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O caso RCTV e a liberdade de imprensa

Nos últimos dias, os grandes grupos midiáticos brasileiros reproduziram à exaustão textos, comentários, editoriais e matérias de rádio e televisão sobre o golpe que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, estaria desferindo na liberdade de imprensa ao não renovar a concessão pública da RCTV, um dos grandes canais de TV privados daquele país. Na verdade, nem se fala em “não renovação da concessão”, mas sim em “fechamento” do canal. Outra sutileza lingüística ocorre quando esses grupos falam, sempre de modo lateral, sobre a “suposta” participação da RCTV na tentativa de golpe de Estado contra Chávez, em abril de 2002. O uso da palavra “suposta”, neste caso, pode significar duas coisas: desinformação ou má fé. Considerando a quantidade de material disponível sobre a participação da RCTV no golpe, a primeira alternativa deve ser logo descartada. 

O papel desempenhado por jornalistas e executivos da RCTV, e de outros grandes grupos midiáticos venezuelanos foi admitido e aplaudido com orgulho pelos próprios protagonistas que hoje tentam se proteger atrás do escudo da “liberdade de imprensa”. Os mesmos agentes que produziram um bloqueio de informações, que articularam junto com os militares e empresários golpistas a tentativa de golpe, que pisotearam a Constituição venezuelana, hoje elevam seus gritos contra a ameaça à liberdade de expressão na Venezuela. São os mesmos também que apoiaram a retirada do ar da TV pública venezuelana, durante o golpe, para que a população não soubesse que Chávez não havia renunciado, mas sim preso pelos golpistas. São os mesmos que, no dia seguinte ao golpe, contavam na TV com orgulho como haviam ajudado a depor um presidente eleito pelo voto popular. Clique AQUI para ver um trecho do documentário “A Revolução não será televisionada” que mostra esse momento sublime da liberdade de imprensa. (Outros depoimentos similares podem ser vistos no site Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, que também publicou o artigo de Naomi Klein, citado a seguir). 

As mentiras da mídia venezuelana
Esses fatos não são mencionados pela mídia brasileira. Muito pelo contrário. O telejornal Hoje, da Rede Globo, por exemplo, em sua edição de 28 de maio, afirma que Chávez acusou a RCTV de fazer oposição ao governo e, por isso, teria determinado o fechamento da mesma. Nenhuma referência foi feita ao papel da emissora durante o golpe. Para contrapor esse tipo de deformação, não custa lembrar o depoimento de um ex-diretor da própria RCTV sobre a atuação da emissora durante o golpe. Em um artigo escrito ainda em 2003, intitulado “As (muitas) mentiras da mídia venezuelana, Naomi Klein, conta a história de Andrés Izarra, ex-jornalista da RCTV, que disse que a campanha que culminou com a tentativa de golpe contra Chávez em 2002 “causou tanta violência contra a informação verdadeira que as quatro redes de tevê privadas deveriam perder o direito às suas concessões públicas”. 

O currículo de Izarra não permite que ele seja “acusado” de chavismo. Ele foi ex-editor da CNN em espanhol para a América Latina até ser contratado como gerente de produção do telejornal de maior audiência do país, El Observador, da RCTV. No dia 13 de abril de 2002, escreve Naomi Klein, um dia depois que o líder empresarial Pedro Carmona assumiu o poder, Izarra pediu demissão do emprego sob condições que descreveu como “de extremo stress emocional”. A partir daí, passou a denunciar a ameaça à democracia que surge quando a mídia decide abandonar o jornalismo e assumir uma posição política onde passa a usar seu poder de persuasão “para ganhar uma guerra causada pelo petróleo”. Não custa lembrar também, neste mesmo contexto, o papel da imensa maioria da mídia dos EUA que abraçou as mentiras do governo Bush no processo de invasão do Iraque. 

Com a palavra, um ex-gerente da RCTV
Nos dias que precederam o golpe de abril, relembra ainda Naomi Klein, os maiores grupos midiáticos privados da Venezuela (Venevision, RCTV, Globovision e Televen) “trocaram a a programação regular por insistentes discursos anti-chavistas, interrompidos apenas por comerciais convocando os telespectadores a ocupar as ruas: Nenhum passo atrás. Saia! Saia! Agora!. Os anúncios eram patrocinados pela indústria do petróleo, mas as emissoras colocavam no ar como se fossem de interesse público”. Enquanto essas emissoras celebravam abertamente a “renúncia” de Chávez”, prossegue o artigo, forças pró-Chávez tentavam reagir e comunicar à população que havia sido presos e não havia renunciado. As emissoras sabiam disso mas não divulgavam. E não era por medo, como disse o produtor executivo da RCTV, David Pérez Hansen, ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. 

Em entrevista publicada nesta segunda-feira (28), ao ser indagado sobre o silêncio da RCTV e de outras emissoras sobre o golpe, Hansen diz que os jornalistas estavam com medo e sofrendo ameaças de morte. Não é o que relata o gerente de produção do principal telejornal da RCTV na época, segundo o artigo de Naomi Klein: “Izarra diz que recebeu instruções claras: nenhuma informação sobre Chávez, seus seguidores, seus ministros ou qualquer outra pessoa que de alguma forma possa ser relacionada a ele. O jornalista assistiu horrorizado enquanto seus chefes ativamente suprimiam as manchetes de última hora. Izarra diz que no dia do golpe, a RCTV recebeu uma reportagem de uma afiliada dos EUA dizendo que Chávez não havia renunciado, mas tinha sido seqüestrado e preso. A reportagem não foi ao ar. O México, a Argentina e a França condenaram o golpe e se recusaram a reconhecer o novo governo. A RCTV sabia, mas não divulgou”. 

Ainda segundo Izarra, a RCTV tinha um repórter no Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano, e sabia que o mesmo havia sido retomado por tropas leais a Chávez. Enquanto isso, a emissora transmitia desenhos animados de Tom e Jerry e o filme “Pretty Woman”. “Foi quando decidi dar um basta e fui embora”, admitiu o jornalista. Nenhuma destas informações foi divulgada pela mídia brasileira que segue tratando a participação da RCTV no golpe como “suposta” atuação. Nem o depoimento dos jornalistas das grandes emissoras de TV, revelando que o depoimento de um dos generais golpistas foi gravado na casa de um deles, parece ser suficiente para transformar a suposição em fato. O que nos leva a seguinte pergunta: e se a atuação golpista da RCTV foi um fato? A atuação de um grupo midiático em um processo golpista para derrubar um presidente eleito pelo voto popular é motivo para a não renovação de uma concessão pública? Se não é, o que seria aceitável para não renovar uma concessão? 

O assassinato de Danilo Anderson
Em novembro de 2004, o procurador da República Danilo Anderson, que investigava o golpe de Estado de 2002, foi assassinado em um atentado a bomba. A jornalista Patrícia Poleo, o empresário Nelson José Mezerhanne, o general Eugenio Añez e o advogado Salvador Romaní foram acusados como autores intelectuais do crime. Quanto à execução do atentado, as investigações da Justiça venezuelana apontaram fortes indícios de participação da Central de Inteligência Americana (CIA) e de grupos pára-militares colombianos. Filha de Rafael Poleo, proprietário do jornal “El Nuevo País”, Patrícia fugiu para Miami para evitar o julgamento. Acusada de assassinato e foragida da justiça, passou a ser tratada pela grande mídia venezuelana como uma heroína da oposição. A investigação sobre o atentado contra Danilo Anderson não mereceu destaque na mídia venezuelana e tampouco na brasileira. Uma visita ao mais famoso site de buscas do mundo, o Google, revelará quantas matérias saíram na imprensa brasileira sobre o assassinato de Danilo Anderson. O resultado é surpreendente. 

Além de ser refratária ao contra-ponto, a grande mídia brasileira (assim como a venezuelana) também o é em relação a qualquer debate sobre o tema “concessão pública” na área da comunicação. As concessões de rádio e TV, vale lembrar, não são definitivas, como ocorre com qualquer serviço público. Elas têm um prazo e critérios para renovação. Entre esses critérios, não figuram as práticas descritas pelo ex-gerente de produção do principal telejornal da RCTV: a mentira, o boicote à informação, a manipulação e a participação ativa para depor um presidente eleito. A total ausência de contra-ponto no caso da não renovação da concessão da RCTV é mais do que sintomática. Revela uma cumplicidade explícita e recheada de má-fé em relação a uma elite que tem Miami como sua capital e inspiração de vida. O recurso à bandeira da liberdade de imprensa para defender empresários midiáticos golpistas é uma piada. Uma piada que tem antecedentes na história recente do Brasil. Talvez seja a hora de resgatar investigações sobre como grandes grupos midiáticos brasileiros construíram seus impérios por meio de acordos e parcerias com a ditadura militar. Ou pedir isso também significa uma ameaça a liberdade de imprensa?

 

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Impressões desde a Venezuela

Por motivos profissionais, cheguei à Venezuela no dia em que a emissora  Rádio Caracas Televisión (RCTV) saiu do ar, após 53 anos de transmissões. O governo de Hugo Chávez recusou renovar a concessão pública que lhe fora outorgada, e fez substituir a emissão comercial pela ainda incipiente TVes. A nova emissora ainda está em fase de estruturação, e atualmente exibe apenas curtas reportagens sobre as regiões e cultura nacional. 

A outra emissora estatal daqui é a VTV – Venezuelana de Televisão, o "canal de todos venezuelanos". Porém, a julgar pelos conteúdos exibidos pela VTV, a emissora é uma lição de como NÃO deve ser a rede pública que nós outros desejamos construir no Brasil. 

Chávez é onipresente na VTV. Aparece no intervalo, em propaganda da empresa petroquímica nacional, anunciando investimentos em transportes públicos e discursando em favor dos direitos das crianças. No programa "La Hojilla" ("A Lâmina"), sua imagem compunha o cenário, juntamente com um retrato ainda maior de Fidel Castro. Na edição do dia 29 de maio, o apresentador desse programa passou mais de três horas desancando as emissoras privadas e os manifestantes que protestavam contra o encerramento das atividades da RCTV. Mostrava um vídeo ou lia uma matéria jornalística e em seguida fazia comentários toscos, pouco informativos. Exibiu ainda o discurso de Chávez, pronunciado em rede nacional, no qual "o comandante" ameaçou sem meias palavras o outro canal opositor – Globovisión – também com o fim da concessão, em nome da "pátria". 

No dia anterior, o programa jornalístico da VTV exibiu o ex-presidente do México, Vicente Fox, criticando duramente a medida do governo chavista. Em seguida, o jornalista sardonicamente comentou que Fox não primava por proteger a liberdade de imprensa, citando, como reforço, que o buscador Google apresentava mais de mil respostas quando se digitava algo como "Vicente Fox persegue jornalistas". 

Também no dia anterior, o assunto era a campanha de filiação ao Partido Socialista Único da Venezuela – PSUV. Além de matérias de conteúdo "jornalístico" (entrevistas com pessoas na fila de inscrição), a TV fazia aberto chamado à adesão ao PSUV, alternando com manifestações positivas do comandante-em-chefe. 

Num programa matutino de debates, o tema era as manifestações estudantis contrárias à medida governamental. Mas – surpresa! – os cinco debatedores e o mediador eram todos favoráveis à decisão chavista e diziam que os manifestantes deveriam estar estudando, e não fazendo protestos. 

O culto à personalidade do governante de plantão (prática infelizmente tão enraizada na história política da América Latina), a confusão entre Estado e Partido, a inexistência de pluralismo interno no canal estatal e a inobservância dos princípios mais básicos do jornalismo (como ouvir a parte contrária), aqui verificados, nos alertam para a necessidade de instituições públicas de comunicação verdadeiramente democráticas, pluralistas e impessoais. Para tanto, é necessário assegurar que a rede pública brasileira de TV que estamos construindo esteja alicerçada em modelos de gestão e financiamento sólidos, e seja formada por um corpo de funcionários que gozem de autonomia em relação a este ou aquele governante. Caso contrário, estaremos apenas substituindo o monólogo do mercado e do consumismo, por outro tão aborrecido e acrítico quanto.

Isla de Margarita, 30 de maio de 2007.

 * Sergio Gardenghi Suiama é Procurador da República em SP

Active Image permitida a publicação, desde que citada a fonte original.

 

Caso RCTV faz lembrar que concessões não são vitalícias

Todo este espaço aberto na mídia brasileira para falar sobre o caso da não renovação da concessão de uma das emissoras da Radio Cararas Televisión (RCTV) é bem sintomático para tentarmos compreender o que se passa atualmente aqui mesmo no Brasil. Seria de levantar suspeitas o motivo pelo qual de uma hora para outra a imprensa nacional resolveu sair de sua tradicional posição de costas para a América Latina, se neste exato momento não estivessem em pauta os debates em torno da classificação indicativa na TV e da regulamentação da publicidade de bebidas e de alimentos que causam obesidade. Tanto a decisão do governo venezuelano como as propostas dos ministérios da Justiça e da Saúde estão sendo colocadas no mesmo balaio do atentado à liberdade de expressão e da “volta à censura”. Mas a questão de fundo de ambos os casos é a eterna disputa entre o interesse público e o interesse privado. 

No caso da RCTV, o que mais foi dito é que seria fechada a emissora que se opõe ao governo Chaves. Só que a imprensa brasileira, sempre superficial, se “esqueceu” de apurar um pouco mais o histórico da “injustiçada” emissora. Pois, ao que consta, já em 1976, a RCTV foi tirada do ar por três dias por veicular notícias falsas; em 1980 ficou 36 horas fora do ar por causa de sua programação sensacionalista; em 1981, foram 24 horas de penalidade por exibir cenas pornográficas em horário inadequado; em 1989, mais 24 horas fora do ar por ferir a lei ao veicular publicidade de cigarro; e em 1991, teve um de seus programas humorísticos tirado do ar pela Corte Suprema por ridicularizar as pessoas. 

Não bastasse todos esses problemas relativos ao conteúdo, há ainda os processos na Justiça por sonegação fiscal entre 1999 e 2003, e por veiculação dos discurso do almirante Molina Tamayo e dos generais Nestor Gonzáles e Guaicaipuro Lameda em favor do golpe militar de 11 de abril de 2002. Ambos os casos: enganar o fisco e incitar o povo a um golpe de Estado, são ações puníveis constitucionalmente em qualquer democracia do mundo; pior ainda se tratando de uma concessão pública como as emissoras de televisão. Vale lembrar que, bem ou mal, Hugo Chaves foi eleito e re-eleito nas urnas. 

Outro ponto também não divulgado pela imprensa brasileira é que a não renovação da concessão foi apenas de uma das emissoras do grupo 1BC (1 Broadcasting Caracas), que continua operando com suas empresas de rádio, TV a cabo, internet e fonográficas. A falta de informação deve ser pelo fato de recebermos notícias da Venezuela por agências americanas, inglesas e francesas, ou por correspondentes brasileiros em Buenos Aires. Até pela proximidade geográfica, certamente jornalistas de Roraima teriam informaçõesmais confiáveis. 

O caso da RCTV não tem nada a ver com censura ou com atentado à liberdade de expressão. Da mesma forma que não é censura, no Brasil, os casos da regulamentação da classificação indicativa e da publicidade de bebidas alcoólicas e alimentos prejudiciais à saúde; todos previstos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. 

A (de)formação da opinião por parte da mídia em geral é tratada pelo foco das questões ideológicas. Sendo que as empresas de comunicação tentam sempre afirmar seu papel de defensor da democracia; o que de certa forma era válido nos séculos XVIII e XIX, quando os jornais davam voz àqueles que se opunham aos regimes autoritários. Mas a partir do final do século XIX e início do XX, a imprensa perdeu seu papel de quarto poder para se tornar uma empresa comercial como qualquer outra. 

O que está por trás de todo este tempo e espaço destinados ao caso RCTV ­ maior do que o destinado a muitas outras questões de relevância na América Latina ­ é uma preparação de terreno para a defesa teoria do vale tudo. Assim, em nome da “liberdade de expressão”, pode-se desrespeitar os direitos humanos, invadir privacidade, acusar sem provas, corromper… É a moda da tal “liberdade de expressão comercial”, neologismo criado pelos empresários do setor no Brasil. 

No entanto, se o que está escrito na Constituição continua valendo, os canais de rádio e televisão são concessões públicas, devem respeitar as leis do país, e, assim como na Venezuela, e no resto do planeta, as concessões não são vitalícias.   

(*) Edgard Rebouças é jornalista, doutor em Comunicação, professor da Universidade Federal de Pernambuco e membro da coordenação executiva da campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. 

 

Ode à Tortura

O sorriso perverso de Jack Bauer diante da prisioneira que reclama seu direito a um advogado não será suficiente para desencadear o repúdio da platéia. Jack, interpretado por Kiefer Sutherland, é "do bem". Seu personagem foi cuidadosamente construído pelo roteirista do seriado 24 Horas. Ele tem uma família, ama sua filha e amava sua esposa, até ela ser assassinada pela agente Nina Myers, personagem-chave do seriado até sua morte na terceira temporada.

Assisti às três primeiras temporadas. Foram 72 episódios de uma hora cada, divididos em 18 DVDs. O seriado é transmitido pela Fox, de Rupert Murdoch, e repetido no Brasil pela Rede Globo, que acaba de anunciar, não sem alegria, sua extensão até 2009. A indústria cultural está satisfeita. Nos EUA, 24 Horas foi premiado com cinco Emmy (o Oscar da televisão), incluindo melhor seriado dramático e melhor ator para Sutherland.

Tudo gira em torno da UCT (Unidade Contra o Terrorismo), situada em Los Angeles. Lá estão os personagens principais: Jack Bauer, Nina Meyers, Tony Almeida, Ryan Chapelle, Michele Dessler, Kim Bauer (a filha de Jack, que em três temporadas passa de "filha-arruma-problema" a agente da UCT), entre outros.

Na primeira temporada, o objetivo da UCT é impedir o assassinato do candidato negro à presidência da República, David Palmer. Os "terroristas" vêm dos Bálcãs. A esposa e a filha de Jack são seqüestradas e ele é manipulado para facilitar a missão. No final das contas, acaba conseguindo salvar a vida – não uma, mas duas vezes – do candidato Palmer. Os dois tornam-se amigos.

Na segunda temporada, Jack e companhia precisam localizar uma bomba nuclear plantada em solo estadunidense por "terroristas" islâmicos. Depois de localizá-la, o nobre herói é voluntário para pilotar o avião que levaria a bomba para o deserto, onde seria detonada sem maiores riscos para o povo estadunidense. No final das contas, o diretor da UCT se oferece para trocar de posição, já que havia sido contaminado por plutônio e morreria de qualquer jeito. O herói Jack reluta no início: precisa ter certeza de que o enjôo da radiação não poria tudo a perder. Mas acaba cedendo, depois que fica bem claro que ele estava mesmo disposto a morrer para salvar seu povo.

Na terceira temporada, os "terroristas" são mexicanos. O problema começa com tráfico de drogas e termina com os malvados irmãos Salazar tentando comprar um vírus extremamente letal para revendê-lo à Al-Qaeda que, naturalmente, atacaria os EUA com a nova arma. Claro que Jack resolve tudo no final.

Nas três primeiras temporadas, fica evidente que o objetivo é construir no imaginário da platéia a idéia de que os EUA vivem sob ameaça. É como se dissessem: "Vejam, o mundo tem raiva de nós. Eles nos odeiam sem nenhum motivo. Se há um motivo, é porque somos livres e democráticos". O medo faz com que as pessoas aceitem tudo. Inclusive mentiras para levar seu país a invadir outros países, a legalização da tortura ou uma fraude eleitoral. E essa é a mensagem transmitida durante todos os capítulos do seriado: o país está sendo ameaçado o tempo todo por todo o mundo. Ao inverter a realidade (na verdade os EUA é que ameaçam o mundo com suas ogivas nucleares, seu terrorismo de Estado e suas corporações que destroem o meio ambiente), o seriado alinha-se à propaganda política de Washington, que, adotando a tática da auto-vitimização, exime-se de toda e qualquer responsabilidade pelo que há de errado neste planeta.

Jack é um fenômeno. Sabe operar sistemas sofisticados de computação, atira como ninguém, pilota aviões e helicópteros (a ponto de driblar dois helicópteros militares num teco-teco civil) e tortura quem aparece pela frente sem que o público o odeie por isso. Claro, para salvar milhões de estadunidenses, vale torturar alguém para obter informações (mesmo que já tenha sido provada a ineficiência desse método). Perdão. De acordo com a nova lei aprovada no ano passado nos EUA, o nome não é tortura. São "métodos duros de interrogatório".

Como se não bastasse, Jack é um garanhão. Além da esposa, pegou a agente Nina Meyers, a irmã de uma terrorista (que não sabia de nada, claro) e Cláudia (esposa de Marcos Salazar). Só mulherão! E o diretor ainda deu um jeito de fazer com que ele desse uns beijos na agente traidora, mesmo depois de ela ter matado sua esposa. Pelo script, o coitado foi obrigado a fazer isso para manter o disfarce.

Mas há algo mais nesse seriado. Além de grandes atores e de histórias muito bem montadas, a equipe de produção é quem faz a diferença. Eles constroem os personagens de maneira que a platéia não tem escolha: há os personagens que o espectador adorará e outros que ele odiará. Nina Myers, por exemplo, interpretada por Sarah Clarke. Uma pintura de atriz. Confesso que não consegui odiá-la nem quando ela trabalhava para a UCT e nem quando mudou de lado, passando a vender informações para qualquer "terrorista" que lhe pagasse uns milhões de dólares.

Há outro detalhe digno de nota: até a tortura é diferenciada. Quando são os "terroristas" que a praticam, as cenas são repletas de sangue, gritos, gemidos. Há uma cena em que o torturador lembrava um açougueiro. Seus instrumentos de tortura pareciam saídos da Idade Média e sua roupa estava repleta de sangue. Já quando Jack tortura, ou a tortura é feita na UCT, a coisa é diferente. Muitas vezes, vem um sujeito de terno e gravata abre uma pequena maleta, retira uma seringa e injeta no sujeito algum líquido que lhe causa uma dor extrema. Tudo limpo.

Outro esforço dos realizadores de 24 Horas é mostrar que o presidente David Palmer é um homem justo, honrado. O presidente dos EUA sempre apresenta semblante pesado quando precisa tomar uma decisão que vai salvar a vida de milhões de pessoas, se isso causar a morte de um único ser vivo. Na segunda temporada, ele faz de tudo para evitar uma guerra contra países islâmicos, mesmo depois que pessoas de dentro do seu próprio governo forjam provas para implicar aqueles países. Mas Jack consegue provar a fraude no último minuto.

Ou seja, o seriado passa uma imagem irreal da figura do presidente dos EUA, como se ele não fosse o principal representante das corporações que lucram com a exploração dos povos e o assassinato em massa.

Segundo a revista The New Yorker, o ator Kiefer Sutherland disse que o seriado "não passa de entretenimento". Mas quem sabe que a mídia, hoje, é a instituição com maior capacidade de produzir subjetividades (formas de sentir, pensar, agir e viver), percebe o efeito devastador dessa "obra de ficção". Cada vez que o torturador Jack Bauer entra em ação, milhões de pessoas são levadas a apoiar suas práticas. E a humanidade torna-se menos humana.

 Active Image publicação autorizada, desde que citada a fonte original.

 

Fim da RCTV acua a mídia golpista

Em mais uma prova de coerência e coragem, o presidente Hugo Chávez não se intimidou diante das fortes pressões e manteve o seu compromisso de não renovar a concessão da emissora privada Rádio Caracas de Televisão (RCTV), que teve as suas transmissões em sinal aberto encerradas à meia-noite de 27 de maio. Menos de meia hora depois, entrou no ar a nova rede pública da Venezuela, a Teves, que será dirigida por um conselho formado por jornalistas, docentes e representantes dos movimentos sociais. O fim da outrora poderosa RCTV abre nova fase na luta contra a ditadura midiática na América Latina. Não é para menos que todos os veículos privados da região chiaram contra a medida, manipulando descaradamente os fatos. 

A decisão de não renovar a concessão pública, com base nos princípios constitucionais do país – também previstos nas legislações de várias outras nações, inclusive do Brasil –, foi anunciada em 28 de dezembro. Num discurso proferido aos militares do Forte Tiúna, o maior quartel do país, o presidente Hugo Chávez garantiu que, “por mais que gritassem os oligarcas”, a concessão da RCTV não seria renovada. Explicou que apesar da postura fascista da emissora no golpe de abril de 2002 e de outras inúmeras irregularidades (sonegação fiscal, evasão de divisas, difusão de pornografia, retenção das pensões dos funcionários), ele aguardaria pacientemente o prazo legal da concessão, encerrado neste domingo, para executar a medida. 

Globo, Folha e o rabo preso 

O anúncio criou um frenesi na burguesia mundial e na sua mídia venal. O Congresso dos EUA, com apoio dos “democratas”, aprovou resolução contra a medida e, ao mesmo tempo, manteve a remessa de milhões dólares para financiar a “oposição” na Venezuela. Já o parlamento europeu acatou a proposta do Partido Popular (PPE), de ultradireita, e considerou “um afronta à liberdade” o fim da concessão. Organizações financiadas por governos imperialistas e corporações multinacionais, como a Repórteres Sem Fronteiras, realizaram um verdadeiro bombardeio nestes cinco meses para evitar o fechamento da RCTV. A mídia do capital, como a The Economist e o New York Times, deu capa e fez estardalhaço contra a medida.

No Brasil, a poderosa Rede Globo, talvez temendo a força do exemplo, preferiu apresentar a RCTV como uma emissora neutra, “a mais antiga e influente da Venezuela”, evitando explicar aos seus telespectadores os reais motivos da cassação. Já a Folha de S.Paulo, que tem o “rabo preso” com os golpistas, publicou o editorial “ditador em obras”, acusando o governo Chávez de promover uma escalada “autoritária”. Numa manipulação descarada, ele chega a afirmar que já não existe imprensa independente no país, que todos os veículos são “dóceis instrumentos do chavismo”. Eduardo Guimarães, no artigo “As RCTVs tupiniquins”, publicado no portal Fazendo Media, desmascara essa mentira, que evidencia os temores da mídia venal. 

“Quem, como eu, já esteve na Venezuela ou tem contatos de alguma espécie com o país, sabe que não é verdade o que diz a Folha. A imprensa venezuelana é totalmente livre. Inclusive as TVs. No dia em que escrevo este texto, o jornal caraquenho ‘El Universal’, um dos maiores da Venezuela, publica editorial e vários artigos sobre o fechamento da RCTV que guardam enorme similaridade com o discurso da Folha, apesar de serem textos característicos da imprensa venezuelana – virulentos, ressentidos e pregadores do mesmo ‘golpismo’… O leitor da Folha e do resto da grande imprensa brasileira, como o telespectador da Globo e de outras TVs e rádios, estará mal informado se não buscar fontes alternativas de informação”. 

Choros, mentiras e omissões 

Manipulação ainda mais grosseira se deu nos dias que antecederam o fim da concessão. A mídia mundial e os plagiadores nativos chegaram a noticiar “gigantescas” manifestações em defesa da RCTV, o que foi desmascarado por vídeos reproduzidos no You Tube, que mostraram protestos minguados de “branquelas” das elites. A presença de tropas do Exército nas ruas da Caracas também foi amplamente difundida, para vender a imagem de uma nação sitiada; mas pouco se falou sobre os incidentes deste domingo, nas quais “ativistas pró-democracia”, mais parecidos com mercenários, dispararam tiros e feriram onze policiais. A imagem de “funcionários” da RCTV chorando foi cansativamente repetida; já as manifestações festivas pelo fim da concessão, bem maiores e mais populares, quase não apareceram nas TVs. Puro engodo! 

A mídia hegemônica também nada falou sobre as várias denúncias que pipocaram nos últimos dias contra a RCTV. A emissora estatal VTV exibiu fac-símiles de documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EUA em que são citados os jornalistas das redes de televisão RCTV e Globovisión, bem como o diretor do Noticiero Digital e o editor do Tal Cual, que receberam dólares da embaixada estadunidense em Caracas. O programa também exibiu carta assinada pela secretária Condoleezza Rice, dirigida a Odilia Rubin de Ayala, da direção da RCTV, na qual solicita divulgação e apoio financeiro à Súmate, uma das ONGs mais fascistóides contra o governo Chávez. Os vídeos também estão disponíveis no You Tube.  

“Emissora golpista já vai tarde” 

Diante destes fatos deprimentes, até setores críticos do governo bolivariano mudaram de opinião sobre o fim da concessão. O repórter Luiz Carlos Azenha, que recentemente abandonou a TV Globo para cuidar do seu blog na internet – “Vi o mundo – o que você nunca pôde ver na TV” –, até comemorou a decisão. “Eu tinha lá minhas restrições ao processo [do fim da concessão], mas diante do que tenho visto na mídia corporativa agora digo que a emissora golpista já vai tarde. Fazer oposição a um governo é uma coisa. Fazer campanha para derrubá-lo é outra. E isto durante seis anos… Que sirva de exemplo para os barões da mídia de todo o continente, que usam concessões públicas para extorquir favores de governos”. 

No seu blog, ele lembra que Napoléon Bravo, um dos principais “jornalistas” da RCTV, teve participação ativa no frustrado golpe de abril de 2002. “Foi na casa dele a gravação do vídeo de um general que pediu a renúncia de Chávez”. Também cita um memorável texto da intelectual canadense Naomi Klein, em que ela comprova o golpismo da mídia. “Pobre Endy Chávez, jogador de um dos grandes times de beisebol da Venezuela. Toda vez que ele assume o bastão os narradores da tevê local começam as piadas: ‘Aí vem o Chávez. Não, não o ditador pró-cubano Chávez, o outro Chávez”. Ou: “Esse Chávez bate na bola, não no povo venezuelano’. Na Venezuela, até os comentaristas estão engajados na campanha aberta da mídia comercial para derrubar o presidente democraticamente eleito Hugo Chávez”, inicia o texto. 

Azenha também relata a história do jornalista Andrés Izarra. “Um cara certinho, feito sob medida para a TV, trabalhou como editor da CNN em espanhol até ser contratado como gerente do telejornal de maior audiência no país, El Observador, na RCTV. Em 13 de abril de 2002, um dia depois de o líder empresarial Pedro Carmona assumir o poder, Izarra pediu demissão do emprego sob condições que ele descreve como ‘de extremo stress emocional’… Diz que recebeu instruções claras: ‘Nenhuma informação sobre Chávez, seus seguidores e seus ministros’. A RCTV sabia [da trama golpista], mas não divulgou”.  

“Quando Chávez retornou ao Palácio Miraflores, as estações simplesmente deixaram de divulgar notícias. Num dos dias mais importantes da história da Venezuela, elas colocaram no ar o filme ‘Pretty Woman’ e desenhos animados de Tom e Jerry… ‘Nós tínhamos um repórter em Miraflores e sabíamos que o palácio havia sido reconquistado por chavistas’, diz Andrés Izarra, ‘mas o blecaute de informações foi mantido. Foi quando decidi dar um basta e fui embora’”. Azenha conclui: “Quem diz que aquilo que a RCTV faz e fazia é jornalismo é fajuto. Não é jornalismo de oposição. É mentira, distorção e omissão. É genotícia”. 

Os abalos da ditadura midiática 

Para os que não se iludem com a ditadura da mídia e nem se deixam intimidar com os falsos apelos sobre a “liberdade de imprensa”, o fim da concessão da RCTV é uma vitória da democracia. Tanto que dezenas de intelectuais e artistas reunidos em Cochabamba, Bolívia, acabam de aprovar moção de apoio à decisão da Venezuela. “Cientes de que não pode haver plena democracia sem democratizar os meios; convencidos de que as telecomunicações devem cumprir os seus objetivos constitucionais e legais de educar, informar, entreter e difundir a informação veraz, imparcial e plural; persuadidos de que as concessões do espectro radioelétrico são bens de dominio publico… festejamos a não renovação das concessões aos latifúndios midiáticos e a progressiva liberação do espectro a favor do seu único dono, que é o povo venezuelano”. 

Para desespero dos barões da mídia, a medida do governo venezuelano tende a ser irradiar. Recentemente, o presidente do Equador, Rafael Correa, anunciou que reverá as concessões de rádios e TVs no país. Num duro discurso, afirmou que a mídia equatoriana “é corrupta e mentirosa”, que as concessões são “obscuras e irregulares”, favorecendo políticos conservadores, e que “a maior parte é devedora do Estado”. O jovem presidente de 44 anos finalizou: “Senhores da mídia, acabou. O país está mudando, aqui tem um governo que não tem medo. Por favor, povo equatoriano, não acredite na mídia, ela mente e manipula”. Também crescem os rumores de que o presidente Evo Morales pretende fechar várias redes de TVs e rádios. “Na Bolívia há não só liberdade, mas também libertinagem de expressão”, afirmou o governante da Bolívia.  

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).