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É hora de avançar também no Ministério das Comunicações

O processo de transformação democrática do Brasil prosseguirá por mais quatro anos. Assim decidiu a maioria da Nação. Será muito difícil, ao cabo desses 12 anos, que desse processo não se consolide uma realidade social e econômica muito distinta da que tínhamos antes de iniciado o primeiro governo Lula e, sobretudo, que seus avanços ainda possam ser revertidos. Quem quer que suceda Dilma, em 2015, não poderá mais voltar atrás nas conquistas alcançadas. O país será outro.

No entanto, se muito avançou em algumas áreas importantes, o governo Lula pouco ou nada avançou em outras. Admitamos, para sermos generosos, que cada fase determina suas prioridades. Uma das áreas nas quais o governo Lula muito pouco avançou foi na das Comunicações. Reivindiquemos: esta é, agora, uma das áreas a ser priorizada.

Há oito anos atrás, recém-eleito presidente, Lula ocupou, como um terceiro “âncora”, ao lado do casal Bonner-Bernardes, todo o tempo de quase uma hora, em edição especial, do “Jornal Nacional” da Rede Globo. Para as corporações mediáticas (doravante CM), este seria o símbolo maior de suas expectativas em domesticá-lo. Mas para o próprio Lula, este seria também o símbolo maior da sua expectativa de vir ser aceito como um novo integrante das elites políticas e econômicas de nosso país. Dois mandatos depois, era perceptível, na reta final da última campanha, a frustração do presidente, respondendo em tom maior a cada cretinice da qual foi vítima ao longo de todos esses oito anos. Preconceito, como subdesenvolvimento, não se improvisa, é obra de séculos…

Lula e o PT alimentaram a ilusão de que poderiam conviver civilizada e democraticamente com as CMs; que pouco ou nada haveria a fazer no campo das Comunicações. Na verdade – é necessário dizê-lo –, Lula e o PT nunca tiveram uma política clara para as Comunicações. Omitiram-se por ocasião da privatização da Telebrás, efetivada às vésperas das eleições de 1998. Não “dava votos”. Agora, durante esta última campanha, viu-se uma candidata Dilma Rousseff sem respostas para as falsidades demagógicas de seu opositor sobre o “êxito” da privatização da Telebrás, embora, qualquer observador independente conheça bem as mazelas resultantes (ver “Nossa Opinião: Privatização, a política que atrasou as telecomunicações no Brasil” e “Telecomunicações, ainda falta muito para universalizar” ).

 

Já no governo, Lula e seu governo deixaram morrer nas gavetas do Ministério das Comunicações até mesmo os três ante-projetos que seu antecessor elaborara, para consumar a reforma que vinha avançando no setor, depois da privatização da Telebrás. Cardoso, ao menos, desejara atualizar o ordenamento jurídico da “comunicação social eletrônica”. O governo Lula nem nisso avançou. Fez que esqueceu.

Pagou pelo erro. E se Dilma não mudar, continuará pagando. Basta ler o noticiário de O Globo no dia seguinte à sua eleição, a começar pela manchete de primeira página para não ter o direito de seguir alimentando ilusões: “Lula elege Dilma e aliados já articulam sua volta em 2014”. Precisa mais?

“Perdeu, playboy”

Não é de hoje que as CMs se colocam em bloco contra o progresso social e a democratização de nossa sociedade. Foi assim em meados dos anos 1950 quando levaram Getulio Vargas ao suicídio, foi assim em 1964 quando pregaram e saudaram o golpe e a ditadura militar. Ao longo de mais de meio século, agruparam-se e consolidaram-se em um pequeno grupo de grandes organizações capitalistas (nacionais e regionais) essenciais à produção e reprodução de um determinado modelo de desenvolvimento, aquele promotor do consumo conspícuo e da concentração de renda. Pretendem-se responsáveis pelo agendamento da “opinião pública”, esta definida enquanto um certo senso comum político e moral daquela parcela mais rica e escolarizada da população, na qual são recrutados os quadros dirigentes da economia e da política nacionais, além, claro, dos próprios jornalistas. Pela natureza essencialmente simbólica da atividade mediática, as CMs tornaram-se, no Brasil, o núcleo formulador essencial do projeto conservador de poder, ocupando o espaço que caberia ao próprio Estado, aos partidos políticos, à Academia, à Igreja, a outras instituições. Aos poucos, todas foram se colocando a reboque da agenda mediática. Se aborto vira, ou não, tema de campanha, não o será porque a Igreja queira ou deixa de querer, mas porque as CMs o querem, ou não.

Mas a sociedade muda. A cada ciclo de mais ou menos meio século, qualquer sociedade capitalista passa por grandes mudanças. Nos últimos 15 a 20 anos, o mundo e o Brasil passaram e seguem passando por grandes transformações econômicas, políticas e culturais. O mundo e o Brasil de hoje não são mais os mesmos que eram quando as CMs se consolidaram de vez, no Brasil, ali por volta dos anos 70 do século passado.

No próprio campo interno do capital, emergiram novas forças produtoras de imaginário e consumo. A “comunicação de massa” está dando lugar a uma comunicação segmentada, identitária, atomizada. Não é o caso, aqui, de examinar se isto é bom ou ruim. É fato. Fato que se expressa no deslocamento das audiências para os canais de TV por assinatura, portais e blogs de internet, música via iPod ou MP3, entretenimentos pelo “celular” etc. Novas grandes corporações mediáticas emergiram, associando produtores e programadores de “conteúdos” com provedores de infra-estrutura, para atender a essas novas realidades econômicas e culturais (é o que se chama “convergência de mídias”). O Brasil não acompanhou essa evolução. Ao destruir a Telebrás do jeito como destruiu (oposto ao que fizeram, com suas “telecoms”, todos os países sérios do mundo, inclusive o México), o governo Cardoso impôs enormes obstáculos, no Brasil, à evolução do nosso capital mediático para essa nova fronteira. O que sobrou – as CMs comerciais de imprensa e radiodifusão – viram-se numa condição bastante fragilizada e disto muito se queixam agora, assumindo subitamente um falso discurso “nacionalista”, depois de terem aplaudido entusiasmadamente a desastrada privatização cardosina.

Ao mesmo tempo, graças sobretudo, no Brasil, ao governo Lula, uma grande parcela da nossa população foi incorporada ao universo do consumo conspícuo. Esta foi a maior realização deste governo. As últimíssimas palavras da candidata Dilma Rousseff, no debate na Globo, interrompidas pelo cronômetro, deixam isto claro, consciente ou subconscientemente: “melhoria da vida material”… Ficou fora, a cultural, a simbólica.

Esta nova massa consumidora é a massa da internet e do celular. Nem por isso culta, se por cultura entendemos uma evolução racional, ilustrada, simbolicamente cada vez mais rica, da mente social humana. Basta ouvirmos a miséria melódica e poética (se dá para usar estes termos) do som dito “popular” que toca nas praias do Nordeste ou nas favelas funqueiras cariocas para percebermos o retrocesso estético e ético que paradoxalmente está acompanhando aquela melhoria material. No fundo, essa massa consumidora por enquanto feliz, será presa fácil do fascismo e do obscurantismo tão logo a economia comece a ratear. E que ninguém espere progresso sem crises, numa economia capitalista… Aliás, o obscurantismo evangélico não teria tido a força que teve nesta última campanha, se à “prosperidade” dos irmãos não correspondesse equivalente pauperização intelectual.

As CMs, nesta última campanha, tudo fizeram, até mesmo promover perigoso obscurantismo, para impor ao País, o governo que imaginavam lhes seria favorável na construção de políticas implícitas ou explícitas em defesa dos seus interesses. Querem controlar a “convergência”, subordinando-a aos seus estreitos e ultrapassados limites. E talvez se iludam (não há, por enquanto, outra explicação), imaginando que ainda podem monopolizar, a partir “de cima”, a produção do imaginário político e cultural do país. “Perdeu, play-boy”, diz-se na linguagem lumpen. Resta saber se Dilma Rousseff entendeu isto.


Um ministério estratégico

Na cabeça e mãos da primeira presidenta do Brasil, encontra-se o desafio de reconstruir a indústria cultural brasileira, sem falar, claro, da valorização ética e estética de toda a enorme riqueza cultural do País ainda a margem e ao largo da produção capitalista. No governo Lula, se teve um ministério atento tanto à indústria empresarial, quanto às expressões amadoras genuinamente populares, este ministério foi o da Cultura. Mas se há um ministério essencial para esta tarefa, este é o das Comunicações. Durante o governo Lula, foi omisso – mas o foi propositadamente omisso. O pouco que o governo avançou, quando avançou, deve-se a iniciativas da Cultura ou da sua Casa Civil – nesta brotaram os programas de “inclusão digital”, inclusive, por último, o Plano Nacional de Banda Larga.

Dilma Rousseff não poderá seguir olhando para o Ministério das Comunicações como um espaço de barganha política. Nesta era da “sociedade da informação”, da “economia criativa”, do “capitalismo cognitivo”, que outros nomes queiram dar ao atual capitalismo, as Comunicações são tão estratégicas quanto eram siderurgia ou petróleo nos anos 1950. Este é um segmento que já atinge 7% do PIB mundial (indústria eletro-eletrônica mais produção e programação de conteúdos audiovisuais). O Brasil não pode se atrasar nele. Espera-se que a presidenta Dilma nomeie para as Comunicações um ministro comprometido com um projeto estratégico de país, não com as vulgaridades da micropolítica partidária – e correspondentes interesses de um sistema ultrapassado de comunicação social.

O governo Dilma Rousseff já tem um programa para as Comunicações. Ele foi escrito pelo movimento popular, juntamente com o empresariado moderno e o próprio Governo Lula, na Iª Conferência Nacional de Comunicação (Iª Confecom). Se Dilma se comprometeu, em seu primeiro pronunciamento, logo após anunciado o resultado, com a Constituição, a Confecom quer, justamente, ver regulamentado os artigos 220 a 224 dessa mesma Constituição. A Confecom quer mais: pediu programas de defesa, apoio, fomento à produção audiovisual brasileira, à diversidade cultural, à pluralidade de vozes. Reivindicou uma grande reforma normativa em direção à “convergência”, mas priorizando a defesa da cultura brasileira, da economia e do desenvolvimento científico-tecnológico nacionais. E sustentou a necessidade de o governo implementar um programa de universalização da banda larga, em regime público (neste aspecto, o PNBL deixado pelo governo Lula não atende a esta demanda). Por fim, mas não por último, defende que os órgãos normativos e regulamentadores sejam transparentes, plurais, democráticos, na forma de Conselhos nos quais se possam ouvir as vozes dos diferentes segmentos da sociedade.

O governo Dilma Rousseff terá quatro anos para pôr essas resoluções em prática, condição sine qua non de consolidação e aprofundamento dos avanços sociais e econômicos até agora conquistados. Para isto, precisará de um ministro das Comunicações comprometido com o movimento popular, com o capitalismo de fronteira e com as reformas democráticas por ambos aprovadas na Confecom. Já é mais do que passada a hora de o projeto representado por Lula e por Dilma, mais uma vez reafirmado nas urnas, assumir de uma vez por todas o comando desse Ministério.

 

 

 

* Marcos Dantas é professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ

 

Conselhos são embriões de políticas públicas constitucionais

A aprovação de um indicativo para implementação do Conselho de Comunicação Social do Ceará foi propagada como medida obscurantista pela maioria da grande imprensa e radiodifusão brasileira. A iniciativa da deputada Raquel Marques (PT), apreciada por unanimidade pela Assembléia Legislativa e encaminhada para o governador reeleito Cid Gomes (PSB), foi taxada como perigo a liberdade imprensa e expressão pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Já o Ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello se pronunciou¹ que nem a Lei, nem órgão administrativo, podem criar quaisquer embaraço à informação jornalística. 

 

Abert, ANJ, o Ministro do STF e setores da mídia distorcem os fatos para amedrontar a sociedade sobre o papel dos Conselhos. Não é uma resolução da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) a instalação desses órgãos. A Constituição Federal no Art 224 já prevê o Conselho de Comunicação Social pelo Congresso Nacional, a fim de regulamentar os artigos 220, 221, 222 e 223, do Capítulo V da Carta Magna. Infelizmente o Senado, responsável pelo Conselho, o mantém desativado. 

 

Em nível estadual, Constituições como do Pará, Bahia, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás também deliberam pela convocação de Conselho Estadual. Assim, a I Confecom buscou orientar para complementariedade entre União, Estados e Municipios, atenta para o fato de nenhuma política pública no país se constituir sem a participação dos três entes federativos.  

 

No caso dos Conselhos Estaduais não há nada a temer entre suas funções deliberativas, consultivas e fiscalizatórias. As Constituições dos estados sub nacionais brasileiros costumam destacar a comunicação nas responsabilidades, culturais, sociais e econômicas, a exemplo do Ceará. Envolver a comunicação nesses termos já é mérito destacável. Resoluções na Organização das Nações Unidas (ONU) já apontam para essas atribuições aos governantes há cerca de 50 anos, em especial no processo que desencadeou o relatório "Um Mundo e Muitas Vozes. Comunicação e informação na nossa época" lançado em 1981 e considerado até hoje o documento mais completo sobre os desafios do setor para as sociedades modernas.  

 

Entre os problemas elencados pelo relatório estão as disparidades regionais e a concentração econômica, e curiosamente o Brasil já é citado como exemplo negativo neste quesito. No caso da legislação e estrutura administrativa nacional o condensamento de atribuições a União na comunicação é uma das características que representam sua defasagem. Tal situação impede o Estado de atenuar as desigualdades e incluir a comunicação como vetor num desenvolvimento socioeconômico horizontalizado. 

 

Durante a I Confecom setores empresariais destacáveis participaram até o fim, como a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA) e Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil). Uma das condições impostas por esses setores foi vetar a votação de propostas em estados e municipios. A medida, apelidada de "AI-8" da Confecom, visava estancar a intensa mobilização das Comissões Pró Conferência (CPC), diretamente responsáveis em tornar a Confecom irreversível na sua caminhada ardilosa. Impedia-se assim que a sociedade civil se apropiasse das complexas pautas negociadas nos Grupos de Trabalho (GT) e plenário da Confecom, posteriormente no Congresso e na agenda eleitoral nos três níveis da federação. Ao final, a implementação de Conselhos foi uma das poucas resoluções da Confecom que apontou para a descentralização.

 

Finalizada a Confecom alguns estados e municípios e a sociedade civil conseguiram ultrapassar os limites do poder Federal. Na Bahia, a I Conferência Estadual de 2008 sinalizou que as forças regionais começavam a se movimentar com relativa autonomia. O processo foi considerado alavancador da Confecom e teve a implementação do Conselho ponto prioritário entre governo, sociedade civil e empresários, com Projeto de Lei pronto para ser enviado à Assembléia ainda em 2010.

 

No Piauí, enquanto governado por Wellington Dias (PT), foi desenvolvido uma Unidade de Políticas Públicas de Comunicação, voltada para radiodifusão comunitária, e pós Confecom encaminhado um projeto de lei para o Conselho Estadual. Em Sergipe um GT formulou propostas para fortalecimento da radiodifusão pública local, já em Pernambuco a TV pública passa por renascimento, ambos, com ampla participação da sociedade. No Ceará, a CPC local se constituiu como Rede Cearense pela Comunicação (Redcom) e formulou a proposta de Conselho Estadual encampada pela parlamentar petista.     

 

Vale ressaltar que as propostas de Conselho no Ceará, São Paulo, Alagoas, Bahia e Piauí prevêem a participação empresarial, em proporção muito superior a média dos demais Conselhos de políticas públicas, como saúde e educação. Na Bahia, entidades empresariais participaram ativamente do Grupo de Trabalho que finalizou uma proposta de consenso do Conselho, atualmente sob estudo pela Procuradoria Geral do Estado.

 

Vácuos históricos

 

Tais propostas estaduais, em especial os Conselhos, caminham sob vácuos históricos do setor, nos quais valem destacar: estrutura administrativa, racionalização das verbas publicitárias, fortalecimento do sistema público, observatório às violações aos direitos humanos na mídia, acompanhamento da utilização do espectro e liberação de outorgas e também da qualidade dos serviços de telecomunicações. 

 

O primeiro vácuo é que os governos estaduais não detém estruturas administrativas aptas para tocar as políticas de comunicação sob interesses sociais e como vetor de desenvolvimento. Geralmente as secretarias de comunicação são meras assessorias de imprensa do governo e responsáveis em distribuir as verbas publicitárias. São desarticuladas as ações das emissoras públicas, empresas gráficas, ouvidorias e até secretarias, em especial as com relações mais diretas com a comunicação, a exemplo da cultura, educação e ciência e tecnologia. Assim, o Conselho tem o papel de auxiliar o governo na condução de pontos convergentes entre órgãos que podem dar corpo coerente a Planos Estaduais de Comunicação e futuramente Secretarias dotadas de estrutura humana e física apropriada. 

 

Racionalização Publicitária

 

O segundo vácuo é o planejamento de políticas estaduais com participação da sociedade civil e atentas para os gastos com publicidade e propaganda.  Atualmente as políticas estaduais são focalizadas em injetar volumosas verbas de publicidade e propaganda. Em 2009, os governos estaduais gastaram R$ 1,69 bilhões neste quesito, valor em crescimento progressivo ano a ano. São Paulo é o recordista e representa 20% deste total, R$ 311 milhões². 

 

Tal montante torna os poderes executivos anunciantes de peso  -provavelmente os maiores- no varejo local e reproduzem a mesma lógica nacional: se beneficiam destes recursos aqueles que detém maior audiência, tiragem ou acesso, critérios "técnicos" utilizados para distribuição destas verbas. 

 

Ainda nas verbas de propaganda, é notória a ausência de transparência na sua destinação.O caminho tradicional do repasse destes recursos é a contratação de agências de publicidade que compram os anúncios no varejo, caracterizando uma relação entre iniciativa privada, a preços livres de concorrência, deixando a sociedade e orgãos de fiscalização de gastos, como os tribunais de contas, sem parâmetros claros do destino final e quantidade dos recursos alocados. 

 

Já os pequenos e médios veículos, sem condições de medir ou alcançar percentuais significativos nos critérios de contratação das agências, ficam vulneráveis a terem afinidades com a linha editorial das assessorias de comunicação dos governos para tentar receber parte deste recurso. 

 

Neste cenário os Conselhos podem se tornar espaços de racionalização das verbas publicitárias, protegendo empresas jornalísticas e governos. Ganha o cidadão ao ter jornalismo autônomo, sem embaraços econômicos e políticos, e também informações sobre a legalidade e viabilidade dos gastos públicos em publicidade.   

 

Fortalecimento do Sistema Público

 

O terceiro vácuo é o fortalecimento dos veículos de caráter público. As emissoras públicas são historicamente sucateadas, com baixos níveis de audiência. Enquanto a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) se estrutura com relativa velocidade em nível nacional, as TV's estaduais continuam sob ingerência do poder Executivo e a ausência de fontes perenes de financiamento.

 

Às emissoras comunitárias são negados programas em complementariedade as demais políticas sociais e as verbas publicitárias são proibidas pela lei. Não é novidade o papel da comunicação para o desenvolvimento socioeconômico e promoção de valores compatíveis com a dignidade humana. Nas periferias dos centros urbanos e na zona rural brasileira os veículos comunitários são alternativas viáveis para informes educativos e valorização cultural. Liberar novas outorgas comunitárias não altera tal panorama, porque o comunicador, sem mecanismos de sustentabilidade, fica à mercê de "padrinhos" políticos ou religiosos, deteriorando a qualidade da informação. 

 

Se trata de papel do Estado promover a sustentabilidade da radiodifusão pública e comunitária, conforme aponta a Organização dos Estados Americanos (OEA), na sua Relatoria Anual para Liberdade de Expressão. Para a OEA a concentração da propriedade comercial da radiodifusão tem efeito similiar a censura: o silêncio. 

 

Assim, os Conselhos Estaduais podem se tornar espaços embrionários na elaboração de políticas com participação social, não só para revisão do caráter das verbas publicitárias, mas também de diagnósticos, desenvolvimento de fundos de fomento, cursos, redes e assessoria técnica, para os veículos comprometidos com a diversidade e pluralidade, desafogando a União de responsabilidade sob esses meios.       

 

Observatório às violações aos Direitos Humanos

 

Um órgão administrativo do Executivo estadual, como o Conselho, não tem competência legal para interferir no conteúdo dos meios de comunicação. O quarto vácuo cumprido por estes órgãos é de observar às violações aos direitos humanos e encaminhar relatórios para o Ministério Público Estadual ou Federal tomarem as providências necessárias. 

 

Atualmente a grade regional é abarrotada por programas policialescos, transmitidos em horários inapropriados para crianças e adolescentes, permeados de sangue, criminalização de grupos hitoricamente discriminados e setenciamento ilegal. 

 

O Ceará teve três programas notificados pelo Ministério da Justiça (MJ) em 2004, quando se tentou efetivar a classificação indicativa: “Barra Pesada” da TV Jangadeiro (SBT), “Cidade 190” da TV Cidade (Record) e “Rota 22” da TV Diário (Globo).  Na Bahia um monitoramento  entre os meses de janeiro e julho de 2010 sistematizou este conjunto de violações. 

 

Neste quesito os Conselhos se tornam espaços fundamentais para institucionalizar estas denúncias, buscando interlocução direta com os empresários, que detém cadeiras cativas na composição, bem como estimular intervenções do Ministério Público junto ao poder Judiciário.

 

Utilização do espectro 

 

A liberação de outorgas de radiodifusão é de competência da União, segundo a Constituição Federal. O trâmite para obter uma concessão já é dotado de pouca transparência e envolve as comissões temáticas do Congresso, fartamente frequentada por políticos radiodifusores. A sensação de impunidade se reverte na utilização do espectro. É comum rádios e TV's pelo país expandirem suas transmissões para localidade onde não foram licenciadas ou mesmo continuarem a operar com o prazo do contrato expirado. Caberia então ao Conselho Estadual encaminhar à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Conselho Nacional relatórios sobre a utilização do espectro e dar maior transparência local aos processos de outorgas.

 

No caso das emissoras comunitárias o caminho para obter uma outorga começa pela barreira técnica, na qual as comunidades mais humildes têm dificuldade de responder. São comuns os políticos e/ou religiosos que se especializaram em preencher tais requisitos para trocar por favores políticos aos comunicadores. O quinto vácuo do Conselho Estadual se conclui ao prestar assessorias técnicas aos comunidadores comunitários e acompanhar o processo de liberação de outorgas, a fim de atenuar, na origem, as distorções na radiodifusão comunitária.  

 

Serviços de telecomunicações

 

Na década de 1990 a privatização das telecomunicações tornou os governos estaduais meros recolhedores e impostos nesse segmento. O Imposto de Circulação de Mercadorias (ICMS) nas teles costuma encarecer os serviços, representando até 60% do valor total em nível estadual, em alguns casos o montante é superior a armamentos e cosméticos,  segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A arrecadação do ICMS é distribuída para diversas políticas, como saúde, educação e segurança pública, mas as políticas de comunicação ficam órfãs do que movimentam economicamente.   

 

O resultado é que os governos estaduais se resumem em aplicar iniciativas de inclusão digital via telecentros e parcerias com empresas de telecomunicações para prover internet em escolas públicas. Ações que pouco interferem para atenuar as disparidades regionais do setor e promover a universalização no acesso à internet em alta velocidade (banda larga), telefonia fixa ou mesmo barateamento das tarifas na telefonia móvel. Esse é o sexto vácuo destacável das políticas estaduais.

 

Caberia então aos Conselhos Estaduais encaminhar sugestões para o poder Executivo e a Assembléia Legislativa para promover a expansão destes serviços. Podendo se pensar, inclusive, em reativar as empresas estatais de telecomunicações, em complementariedade à Telebrás. Também se faz necessário um órgão que dê legitimidade às denúncias aos abusos cometidos pelas empresas e as redirecione à Anatel e Conselho Nacional. 

 

 

* Pedro Caribé é jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

1 – Jornal Nacional do dia 21/10/2010

2 -Informação publicada na Folha de São Paulo, 24/05/2010.

Liberdade de expressão em risco

"A Associação Nacional de Jornais (ANJ) acompanha, investiga, denuncia, pede providências e se manifesta em defesa da liberdade de expressão." Retirada do site da ANJ, a frase abre o "Programa pela Liberdade de Imprensa" da associação. É curioso que a principal entidade representativa dos jornais comerciais brasileiros ainda não tenha denunciado alguns episódios recentes que colocaram em xeque a liberdade de expressão no país.

 

O manifesto pela liberdade de expressão da ANJ é repetido incisivamente por todos os donos de jornais brasileiros, em frequentes editoriais e até mesmo reportagens, alertando ainda para a ameaça de censura que ronda o país. Articulados no Brasil com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) e com a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) eles se empenharam numa forte campanha para desqualificar as conferências setoriais de direitos humanos, cultura e comunicação, espaços de escuta à sociedade para formulação de políticas públicas. Produziram um filme que alertava a população para o monstro da censura que poderia acordar. Na América Latina, estão associados a outras entidades empresariais do setor e combatem, com a Sociedade Interamericana de Prensa (SIP), toda e qualquer política dos governos que apoiam e buscam promover iniciativas de comunicação não comerciais, como a Ley dos Medios na Argentina.

 

Diante de tanta dedicação à defesa da liberdade de expressão, era de se esperar que a ANJ fosse a público contestar e denunciar um dos casos mais escancarados de silenciamento público da história recente do país. Maria Rita Kehl, que escrevia semanalmente para o Estadão, foi demitida depois de um "delito de opinião ". Teria incorrido em um erro ao pensar diferente do jornal, dizer o que pensa, expressar um ponto de vista por meio do artigo "Dois Pesos… ", publicado em 02 de outubro. O jornal, que ocupa a vice-presidência da ANJ, alega que Kehl havia sido contratada para escrever sobre psicanálise, e não política. Como a diversidade temática já era característica de sua coluna, fica difícil acreditar que sua demissão não tenha sido um gesto desesperado para afastar uma formadora de opinião que divergia do jornal. Pior que isso, diante do desespero, calaram uma articulista lúcida e questionadora, restringindo a liberdade de expressão no veículo.

 

No encerramento do IV Workshop de Inovação da Aner, o representante da Editora Abril afirmou, categórico, que ?os dois pilares da convivência democrática se baseiam, em nosso ramo, na energia da livre iniciativa e no vigor da liberdade de expressão". Mas como explicar a demissão, em maio, do jornalista Felipe Milanez, editor da revista National Geographic Brasil, da empresa dos Civitá? Milanez publicou no Twitter comentários críticos a respeito da reportagem "A farsa da nação indígena", veiculada na revista Veja.

 

Outro caso recente foi protagonizado pela Folha de S.Paulo, que ocupa a presidência da ANJ. O jornal pediu a retirada do ar do blog Falha de S. Paulo, uma divertida sátira sobre a cobertura da publicação. Processou ainda os irmãos Bocchini, criadores do site, alegando uso indevido da marca, mas evidentemente buscando impedir o contraditório do discurso criado pela Folha. O episódio é agora explorado no novo blog Desculpe a Nossa Falha .

 

Ora, os guardiões da liberdade de imprensa atuando como censores? Alguma coisa está fora da ordem.

 

Democracia x monopólio da mídia

 

Os três episódios revelam que, na verdade, a pior ameaça à liberdade de expressão no Brasil vem justamente dos grandes veículos de comunicação. Ao invés de promover a pluralidade de opiniões de seus profissionais e da sociedade, em vez de respeitar a diversidade de informações que circulam na internet, essa mídia quer garantir o monopólio de sua versão dos fatos. Defende interesses próprios e de seus anunciantes e reproduz um país desigual e sem acesso à informação plural no Brasil.

 

Não há democracia sem pluralidade de visões, sem espaços para que toda diversidade possível se manifeste. Enquanto formos reféns das nove famílias que controlam os meios de comunicação continuaremos sendo silenciados por uma única versão do modo de experimentar a cultura, a religião, a política, a história, a vida. Os três lamentáveis episódios somente confirmam quem realmente põe em risco a liberdade de expressão no país.

 

*Carolina Ribeiro e Oona Castro são jornalistas, integrantes do Intervozes e defensoras da liberdade de expressão e do direito à comunicação.

Vozes da montanha

São necessárias três horas de caminhada por trilhas íngremes para chegar à comunidade Magò, zona rural do município de Pòdepè, Noroeste do Haiti. É de lá, no topo da montanha mais alta da região, contando com uma infra-estrutura que se resume a uma antena e uma casa com paredes de barro batido, que a rádio comunitária Zèbtènite trava sua luta para romper o isolamento imposto aos camponeses haitianos.

“A Zèbtènite foi criada para reivindicar e defender a voz dos camponeses”, afirma Crisman Estinord, repórter e um dos coordenadores da rádio. Fundada em 1996 por famílias camponesas integrantes do movimento Tét Kole Ti Peyizan, a Zèbtènite ocupa desde então a freqüência 97.1FM e funciona seis dias por semana, com seis horas diárias de programação. Ou melhor, funcionava.  A passagem do Furacão Hanna em 2008 avariou parte dos equipamentos de transmissão, além dos painéis solares que disponibilizavam energia para a rádio. Sem eles, foi preciso recorrer ao aluguel de geradores e o alto preço da gasolina faz com que a Zèbtènite amargure dias ininterruptos sem transmissão.

Essas mesmas dificuldades são compartilhadas por boa parte das rádios comunitárias existentes no Haiti – que segundo dados da SAKS (Sociedade de Animação e Comunicação Social) chegam atualmente a 30, instaladas principalmente nas comunidades rurais. Para compreender o porquê dessas dificuldades e o papel estratégico que esses meios comunitários jogam na conjuntura atual do Haiti, é preciso ir um pouco mais afundo.

Predomínio das rádios

“Hoje, e desde sempre, o meio de comunicação mais importante no Haiti é a rádio”, informa Sony Estéus, jornalista e coordenador da SAKS. Isso se deve tanto a fatores culturais, como a tradição oral herdada da origem africana, como a fatores sócio-econômicos, o alto nível de analfabetismo – que atinge 39% da população – e a falta de infra-estrutura energética. “Há também a televisão, sobretudo nas cidades, quando há a eletricidade. Porque esse é um problema para a utilização dos meios, o problema da energia. O que faz com que a televisão não possa ser utilizada amplamente pela população. Há a imprensa escrita, mas muito pequena. Há somente dois jornais com circulação diária no Haiti. Esses são os três meios mais importantes, a rádio, em primeiro lugar, depois a televisão e a imprensa escrita”, afirma Sony. A utilização da internet como meio de comunicação começa a surgir como horizonte, mas ainda é incipiente devido a pouca difusão e dificuldade de acesso no meio popular.

Segundo dados oficiais, existem em torno de 290 meios de comunicação no Haiti, entre rádios e emissoras de televisão, com prevalência absoluta das rádios, cujo número chega a 250. A capital Porto Príncipe concentra 50 destas estações.

O surgimento das primeiras rádios no Haiti ocorreu durante os anos 1920, sob os auspícios de uma minoria econômica e comercial, à qual se somaram mais tarde os órgãos estatais de propaganda oficial. Isso se manteve sem muitas alterações nas décadas seguintes. Até que nos anos 90, as rádios comunitárias entram em cena.

O golpe militar de 1991, que tirou do poder o Presidente Jean Bertrand Aristide e reprimiu duramente o movimento popular que se fortalecia desde a queda da ditadura Duvalier em 1986, fechou todas as rádios comerciais que existiam no país. Sob tal repressão, e para furar o cerco da desinformação e marginalização impostas à população, um grupo de formadores e comunicadores progressistas inicia uma ação conjunta com as organizações populares para desenvolver meios de comunicação, sobretudo rádios, nas bases, nas áreas rurais, nas comunidades mais distantes. Este grupo se denominou SAKS – Sociedade de Animação e Comunicação Social. Por meio desta organização, e junto à iniciativa dos movimentos sociais, foram construídas as primeiras rádios comunitárias no Haiti, dentre elas a Rádio Zèbtènite, nas montanhas de Magò.

Concentração

No entanto, apesar de todo esse esforço, a maioria dos meios de comunicação ainda se encontra nas mãos da elite econômica. “Há uma tendência atual à concentração desses meios”, alerta Sony. “Antes, os proprietários dos meios eram jornalistas ou agentes de comunicação. Agora, a burguesia, os empresários, vão pouco a pouco adquirindo esses meios. Há, por exemplo, o caso de um único empresário que possui mais de doze meios de comunicação, entre rádios e televisão.”

Nessa conjuntura, ainda segundo Estéus, “pode-se dizer que há quatro correntes dividindo espaço no setor de comunicação haitiano. Há os meios com objetivos exclusivamente comerciais, que servem para enriquecer seus proprietários, mas, paralelamente, jogam um papel muito ideológico em apoiar o setor privado, apoiar a manutenção do status quo e a ideologia capitalista e neoliberal. Há uma outra corrente que é a religiosa. Ou seja, a Igreja Católica, as Igrejas Protestantes têm seus próprios meios, que fazem a evangelização, mas no mesmo sentido de manter o status quo na sociedade. Há os meios oficiais que fazem a propaganda política do governo. E por fim há a corrente dos meios comunitários, que estão mais dedicados à educação, sobretudo à educação popular. São meios que apóiam a luta do povo, a luta das organizações, para a mudança social, para a transformação da sociedade”.

Não seria equivocado, todavia, inserir uma outra corrente nesta disputa: a MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti], que ocupa militarmente o país desde 2004. Para fazer a propaganda e defesa de suas ações, há duas estações de rádio que trabalham todos os dias exclusivamente para a MINUSTAH.

Pós-terremoto    

Este cenário se complicou ainda mais com o terremoto de 12 de Janeiro de 2010. Além da destruição de boa parte da infra-estrutura de muitas rádios, os haitianos presenciaram a entrada de um novo protagonista na disputa pela hegemonia das comunicações: a INTERNEWS.

INTERNEWS é uma ONG norte-americana financiada pelo USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional]. Aos desavisados, não custa lembrar que a USAID é uma agência governamental do governo estadunidense criada em 1961 com a missão de “promover os interesses da política externa dos Estados Unidos na expansão da democracia e dos mercados livres”, segundo informações de sua página oficial na internet. Com sede em Washington/DC, seu trabalho apóia “o crescimento econômico e os avanços da política externa dos Estados Unidos”.  

Presente no Iraque, no Afeganistão e em todos os países onde os EUA fazem a guerra, a INTERNEWS aportou no Haiti dias após o terremoto de janeiro. Sua missão é gerenciar e produzir para as Nações Unidas e para o governo norte-americano tudo o que tenha a ver com comunicação em território haitiano. É a INTERNEWS, por exemplo, que produz o programa de notícias difundido massivamente em todas as rádios da ilha chamado “Enfòmasyon Nou Dwe Konnen” (Informações que nós devemos saber, no kreyòl). Mas, como ressalta Sony Estéus, “são informações que eles querem que nós saibamos! É uma situação muito complicada, porque estão funcionando sem controle das autoridades. O Ministério da Comunicação não tem nenhum controle sobre o que se faz na INTERNEWS, nem sobre o que se faz nas rádios da MINUSTAH.”

Desafios

“Vão fazer muito dinheiro”, é o que responde o coordenador da SAKS ao ser indagado sobre o que se pode esperar dos meios de comunicação comerciais no período eleitoral que se avizinha. “Vão fazer muito dinheiro com a publicidade para os candidatos e para o Conselho Eleitoral. Vão abrir seus microfones para todos os candidatos para que possam fazer suas próprias propagandas. Mas não podemos esperar análises ou posições críticas aos programas ou ao processo eleitoral como um todo”, conclui Sony.

É dentro desta perspectiva, tendo que superar os desafios da reconstrução do país pós-terremoto e sob uma ocupação estrangeira militar e econômica que se aTrrasta há décadas, que se pode compreender o papel clave que os meios de comunicação popular, em especial as rádios comunitárias, jogam no cenário atual do Haiti.

Do alto das montanhas de Magò, ao final de mais uma tarde de sábado, durante a hora e meia de transmissão permitida pela escassa gasolina dos geradores, a Rádio Zèbtènite toca músicas camponesas e populares, abre seus microfones para que um hougan [sacerdote da religião Vodou] comente sobre a atuação inócua do estado haitiano no atendimento às vítimas do terremoto e transmite um programa produzido pela SAKS sobre as conquistas democráticas e a conjuntura das eleições presidenciais de novembro. Quando o gerador para de funcionar e os equipamentos se apagam, de dentro do estúdio improvisado da rádio comunitária o operador Momis Likanes desabafa: “É difícil, realmente… mas temos que lutar.”  

 

Veja fotos aqui e aqui.

 

* Cineasta, jornalista e membro da Brigada da Vía Campesina Brasileira, no Haiti

Desculpa para calar a opinião

Eu não frequento clubes que me aceitem como sócio. (Groucho Marx, 1890-1977, comediante, EUA).

 

O respeitado Clube de Editores e Jornalistas de Opinião do Rio Grande do Sul, que reúne duas dezenas dos mais importantes colunistas e blogueiros do Estado, tomou uma grave decisão na semana passada. Por escassa maioria, numa reunião virtual feita pela internet, o Clube de Opinião decidiu “não opinar” sobre o inclemente processo que a família do ex-governador gaúcho Germano Rigotto move contra um pequeno jornal de Porto Alegre, o JÁ.

A ação judicial, que completa dez anos, está matando financeiramente o jornal de cinco mil exemplares editado há 25 anos pelo jornalista Elmar Bones, que em agosto passado teve suas contas pessoais bloqueadas pelos advogados dos Rigotto. A valente opção não opinativa do Clube de Opinião teve uma bela desculpa: “evitar qualquer conotação política-eleitoral” antes do pleito de 3 de outubro, já que Germano Rigotto é candidato ao Senado pelo PMDB gaúcho. Num sereno, mas contundente editorial publicado no domingo (19) no site do jornal e reproduzido neste OI, Elmar Bones respondeu, batendo no osso da questão:

“Pode ser uma maneira cômoda de contornar uma situação espinhosa, mas essa interpretação não encontra base nos fatos e contraria a lógica da democracia. O processo eleitoral, que exige verdade e cobra opinião do eleitor, não pode ser usado como pretexto para a omissão, o silêncio e a desinformação”.

Bones, que como Groucho não é sócio do clube, poderia usar o raciocínio que o comediante Marx usava para definir “inteligência militar”: “Clube de Opinião sem opinião é uma contradição em termos”. A infeliz decisão da entidade gaúcha carteliza e uniformiza, por baixo, o que deveria ser livre e múltiplo: o pensamento. É o fundo do poço de uma incômoda questão que constrange, envergonha e deprime a imprensa do Rio Grande do Sul, um celeiro de bravos profissionais que iluminaram o jornalismo brasileiro nos momentos mais duros de sua história, quando era necessária muita opinião, muita coragem, muita resistência. Elmar Bones é um sobrevivente daqueles tempos, quando então comandava o CooJornal, uma das legendas da valente imprensa nanica que afrontava os generais da ditadura de 1964.

A omissão

A candente questão que o clube gaúcho tangencia é que o JÁ não está sendo punido por sua opinião, mas pela embaraçosa informação que publicou em 2001: o envolvimento de Lindomar Rigotto numa licitação fraudulenta na CEEE, a estatal de energia elétrica. Enxertado na diretoria financeira pelo irmão Germano, então o poderoso líder do governo do PMDB na Assembléia Legislativa, o mano Lindomar fez uma mistureba financeira tão grande que acabou sendo o personagem central de um CPI que indiciou ele, outras onze pessoas e onze empresas. O cabeça da quadrilha, que montou a operação na CEEE, era o irmão menos famoso de Rigotto, segundo o relatório final da CPI: “De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto”, escreveu corajosamente o relator e deputado Pepe Vargas (PT), apesar de ser primo de Lindomar e Germano.

Essa era a reportagem de capa que o JÁ publicou há dez anos, sob o título “Caso Rigotto – um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”. Não tinha nada de opinião. Era pura informação, matéria prima do bom jornalismo, baseado em peças do Ministério Público e nos autos da CPI, agregando detalhes sobre a vida turbulenta de Lindomar, que acabou assassinado por assaltantes de sua casa noturna, no litoral gaúcho, em 1999. A matéria do jornal arrebatou em 2001 os principais troféus de jornalismo do sul do país – o Esso Regional e o ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. E acabou premiada, também, com o processo da família Rigotto.

O Clube de Opinião achou por bem não opinar nada sobre este vergonhoso, continuado ataque ao primado da liberdade de expressão no país. Se levassem a sério seu pretexto para este mutismo – “evitar qualquer conotação político-eleitoral” –, os bravos formadores de opinião do Rio Grande do Sul deveriam se esquivar de gastar tinta e tempo com assuntos constrangedores como a bolsa-família da ex-ministra Erenice Guerra, que empregou a parentada em órgãos públicos e tinha no coração do governo Lula um filho tão empreendedor quanto o irmão de Germano Rigotto. A intermediação de Israel Guerra, conforme a capa da revista Veja da semana passada, arrumou para um empresário aflito um contrato camarada de R$ 84 milhões nas entranhas dos Correios. A lambança de Lindomar Rigotto, segundo a manchete do JÁ, lesou os cofres públicos gaúchos, em valores corrigidos, numa soma dez vezes maior: R$ 840 milhões, a maior fraude da história do Rio Grande.

A contradição

Se tivesse o mesmo comportamento caridoso que hoje oferta ao candidato Germano Rigotto, que imagina preservar, o Clube de Opinião deveria se esquivar também de falar sobre os fatos constrangedores que já demitiram quatro funcionários da Casa Civil de Lula e provocam evidentes embaraços na candidata Dilma Rousseff. É um escândalo de forte conotação política, e supostamente eleitoral, tanto quanto a ação que garroteia o jornal de Elmar Bones.

Apesar dessa contradição, nenhum dos bravos sócios do clube deixa de bater na Erenice, criatura criada por Dilma, que agora diz não ter nada a ver com isso: “Eu não posso responder por ela”, esquiva-se a petista. Aliás, a mesma desculpa de Rigotto, que alega não ter nada a ver com a perseguição ao JÁ: “Eu desconheço o processo contra o JÁ. Isso é coisa da minha mãe”, fantasia Germano. Dona Julieta Rigotto tem 89 anos.

Um dos mais ferozes membros do Clube de Opinião gaúcho é Políbio Braga, dono do blog mais influente e acessado do sul do país, com quase 100 mil assinantes. Militante estudantil de esquerda no início dos anos 1960 em Santa Catarina, foi diretor da Folha Catarinense, do Partido Comunista, onde era apenas simpatizante, não filiado. Chegou a ser presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), na época em que José Serra presidia a União Nacional dos Estudantes (UNE). Depois do golpe de 1964 foi preso pela ditadura uma dúzia de vezes e, na mais longa delas, cumpriu seis meses de pena no antigo presídio do Ahú, um bairro de Curitiba.

No comando de seu blog, hoje, Políbio é contundente, bem informado e impiedoso, principalmente com tudo que acontece no turbulento entorno da Casa Civil e da candidata petista à presidência da República. Quando Veja explodiu nas bancas no sábado (11/9), Políbio festejou: “Estoura escândalo maior do que o Mensalão no Governo Lula”, era a manchete do blog. Sobre o escândalo do irmão de Rigotto, matematicamente dez vezes maior do que o do filho de Erenice, quinze vezes mais estrondoso que a quadrilha dos 40 do mensalão chefiada por José Dirceu, Políbio não ousou escrever uma única linha, muito menos dar sua retumbante opinião. No fim de agosto, o Observatório da Imprensa abordou, pela segunda vez, a saga do JÁ e de Elmar Bones, num texto (“Como calar e intimidar a imprensa ") que teve larga repercussão na internet – e nenhuma no ágil e abrangente blog de Políbio Braga.

O rabo

Autor desse texto, liguei várias vezes pedindo que Políbio abrisse espaço para o tema Rigotto vs. JÁ, confiando no belo lema que seu blog desfralda: “De rabo preso com a notícia”. Cansado de minha cobrança, Políbio acabou admitindo:

“Sobre este caso, devo te dizer que adotei uma linha de ‘rabo preso’ com meus amigos, que não são muitos, mas que prezo demais. Um deles é o Rigotto. Ao longo dos últimos 10 anos, tenho conversado com ele a toda hora, temos almoçado juntos, ele é fonte que consulto a todo momento, vou votar nele e também toda a minha família e os amigos que têm razões para fazer isto”.

Assim, descobri consternado que o Políbio eleitor prevaleceu sobre o Políbio jornalista e o seu festejado blog, além da notícia, tinha o rabo irremediavelmente preso a Germano Rigotto.

É justo esclarecer que Políbio Braga e seus colegas de clube não estão sozinhos neste vasto e silencioso constrangimento. Nenhum grande órgão da imprensa gaúcha se atreveu a mencionar o caso do JÁ e seus escandalosos antecedentes, de forte “conotação político-eleitoral” e um evidente poder letal sobre a boa imagem de Rigotto, que tem um chamativo coração vermelho como símbolo de sua campanha ao Senado.

Na RBS, a maior rede regional de comunicação da América Latina (Zero Hora, o maior do estado, e mais sete jornais, 21 emissoras de TV, 24 de rádio e sete portais de internet), o assunto passa batido pela pauta diária do conglomerado de mídia. Rigotto, sempre que pode, lembra aos amigos que tem uma relação especial de amizade com Nelson Sirotski, o diretor-presidente do grupo. O mesmo acontece no segundo maior grupo do estado, a Record, onde se destacam o Correio do Povo e a rádio Guaíba, hoje sob controle da Igreja Universal.

Na sexta-feira (10/9), aconteceu algo inesperado: o colunista do jornal e âncora da rádio Juremir Machado da Silva abriu corajosamente espaço no seu programa de uma hora, a partir das 13h, para ouvir Elmar Bones ao vivo no estúdio da rádio Guaíba. Juremir foi o primeiro nome importante do jornalismo sulista e a Guaíba o primeiro grande veículo da imprensa gaúcha que conseguiu quebrar o bloqueio de silêncio e abrir espaço para a saga do JÁ. Quando veio o primeiro intervalo do programa, um esbaforido executivo da área comercial irrompeu no estúdio para implorar ao entrevistador e a seu convidado: “Pelo amor de Deus, não misturem esta entrevista com a campanha eleitoral do Rigotto! O homem ‘é assim’ com o nosso presidente!”.

O pastor Natal Furucho, o presidente da Record no sul do país, seria mais um chefão da mídia que “é assim” com Germano Rigotto, o que explicaria o estrondoso silêncio midiático que envolve suas desditas.

O sumiço

Na quinta-feira (9/9), um dia antes da inédita entrevista na Guaíba, a história do JÁ ressuscitou no jornal O Sul, de Porto Alegre. Não era nenhuma ousadia da casa, mas a nota de abertura da coluna de Cláudio Humberto, um profissional que Políbio Braga inveja como um “respeitado e bem informado jornalista” e que é reproduzido em outros 36 jornais do país, além d’O Sul. Furando toda a imprensa gaúcha, o colunista de Brasília informava: “Bomba política explode no colo de Rigotto”. Era a notícia de que, após 15 anos sob um inacreditável “segredo de justiça”, a juíza Fabiana Zilles, da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública, em Porto Alegre, dera por “concluso” o caso da roubalheira da CEEE. Ou seja, falta agora apenas a sentença da juíza sobre a maior fraude gaúcha, que atinge diretamente o mano esperto que Germano Rigotto plantou na estatal.

A coluna de Cláudio Humberto é publicada simultaneamente nos três jornais do Grupo NH, que domina a rica região do Vale do Rio dos Sinos, em Novo Hamburgo, Canoas e São Leopoldo, no entorno da região metropolitana de Porto Alegre. Apesar disso, estranhamente, a nota daquele dia que brilhava n’O Sul desapareceu num passe de mágica dos jornais do NH. O dono do grupo é Mário Gusmão, um dos dois brasileiros que integra a Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da poderosa Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol). O outro brasileiro é Gustavo Ick, também do jornal NH do mágico Gusmão. A comissão da SIP, como o Clube de Opinião gaúcho, jamais opinou ou sequer colocou em pauta o caso do JÁ.

No dia seguinte, na mesma sexta-feira em que Elmar falava na Guaíba, o blog de Políbio Braga no mesmo O Sul replicava com uma manchete forte: “Jogo pesado mira candidatura de Rigotto”. Citava a própria nota de véspera de Cláudio Humberto, que ele classificou como “oblíqua”, e condenava o “saco de maldades” contra o PMDB supostamente aberto pelo “resgate do caso do jornal JÁ, acionado em juízo pela mãe de Rigotto, ofendida com reportagens sobre o filho morto, Lindomar”. E mais não disse. Parecia uma mera travessura de um jornaleco irresponsável, enxovalhando a memória de um jovem desafortunado. Políbio esqueceu de fazer a conexão natural dos fatos que qualquer jornalista com o rabo preso com a notícia, só com a notícia, deveria fazer.

A resposta

O “resgate do caso do JÁ” foi engenho e bravura deste Observatório, o primeiro a contar os bastidores da ação dos Rigotto contra Elmar Bones (ver “O jornal que ousou contar a verdade “, 24/11/2009, e “Como calar e intimidar a imprensa “, 31/8/2010), assinados por este jornalista. O simples, inegável e transparente relato da saga do jornal e de seu editor, premiado pela reportagem e processado pela família do morto, virou “jogo sujo” na estranha interpretação do blogueiro Políbio Braga. Se não tivesse o rabo preso com o seu amigo Rigotto, ele poderia beber na fonte do límpido editorial que Elmar Bones publicou no site do jornal. Ali está claro que o caso do JÁ, engavetado desde julho de 2007, foi desarquivado em fevereiro de 2007 não pelo réu Elmar Bones, mas pelos advogados da própria família Rigotto. O saco de maldades, portanto, foi escancarado por quem, agora, teme sua repercussão político-eleitoral.

Definhando financeiramente, o JÁ teve em 2006 a altivez de recusar uma milionária oferta de um partido adversário do então governador Germano Rigotto, que se preparava para tentar a reeleição. A proposta era reimprimir 100 mil exemplares da edição maldita de 2001, contando os deslizes contábeis do irmão de Rigotto na CEEE, e espalhar a bomba pelo Rio Grande do Sul. A digna resposta de Elmar Bones, ao recusar a oferta, só cabe na cabeça de um jornalista que não tem rabo preso: “Nosso jornal não é instrumento político de ninguém”, ensinou o editor do JÁ, encerrando a conversa.

Os artigos pioneiros do Observatório ecoaram fundo nas redações dos principais jornais gaúchos – Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, O Sul –, evidência de que os bons repórteres e editores do sul continuam atentos e inquietos, todos eles constrangidos com o silêncio que vem de cima. Em telefonemas e e-mails enviados diretamente a este jornalista, que assina aqueles e este texto, uns e outros se mostram solidários a Bones, conscientes do crime que se comete contra a liberdade de expressão e absolutamente impotentes para executar ou simplesmente sugerir esta pauta obrigatória. “Os textos do Observatório constituem uma paulada em nossas consciências amorfas”, me disse um deles, em tom emocionado e sofrido. Apesar de ser de conhecimento público o nome da juíza, o endereço do tribunal e o número do processo do caso da CEEE, nenhum repórter teve a iniciativa de apurar esta história, como mandam as regras elementares do bom jornalismo, amarrado apenas pela busca da verdade e do interesse público.

A fresta

Apesar das dificuldades, aos poucos o espírito guerreiro de Elmar Bones se afirma e se impõe, furando a bolha de silêncio, como aconteceu com o pioneiro Juremir, na Guaíba. O Estado de S.Paulo publicou uma matéria (11/9), enquanto notas esclarecedoras brotam em blogs influentes e solidários, como os de Carlos Brickmann, Cláudio Humberto e Ricardo Noblat. Dias atrás, o blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, abriu espaço para um inédito pingue-pongue com Elmar Bones, de enorme repercussão na internet pela história que parecia novidade, mas que já tem dez anos de agonia e resistência. Inédito, no caso, era a disposição do repórter de ouvir o réu de uma das mais longas ações da justiça contra a liberdade de expressão.

Parece improvável que Germano Rigotto e seus amigos consigam estancar o vazamento crescente de uma epopéia que não pode ser silenciada, não deve ser escondida e não pode ser tolerada. A verdade flui sempre pelas frestas cada vez mais largas de um sistema multimídia que confronta a mentira e desafia o silêncio – e torna caricata a figura anacrônica do “jornalista com rabo preso”. Na eleição de 2006, um pequeno instituto de pesquisas de Porto Alegre, o Methodus, desafiou o ridículo ao apostar na vitória do azarão Yeda Crusius contra os favoritos Germano Rigotto e Olívio Dutra. Deu no que deu.

Na semana passada, o Methodus publicou sua segunda pesquisa, encomendada pelo Correio do Povo para a corrida ao Senado no sul. Em relação ao levantamento do mês anterior, Ana Amélia Lemos (PP) subiu 12,4 pontos percentuais, chegando à liderança com 51,8%. Paulo Paim (PT) vinha em segundo, com 47,7%. Germano Rigotto (PMDB) caiu 6,8 pontos percentuais em relação à primeira pesquisa, ficando agora com 40,9%.

Pelo silêncio da grande mídia, não se sabe até que ponto a queda abrupta de Rigotto pode ser atribuída à verdade latejante do JÁ e ao potencial corrosivo do escândalo da CEEE. O bravo Clube de Opinião também não opinou sobre esta possibilidade.