ou seja, o uso da capacidade de interação do SBTVD para construção de histórias interativas, uma das possibilidades mais interessantes – inclusive do ponto de vista educacional- do novo ambiente.

Esta entrevista é um marco. LF fala pouco mas, desta vez, diz muito. conta a história do que rolou até agora nos bastidores da interação no SBTVD. Seja lá qual for o futuro do padrão brasileiro de TV digital e de seus mecanismos de interação, LF dá um testemunho marcante, daqueles que entram para a história.

Uma curta biografia: quem é você, em um parágrafo, quais são os principais links pra seu trabalho, onde você pode ser achado?
Sou Professor Titular do Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Fui presidente da área de computação na CAPES, membro do Conselho de Assessores de Ciência da Computação (CA-CC) do CNPq, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Computação (SBC) e atual membro de seu Conselho, e vice-presidente do Laboratório Nacional de Redes de Computadores (LARC). Fui representante da comunidade científica no Comitê Gestor da Internet no Brasil e membro do seu Conselho Administrativo. Fui o responsável pelo desenvolvimento do ambiente Ginga-NCL do Sistema Brasileiro de TV Digital e Recomendação ITU-T para serviços IPTV. Sou o atual representante da academia no Módulo Técnico da Câmara Executiva do Fórum de TV Digital Brasileiro e de seu Conselho Deliberativo. Sou coeditor da Recomendação H.761 no ITU-T e Coordenador do GT de Middleware do Fórum SBTVD. Meu laboratório está neste link e o e-mail neste outro .

Qual a história da interatividade no SBTVD até agora? quais foram os percalços da partida, da definição do padrão?
A história da linguagem NCL, e do middleware Ginga, começa em 1991, quando seu modelo de dados, chamado NCM (Nested Context Model), resolveu um problema em aberto na área de Sistemas Hipermídia. No ano de 1992, a solução encontrada foi incorporada ao padrão MHEG da ISO, que veio a se tornar o primeiro middleware para TV digital, sendo até hoje o middleware adotado no Reino Unido. Em 2005 submetemos a máquina de apresentação de aplicações NCL (o Ginga-NCL) como proposta para o SBTVD. Na época, o nome Ginga ainda não existia; na proposta se chamava MAESTRO. O Nome Ginga surgiu quando a proposta foi aceita como a única inovação, de fato, do SBTVD.

O início da definição do padrão, no entanto, não foi fácil. Muitos duvidavam que o Brasil pudesse ter feito uma tecnologia melhor da que a existente nos países ditos desenvolvidos. Cheguei a ouvir (em palestra na Câmara dos Deputados em Brasília) que o Brasil devia se preocupar com a exportação de frango e de laranja, e não com o desenvolvimento de tecnologia.

Tendo sido comprovada como a melhor tecnologia, tivemos, felizmente, apoio do Governo Federal na época, quando fui convidado a fazer o discurso de lançamento do SBTVD, cerimônia na qual o Presidente Lula e o ministro das Telecomunicações citaram o Ginga (passou a ser chamado assim poucos dias antes do lançamento oficial) como a grande conquista brasileira.

No entanto, ainda havia resistências no setor de radiodifusão e na indústria de recepção. Apenas quando pesquisadores europeus, japoneses e americanos começaram a elogiar a NCL como a melhor solução existente, salientando que finalmente se tinha uma solução tecnológica adequada para a TV digital, foi que a aceitação veio de fato. Ou seja, foi preciso sermos primeiro reconhecidos lá fora. Para se ter uma ideia, quem propôs a discussão de NCL e Ginga-NCL como Recomendação ITU-T não foi o Brasil, e sim o Japão.

Quais foram os principais problemas do caminho, do lançamento do padrão em 2007 até agora?
O primeiro problema foi que diziam, em 2007, que não havia implementação comercial do Ginga-NCL e que o GEM (a parte imperativa escolhida, pela compatibilidade com o padrão Europeu) tinha problemas de royalties. Quanto a esse último ponto, ninguém atacava o Ginga-NCL, que incomodava justamente pelo contrário, por ser software livre e sem qualquer royalty. Ou seja, disponível para absolutamente todos.

Por não necessitar pagamento de royalties e por sua simplicidade, várias empresas de software foram criadas oferecendo a solução Ginga-NCL, ficando o primeiro problema resolvido. Foi então que alguns fabricantes perceberam que o Ginga-NCL fazia tudo o que o GEM fazia e melhor, de onde surgiu a proposta que se lançasse receptores só com o Ginga-NCL; o que chamaram de Ginga 1.0 na época. A ideia foi contestada pelos radiodifusores, que diziam que a presença do GEM era importante pela interoperabilidade com os outros padrões.

Em 2008, como já mencionei, a NCL e o Ginga-NCL foram propostos como Recomendação ITU-T para serviços IPTV. Aprovada em abril de 2009, pela primeira vez na história das TICs o Brasil contribuiu com um padrão mundial, na íntegra. Um marco que a imprensa ignorou. Como fato curioso, um jornalista, muito renomado, que evito dizer o nome, até por vergonha, de um dos veículos mais lidos do Rio de Janeiro, ao ser apresentado ao fato, disse para seu repórter trazer uma notícia do Adriano (que acabava de ser contratado pelo Flamengo) em alguma balada, pois era isso que trazia leitores.

Vale ressaltar que até hoje o ambiente Ginga-NCL é o único ambiente de middleware padrão para todas as plataformas IPTV, TV a cabo, TV broadband (TV conectada) e TV terrestre (TV aberta). Mesmo dentro do SBTVD, é o único padrão para todas as plataformas (receptores fixos, móveis e portáteis).

Ainda em 2009, iniciou-se um movimento para substituição do GEM por uma nova solução da Sun, que seria incorporada como Ginga-J, a princípio, livre de royalties. O movimento cresceu e em uma reunião do Conselho Deliberativo do Fórum foi dada a decisão final. Na época, o Ginga-NCL já pertencia à comunidade de software livre, tendo recebido contribuições de mais de uma dezena de universidades e outras instituições; várias empresas foram também criadas sobre essa solução.

A academia, por quase unanimidade (com exceção apenas do LSITec da USP, entre as 17 instituições ligadas ao Fórum do SBTVD), votou por não adotar a nova solução, proposta pela Sun e apadrinhada pelos radiodifusores, uma vez que a NCL, com sua linguagem de script Lua, fazia absolutamente tudo o que fazia a nova solução e com vantagens. A perda da interoperabilidade (tão propalada) vinda pela não adoção do GEM, não justificava mais a presença do Java nas estações clientes.

Na época, a indústria de recepção concordava com a academia, mas, devido a um acordo feito nos bastidores, a academia ficou isolada e perdeu a votação por 12 a 1 (só os radiodifusores mais a indústria de recepção somam 8 votos no Fórum do SBTVD).

Com o imbróglio do Ginga-J resolvido, começaram as reclamações que não podia haver nenhum produto sem antes ter uma suíte de testes para o Ginga. Deve ser ressaltado, no entanto, que a suíte de testes para o Ginga-NCL existe e também já é hoje um projeto ITU-T. Mais ainda, pela primeira vez, uma Questão ITU-T endossou oficialmente um trabalho colaborativo por meio de serviços web para a concepção dessa suíte.

Nesse meio tempo, o padrão brasileiro foi adotado em mais 10 países latino-americanos e começa a ser adotado em alguns países da África, e tudo tendo a interatividade do Ginga como carro chefe. Mais ainda, alguns desses países, como é o caso da Argentina, resolveram começar só com o Ginga-NCL, o que deveria ter sido feito no Brasil, na opinião derrotada da academia.

É bom ressaltar, para melhor entendimento, que, para ser Ginga, obrigatoriamente deve-se ter o Ginga-NCL. Outras partes opcionais podem ser agregadas, como o Ginga-J (obrigatório apenas no caso do SBTVD para receptores fixos), ou outros serviços, como aqueles oferecidos pelas TVs conectadas.

Na sua avaliação, qual é o atual estado de coisas? quais são as perspectivas de uso prático, em escala comercial, de interatividade no SBTVD? você acha que as emissoras "deixaram interatividade pra lá", depois de ter conseguido vários de seus objetivos na transição do analógico para o digital, inclusive evitando a fragmentação do espectro para entrada de mais estações de TV?
Pois é, eu ainda não quero acreditar que as emissoras tinham apenas como objetivo impedir a entrada de mais estações de TV. Ainda sonho que haja algum compromisso público por parte daqueles que ganharam concessões públicas. Talvez seja apenas um sonho…. Mas não pensem que a academia foi ingênua.

O ideal da inclusão digital, da democratização não só do acesso à informação, mas também do processo de produção de conteúdo, nos levou ao projeto da NCL e sua linguagem de script Lua. Sabíamos da dificuldade da transmissão, a terceira perna do processo de democratização, mas contávamos com o sucesso da TV pública e, principalmente, com a entrada futura dos serviços de IPTV.

Não acho que as emissoras tenham deixado a interatividade para lá. Creio apenas que, por incompetência ou lentidão, não encontraram um modelo de negócio para a interatividade. O que as emissoras fazem hoje de interatividade é muito pobre. Não explora nem 10% do que o Ginga-NCL possibilita. A produção ainda está nas mãos de engenheiros, que são bons engenheiros, mas produtores de conteúdo sem qualquer criatividade. Ainda não deixaram a interatividade chegar às mãos de quem realmente poderia criar as aplicações “campeãs”.

Ainda se pensa na interatividade como widgets acoplados a programas da TV convencional. Nesse sentido, o Ginga acrescenta pouco a mais do que os serviços das TVs conectadas, em termos de desempenho e expressividade. Só ganha por ser padrão e de código aberto. Entretanto, isso é muito importante. O grande problema das TVs conectadas atuais é que cada fabricante adotou sua solução proprietária, desde a linguagem de desenvolvimento dos widgets até a distribuição por meio de sua própria loja. Mesmo que se queira padronizar uma dessas formas proprietárias, basta fazer uma ponte com a NCL. Mais uma vez, NCL é uma linguagem cola, que não substitui, mas agrega facilidades. Com NCL, os fabricantes de receptores ainda poderiam controlar a distribuição de widgets, ainda controlariam totalmente o negócio, mas com a vantagem adicional de permitir a quem cria o conteúdo escrever um único código para todas as plataformas. Hoje, como está, o código tem que ser portado de um fabricante para outro.

A interatividade, no entanto, é muito mais do que widgets. São narrativas interativas, aplicações de interatividade geradas ao vivo, exploração de múltiplos dispositivos de exibição, personalização de conteúdo, etc., tudo o que a NCL pode oferecer a mais para complementar o que existe nas TVs conectadas.

É bom repetir que NCL é uma linguagem de cola. Ela não substitui, mas complementa o que pode ser oferecido nas TVs conectadas. O Ginga-NCL pode conviver em completa harmonia com os serviços da TV conectada, agregando outros serviços, como os de IPTV e TV terrestre (VoD, Vídeos interativos ao vivo, narrativas interativas, etc.). Ginga-NCL é o ambiente escolhido pelo ITU-T para possibilitar essa interoperabilidade e convergência total, quando então pararemos de ficar classificando as TVs digitais pelos seus modelos de negócio (TVs broadband, TVs broadcast, WebTV, IPTV), mas a consideraremos apenas como TV digital, com todos os seus serviços oferecidos agregados.

É muito preocupante a situação de hoje. Quem vai desenvolver conteúdo interativo tem que usar N padrões diferentes nas N redes de distribuição disponíveis? NET, TVA, Telefônica, ViaEmbratel, Oi, Sky, SBTVD, Samsung, LG, Sony, Philips, TOTVS… Quem vai pagar pelo trabalho de portar o conteúdo interativo para as múltiplas plataformas?

A solução para isso é o que se persegue hoje nos órgãos de padronização e é nesse ponto que o Brasil está muito à frente e é invejado em todo o mundo, por ser o único local onde esse modelo pode começar já.

Infelizmente, a falta de conhecimento dos dirigentes de nossas “filiais” das indústrias de recepção e dos nossos radiodifusores os impedem de ver um futuro diferenciado para o país e para seus negócios.

O governo e os órgãos reguladores brasileiros poderiam ter feito mais por interatividade no SBTVD? mais do que? se tivessem feito, e o que deveriam ter feito, qual poderia ter sido o impacto?
O governo começou muito bem quando viu na TV digital não apenas um negócio para a indústria de recepção, que no país ainda não passa de montadoras, e para o setor de radiodifusão.

A inclusão social pelo acesso e geração de conteúdo, o fortalecimento das TVs Públicas, a criação de empresas, de software e outras, a geração de empregos de qualidade, tanto na área tecnológica quanto nas artes e cultura, foram o carro chefe inicial do SBTVD.

Foi com esse enfoque que a NCL foi projetada: uma linguagem simples e fácil de ser usada por não especialistas. Uma linguagem simples, a ponto de permitir receptores de baixo custo sem, no entanto, perder sua expressividade, sem limitar em nada a criatividade. Uma linguagem simples, mas muito mais expressiva do que todas as outras linguagens declarativas usadas em qualquer middleware para TV digital existente até os dias de hoje. Também com essa concepção, foram criadas as bibliotecas NCLua. Lua é hoje a linguagem mais usada no mundo na área de jogos e entretenimento, mas parte de nossa indústria de conteúdos parece ainda ignorar isso.

Ginga-NCL foi desenvolvido como software livre, e desse software mais de uma dezena de pequenas empresas foram criadas, empresas de médio a grande porte, e centenas ou talvez milhares de empregos de alto nível tecnológico.

Mas o governo parou nesse primeiro momento, perdendo as rédeas do processo, que passou para os radiodifusores e mais recentemente para a indústria de recepção.

Ao não incentivar set-top boxes com o Ginga-NCL (e no primeiro momento era só o que poderia ser feito, pois a discussão do Java permanecia) e deixar o aparecimento de “zappers” (set-top boxes sem interatividade Ginga); ao permitir que a indústria de recepção se concentrasse apenas nas classes A e B com suas TVs de alta definição com conversores embutidos, impediu o acesso das classes menos privilegiadas a essa nova tecnologia.

A TV Pública ainda está patinando, e o incentivo ao desenvolvimento de aplicações (narrativas) interativas esbarrou na falta de capacidade dessas emissoras (na verdade, as emissoras privadas também não têm tal conhecimento).

De fato, faltou uma política para geração e distribuição de conteúdo.

A academia vem fazendo sua parte, o Programa Ginga Brasil é mais um exemplo, formando produtores de conteúdo, apoiando e incentivando a criação de empregos e empresas (inclusive de grande porte), apoiando órgãos do governo, como DATAPREV e PRODERJ no desenvolvimento de conteúdos de inclusão social.

Entretanto, produzir para ser transmitido por quem? Sem essa perna de inclusão, as duas outras (acesso e produção de informação) não operam. Temos que operacionalizar a TV pública.

O Plano Nacional de Banda Larga traz nova esperança. É mais uma chance que temos de levar tudo adiante. Temos de ver o plano também como propiciador de serviços. E a TV digital é um dos mais importantes, principalmente no que tange à inclusão social. Temos de tratar a IPTV, Web TV, broadband e broadcast TV não como soluções antagônicas (porque não são nem no modelo de negócios), mas complementares. O Brasil lidera esse processo mundialmente, reconhecidamente, no ITU-T. Todos esperam e vigiam nossos movimentos. O Ginga-NCL é visto como a ferramenta de integração (e aí vai um recado para a indústria de recepção mal informada: ferramenta de integração e não de substituição de suas aplicações residentes, como as que conferem acesso a suas lojas de widgets).

Tomara que o governo retome as rédeas do processo.

Mas a sociedade civil não está parada. Através das TVs Comunitárias, TVs Universitárias, Pontos de Cultura e outros coletivos audiovisuais, ela não vai deixar a peteca cair. Quem viver verá. Não subestimem esse movimento.

Você acha que a TV digital interativa aberta está perdendo espaço para interatividade via IP e padrões globais propostos por forças há tempos dominantes no mercado mundial, como mostrado neste link? pensando bem… era possível prever isso há uma ou meia década, nos estágios de discussão e desenho e, depois, de lançamento do SBTVD?
Tudo era previsível desde o início. A academia presente no processo nunca foi ingênua. O Brasil se destaca na pesquisa na área há mais de 20 anos. O que acontece é que tudo está sendo visto de forma errada. Felizmente, lá fora isso está mudando, basta ver os esforços do ITU-T nos vários eventos de interoperabilidade e também os esforços do W3C. Aliás, o último evento de interoperabilidade foi conjunto e no Brasil (…e a imprensa nem noticiou, não é?).

Mas vamos lá. Os radiodifusores europeus se basearam em uma tecnologia ruim, o MHP, que nunca pegou e nunca foi padrão. A Europa era uma bagunça com várias implementações não compatíveis. Com isso, e por falta de escalabilidade, fizeram pouca coisa de interessante (tirando o Reino Unido, que usava outro padrão, o já mencionado MHEG). Por falta de escala, não conseguiram definir um modelo de negócios. O Brasil, ou melhor, a América Latina, é vista como a grande chance de se ter um padrão de fato. Na PUC-Rio, somos constantemente assediados por consórcios europeus querendo fazer testes no Brasil, pois não se vê chance de executá-los em uma Europa fragmentada.

Enquanto isso, a indústria de recepção conseguiu encontrar seu “negócio de interatividade” através de lojas, proprietárias, de widgets. Nesse momento a TV broadband (ou TV Conectada) passou a chamar atenção.

Já os serviços de IPTV eram oferecidos sempre como proprietários, e corriam, e ainda correm, por fora dessa briga.

Acontece que tudo vai se unir, quer queiram quer não. É só uma questão de tempo. Forças retrógradas podem atrasar o processo, mas não vão pará-lo. Quanto mais cedo perceberem que as coisas são complementares, todos vão ganhar, os negócios e a inclusão social, que foi o motor do SBTVD.

A TV híbrida (como gostam de chamar os europeus) vai chegar. Aliás, mencionando os europeus, o principal fabricante do principal padrão híbrido lá proposto incorpora o Ginga-NCL interoperando com sua solução. Mais um exemplo…, soluções interoperando o Ginga-NCL e LIME (padrão japonês) já estão prontas nos fabricantes de set-top boxes híbridos. Note que sempre com o Ginga-NCL. Por que só nós brasileiros é que não vemos nosso potencial?

Considerando uma penetração cada vez maior de conectividade móvel, por um lado, e TV a cabo, por outro, qual é, na sua opinião, o futuro do SBTVD? vê o futuro da interatividade, na TV digital, dentro do SBTVD, como uma opção economicamente viável? em que termos?
Bem a resposta a essa pergunta resume todas as outras.

No SBTVD, o Ginga-NCL é o único ambiente obrigatório tanto para dispositivos fixos, quanto para os móveis e portáteis da TV terrestre. No ITU-T é o ambiente padronizado para serviços IPTV. O ITU-T também trata de widgets e, embora ainda não definitivamente aprovado, o Ginga-NCL é visto como a solução para interoperar com as várias soluções proprietárias existentes.

Partindo do pressuposto que todos os serviços são complementares, o middleware brasileiro (adotado hoje já em 13 países), ou pelo menos o Ginga-NCL, tem um enorme potencial de suporte global, e isso pode muito bem ser explorado.

O setor de radiodifusão deve procurar seu nicho. As emissoras precisam começar a fazer aplicações reais de TV interativa terrestre, e não só de widgets incorporados a seus programas. Isso eles podem até fazer também, e vender nas diversas lojas de fabricantes de receptores. Mas será que aí está seu negócio?

Que tal explorar as narrativas interativas, os programas ao vivo, como eventos esportivos com a interatividade (a aplicação) gerada ao vivo? Propagandas personalizadas com narrativas interativas (vejam que começam a aparecer várias muito interessantes no YouTube) são sensacionais.

A TV Pública também tem de ocupar o seu lugar. O conteúdo gerado pelos vários coletivos de audiovisual só vão encontrar nelas os seus transmissores (e hoje posso garantir que tais coletivos já têm uma interatividade muito, mas muito mais interessante do que a produzida nas grandes emissoras). Os serviços de IPTV (e WebTV) devem ser vistos como complementares, bem como os da TV conectadas. Assim teremos, de fato, uma solução invejável, e o SBTVD poderá ser visto como um todo (e a Argentina já está fazendo isso).

Temos dois problemas: será que o pessoal do setor de radiodifusão e da “nossa” indústria (montadora) de recepção vai conseguir enxergar tão longe e pensar um pouco também na sua missão para o país? Será que o governo vai reassumir as rédeas do processo e propor uma política para o setor e para o país, como é seu papel, ou vai deixar as coisas acontecerem ao acaso?

Neste último parágrafo, LF deixa no ar a grande pergunta sobre o SBTVD: será que vamos ter uma política, de novo [como o brasil queria ter no começo…] para TV digital?
TV, desta vez, não era simplesmente definir como a imagem era montada e transmitida, e como deveriam ser os sistemas de codificação, transmissão, recepção, decodificação e apresentação. depois que tudo isso foi decidido, o país resolveu [?] inovar e incluiu um padrão para interação.

Depois, como bem diz LF, o brasil "perdeu as rédeas do processo". a dúvida, agora, é se há coesão e energia para dar direção e sentido a um esforço que vem, por mais que seus principais atores tentem, se arrastando há quase quatro anos e mostrando, como quase sempre, como é que se inova no brasil. ou, a bem dizer, como é que não se inova no brasil.

 

“É necessário garantir aos alunos o direito de acesso às produções audiovisuais”

Desconstruir a ideia de que a presença de filmes na escola limita-se ao puro entretenimento ou ao simples pretexto de ensinar determinado conteúdo. Esta é a proposta do projeto Cineclube nas Escolas, desenvolvido, desde 2008, pela Gerência de Mídia Educação da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Dos 50 espaços iniciais, o projeto, hoje, está presente em 210 unidades.

“É necessário entender o cinema e a produção audiovisual como importantes caminhos para a ampliação de conhecimentos e do patamar cultural dos estudantes. Por meio de acervos de DVDs com curtas, médias e longas e de livros sobre a sétima arte, os alunos mais do que veem um filme. Eles aprendem ações e desenvolvem o cineclubismo dentro das escolas”, afirma Adelaíde Léo, responsável pelo Cineclube nas Escolas.

Em entrevista à revistapontocom, Adelaíde conta como funciona o projeto na prática e garante que o cineclube também desperta a potencialidade da produção audiovisual de professores e alunos.

O que é o Cineclube nas Escolas?

É um projeto de implantação de uma política pública no campo do audiovisual. O projeto está organizado em três eixos: aquisição de equipamentos – como projetor, telão, caixas de som – e acervos de livros e filmes para as escolas; formação de professores e alunos; e ação cineclubista na escola, que se traduz em exibições de filmes, ida ao cinema e produção audiovisual por parte de alunos e professores. O projeto também prevê a realização de parcerias com diversos festivais e mostras que acontecem na cidade do Rio. Por meio delas, ocorrem exibições itinerantes nas escolas, participação dos alunos e professores nos festivais e mostra das produções das escolas nas programações oficiais dos eventos. Já estabelecemos acordos com o Festival do Rio, Mostra do Filme Etnográfico e Festival Ibero Americano de Cinema e Vídeo (Cinesul). O projeto tem como premissa desconstruir a ideia de que a presença de filmes na escola limita-se ao puro entretenimento ou ao simples pretexto de ensinar determinado conteúdo. É necessário entender o cinema e a produção audiovisual como importantes caminhos para a ampliação de conhecimentos e do patamar cultural dos estudantes. Quando o projeto foi elaborado, havia também uma intenção de garantir aos alunos o direito de acesso às produções audiovisuais, sobretudo aos curtas-metragens nacionais.

Como o projeto funciona no dia a dia?

Na prática, as sessões cineclubistas acontecem, preferencialmente, no contraturno das aulas. As escolas que participam do projeto recebem acervos de DVDs, contemplando uma diversidade de possibilidades narrativas e estéticas, além de livros voltados para a temática. Cada escola também ganha equipamentos de projeção e filmagem, como telão, projetor multimídia, aparelho de DVD e filmadora digital. Professores e alunos participam de uma formação específica em cursos ministrados por profissionais da área, com objetivo de se aproximarem da linguagem cinematográfica. São os professores e os alunos de cada cineclube que elaboram todo o planejamento das sessões de cinema. A periodicidade das sessões varia de acordo com o ritmo de cada escola. Sugerimos que aconteça, pelo menos, quinzenalmente ou mensalmente. A escola pode fazer uma exibição por faixa etária, para um grupo específico ou para toda a escola.

Os alunos são apenas expectadores?

Não. Nestas sessões, os alunos são incentivados a assumir o protagonismo das ações. Eles são responsáveis por todo o processo, da escolha do filme até a mediação do debate, que sempre acontece após a exibição. Cuidam do material de divulgação na escola e na comunidade, elaborando sinopse, ficha técnica, cartazes, panfletos, folders, convites, propagandas nos meios de comunicação da escola, bem como da produção de vinheta audiovisual para exibição no início da sessão. A testagem e o manuseio dos equipamentos também ficam sob a responsabilidade da equipe. Em cada debate, aberto a toda a comunidade local, são discutidas questões ligadas não só aos temas trazidos pelo filme, mas também à linguagem audiovisual. As emoções despertadas pela narrativa e a relação que o espectador estabeleceu com o filme também têm espaço garantido nos encontros. Todo o processo é registrado através da elaboração de um portifólio e de postagem de relatos nos meios de comunicação da escola, como o jornal escolar e blog. É importante que haja, sempre, um diálogo entre a ação cineclubista e a proposta pedagógica desenvolvida na escola, entendendo que esse movimento pode potencializar um conjunto de ações de desdobramento, permitindo, portanto, a articulação com diferentes campos do saber.

Que filmes fazem parte do acervo do Cineclube?

Priorizamos filmes com uma boa narrativa, boa história, filmes inteligentes. O acerco é composto de filmes do cinema nacional e da coleção de Charles Chaplin.

Uma das ações do cineclube também é a produção autoral de alunos e professores. Como é viabilizada essa produção?

Eles recebem equipamentos por meio do projeto. Além disso, muitas escolas também já têm em seu acervo câmera digital e softwares livres. Temos ainda parceria com o projeto Anima Escola, do Anima Mundi. E muitos professores já sabem trabalham com o Movie Maker e o Audacity. Entre as produções já realizadas podemos destacar: Fogo no céu, da Escola Municipal Burle Marx, Machado de Assis, do Núcleo de Arte Copacabana, O príncipe negro, da Escola Pio XII, e Um ônibus chamado Rio Ciep, do CIEP Presidente Agostinho Neto.

Quantas escolas já foram beneficiadas?

O projeto foi implantado, em 2008, em 47 escolas, no Instituto Helena Antipoff, no Centro de Referência de Jovens e Adultos e na Sala de Leitura Lourenço Filho, que fica na sede da Secretaria Municipal de Educação, totalizando 50 pontos de cineclube. Destes, 30 estão localizados nas chamadas Salas de Leitura Pólo, que atendem outras escolas. Hoje já são 210 cineclubes escolares.  No entanto, podemos afirmar que, indiretamente, todas as escolas da rede são beneficiadas, à medida que as Salas de Leitura Pólo podem disponibilizar equipamentos e acervos para as demais escolas que não se encontram atualmente no projeto. Mas, de fato, o projeto pretende atingir todas as 1065 escolas, da Educação Infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental, englobando também as escolas do Programa de Educação de Jovens e Adultos (Peja). Desde o ano passado, professores de escolas que não participam do projeto têm nos solicitado filmes para organizarem sessões em suas escolas. A perspectiva é que novas escolas, a cada ano, sejam incorporadas ao projeto. Neste ano, o cineclube já chegou a 11 Ginásios Públicos.

O projeto é aberto a toda a comunidade?

Sim. Toda comunidade é convidada a participar do projeto. Mas é recomendado que os interessados entrem em contato com a escola para conhecer o cronograma.