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Estados Unidos: O controle do que vemos, ouvimos e lemos

Nos últimos anos se produziu nos Estados Unidos um avanço espetacular na monopolização da mídia. Pode-se tomar como ponto de partida deste processo a Lei de Telecomunicações (Telecommunications Act) de 1996. Esta lei suspendeu as restrições que existiam sobre a propriedade de estações de rádio. Antes dessa data, uma companhia só poderia ser proprietária de duas emissoras de rádio AM e duas FM dentro do mesmo mercado e não mais de 40 em escala nacional. Com o fim desta limitação se desencadeou una onda de concentrações.

Nos seis anos que seguiram-se à promulgação da lei, Clear Chanel Communications, por exemplo,  obteve o controle de 1.225 estações de rádio em 300 cidades. Atualmente sua propriedade ou controle se estendeu a mais de 6.600 estações, mais da metade das que existem nos Estados Unidos, incluindo uma rede nacional (Premiere Radio Networks) que produz, distribui ou representa uns 90 programas, serve a cerca de 5.800 emissoras e tem por volta de 213 milhões de ouvintes semanais. Inclui também Fox News Radio, Fox Sport Radio e Australian Radio Network, entre outras. Sua receita em 2011 alcançou a cifra de 6.2 bilhões de dólares.

Eliminadas as restrições para a concentração vertical, só faltava suprimir as limitações que existiam à concentração horizontal estabelecidas pela regra da FCC (Federal Communications Commission) de 1975 (cross ownership rule) que proibia ao que possuía um periódico a posse de  uma estação de rádio (ou de televisão) e vice-versa no mesmo mercado. O objetivo da regra era impedir que uma só entidade se convertesse em voz muito poderosa dentro de uma comunidade. Em 2003 a FCC flexibilizou estas restrições, mas o Terceiro Tribunal de Apelações bloqueou a implementação das mudanças. Em março de 2010 a Corte suspendeu o bloqueio e ficou aberto o caminho à concentração horizontal.

A imprensa, o rádio e os veículos televisivos, seguem as agendas que impõem os donos. Quando estes são milhares, prevalece a diversidade de informação e opinião dentro dos limites que permite o establishment. No entanto, quando a consolidação se produz em grande escala, como sucede atualmente, a agenda que domina é a de uns poucos e poderosos proprietários, e a ideologia que promovem os meios é, pois, a mais reacionária e ultradireitista. Hoje temos mais canais de televisão que nunca, mas uma quantidade substancial deles se dedica ao fundamentalismo religioso, às vendas pela televisão, ao mais frívolo entretenimento ou à pornografia. No resto, a qualidade desceu ao seu pior nível, o que, unido ao excesso de comerciais, alcança limites embrutecedores.

Tudo isto é extremadamente perigoso em uma sociedade que apenas lê e que perdeu a capacidade para discernir entre fatos e opiniões, porque se acostumou à seleção ou apresentação dos fatos em conformidade com critérios pré-estabelecidos. Os fatos são ignorados ou deformados para validar opiniões.

A desregulação abriu à competição desleal todos os mercados de telecomunicação, incluindo os de cabo ou satélite e a Internet. Cinco conglomerados midiáticos controlam 90% de tudo o que lemos, ouvimos e vemos. O que de estranho tem em que dezenas de milhões de norte-americanos aprovem a guerra preventiva, os assassinatos seletivos de presumidos inimigos dos Estados Unidos, a tortura de prisioneiros, as violações de fronteiras com drones (aviões não-tripulados) ou os crimes chamados danos colaterais? Ou que ignorem completamente os sofrimentos da população de Cuba por causa de um bloqueio criminoso de meio século ou as injustas e cruéis sentenças ditadas contra cinco patriotas cubanos.

A concentração produz meios que não se dirigem a toda comunidade. Os anunciantes proporcionam ¾ da receita e a eles somente interessa o setor da população com capacidade para adquirir seus produtos ou seus serviços. Tipicamente, a população de menor renda não é de seu interesse. A concentração transforma os cidadãos norte-americanos em simples consumidores e espectadores.

Atualmente, o livre mercado é o critério com o qual se analisa a mídia, quer dizer, a operação eficiente e a máxima ganância constituem os objetivos principais ou únicos, sem levar em conta o importante papel que devem desempenhar os meios na sociedade e na vida pública. A mídia concentrada é geralmente um grande e complexo conjunto de instituições sociais, culturais e políticas, não só econômicas, que exercem uma profunda e negativa influência na sociedade. Se permitimos que controlem o que vemos, ouvimos e lemos, controlarão também o que pensamos.

Artigo publicado na Agência Latinoamericana de Informação – ALAI-NET: http://alainet.org/active/59555

Tradução Bruno Marinoni

Marco Civil da Internet: entre o lobby e a liberdade

Há cerca de dois meses, escrevemos que o Marco Civil da Internet, a principal proposta de estabelecimento de direitos civis na rede, estava na marca do pênalti (“Marco Civil na marca do pênalti”, 05/09/12), pronto para ser cobrado. Prestes a ser tento comemorado pela sociedade brasileira. No entanto, dois lobbies econômicos muito poderosos conseguiram, além de alterar o ótimo texto do projeto de lei, impedir sua votação: o lobby da indústria autoral e o das empresas de telecomunicações. Na última quarta-feira (7/11), mesmo com a bola no pés, Governo e deputados não cobraram o pênalti. E, se tivessem cobrado, seria um chutão pra lua.

O Marco Civil da Internet – que tramita agora através do PL 5.403/2001 – estabelece os princípios, objetivos, direitos, obrigações e responsabilidades na rede. É a base legal para a cidadania virtual, para o tratamento isonômico dos usuários, para a não discriminação de sua navegação e para a concretização de uma Internet efetivamente livre: para a expressão, para a troca, para a criação, para a inovação, enfim, para o desenvolvimento. É por isso que a proposta elenca, como um de seus princípios, a neutralidade da rede, para evitar que interesses econômicos injustificados se sobreponham ao direito de todos se manifestarem e usarem a rede como quiserem. E é por isso também que o projeto estabelecia, no seu artigo 15, a retirada de conteúdos do ar apenas com decisão judicial, após realizado o contraditório e a ampla defesa, em plena consonância com os pilares do Estado democrático de direito. Trata-se de priorizar a liberdade de expressão e o direito de acesso e afastar a censura privada na Internet.

Retirada de conteúdo sem ordem judicial

Grifamos, aqui, “estabelecia”, pois o último substitutivo apresentado trouxe uma exceção para a remoção de conteúdos que traz grande insegurança jurídica para a Internet e sérios danos aos usuários. O Marco Civil estabelece, como regra, que os provedores de aplicações na Internet (plataformas, redes sociais, portais) somente serão responsabilizados civilmente se não retirarem um conteúdo após receberem um ordem judicial. Com isso, a tendência é que os conteúdos sejam mantidos, respeitando a liberdade de quem postou e o direito de acesso dos internautas a eles. Sistema equilibrado, na perspectiva de uma Internet livre e democrática. Contudo, o novo texto traz uma exceção para conteúdos protegidos por direitos autorais, aos quais não valerá essa regra. Isso pode permitir a interpretação de que não é necessária a avaliação judicial para remoção. Dessa forma, há o risco de esses conteúdos prescindirem da decisão de um juiz para serem removidos, ainda que a Justiça tenha que ser soberana. Cria, assim, um mecanismo que induz os provedores a excluírem o conteúdo, a partir de uma simples notificação, para evitar serem responsabilizados. Ou seja, mesmo que não haja comprovação de que determinado conteúdo (vídeo, foto, música) viola direito autoral, uma simples notificação do eventual titular é suficiente para que o provedor, num julgamento privado, retire esse conteúdo do ar, com medo de ser penalizado. Caberá depois ao usuário prejudicado, geralmente com menos condições para isso, o ônus de procurar a Justiça para reaver seu conteúdo suprimido.

Nesse momento, é importante questionar: como e por que se deu essa alteração, de última hora, e com que finalidade?

A resposta é: lobby. A indústria do copyright que, diferentemente do que se pensa, é composta menos por autores e mais por intermediários da indústria cultural – dentre os quais a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), a ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Discos) e a  MPAA (Motion Picture Association of America), ou seja, a indústria de Hollywood, além de Globo e outros barões do entretenimento -, tem se empenhado energicamente, e nos bastidores, para incluir no substitutivo uma dinâmica própria para os direitos autorais. Essa tentativa, entretanto, já foi abolida na discussão pública do Marco Civil e nem cabe nessa seara legislativa. A discussão dos direitos autorais tem local certo: é a reforma da Lei 9.610/98 (Lei de direitos autorais – LDA), pública e aberta, conduzida desde 2007 pelo MinC (Ministério da Cultura). Tanto que a própria Ministra da Cultura, Marta Suplicy, corretamente, chamou a responsabilidade desse debate ao MinC e à LDA, respondendo inclusive à carta de representantes desse setor.

Os intermediários do direito autoral querem incluir o sistema de retirada de conteúdos sem ordem judicial no Marco Civil, pois sabem que os setores artísticos e culturais, especialmente aqueles que conhecem e se utilizam do potencial da Internet para a produção, a circulação e o consumo da cultura, não querem esse tipo de censura na rede, e também não vão permiti-la na LDA, por ferir a liberdade de expressão cultural. Incluir esse sistema é legalizar algo que esses intermediários já realizam massivamente na prática: a indústria da notificação. Se a premissa da remoção de conteúdo apenas com ordem judicial não valer para conteúdos de direitos autorais, a decisão vai se dar em âmbito privado das relações entre os provedores e os titulares empresariais, a partir da notificação privada de representantes de titulares, que não precisarão nem comprovar a sua legalidade – afinal, provedor não é tribunal para julgar se algo é legal ou não. Em suma: institucionaliza-se a injusta máquina de notificações e censura prévia (inconstitucional, por sinal) e se invalida a regra geral de retirada apenas com o devido processo legal.

Caso se mantenha no texto essa descabida exceção para os direitos autorais, haverá uma avalanche institucionalizada de notificações extrajudiciais, que se servirão dessa imprecisão jurídica para remover indiscriminadamente os conteúdos postados na rede, independentemente se protegidos ou não. Como lei responsável por estabelecer o quadro regulatório geral da Internet, o Marco Civil não deve tratar de questões específicas de direitos autorais, tampouco através de um dispositivo complicador como este. Deve deixar este assunto para a reforma da Lei 9.610/98, em curso. Assim, é imprescindível suprimir o parágrafo segundo do artigo 15.

O lobby das teles

O segundo ponto problemático diz respeito ao princípio da neutralidade. Ela é a garantia da não discriminação de tráfego na rede. Sua importância é indiscutível e tamanha, a ponto de sua regulamentação ter que se dar pela mais alta instância do Executivo: a Presidência da República. O instrumento cabível seria um decreto, ouvido o CGI (Comitê Gestor da Internet), a entidade tecnicamente mais apta a detalhar esse princípio, era o que previa o texto do Marco Civil. Até o último texto, do qual o CGI foi excluído, atendendo a um outro lobby, fortíssimo, das empresas de telecomunicações. O atendimento a esse pedido foi tão solícito que coube a um ministro de Estado levá-lo a cabo. Paulo Bernardo, Ministro das Comunicações, teria declarado publicamente, antes mesmo da (não) aprovação pelo plenário, que seria melhor, de fato, a neutralidade ser regulamentada pela Anatel. Exatamente como querem as teles. Estranho, pois o substitutivo do PL nunca se referiu à Anatel, mas dava esses poderes ao Executivo – posteriormente, quiçá, ao Ministério das Comunicações, num eventual decreto.

O fato é que, agora, escancarou-se a união das teles e do Governo no mesmo desejo: a regulação da neutralidade pela Agência. Motivo mais que suficiente para que se reforce a regulação por Decreto, com essa previsão literalmente expressa no próximo texto a ser votado. Parece ser a vontade do relator do PL, deputado Alessandro Molon, que tem se empenhado em manter uma lei equilibrada e coerente.

Caso isso não ocorra, mais uma vez vencerá a pressão das empresas sobre o interesse público. A mesma pressão realizada contra os parâmetros de qualidade para a banda larga, serviço que elas mesmas prestam. A pressão que impediu o CGI de fiscalizar tais parâmetros, transferindo essa competência para uma consultoria ligada às teles. A pressão que faz com que não avancemos na obrigação das empresas de entregarem efetivamente a velocidade que anunciam na publicidade – e não apenas 20% dela, como é hoje. Enfim, a pressão que não quer a neutralidade da rede no Brasil, pois se ganha dinheiro controlando indevidamente o tráfego dos usuários.

Por isso, é essencial que o substitutivo do Marco Civil da Internet que vai ao plenário da Câmara na próxima terça-feira (13/11), não ceda às pressões econômicas. É preciso que os deputados e deputadas olhem para construção coletiva da sociedade e para o que a Internet significa para ela. O Projeto de Lei do Marco Civil é positivo, avançado, a melhor proposta para regulamentação da Internet no mundo. Não é hora de maculá-lo com abjetos interesses privados. Assim, é essencial que se exclua o parágrafo segundo do artigo 15, removendo qualquer exceção para o direito autoral, por justiça e cabimento – já que isso é papel da reforma da lei de direitos autorais. E, além disso, que a neutralidade seja de fato regulamentada por decreto da Presidenta da República, por ser algo da mais alta importância para a Internet brasileira. Sem atravessamentos e sem jogos de interesses escusos. É preciso aprovar o Marco Civil. E ter uma Internet com menos lobby e mais liberdade.
 

Sem a NET, a estratégia da Globo para enfrentar o futuro

A saída da Globo do controle da NET Serviços deve ser analisada com muito cuidado. Segundo a visão deste blog, trata-se praticamente da conclusão de um processo que se iniciou há mais de dez anos, quando a Globo entrou em crise, incapaz de pagar suas dívidas. A decisão, então, foi manter o controle familiar do grupo (sem ceder participação patrimonial aos credores), mas vender quase tudo o que não estivesse relacionado diretamente com a produção de mídia.

Foram vendidas fazendas, uma financeira (Roma), uma construtora (São Marcos) e vários outros negócios, muitos deles ligados à comunicação. A Globo deixou o controle da subsidiária da NEC no Brasil, praticamente encerrou as atividades de sua gravadora Som Livre, fechou a distribuidora Globo Vídeo e o varejo da Globo Disk, saiu da Teletrim, da TV portuguesa SIC e da Maxitel (atualmente parte da TIM), vendeu a empresa de telecomunicações Vicom e a gráfica Globo Cochrane e liquidou o sonho de uma operadora de parques temáticos.

Essa redução implicou, também, em desistir do mercado internacional. Embora importante como estratégia de divulgação, o lucro com a venda de novelas para outros países sempre foi residual no faturamento da Globopar. Ao mesmo tempo, a Globo International jamais ambicionou ser nada além de um canal para brasileiros vivendo fora do seu país.

Concorrentes nacionais

Na crise a Globo não esteve sozinha. Praticamente todos os grandes grupos de mídia brasileiros também reduziram suas ambições neste mesmo período. Hoje, a Globo tem receita líquida anual maior do que a soma de Record, SBT, Grupo Bandeirantes, RedeTV, Folha de São Paulo, Grupo OESP, UOL, RBS e Abril. Adversários como JB e Manchete ficaram pelo caminho. Some-se à fragilidade e incompetência dos outros grupos brasileiros de mídia, a atuação dos sucessivos governos, que, seja como regulador ou como fomentador, jamais demonstraram vontade de encarar o poderio da família Marinho.

Concorrência estrangeira

Mas, o cenário é completamente diferente quando se analisa os adversários estrangeiros.

Enquanto vendia a NET Serviços para Carlos Slim, a Globo assistiu a Televisa impedir o mesmo Slim de entrar no mercado mexicano de TV a cabo ao mesmo tempo em que investia no mercado de telefonia celular (Lusacell) e nos consumidores hispânicos que vivem nos Estados Unidos. Mas, os maiores temores da Globo não estão na América Latina.

A família Marinho teve forças para impedir que a TV aberta brasileira se tornasse interativa (mesmo tendo que praticamente banir o uso do middleware brasileiro conhecido como Ginga). Mas, ela não pode lutar contra o fenômeno das smartTVs e da chegada do video on demand. Com isso, empresas como Samsung, LG, Sony, Google, Apple e Amazon, que até então atuavam em outros mercados, passaram a disputar a audiência brasileira, em um fenômeno que só tende a crescer nos próximos anos.

Mas, há dois outros adversários ainda mais próximos. Se é poderosa no mercado nacional, a Globo não tem porte para enfrentar as operadoras de telecomunicações e os estúdios de Hollywood. Incapaz de derrotá-los em próprio solo brasileiro, a Globo partiu para uma estratégia defensiva-ofensiva.

Por pressão da Globo, a Lei 12.485 praticamente excluiu as operadoras de telecomunicações do mercado de mídia. Elas não podem ter mais do que 30% de produtoras e programadoras de TV paga e emissoras de TV aberta. E também não podem contratar os direitos de eventos de “interesse nacional” (como o Campeonato Brasileiro de futebol, a Copa do Mundo, as Olimpíadas e o carnaval da Sapucaí) ou “talentos” brasileiros (como artistas, diretores e roteiristas – exceto quando for para publicidade). Ao mesmo tempo em que constrói uma barreira contra as teles, a Globo segue associada ao grupo DirecTV (na Sky brasileira) e à America Movil (na NET).

A mesma estratégia foi adotada diante das majors norte-americanas. A Globosat mantém uma associação com Universal, Paramount, Fox, MGM e Disney nos canais Telecine, além de servir de segunda janela para a Sony-Columbia no Megapix. Mas, mantém poder de veto aos canais estrangeiros na Sky e na NET.

Com isso, a Globo busca ser um ponto de passagem obrigatório no mercado brasileiro, tentando se manter como o parceiro ideal para esses grupos transnacionais, ao mesmo tempo em que lhes dificulta a concorrência.

Futuro

A estratégia é inteligente e por enquanto vem dando certo. Mas, até quando? Ao mesmo tempo, ela é sintoma de um duplo fracasso das políticas (ou da falta delas) para as comunicações brasileiras. Exceto pela Globo (e em parte por causa dela), o país não foi capaz de criar grupos fortes de comunicação. E nossa “campeã nacional” precisa lançar mão de uma série de expedientes para impedir a concorrência estrangeira.

Não se trata nem de demonizar a Globo nem, muito menos, de uma tentativa de salvá-la dos gigantes internacionais. Mas, de reconhecer que, com Globo ou sem ela, o futuro não é nada animador para a comunicação brasileira.

Democratização da Comunicação: o que isso tem a ver com a vida das mulheres?

Nas últimas décadas, a ação da sociedade civil pela democratização da comunicação, no Brasil, tem se renovado a partir da compreensão e de pensar a comunicação no campo dos direitos humanos, reconhecendo-a como um importante e influente espaço de produção de informação e cultura e, nesse sentido, constituição de valores, comportamentos e práticas sociais.

Para nós, mulheres, esse processo passa tanto pela crítica, elaboração e proposição dos conteúdos midiáticos, como pela atuação na esfera pública, reivindicando o exercício da comunicação como parte dos nossos direitos humanos, reflexo de nosso lugar de sujeitos da transformação social. Especificamente, a partir de processos do movimento feminista, e outros movimentos sociais, o direito à comunicação também significa ter as condições para materializar, em diversas mídias, a produção de conhecimento resultante de sua ação.

Assim, afirmar a comunicação como direito humano avança para além do conceito de democratização da mídia, ampliando o sentido de liberdade de expressão. Significa reconhecer que é direito da sociedade participar da produção de sentido (e das disputas que essa participação favorece). Participar tendo autonomia para, discursivamente, se inscrever nas arenas públicas sem a mediação e instrumentalização dos grandes meios de comunicação, mas levando-os em conta.

O feminismo considera que a construção do sujeito implica em criar possibilidades para ação criadora das mulheres que lhes é roubada no cotidiano pelo confinamento doméstico, pela dupla jornada de trabalho, pela violência, e por outras formas de opressão.

O que se passa no entorno da comunicação é crucial na formação das relações de poder. Por isso, não basta monitorar os discursos presentes. É preciso observar o que não contam os meios de comunicação social e apontar as ausências: de alternativas, mensagens e opiniões, sobretudo das mulheres e, entre todas, das mulheres negras e indígenas, entendendo a ideia de participar como condição para efetiva democratização institucional, informacional, econômica e cultural.

Na contemporaneidade, emergem experiências alternativas para superação do que se pode chamar “o sistema passivo de comunicação e democracia” sob o qual vivemos, segundo Manuel Castells. Um sistema que isola as pessoas e as agrega em função dos que controlam o poder.

Apenas as mudanças tecnológicas não são suficientes, estruturalmente, para novas formas de comunicação mais democráticas. Acreditamos que agregar sujeitos pelo direito à comunicação é uma das possibilidades de trilhar saídas para os impasses da democracia atual, inclusive do ponto de vista socioeconômico. A nosso ver, isso contribuirá também para visibilizar novas formas de atuar politicamente e para superação de uma visão da política estigmatizada. Entre outros aspectos, setores da mídia tradicional costumam associar política ao binômio 'corrução & impunidade' ou, no máximo, à relação entre 'falhas na condução das políticas públicas & crises econômicas', de uma forma descontextualizada, sem revelar forças políticas ou interesses econômicos, como se a ação de governantes fosse uma ação de 'gerentes' neutros.

Fortalecer a atuação do movimento de mulheres e demais movimentos sociais pelo direito humano à comunicação é, portanto, uma contribuição fundamental para enfrentarmos o atual cenário de uma generalização destrutiva sobre a política, resgatando o sentido da democratização do poder, inclusive a partir do campo da comunicação.

No movimento

No âmbito do movimento de mulheres é preciso constituir experiências de atuação estratégica, capazes de viabilizar e fortalecer formas próprias de comunicação e para emergência de novas ativistas nesse campo.

Para maior efetividade, acreditamos ser necessário atuar com base em uma elaboração técnico-política sobre o contexto da comunicação no Brasil e no mundo, o que nos remete à necessidade de formular processos que estimulem experiências inovadoras, considerando a pluralidade e as singularidades de cada lugar, cada sujeito, e de cada mídia (as tradicionais e as mais recentes).

Compreendemos que uma ação voltada para reforçar este debate na sociedade, e em particular no movimento de mulheres, precisa colocar em curso iniciativas de formação e articulação (ações em rede) que contribuam para essa elaboração técnico-política e para a construção de discurso midiático. Além de iniciativas específicas que fortaleçam a capacidade de divulgação das causas e ações das organizações de mulheres e do pensamento feminista, em conexão com uma estética cheia de ousadia e criatividade, próprias do feminismo.  

Tudo isso na perspectiva de mais mulheres feministas desenvolvendo novas formas de circular informação, e – pela própria inserção na comunicação, e por se firmarem (e serem reconhecidas) como produtoras e agregadoras de novos conteúdos – contribuírem para mudanças rumo à democratização.

Mulheres feministas com capacidade para se comunicar de forma mais colaborativa, com possibilidade de inovar, sem se prender a um centro, mas expandindo suas conexões por serem também construtoras de “infovias”: caminhos de informação e comunicação. E assim, pelo fortalecimento obtido através da comunicação, poderem também conquistar maior capacidade para sustentar suas organizações e ações coletivas em contextos adversos. Contextos semelhantes ao atual, marcados pelo conservadorismo, recrudescimento do fundamentalismo religioso, restrição do acesso aos bens comuns, perda de direitos e de proteção social no âmbito do trabalho, e restrição de recursos para ações em defesa dos direitos humanos.

Por onde estamos indo?

Na sociedade civil mundial, a novidade dos últimos anos é o fortalecimento da movimentação social a partir de uma multiplicidade de meios que ampliam a comunicação em rede, diferenciando-se da “comunicação de massas” pelas possibilidades de interação, distribuição, descentralização, desintermediação.

Na conjuntura brasileira, como um dos exemplos de ações em rede para o fortalecimento desse debate no movimento de mulheres, temos a Carta aberta das mulheres em luta pelo direito à comunicação, redigida a partir da articulação de organizações feministas, e que contou com a adesão de muitas redes do movimento, o que propiciou sua divulgação em boletim do Fórum Social Mundial. Entre outros conteúdos, a Carta1 foi um dos subsídios retomados na Reunião de Mulheres pela Liberdade de Expressão e Por Mecanismos Democráticos da Regulação dos Meios de Comunicação, aberta hoje, em São Paulo, pelo Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Intervozes, o Geledés e o SOS Corpo.

Não temos dúvida: dessa reunião devem sair algumas boas e novas ações em rede, voltadas para expansão da campanha por liberdade de expressão. São as organizações de mulheres buscando igualdade e liberdade no campo da comunicação. Participe! Como diz o pessoal do Intervozes: Levante sua voz!


Paula de Andrade é jornalista, integra o coletivo de comunicação da Articulação de Mulheres Brasileiras, atua na Rede Mulher e Mídia.

Este documento foi resultado da Reunião Estratégica sobre Banda Larga e Marco Regulatório das Comunicações realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, Geledés – Instituto da Mulher Negra e Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, com o apoio da Fundação Ford,  nos dias 3 a 5 de junho de 2011, em São Paulo, que teve como objetivo a construção de uma agenda feminista de atuação de curto e médio prazo para a incidência no debate público e também na 3a Conferência Nacional das Mulheres em torno desses dois temas: banda larga e marco regulatório das comunicações. Essa reunião contou com a participação de ativistas e especialistas de várias regiões do país, de diversas organizações feministas e do movimento pelo direito à comunicação. Veja mais detalhes no site: www.patriciagalvao.org.br

O rádio digital brasileiro pode morrer antes de nascer

Desde 2006, o governo brasileiro adotou o padrão ISDB-TB de TV Digital, que permite convergência, interatividade e multiprogramação. Mandar a opinião, votar em enquetes, assistir outros programas no mesmo canal e até mesmo acessar a internet, através do aparelho televisivo, são possibilidades dos espectadores neste modelo. No entanto, tudo isso parece mais cena de ficção futurista do que realidade. O explícito boicote das emissoras aos recursos digitais e a ausência de regulamentação governamental revelam que a TV digital brasileira ainda inexiste, senão como canais HD (alta definição de som e imagem) porque o interesse empresarial, que predomina também no Ministério das Comunicações, tenta construir uma TV com menor custo, maior lucro e uma audiência concentrada em poucos canais, o mais passiva, acomodada e disciplinada possível.

O rádio digital corre o risco de repetir a fatídica situação. Com atraso de, pelo menos, cinco anos, o governo federal ainda não definiu seu padrão (IBOC e DRM são os principais concorrentes), nem as diretrizes do modelo. Somente em agosto de 2012, o Ministério das Comunicações criou um Conselho Consultivo para discutir esta decisão. Composto por representantes do governo, das emissoras e dos fabricantes, o órgão tem sua primeira reunião no dia 23 de outubro. Além de atrasada, a discussão começa totalmente desequilibrada. Sem quase investimentos, o Conselho não conta com qualquer estrutura para sua instalação, sequer as condições para participação dos conselheiros é garantida. Não há subsídios para passagens, transporte, hospedagem e alimentação para quem voluntariamente prestará o serviço público de construir posições para a decisão governamental sobre o tema.

Grupos empresariais são favorecidos

Além de institucionalizar a gestão de financiamento do privado para o público, a situação favorece a inversão dos interesses sociais em particulares, dado que a falta de condições simétricas para a participação no debate privilegia os grupos empresariais. A impossibilidade de entidades como a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) enviarem seu representante titular por falta de recursos financeiros enfraquece a defesa de uma rádio digital popular e democrático.

Pensar este modelo é muito mais do que a escolha de um padrão e os custos para implantação. É planejar e executar uma série de medidas que possibilitem mais amplos acessos e participação no rádio digital. É muito mais do que uma questão tecnológica. É uma decisão política que deve orientar a horizontalização da produção e potencialize o uso da tecnologia. Assim, muitas questões e escolhas podem ser elaboradas. Como empoderar as pequenas e médias emissoras a produzirem conteúdo multiforme, interativo e colaborativo? O modelo irá agravar as diferenças entre os grandes e pequenos grupos radiodifusores? Como a multitransmissão num mesmo canal será distribuída? As emissoras poderão veicular diferentes programações simultâneas ou os canais serão compartilhados por emissoras educativas, comunitárias e comerciais? O rádio digital poderá ser uma forma de acesso à internet, possibilitando inclusão digital? Como os ouvintes serão preparados para o uso da nova tecnologia? Haverá orientações para sua participação mais efetiva na produção e gestão das emissoras?

A falta de condições de paridade de participação nesse Conselho revela que não há no governo disposição política de, provavelmente, debater essas questões, respondê-las e, muito menos, executá-las. Reflete também a inexistência de uma política pública de comunicações, favorecendo a força dos grupos empresariais consolidados pelo mercado de gerir, conforme seus interesses bens públicos, como a radiodifusão, que deveriam alicerçar a educação e a participação cidadãs.

Ismar Capistrano Costa Filho é doutorando em Comunicação pela UFMG, mestre em Comunicação pela UFPE, jornalista pela UFC, coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária no Ceará (Abraço Ceará) e membro titular do Conselho Consultivo do Rádio Digital