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Uma torcida e muitas vozes pela democratização da mídia

O futebol é uma paixão nacional. E o exercício da nossa liberdade de expressão também precisa ser. Infelizmente, a intensa campanha midiática em torno do Mundial no Brasil tem dado pouco espaço a setores que apresentam, legitimamente, críticas à organização e realização da Copa do Mundo em nosso país. A grande mídia brasileira foi rápida ao destacar os atrasos na construção dos estádios e aeroportos – se aproveitando disso para atacar o governo federal –, mas deixou de lado problemas resultantes das imposições da Fifa ao país e dos lucros estratosféricos que o próprio setor midiático terá com a Copa.

A realidade é que, mais que um grande evento esportivo, a Copa do Mundo tornou-se um gigantesco espetáculo midiático. Mas alguns fatos ficaram longe do centro do noticiário nacional:

* Acesso à informação sobre os impactos da Lei Geral da Copa: a Lei 12.663/13 estabelece uma série de exigências para a realização do Mundial no Brasil – entre elas, o direito da Fifa e aos grupos por ela indicados terem exclusividade de vender produtos nas chamadas Áreas de Restrição Comercial, que agregam tudo o que existe em um perímetro até 2 km em volta dos locais oficiais de competição. Pesquisa feita pela StreetNet Internacional, que reúne organizações de vendedores informais de diversos países, mostra que faltam informações para a população em geral sobre as condições estabelecidas pela Fifa através da Lei. Em um caso como a Copa, a informação deveria ser primordial para participarmos efetivamente como cidadãos/ãs sobre o que estão fazendo em nosso país e o que deixarão para nós como legado deste grande evento.

* O monopólio da TV Globo sobre os direitos de transmissão do evento: o negócio para a transmissão da Copa de 2014 foi fechado há oito anos, no final de 2006. A Globo não informou o valor pago à Fifa para conquistar esse direito. Mas a parceria é antiga: desde 1970 as duas poderosas fazem acordos entre si. Para a detentora dos direitos, também não importa se o valor a ser pago é cada vez mais alto. O retorno é garantido. Só com o que é pago pelos patrocinadores, a Globo embolsou cerca de R$ 1,44 bilhão. O preço de tabela por cota de patrocínio era de cerca de R$ 180 milhões. Adicione à conta o que o grupo ganha com a retransmissão dos jogos para outros veículos. Tal medida reforça a concentração de poder midiático deste conglomerado das comunicações, na contramão de toda a luta pela democratização da comunicação no país, transformando a principal festa do futebol mundial num grande comércio de venda de marcas e produtos e excluindo as redes públicas de comunicação de todos os países de poderem oferecer este produto em suas mídias aos seus respectivos povos.

* Os serviços agregados aos direitos de transmissão dos jogos: o investimento na compra dos direitos de transmissão também volta para a empresa de mídia com uma mãozinha generosa do poder público. Um exemplo foi a festa que antecedeu o sorteio das eliminatórias da Copa, em 2011, no Rio de Janeiro. Prefeitura e Governo do Rio pagaram R$ 30 milhões para a Globo comandar o evento. Entre recursos públicos e privados, o faturamento originado por toda a divulgação da Copa chega a um valor inestimável, já que não há transparência em sua divulgação.

* Repressão às rádios comunitárias: enquanto os grandes grupos de comunicação lucram com a Copa, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) anuncia, como já mostrou este blog, que, durante todo o Mundial, seu aparato de fiscalização – e repressão – às emissoras comunitárias estará reforçado. Em comunicado oficial enviado às organizações que trabalham com a comunicação comunitária, a agência anunciou que vai reforçar a fiscalização para “garantir a viabilidade das comunicações para a Copa do Mundo de 2014”.

Diante desses fatos, é fundamental a defesa do acesso à informação e do exercício da liberdade de expressão dos mais diferentes setores da população. Desde os protestos na Copa das Confederações, diferentes coletivos de mídia, ao fazer a cobertura dos atos, viabilizar a transmissão ao vivo de protestos e apresentar imagens que desmontaram falácias policiais, provocaram um importante debate importante sobre a produção e difusão de informação e conteúdos audiovisuais no país. Ao mesmo tempo, a mídia hegemônica foi, ela mesma, justamente em função do histórico de manipulação da informação que tem em nosso país, alvo de protestos em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Tudo isso deixou muito clara a necessidade dos diferentes movimentos sociais, organizações da sociedade civil, coletivos e ativistas debaterem a sério o tema das comunicações e lutarem pela democratização da mídia no país. Na Copa e durante outros importantes momentos da história do nosso país, o oligopólio dos meios de comunicação invisibiliza e tenta calar as lutas populares. Mais uma vez, em relação ao direito à comunicação, é a população que está perdendo a partida. E virar este jogo é um desafio de depende de cada um/a de nós.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Midialivrista é espancada e detida durante ato público contra a Copa em MG

Por Bruno Marinoni*

“Cala essa boca! Já mandei você calar a boca!”, grita o policial, ao “abordar” Karinny de Magalhães. A integrante da Mídia NINJA cobria as manifestações em Belo Horizonte no dia da abertura da Copa do Mundo, 12 de junho. Pouco depois de sofrer uma série de violências (como ouvir palavrões) dos agentes de polícia mineiros, a garota foi levada em uma viatura.

Segundo informações veiculadas pela Mídia NINJA, Karinny foi mantida por cerca de uma hora nesta viatura, conduzida em sigilo a um quartel, espancada por cinco policiais até ficar desacordada e depois deixada em uma delegacia da polícia civil. Por um infortúnio da garota, o exame de corpo delito se perdeu por aí… Da delegacia, Karinny foi levada para o Centro de Remanejamento do Sistema Prisional Centro-Sul. O alvará de soltura, que liberou a midialivrista e dois ativistas – Henrique de Souza Dutra e Rhuan Joseph Campos – foi expedido somente na noite de sexta-feira (13).

Quem quer que Karinny cale sua boca? Quem pode mandar uma cidadã calar a boca? O que diz Karinny de tão insuportável para que seja necessário uma surra de cinco policiais?

Ouve-se no registro feito, por meio do celular, Karinny dizendo: “você sabe que não pode abordar assim, né?”. Ora mais! Quem ela pensa que é para questionar uma autoridade? Uma cidadã com direitos?

Plano geral

Esse caso de cerceamento da liberdade de expressão mostra de forma clara a sobreposição de dois níveis de violação do direito humano à comunicação. Por um lado, a violência sistemática e estrutural cometida pelo Estado brasileiro e personificada em suas “autoridades”, por meio da intimidação e da violência física e verbal contra alguém que exerce seu direito à comunicação. Por outro, a sonegação e deturpação dos fatos, negando à população seu pleno direito de acesso à informação. Embora o vídeo que transmitia ao vivo mostre o contrário, Karinny está sendo acusada de causar dano ao patrimônio público durante a manifestação.

Num contexto de decisão dos governantes de intensificar a repressão contra manifestantes durante a Copa do Mundo, por interesses político-eleitoreiros ou econômicos, os midialivristas viraram alvo predileto da ação das polícias. Além da detenção de Karinny em Belo Horizonte, quando transmitia ao vivo a manifestação, no Rio de Janeiro, no mesmo dia, a polícia militar tentou deter o “Carioca”, também da Mídia NINJA, porque ele transmitia uma das típicas “abordagens” policiais em manifestações. Carioca só conseguiu se livrar porque foi protegido por outros manifestantes.

Outros midialivristas foram detidos, no Rio de Janeiro, no dia anterior ao início da Copa do Mundo e dos protestos que criticam o campeonato. A imprensa internacional também não passou incólume. As jornalistas Barbara Arvanitidis e Shasta Darlington, da rede de TV CNN, foram feridas por um estilhaço de bomba “de efeito moral” durante a ação da PM em São Paulo, no dia 12.

Resistência

Diante da detenção de Karinny Magalhães, o Ministério Público de Minas Gerais veio a público, por meio de uma recomendação, cobrar a garantia do exercício da liberdade de expressão, informação e de imprensa. O texto destaca que a Constituição Federal “assegura o direito de reunião e de livre manifestação do pensamento a todas as pessoas”. Além disso, expressa que essa liberdade não deve ser garantida apenas a profissionais dos veículos tradicionais. Segundo a recomendação, devem ser “tomadas medidas para garantir o direito de ir, vir e permanecer e o livre exercício da profissão dos repórteres e jornalistas que estejam cobrindo qualquer evento, especialmente, no contexto de possíveis manifestações, independentemente de estarem credenciados ou vinculados a empresas jornalísticas”.

O órgão público constata o que há tempos os movimentos e ativistas que lutam pelo direito à comunicação têm denunciado: “[…] durante os protestos ocorridos em junho de 2013, especialmente durante a Copa das Confederações e no dia 12 de junho de 2014, primeiro dia da Copa do Mundo, vários foram os relatos de ações repressivas e violentas das forças policiais contra os comunicadores que cobriam os protestos, cerceando o exercício legítimo da profissão e o direito da população de ter acesso à informação”.

O MP afirma ainda que a tropa deve ser “orientada no sentido de abster-se de apreender equipamentos de trabalho e memória das mídias dos comunicadores no âmbito da cobertura midiática” e que “possíveis danos causados a equipamentos e objetos alheios, no exercício da função, poderão configurar crime de dano”.

O que está em jogo​

Ao contrário daqueles que associam as críticas à Copa do Mundo a uma “desconexão com a realidade” ou a um sentimento de “anti-brasilidade”, o que aconteceu com Karinny em Belo Horizonte é exatamente o retrato da realidade violenta que ela denuncia – e que agora, provavelmente mais do que nunca, vivenciou na pele. E não há como negar que o mega-evento foi, no último período, o principal intensificador das dimensões tenebrosas dessa realidade, algo que nenhum cálculo político ou comercial seja capaz de tornar menos real.

O cala boca dirigido a Karinny e demais comunicadores, porém, não vem só do policial. O agente é apenas a boca que fala e que reproduz o autoritarismo herdado de geração em geração. É a fala da Casa Grande que se generalizou. Observado em um quadro mais amplo, Karinny foi agredida porque estava em meio a uma manifestação, veiculando críticas à Copa do Mundo e aos seus promotores. As forças repressivas foram enviadas para fazer Karinny e outros se calarem. Creem que já temos democracia demais.

Como apontamos no post anterior desse blog, ficou claro que os governos brasileiros (incluindo a polícia militar de Minas Gerais, no caso estadual, e das Forças Armadas, no caso federal) mobilizaram todo o aparato repressivo do Estado para estancar as críticas à condução da Copa do Mundo. Infelizmente, os fatos tem comprovado que um amplo espectro político conservador está interessado no sucesso do megaevento, mesmo ao custo da suspensão de direitos fundamentais.

*Bruno Marinoni  é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Mídia e forças de segurança em guerra contra críticos

Por Bruno Marinoni*

Acordei nesta quarta, dia 11, com a notícia de que a polícia estava levando para detenção um punhado de ativistas, dentre eles, dois midialivristas (Tiago Rocha e Eduardo Castro). As justificativas estavam relacionadas à convocação de manifestações, formação de quadrilha, incitação à violência e compra irregular de fogos de artifício. Em outras palavras, algo que poderia facilmente se dizer de qualquer grupo que se organize para assistir a uma partida de futebol.

Desde a quarta série, tenho problemas de concentração em véspera e em dia de jogo do Brasil. A equação que começou a se formar na minha cabeça após ler a notícia que envolvia 10 pessoas detidas, 14 delegacias, 17 mandados de detenção, busca e apreensão, 15 mil homens extras nas ruas do Rio de Janeiro (entre policiais e militares), 15 mil seguranças privados contratados pela Fifa, 57 mil homens das Forças Armadas mobilizados pelo país, 100 mil homens das polícias estaduais e federais, 12 prefeituras, 11 governos estaduais, 1 Distrito Federal, 1 governo federal, 1 federação internacional de futebol, 1 rede nacional de televisão, X empreiteiras, Y marcas de cerveja… Não consegui fazer o cálculo. O resultado, porém, me pareceu assustador.

Suspeitei que estivesse havendo algum “excesso”. Afinal, que perigo representariam um punhado de garotos liderados pela famosa Sininho?! A fadinha das histórias infantis é conhecida (apropriadamente ou não) por ser a mentora intelectual do grupo conhecido como “garotos perdidos” (vulgo Black Blocks), que têm por objetivo principal da vida promover a anarquia na Terra do Nunca (vulgo, Copa do Mundo). Teve sua foto estampada na capa d’O Globo no ano passado, como se fosse uma bandida. Nunca lhe deram o direito de resposta. Mas ela não foi a única. O jornal também estampou a condenação prévia de diversos ativistas, sob o título nada discreto “Crime e Castigo”, em outubro, quando 70 dos 190 presos em uma manifestação no centro do Rio foram indiciados pela nova lei do crime organizado.

Notícias do front

De acordo com o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, publicado pela Artigo 19, agentes do Estado (polícia, políticos e agentes públicos) estariam envolvidos em 23 (77%) dos casos graves de violência contra comunicadores registrados em 2013 como mandantes. Uma boa amostra da participação e disposição do Estado no projeto de silenciamento da sociedade em “dias normais”.

Agora, já é tarde para afirmar: imagina na Copa! Pode-se dizer que o juiz já apitou e foi dada a partida. Os detidos de ontem, embora já liberados, estão tendo a suas vidas devassadas. As operações policiais convergiram para a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) e seus computadores estão sendo vasculhados. Curiosamente, ninguém os acusou ainda de tráfico de pó de pirilimpimpim. Liberdade de expressão e privacidade que se vão para as cucuias!

A operação de criminalização e intimidação está em processo. Reúne um amplo espectro partidário que vai dos governos do DEM aos do PT, mobilizando todo o aparelho repressivo do Estado. Já havia acontecido algo semelhante na terça-feira (10), no Distrito Federal, quando membros do Comitê Popular da Copa foram “visitados” por supostos fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o que mobilizou a Anistia Internacional e a OAB na defesa das liberdades políticas. Até agora o caso não foi esclarecido.

De um lado, o interesse econômico das empresas e corruptos (lucro da Fifa, dos patrocinadores, das empreiteiras, da mídia etc) e, de outro, o interesse político dos governos e partidos no poder (cálculo eleitoral e afirmação ideológica de projetos políticos) precisam, nesse contexto, de um grande discurso autoritário capaz de sintetizar as variadas dimensões do ufanismo e do terror que podem paralisar e mobilizar a população. Para isso, porém, não operam sozinhos. Obviamente, os donos da mídia, proprietários dos meios de produção de ideologias, não deixariam nossos caros conservadores na mão.

Propaganda de guerra

Vejamos as principais manchetes da página na internet d’O Globo que se referem à Copa do Mundo na noite do dia 11, véspera da abertura da Copa: “Polícia do Rio investiga ativistas ligados a Black Block”, “Protestos no dia da abertura preocupam Forças Armadas”, “Dilma: não teremos tolerância com vandalismo”, “Metroviários de SP descartam greve na abertura da Copa” e “Em clima de Mundial, Congresso fica esvaziado na véspera”.

O recado está dado: as forças de segurança estão mobilizadas para deter “ativistas, vândalos e manifestantes”; estes estão mobilizados e preocupam as forças de segurança; o resto da sociedade se mobiliza para assistir a Copa. Cada um no seu quadrado. No quadrado do discurso da mídia, esquadrinhou-se o lugar dos “criminosos” e dos “cidadãos de bem” (vulgo, torcedores). Chamem a polícia, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica para garantir uma distância segura!

Uma das matérias da segunda-feira (9) do mesmo jornal poderia ser considerada um verdadeiro desfile militar impresso. A manchete dizia praticamente tudo que desfila pelas linhas que se seguem: “Militares assumem policiamento de estradas, aeroportos, hotéis e centros de treinamento”. Nunca antes na história desse país… Ou, quem sabe, nos tempos de Ditadura Civil-Militar.

Esse mesmo grupo que fomenta o discurso ideológico da criminalização e intimidação tem tido, além dos lucros advindos da exclusividade de transmissão (leia-se monopólio), alguns benefícios dos nossos beneficentes governantes. Segundo matéria do portal UOL de fevereiro, a prefeitura do Rio de Janeiro vai gastar, por meio da Rio Eventos, mais de R$ 3,8 milhões em um estúdio de TV em Copacabana para emissoras privadas cobrirem a Copa do Mundo. Assim, quem se beneficia com o dinheiro público é a Rede Globo, que detém os direitos de transmissão no Brasil. Além disso, utiliza o espaço da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) para realizar a cobertura. Apropriação privada do bem público, você vê por aqui! Plim-plim.

Enquanto isso, a direita tradicional vem a público dizer que se a Copa não der certo a culpa é do governo federal. O governo federal e seus defensores vêm a público dizer que se a Copa não der certo a culpa é da direita e dos manifestantes. Espremidos em meio à politicagem e a máfia das megacorporações encontram-se os removidos, os silenciados, os devassados, os manifestantes, os grevistas, os NINJAS e uma série de sujeitos de uma sociedade em ebulição.

* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Liberdade de expressão ou discurso de ódio?

Por Ana Cláudia Mielke*

Religiosos/as do Candomblé e da Umbanda ocupam Brasília hoje para exigir respeito e tratamento digno às religiões de matriz africana. Vindos de várias regiões do País, o grupo denuncia a sistemática violação do direito de crença e liberdade das minorias religiosas.

A mobilização foi motivada pelo repúdio à decisão do juiz titular da 17.ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, que negou o pedido de retirada de vídeos do YouTube com mensagens de intolerância contra religiões afro-brasileiras. Um dos vários episódios recentes trouxe à tona a discussão sobre o direito à liberdade de expressão.

Ao negar pedido do Ministério Público Federal (MPF) para que fossem excluídos vídeos que ostensivamente atacavam as religiões de matriz africana e ofendiam seus praticantes, o juiz usou como argumento o direito à liberdade de expressão: “Tendo sido afirmado que tais vídeos são de mau gosto, como ficou expressamente assentado na decisão recorrida, porém refletem exercício regular da referida liberdade [de expressão]”, afirmou o texto da decisão publicado em 28 de abril.

Ponderar entre dois direitos fundamentais não é tarefa das mais fáceis, pois eles não são hierarquizáveis a priori. No caso em questão, contrapunham-se o direito ao livre culto religioso e o que garante a liberdade de expressão, ambos fundamentais e assegurados no Art. 5.º da Constituição. O juiz optou pelo segundo em detrimento do direito ao culto para justificar uma posição claramente racista. O que me faz questionar: esses direitos são mesmos inconciliáveis? O que a primazia de um sobre o outro revela?

A liberdade de expressão é um direito assegurado em inúmeros tratados internacionais, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), dos quais o Brasil é signatário. O direito à liberdade de expressão aparece nesses documentos como um direito negativo, ou seja, ele não é provido pelo Estado, mas deve ser garantido por este.

No fundamento dessas ordenações está a premissa de que a garantia dessa liberdade deve favorecer os mais fracos, ou seja, garantir as vozes dissonantes, a multiplicidade de pensamentos, independentemente do establishment e das forças que operam o Estado. No caso em questão, os praticantes das religiões é que tiveram a liberdade de expressão negada. Vale ressaltar, inclusive, que a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público teve como base uma representação feita pela Associação Nacional de Mídia Afro.

Ocorre que, no Brasil, tal premissa tem sido diariamente desvirtuada para garantir justamente o contrário, a saber, o domínio pela ordem do discurso. Em outras palavras, são justamente os conglomerados de mídia, dentre os quais os formados pelas igrejas evangélicas aqui mencionadas, que mais têm se utilizado do direito à liberdade de expressão para garantir seus próprios interesses e para garantir a manutenção de sua própria ordem.

Na defesa do direito dos ofendidos, dos atacados e dos aniquilados (sim, porque pessoas são assassinadas ou culturalmente massacradas em consequência de discursos), vale jogar luz sobre o fato de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto a ser garantido em detrimento dos demais direitos.

Os mesmos instrumentos internacionais citados acima também dizem que os países signatários devem normatizar a proibição da propaganda em favor da guerra; e a apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência – o chamado discurso de ódio. O caso Rachel Sheherazade talvez seja o mais emblemático para exemplificar como esse discurso tem sido artificialmente confundido com a liberdade de expressão.

Diante dessas questões, fica claro que os países devem encontrar soluções normativas para assegurar a liberdade de expressão, mas também para evitar que ela infrinja outros direitos. O Pacto Internacional enumera, inclusive, passos para realizar a restrição à liberdade de expressão nesses casos. Em geral, trabalha-se a partir da velha “máxima” que diz: “o direito de um termina quando começa o direito do outro” — que parece ter sido esquecida por aqui.

Por fim, vale lembrar que países como os Estados Unidos da América (EUA), a França e a Inglaterra possuem, para além de normativas de contenção do discurso de ódio, órgãos reguladores e diretivas específicas voltadas ao monitoramento desse tipo de violação dos direitos humanos nos meios de comunicação eletrônica de massa, inclusive a radiodifusão (rádio e TV). No Brasil, esse debate ocorre de forma enviesada, sendo erroneamente tachado como censura. Isso quando não é sumariamente interditado.

O mundo (ou pelo menos a parte que compõe o sistema das Organizações das Nações Unidas) construiu, nas últimas décadas, um entendimento comum sobre a necessidade de se conter o discurso de ódio. Desde os horrores do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, foram criadas políticas de contenção do discurso contra cidadãos de ascendência judaica, em especial nos países onde houve maior migração desse grupo étnico, caso dos EUA.

A decisão, além de débil do ponto de vista jurídico, também é abjeta do ponto de vista cultural. Isso porque contribui para o reforço à estigmatização das religiões de matriz africana (e daí vale lembrar que o mesmo juiz, no texto inicial da decisão, havia colocado que tais manifestações não deveriam ser consideradas como religiões) e de seus praticantes, colocando, mais uma vez, a população negra, seus costumes e suas crenças, como algo do não humano e do não cultural, como se o “outro”, o “estranho” ou o “exótico” fôssemos nós – 51% da população desse país!

* Ana Cláudia Mielke é jornalista e integrante da Coordenação Executiva do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Latifundiários da mídia, tremei!

Por Bruno Marinoni*

O Rio Grande do Sul sancionou uma nova lei que reserva 20% das verbas publicitárias do Executivo, Legislativo e Judiciário do Estado para as chamadas mídias locais, regionais e comunitárias. A medida redistribui a aplicação do dinheiro público, antes direcionada, prioritariamente, ao oligopólio midiático.

Se a lei já valesse no ano de 2013, por exemplo, no qual foram gastos cerca de R$ 52 milhões com propaganda oficial pelo Executivo Estadual do Rio Grande do Sul, teríamos R$ 10,4 milhões fomentando o desenvolvimento de pequenas iniciativas em terras gaúchas. Embora a proposta não vá além dos limites do que poderíamos considerar um misto contraditório de “intervencionismo” com “liberalismo clássico” (o Estado alimentando a fé de que o fomento da concorrência é a solução para os nossos males), a desconcentração do poder privado é uma ação importante em um setor que, ao longo de toda sua história, foi dominado pelo oligopólio empresarial e pela exploração comercial.

Os grandes grupos de comunicação no país funcionam como verdadeiros centros de gravidade que parasitam os recursos públicos. Os governos, interessados em autopromoção, injetam dinheiro nas empresas de mídia que concentram as maiores audiências, o maior número de leitores, etc. Assim conseguem mais visibilidade para os seus feitos e colhem os frutos nos períodos eleitorais. O oligopólio se fortalece e aumenta sua capacidade de concentrar público e atrair dinheiro do Estado. Está dado o círculo vicioso.

É preciso vontade política e dispositivos legais que façam com que a propaganda oficial se transforme numa política pública de fomento da pluralidade e da diversidade. A comunicação social, para a maioria dos nossos governos, é pensada como um instrumento de autopromoção, e não um direito que precisa ser garantido a todos e todas. Como resultado, tem-se o giro de uma engrenagem que concentra o poder econômico e ideológico-cultural nas mãos dos mesmos donos da mídia e o poder político nas mãos das mesmas elites regionais e nacionais. A população, em geral, é alijada desse sistema.

O passo dado pelo Rio Grande do Sul é pequeno, mas importante no sentido de democratizar a comunicação e fazer dela um direito garantido. É preciso vincular essa medida a critérios que garantam maior participação da população na formulação das políticas públicas e maior diversidade na distribuição dos meios de comunicação e dos recursos.

Em outros estados do país e no Congresso Nacional propostas parecidas estão tramitando. Vale a pena buscar saber mais e apoiar essas iniciativas para que o impacto abra uma brecha que nos permita imprimir uma dinâmica diferente na história da comunicação do país, até hoje, restrita ao âmbito particular dos interesses das elites político-econômicas.

*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.