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A mídia e as conspirações da CIA

“A CIA tem o direito legítimo de se infiltrar na imprensa estrangeira. Ela tem a missão de influir, através dos meios de comunicação, no desenlace dos fatos políticos em outros países”.
Willian Colby, ex-diretor-geral da agência de inteligência dos EUA.

A sinistra CIA, a agência de espionagem e sabotagem dos EUA, acaba de divulgar vários documentos até então classificados como ultra-secretos. Eles compõem os arquivos sugestivamente chamados de “jóias da família”, apelido que designa algumas operações ilegais deste organismo que causam constrangimento ao governo ianque. São 11 mil páginas que revelam as ações terroristas do imperialismo em várias partes do planeta entre os anos 50 e 70. Os documentos comprovam que esta central de “inteligência” sempre teve um papel ativo na América Latina. A desclassificação periódica destes relatórios é uma exigência legal e não significa que a CIA tenha abandonado os seus métodos espúrios de interferência em nações soberanas.

No caso do Brasil, tratado na época como “maior alvo do comunismo” na região, a CIA ajudou a orquestrar o golpe militar de 1964. Um dos documentos afirma que o presidente João Goulart é “um oportunista que ascendeu ao governo com o apoio da esquerda”, taxa Leonel Brizola de “líder demagogo anti-americano” e acusa o governador Miguel Arraes de ser “um pró-comunista”. O texto tenta criar um clima de pânico na burguesia ao falar da “crescente influência” do Partido Comunista. Outro documento, intitulado “A igreja engajada e a mudança na América Latina”, critica seu setor progressista e ataca dom Hélder Câmara, cujo “forte é fazer publicidade e exigir reformas, sem oferecer soluções práticas aos problemas que ele cria”.

Máfia e assassinato de Fidel Castro

Na época, no auge da chamada “guerra fria”, a maior preocupação dos EUA e de sua agência era com o aumento da influência da revolução cubana. Os documentos confirmam que a CIA se aliou à máfia para tentar envenenar o líder Fidel Castro. Um deles dá detalhes da contratação do ex-agente Robert Maheu para realizar “uma ação do tipo de gângsteres”, que envolveu vários chefes mafiosos, como Salvatore “Momo” Giancana, o sucessor de Al Capone. A CIA disponibilizou US$ 150 mil e forneceu seis pílulas “de alto poder letal” para assassinar o dirigente cubano. Allen Dulles, o chefão da agência, coordenou a operação terrorista pessoalmente, mas ela foi desativada devido a um grotesco incidente passional de Giancana.

Há também relatos sobre os planos da CIA para desestabilizar o governo chileno e assassinar o presidente Salvador Allende, inclusive com o uso de “empresas de fachada” para transportar armas. Outros relatórios descrevem várias operações ilegais de espionagem e sabotagem no continente, visando derrubar governos nacionalistas e destruir movimentos contrários ao dominio imperial. “Os EUA não podiam permitir uma outra Cuba no continente. Foi por isso que Kennedy, cuja diretriz da política para a América Latina era apoiar governos reformistas, apoiou ditadores”, explica Mary Junqueira, professora de história da USP.

Tarjas pretas e graves omissões

Os documentos agora desclassificados revelam apenas uma pequena parte dos crimes orquestrados por esta agência. Muitos textos ainda aparecem com longas tarjas pretas; nomes e detalhes das operações ilegais são omitidos. Não há menção, por exemplo, ao famoso “manual de torturas” da CIA, com seu “método médico, químico ou elétrico”, que serviu de orientação para vários ditadores no mundo. O assassinato de mais de um milhão de patriotas no golpe de 1965 na Indonésia também é excluído, assim como a brutal intervenção que derrubou o primeiro-ministro nacionalista do Irã, Mohammad Mossadegh, em 1953. Como afirma o jornal Hora do Povo, “a lista seletiva de crimes da CIA é uma operação de acobertamento”; visa limpar a imagem desta agência terrorista e de seus agentes e serviçais que continuam na ativa, inclusive na América Latina.

“O que estaria levando a famiglia Bush a divulgar estes documentos? Seria, como disse o general Michael Hayden, ‘porque os documentos verdadeiramente nos permitem vislumbrar uma era muito diferente e uma agência muito diferente’ e que a CIA agora tem ‘um lugar muito mais forte no nosso sistema democrático dentro do poderoso referencial legal’? Ele estaria se referindo a Abu Ghraib e Guantanamo? Ou às prisões secretas no mundo inteiro, seqüestros e vôos de tortura? Ao ‘Programa Talon’, dirigido contra organizações anti-guerra? Ou ao grampo da internet, do correio, do telefone e até dos cartões de consulta às bibliotecas dentro dos EUA? Às “novas técnicas” de preparação para a tortura, ministradas pelo general Miller? Aos atentados e esquadrões da morte da CIA no Iraque?”, questiona, com justa ironia, o jornal Hora do Povo.

Relações íntimas com a mídia

Entre as graves omissões chama a atenção o fato destes documentos não se referirem às guerras ideológicas orquestradas pela CIA através do uso enrustido dos meios privados de comunicação. Como a mídia está na berlinda na atualidade, em especial na América Latina, é compreensível que o governo Bush a mantenha sob forte proteção. Neste sentido, os documentos desclassificados agora ficam muito aquém dos relatórios produzidos em 1976 por uma comissão de investigação do Congresso dos EUA, presidida pelo senador Frank Church. No caso do sangrento golpe militar do Chile, a comissão constatou que o jornal El Mercurio recebeu milhões de dólares para desestabilizar e derrubar o governo constitucional de Salvador Allende.

“A intromissão da CIA neste periódico chegou ao extremo de infiltrar seus agentes até na diagramação. O informe Church denunciou que este organismo de espionagem contratou jornalistas, editou publicações de circulação nacional e elaborou matérias para diários, semanários e radiodifusoras, além de exportar estes ‘conteúdos’ para outros veículos latino-americanos e europeus”, lembra o escritor chileno Hernán Uribe. Já no Brasil, há suspeitas de que a CIA financiou vários jornais e jornalistas na “cruzada contra o comunismo” durante o governo de João Goulart e que, inclusive, esteve por detrás do nebuloso acordo entre a empresa estadunidense Time-Life e a recém-criada TV Globo, na véspera do golpe militar de 1964.  

Espiões e seções especiais

Se estas barbaridades ocorreram no passado, é evidente que elas não foram descartadas no presente – ainda mais quando o ocupante da Casa Branca é o terrorista e torturador confesso, George W. Bush, e a América Latina vive um processo inédito de ebulição, com a vitória de vários governos progressistas. O jogo sujo da CIA, que só poderá ser conhecido oficialmente com as novas desclassificações daqui a décadas, prossegue. Os EUA temem as mudanças no tabuleiro político na região, não confiam em seus novos governantes – nem mesmo nos mais pragmáticos e conciliadores –, não toleram o avanço dos movimentos sociais e estão bem cientes dos riscos do atual processo de integração latino-americana. A CIA continua na ativa.

Numa recente passeata da direita venezuelana contra o fim da concessão da RCTV, algumas fotos flagraram a presença do agente da CIA Bowen Rosten, de camiseta azul e óculos escuros, na sua linha de frente. Há até um vídeo no Youtube com a cena grotesca. O ex-vice-presidente da Venezuela, José Vicente Rangel, no seu programa televisivo La Hojilla, comentou: “Um dos chefes da CIA na região é mister Bowen Rosten. Estadunidense, ele fala inglês, espanhol, português e francês. Está destacado para atuar na Colômbia, opera na Nicarágua, Argentina, Bolívia, Equador e Brasil e dirige a Operação Orión [de espionagem] em nosso país… O que o governo Bush tem a dizer da ingerência na política interna deste alto funcionário da CIA?”.

No final do ano passado, o presidente-terrorista Bush inclusive nomeou um diretor especial de inteligência para Cuba e Venezuela. Como denunciou o jornal cubano Juventude Rebelde, com a criação deste novo departamento “os EUA tentarão por todos os meios aumentar a presença de seus espiões nos dois países”. O agente Jack Patrick Maher, com 32 anos de experiência nos serviços de espionagem, informou ao congresso dos EUA que a sua missão é “assegurar a implementação de estratégicas”, com vistas à “transição” após a morte de Fidel Castro e às novas eleições na Venezuela. A criação desta seção especial da CIA coloca os dois países no mesmo nível da Coréia do Norte e Irã, nações incluídas no funesto “eixo do mal” de Bush.

Jornalistas pagos por Washington

A mesma ingerência ilegal e criminosa também prossegue na mídia da região. A advogada estadunidense Eva Golinger denunciou recentemente que a Casa Branca financia veículos e jornalistas venezuelanos. O plano da Divisão de Assuntos Educativos e Culturais visa influir na linha editorial destes órgãos. A grave denúncia se baseou em documentação oficial do governo ianque. “Lamentavelmente, existem jornalistas na Venezuela manipulados pelo Departamento de Estado dos EUA”, garante a renomada advogada. A VTV, o canal estatal de Caracas, inclusive divulgou os nomes dos “repórteres” que recebem dólares de Washington: Aymara Lorenzo, Pedro Flores, Ana Villalba, Maria Flores, Miguel Angel e Roger Santodomingo.

O último deles, Roger Santodomingo, foi acusado, em maio passado, pela Justiça da Venezuela de “instigar o magnicídio [assassinato de autoridades] e receber financiamento dos EUA para desestabilizar o governo”. O jornalista divulgou na televisão falsa pesquisa em que 30% da população opinava que “matar Chávez é a única solução”. Com a decisão soberana do governo de não renovar a concessão da emissora RCTV, que participou ativamente do golpe frustrado de abril de 2002, a ação destes e outros “jornalistas” teleguiados pela CIA se tornou ainda mais agressiva, convocando protestos e atacando o presidente.

Larry Rohter, agente da CIA?

Mesmo no Brasil, aonde inexiste o clima de radicalização política do país vizinho, há sérias desconfianças sobre a atuação da mídia hegemônica e de alguns colunistas e ancoras da televisão. Quando da reportagem do correspondente ianque Larry Rohter, que acusou o presidente Lula de ser alcoólatra e foi ameaçado de expulsão do país, o portal Resistir publicou um artigo de Célia Ladeira com graves denúncias contra o dito cujo. No texto, a professora de jornalismo da Universidade de Brasília (UnB) dá algumas informações reveladoras. “Conheci Larry Rohter há muitos anos e convivo com pessoas que o conhecem muito bem. Portanto, não estou dizendo muita coisa nova, mas dizendo coisas que poucas pessoas estão hoje sabendo”.

Entre outras acusações, ela afirma que “Larry não é só jornalista, mas um tipo de agente civil, bem pago, que faz coisas que CIA e FBI não podem fazer. Ele tem trabalhado em toda a América Latina, sempre com um caderninho de missões debaixo do braço”. Informa que são comuns as suas visitas ao Departamento de Estado dos EUA. “Média de uma visita a cada ano, sem contar os almoços com gente estranha dos serviços secretos”. Lembra ainda que o “jornalista” presta inúmeros serviços ao governo Bush, sempre desancando políticos e lideranças contrárias ao império, como numa reportagem em que ridicularizou a prêmio Nobel da Paz, Rigoberta Menchu, da Guatemala, e nos inúmeros artigos contrários ao presidente da Venezuela. Outra diversão dele é escrever textos pregando abertamente a internacionalização da Amazônia.

*Altamiro Borges é jornalista, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).

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Os laços entre os radiodifusores brasileiros e venezuelanos

Elites costumam se relacionar bem com elites, independente de barreiras geográficas ou lingüísticas. Nesta quinta-feira (28/6), esta sinergia ficou explícita em um encontro promovido em São Paulo entre o presidente da Rádio Caracas Television (RCTV), Marcel Granier, e os radiodifusores brasileiros. Numa das pomposas salas do Hotel Meliá Monfarrej, na Alameda Santos, com a promoção da Revista Imprensa – acreditem… –, as principais associações de empresas de comunicação do país e a Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) declararam seu apoio explícito à RCTV, que não teve sua concessão renovada pelo governo venezuelano no último dia 27 de maio.

O “Ato em Defesa da Liberdade de Expressão” de liberdade não teve nada. Do lado de fora, impedidos de entrar no salão, ficaram manifestantes do movimento pela democratização da comunicação e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Com nariz de palhaço e vendas na boca, eles empunharam cartazes que diziam: “concessão é pública”, “liberdade de imprensa é diferente de liberdade de empresa”, “liberdade de expressão para todos” e “Globo e RCTV: tudo a ver”. Do lado de dentro, além da imprensa, duas dezenas de executivos e entidades patronais que historicamente defendem o oligopólio privado da comunicação Brasil.

Em mundos apartados, protegido pela segurança da cadeia Meliá, Marcel Granier se sentiu à vontade em seu discurso. Falou depois o editor da Revista Imprensa, Sinval de Itacarambi Leão, que indiretamente tentou justificar o envolvimento do veículo no evento ao dizer que a revista tem vocação plural e dialoga com profissionais, empresas e sindicatos. Depois falou Héctor Oscar Amengual, diretor geral da AIR, que num discurso emocionado disse que os radiodifusores privados, livres e independentes estão “unidos e unânimes” em sua opinião em apoio e solidariedade à emissora venezuelana.

“Sentimos a tristeza e as lágrimas dos trabalhadores da RCTV, feridos em seu orgulho de pertencer a um meio de comunicação que por mais de 53 anos obteve a preferência de milhões de venezuelanos, aqueles que são impedidos de exercer sua liberdade de expressão”, declarou. “Não vamos medir esforços até que a RCTV volte ao ar, ao ar da Venezuela, ao ar da liberdade, ao ar que respiramos todos da AIR”, concluiu.

Depois, tapete vermelho ao senhor Granier, que iniciou sua apresentação com trechos em vídeo de declarações de Chávez que, na sua visão, caracterizam a conformação, na Venezuela, da ausência de um Estado Democrático de Direito. Ao fundo, uma música de suspense, para ajudar no clima. Só ficaram de fora as imagens – já excessivamente veiculadas pela imprensa brasileira – dos funcionários da RCTV chorando ao cantar o hino nacional minutos antes da TV sair fora do ar.

Granier contextualizou o processo de não renovação da concessão da RCTV, explicou as mudanças feitas nos últimos anos na legislação para o setor e então abriu fogo contra o regime chavista. Disse que há sete anos o governo venezuelano descumpre o que estabelece a regulamentação do setor, ao não promover as adequações necessárias a todas as emissoras de rádio e televisão depois das alterações na lei. “A situação de mais de 150 concessões está pendente”, disse, ao afirmar que somente a RCTV foi responsabilizada por isso.

Acusou o Poder Judiciário de não atuar de forma independente do Executivo. Segundo Granier, a Justiça da Venezuela entregou as instalações de transmissão da emissora privada à Comissão Nacional de Telecomunicações, ordenando sua ocupação militar, antes de julgar em definitivo o recurso interposto pela RCTV contra a decisão do governo. Até hoje não houve um posicionamento do Tribunal Supremo de Justiça sobre o caso.

“No dia 28 de dezembro o presidente anunciou o fechamento (sic) da RCTV, mas durante três meses não houve nenhum ato administrativo, nenhum documento, do qual pudéssemos apelar nos tribunais”, reclamou Granier. O empresário também pintou um quadro sombrio da situação na Venezuela, ao relacionar o que entende por “investidas do governo contra as liberdades e garantias fundamentais em todos os planos”. Palavras como “secreta”, “clandestina”, “ilegal” foram abundantes.

Acusou Chávez de mover uma campanha contra as empresas privadas, os sindicatos, as instituições de ensino privado e os grêmios profissionais e de reprimir com violência policial os protestos desses setores. Chegou a dizer que “muitos estudantes foram presos, apanharam, foram torturados” e que o governo convocou a população a “realizar ações vandálicas” contra os jornalistas independentes. Por fim, informou das denúncias feitas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra essas agressões.

“Vazio de poder”
O momento mais interessante veio depois, quando teve início uma coletiva de imprensa com Granier. O repórter da TV Globo, José Roberto Burnier, deu seu testemunho do totalitarismo de Chávez. “É visível, e pude ver isso quando era correspondente em Buenos Aires, que o presidente Hugo Chávez, desde 2005 ou um pouco antes, vinha tomando medidas para controlar o conteúdo das emissoras de TV e dos jornais”, disse. Levantou a bola para Granier cortar, na mais profunda sintonia e "independência jornalística".

O presidente da RCTV elencou então um rol de ações para o controle das comunicações, a começar por uma lei que regula conteúdos veiculados na televisão. “Os programas são classificados de acordo com a linguagem, o grau de violência, de sexo exibido. São definições muito vagas e o funcionário do governo responsável pela classificação pode sancionar qualquer programa que julgar conveniente. O resultado tem levado a uma auto-censura cada vez maior dos meios de comunicação”, afirmou. Qualquer semelhança com a crítica feroz que a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) vem fazendo contra a classificação indicativa do Ministério na Justiça no Brasil não é mera coincidência.

Chávez também retribuiria, em forma de publicidade governamental, os veículos que desenvolvem linha editorial favorável a seu governo. Mas disso as emissoras privadas no Brasil não podem se queixar, já que abocanham a imensa maioria dos recursos de comunicação do governo em função dos chamados critérios de audiência e alcance dos veículos.

O ponto alto da coletiva foi quando Granier – talvez inspirado no que ocorreu quando os militares brasileiros derrubaram João Goulart do poder – negou que tenha havido um golpe na Venezuela. Segundo ele, o que houve foi um “vazio de poder”, o mesmo dito pelo presidente do Congresso Nacional por aqui em 1964. Ter planejado o golpe e feito uma cobertura altamente favorável aos que tiraram Chávez do poder são as principais justificativas do governo venezuelano para não ter renovado a concessão da RCTV. Para seu presidente, no entanto, este golpe nunca ocorreu. “O tema do golpe é algo que o governo coloca porque não tem argumentos jurídicos”, disse Granier. “Em abril de 2002, depois de protestos que reuniram mais de um milhão de pessoas em Caracas, o chefe do Estado Maior do presidente se apresenta à televisão e diz que, em função de graves acontecimentos, o alto comando militar pediu a renúncia ao presidente e ele aceitou. Nunca o presidente ou os militares nos explicaram qual era a razão da renúncia”, explicou Granier.

Faltou dizer, no entanto, por que a RCTV não se preocupou em perguntar essa razão, antes de anunciar que Chávez havia abandonado do país – uma mentira – e dar início, ao vivo, às comemorações pelo golpe. Talvez disso Granier não se lembre, como parece não se lembrar das reuniões que aconteceram em sua casa e que planejaram o golpe de 2002. “Exerço o jornalismo há 50 anos. Nunca, neste período, ninguém ouviu uma única frase minha ou uma atitude minha de defesa de um golpe de estado, em nenhuma circunstância”, garantiu.

A imprensa brasileira também se esqueceu de questionar a declaração minimamente “estranha” de Granier nos jornais televisivos desta quinta.

Ao ser interrogado sobre o histórico de sanções sofridas pela emissora ao longo de sua história por abusos cometidos na programação e sobre o resultado do processo que correu na Justiça venezuelana que concluiu que a RCTV infringiu a constituição nacional, a lei orgânica das crianças e adolescentes, a lei orgânica das telecomunicações e a lei de responsabilidade social do rádio e da TV, Granier respondeu: “Não há nenhum país em que as relações entre a imprensa e o poder sejam de absoluta normalidade. Anormal seria que, em 53 anos, nunca tivéssemos tido problemas com nenhum governo”.

O encerramento da coletiva foi esclarecedor – para aqueles que ainda não conheciam as origens e a ideologia do dirigente principal da RCTV. “Me preocupa muito o discurso que o presidente Chávez tem adotado, que fala de uma guerra que ninguém reconhece, que está em sua mente, que supostamente temos com os Estados Unidos. E que nos obriga a ser o principal comprador de armamento da América. Compramos mais armas que o Irã. Ninguém entende porque cada venezuelano tem que ter um fuzil. Entenderíamos que o presidente propusesse que cada venezuelano tivesse um computador ou acesso às bibliotecas, a boa comida nas escolas”. “Os países menores estão criando uma dependência da Venezuela, como é o caso dos estados da América Central, que compram gasolina subsidiada pelo governo Chávez. Isso é um problema”. “Os Estados Unidos são o principal cliente do nosso petróleo, os que mais investem no país, para quem mais vendemos nosso serviço. Então não podemos criticá-los assim”.

Do lado de cá
Não estranha que Abert, Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores), Aner (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais), entre outras, estejam tão preocupadas com a situação da vizinha RCTV. A decisão do governo Chávez pela não-renovação da concessão da RCTV ajuda a desmontar a tradição mundial de renovação automática das outorgas, algo que não interessa a nenhum atual concessionário.

Por aqui, o exemplo da Venezuela pode parecer ameaçador aos que se beneficiam da condição de concessionários para utilizar a mídia como instrumento de poder. Isso explica a reação desmensurada e editorizalizada da grande imprensa brasileira ao caso da RCTV e ao grande “ato pela liberdade de expressão” promovido em São Paulo nesta quinta, principalmente se lembrarmos que no dia 5 de outubro vencem diversas outorgas, incluindo as concedidas a todas as cinco emissoras próprias da Rede Globo.

Ao final da coletiva, questionei o diretor geral da Abert, Flávio Cavalcanti Jr, sobre que critérios que, na sua opinião, deveriam ser levados em conta para a não renovação de uma concessão no Brasil. Ele disse que os contratos de concessão são públicos e que, se forem quebrados, a concessão deveria ser questionada na Justiça: “todo dia é dia para quem está insatisfeito fazer isso”.

É verdade que ainda falta ao governo Chávez deixar claro todos os trâmites do processo de não-renovação da concessão da RCTV, incluindo a apelação ainda em aberto na Justiça Venezuela. E é fato que medidas como o confisco das instalações da RCTV são pouco – ou nada – justificáveis se comparadas à garantia do exercício soberano de qualquer Estado gerir o bem público espectro eletromagnético. Mas é verdade também que o cenário geopolítico em que se encontra a Venezuela é bastante diferente do brasileiro. Agora, se nossos radiodifusores querem tanto discutir as “ameaças” do governo Chávez à liberdade de expressão, por que não se dispõem logo a olhar pro seu quintal?

No Brasil, a forte concentração de propriedade dos meios de comunicação e a forte influência política que estas empresas exercem têm impedido qualquer debate sobre a importância para o estado democrático de analisar, avaliar, julgar e, quando necessário, não renovar uma concessão. E por aqui, o uso das concessões de rádio e TV também descumpre princípios e parâmetros estabelecidos na Constituição Federal. Por aqui, são os donos dos meios de comunicação que, na prática, asfixiam a liberdade de expressão, mantendo o controle absoluto do que se ouve, lê e escuta por 180 milhões de brasileiros.

Pelo discurso de Marcel Granier, ficou claro que a apropriação da defesa da liberdade de expressão e sua utilização como figura de retórica é algo que os radiodifusores fazem muito bem. No Brasil e na Venezuela.

* Bia Barbosa é editora de Direitos Humanos da Carta Maior, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e empreendedora social da Ashoka.

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TV Digital: quem é que vai às compras?

O decreto assinado pelo presidente Lula em junho de 2006 (que institui o SBTVD-T) estabelece que o tempo de transição da TV analógica para a digital será de 10 anos. Ou seja, em 2016 todas as transmissões analógicas seriam desligadas e só os sinais digitais poderiam ser captados pelos televisores. O desligamento dos sinais analógicos é chamado de switch-off, momento em que, em tese, os canais analógicos seriam “devolvidos” à União. Em São Paulo, cidade escolhida para dar inicio à migração, as transmissões começam em dezembro deste ano. Em tese, é claro, pois já tem gente admitindo que o prazo não será cumprido.

Para que a transição siga adiante, duas coisas precisam acontecer:

Primeiro, as emissoras precisam trocar seu parque de transmissão analógico por um novo, digital. Isso não é trivial, especialmente em cidades médias e pequenas, onde o faturamento das emissoras é pequeno e o financiamento do BNDES esbarrará na já tradicional necessidade excessiva de garantias ou no alto valor mínimo para a concessão de empréstimos. Como a TV brasileira não é o Jardim Botânico, dá para imaginar a dificuldade que será fazer isso no interior do Brasil.

Segundo, a população precisa comprar conversores (também chamados de set top boxes) ou novos televisores que já venham com os receptores digitais. Sem isso, as emissoras podem até irradiar o sinal digital, mas ninguém irá assisti-lo. Ou seja, para que a TV digital se torne uma realidade, a população precisará ir às compras. E. para que o cidadão compre um conversor (já que o Brasil não é o Japão e aqui ninguém troca de televisores a cada cinco anos), é preciso que algo o mova a fazê-lo. Sem motivação razoável, ninguém o fará.

E é aí que reside o problema: a população não terá motivos para comprar o conversor. Ao contrário, terá motivos para não fazê-lo.

Vejamos:

1. A TV digital, com a edição do decreto 4.901 de 2003, passou a ter  como objetivo se consolidar como um instrumento de inclusão social a partir do oferecimento de serviços interativos, tanto aqueles de interesse público (e-gov, e-banking, email, educação à distância, etc) quanto os de interesse de mercado (vendas on-line, etc). Além disso, estes serviços interativos serviriam como porta de entrada de muitos brasileiros à Internet, tendo em vista que, segundo o próprio IBGE, mais da metade da população brasileira jamais acessou a rede mundial de computadores. Dessa forma, a interatividade constituir-se-ia em um diferencial relevante em relação à TV analógica e poderia mover a população a comprar os conversores.

Acontece que a TV digital brasileira não será interativa. Recentemente, o governo anunciou que (1) o middlleware Ginga (desenvolvido para processar a interatividade), não será embarcado nos conversores porque “não está pronto”, (2) os conversores mais simples, mesmo após a conclusão dos testes com o Ginga, não obrigatoriamente terão embarcados o middlleware e, portanto, não terão capacidade de processar a interatividade. Em português simples significa dizer que, neste ponto, a TV digital será exatamente igual à analógica: sem interatividade. Até porque os que comprarem conversores mais avançados – capazes de processar a interatividade – serão os mesmos que hoje possuem acesso à Internet.

Ou seja, a ausência da interatividade é uma razão a menos para ir às compras.

2. Durante os debates que antecederam a escolha do padrão japonês (ISDB), uma das potencialidades anunciadas era justamente a multiprogramação, ou seja, a possibilidade de, em um mesmo canal, serem transmitidas mais de uma programação (até oito, já que o Brasil adotará o padrão de compressão H.264). Não à toa, reside na multiprogramação a grande possibilidade de democratizar o principal meio de comunicação do país e dar voz às tantas diversidades hoje ausentes da televisão.

No entanto o Decreto 5.820/2006, além de sacramentar o padrão japonês, destinou aos radiodifusores a mesma fatia de espectro (6 MHz) hoje necessária à transmissão analógica, para as transmissões digitais. Com este espaço, de duas, uma: ou cada um dos radiodifusores transmitirá mais de uma programação, ou desperdiçará parte substancial do espectro de freqüências. Como para as emissoras comerciais a primeira opção é ilegal – pois contraria a Lei 4.117/62 – o espectro será desperdiçado. Simples assim.

Ou seja, como o governo não fracionou o canal de 6 MHz e também não instituiu a figura do operador de rede para que mais programadores pudessem ofertar o serviço, os mesmos que oferecem conteúdo atualmente continuarão a fazê-lo, sem que novas programações sejam ofertadas. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, mantido o plano de canalização da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), nenhum outro programador poderá ocupar o espectro. Nem mesmo as emissoras do campo público, inclusa aí a futura rede pública de televisão.

Sem novos conteúdos, outra razão a menos para ir às compras.

3. Uma terceira razão para migrar para a TV digital é qualidade de som e imagem. Afinal, quem não quer uma imagem com qualidade de DVD?

Entretanto, a maioria absoluta da população não comprará um televisor de alta definição (capaz de mostrar a melhoria substancial na qualidade de imagem), pelo simples fato de que ele (o televisor de alta definição) é caro demais e que ainda levará alguns bons anos para que fique acessível aos quase 50% da população que ganha menos de dois salários mínimos, ou mesmo aos outros 30% que ganham menos de cinco salários mínimos. Ou seja, mesmo que a população compre um conversor, não poderá assistir à alta definição, pelo menos nos próximos anos.

Se a população não vai usufruir de imediato da melhoria da imagem e do som, está aí uma outra razão para não ir às compras.

4. Hélio Costa afirmou durante meses (convicto, diga-se) que os conversores custariam R$ 100, um preço razoável e acessível à maioria da população, especialmente se os juros (do parcelamento) não fossem abusivos. Entretanto, à época, muitos já atentavam para o fato de que, sem escalada de produção internacional, seria impossível chegar a este valor. Entretanto, eis que, na última semana, alguns fabricantes assumem que os conversores mais simples não sairão por menos de R$ 800*.

Ou seja, se já não há motivos para comprar um conversor, passa-se a ter uma boa razão para não comprá-lo. Afinal, por que desembolsar R$ 800 para ver a mesma televisão que vemos hoje?

5. A redução dos preços, em tese, aconteceria após as classes A e B começarem a comprar os conversores. Faz sentido, mas aí reside um detalhe: os mais abastados não comprarão os conversores, pois já têm TV a cabo (que está sendo digitalizada – em São Paulo, por exemplo, a transição acaba em dezembro) ou por satélite (que já é digital). Ou seja, aqueles que poderiam promover o “efeito escala” não o farão, pois já têm a sua TV digital por assinatura.

Tivesse o governo atentado para a necessidade de uma política integrada com a TV por assinatura (não foi falta de aviso, inclusive de empresários), o impacto da produção em escala  poderia de fato contribuir para a redução de preços em curto período de tempo. Não custa lembrar que, tanto no cabo quanto no satélite, o Brasil utiliza o padrão DVB (europeu).

6. Se o ponto anterior não é necessariamente um motivo para não comprar o conversor, segue aí mais um: o fato de o governo estar disposto a voltar atrás e permitir a instalação de mecanismos anti-cópia na televisão digital (bastou que o governo fosse pressionado pela indústria de Hollywood e pela Globo para recuar em sua intenção original). Isso significa dizer que o que se faz hoje – copiar conteúdos para consumo pessoal, com fins educativos e não-lucrativos – não poderá mais ser feito, assim como não poderá fazê-lo um professor que queira gravar um conteúdo para discussão em sala de aula. Isso, é claro, a despeito do que diz a Constituição Federal.

Se hoje é possível copiar os conteúdos para os fins que a lei permite e se não poderei fazer isso na TV digital, por que comprar um conversor? Pessimismo? Talvez, mas voltemos a falar disso em 2009, um ano após o início das transmissões em São Paulo. Pode ser em 2010, se preferirem. Mas uma coisa é fato: mantida a rota da carruagem, em 2016 não estaremos nem perto de concluir a transição e desligar os canais analógicos, permanecendo o Brasil com as transmissões simultâneas analógicas e digitais por mais tempo do que o necessário e impedindo o oferecimento de novas e mais programações.

* Para os que se interessam pelo assunto: o preço do set top box é fundamentalmente ditado pela velocidade do fluxo de bits, assim como pelo tipo de compressão. A alta definição, por exemplo, gera alto fluxo de bits, o que exige processadores mais potentes e mais caros. 

** Diogo Moyses é membro do Intervozes e editor do Observatório do Direito à Comunicação 

Active Image reprodução autorizada, desde que citada a fonte original.
 

Quem ganha com padrões abertos

Padrões são fundamentais na vida social e econômica. Parafusos, lâmpadas, fios, tubos, torneiras, entre tantos outros exemplos, seguem padrões. A sociedade da informação talvez seja ainda mais dependente de padrões. A própria Internet segue um conjunto de padrões, consolidados em protocolos de comunicação. Tais protocolos contém regras de comunicação que permitem o entendimento entre redes privadas bem diferentes.

Quando padronizamos um produto, em geral, estamos beneficiando a sociedade. Primeiro, passamos a definir a qualidade mínima e os elementos essenciais que um determinado produto deve possuir. Segundo, um padrão permite que exista concorrência entre várias empresas que podem produzir ou prestar serviços respeitando determinações de qualidade e garantindo a compatibilidade de produtos feitos por diferentes companhias.

A teoria econômica permite-nos compreender que existem padrões de fato e de direito. Em muitos segmentos econômicos, os monopólios acabam impondo seus produtos e eles se tornam verdadeiros padrões do mercado. Em outros casos, concorrentes se unem para definir normas para a produção ou desenvolvimento de determinados produtos e serviços. Neste caso temos um padrão de direito. Em muitos casos, os Governos acabam definindo normas para realizar suas compras que acabam induzindo as empresas a assumirem estas exigências como um padrão a ser seguido.

Os economistas Carl Shapiro e Hal Varian, no livro A Economia da Informação, deixam claro que muitas vezes o futuro do mercado e a sobrevivência das empresas dependem dos padrões adotados. Isto levou-os a estudar o que eles denominaram de guerra dos padrões, ou seja, principalmente na economia de redes, as empresas tentam impor o formato, o modelo e as características de seus produtos como a regra básica daquele segmento. É muito conhecida a história das bitolas das estradas de ferro no final do século XIX. Dependendo da largura da bitola adotada você beneficiaria determinadas redes em detrimento de outras e prejudicaria fabricantes que faziam vagões para a bitola que não fosse considerada “fora do padrão”.

Nesse sentido, padrões não são neutros. Sua definição pode permitir a ampliação da competição ou pode reforçar os monopólios, pode ajudar a reduzir as barreiras de entrada no mercado ou aumenta-las, pode incentivar ou bloquear o ritmo das inovações e invenções. É possível obter qualidade técnica com padrões abertos e fechados, ou seja, padrões que são controlados por uma única empresa ou por um grupo fechado de empresas. Todavia, padrões fechados são anti-concorrenciais e tendem a elevar os custos econômicos para os seus consumidores.

O economistas Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001, e Jason Furman, professor de Economia da Yale University, escreveram no final de 2002, um texto advogando que o monopólio diminui o ritmo das inovações de quatro maneiras. A primeira é a do aumento dos custos da inovação, causada pelo poder monopolista, uma vez que a principal matéria-prima das inovações são os conhecimentos sobre as inovações anteriores, o monopólio consegue bloquear o livre fluxo dos saberes. “E quando se aumenta o custo de um insumo numa atividade, o nível desta atividade cai.”

A segunda está ligada as barreiras de entrada em um campo de negócios. Com a sua elevação os incentivos para inovar diminuem. Além disso, os economistas perceberam que em casos extremos, “se um monopólio se assegurar de que não há ameaça de competição, ele não investirá em inovações.” A terceira maneira está vinculada a idéia de que o monopólio busca impedir a interoperabilidade real de seus produtos com outros possíveis concorrentes. Assim, sua tendência é a de tentar matar toda a inovação fora do seu controle e que seja considerada perigosa a manutenção de seu monopólio. A quarta se relaciona com os incentivos que um monopólio tem para inovar. “Como o monopolista produz menos que o socialmente ótimo, as economias com uma redução no custo de produção são menores do que num mercado competitivo. Também os incentivos para um monopolista patrocinar pesquisas não as levarão ao nível socialmente eficiente. Preferencialmente sua preocupação é inovar apenas no ritmo necessário para afastar a competição, um ritmo marcadamente menor que o socialmente ótimo.”

Por essas razões, se pudermos optar entre um padrão aberto e fechado, devemos obviamente escolher o padrão que melhor garanta a concorrência e a competição. Padrões compostos de elementos patenteados e controlados por um único fornecedor devem ser evitados. Quem se beneficia de padrões abertos? Os consumidores que poderão ter vários fornecedores competindo. Sabemos que quando existe a competição, os preços tendem a ser menores e a qualidade maior. Por isso, os organismos de padronização devem ter todo o rigor para analisar propostas de padrões que trazem definições e modelos que estão sob o controle de monopólios. Padrões devem ser públicos e abertos, devem incentivar a criatividade e a concorrência, isto beneficiará os consumidores. Como alegam os professores Stiglitz e Furman, “a monopolização não ameaça os consumidores apenas pelo aumento dos preços e pela redução da produção, mas também reduz a inovação no longo prazo.

Jornalista tem lado

Como jornalista, você tem de estar do lado da justiça, do equilíbrio, da decência, tem de se posicionar. O Oriente Médio não é um jogo, onde você dá tempo equivalente para cada time. Não é um julgamento público, é uma imensa tragédia humana. Se estivéssemos cobrindo o tráfico de escravos no Brasil, daríamos o mesmo espaço ao escravo e ao traficante?

– Robert Fisk, correspondente de guerra britânico do jornal The Independent, em entrevista concedida a Sérgio Dávila, da Folha de S. Paulo (25/06/07).

A opinião de Fisk traz de volta a eterna discussão sobre a imparcialidade jornalística. Há pelo menos quatro anos venho defendendo, aqui no Fazendo Media, uma posição muito clara: o texto jornalístico só poderá ser imparcial quando escrito por robôs. Pedir que um jornalista seja imparcial é o mesmo que exigir que ele deixe de amar, que abandone seus sentimentos, que se desumanize. O ser humano, enquanto humano, possui uma subjetividade, um histórico de vida que lhe confere um determinado vocabulário, este já repleto de significações e pontos de vista. No fundo, por mais que o jornalista ouça os dois ou mais lados de uma questão, ele tenderá a escrever "isso aconteceu, segundo fulano" quando acreditar no tal fulano, ou "isso teria acontecido, segundo beltrano", quando desconfiar do tal beltrano.

Há um outro aspecto extremamente relevante, porém nunca discutido com profundidade. Trata-se do modo como a estrutura da reportagem é construída. Muitas vezes, o contraponto apresentado não é o único ou o mais representativo. É preciso enfatizar que toda construção jornalística é pautada por subjetividades. E é justamente nesse ponto que a compreensão da história se faz notar, na mesma proporção em que a ignorância do jornalista se faz lamentar. De modo que é possível construir uma reportagem sobre um homem-bomba em Bagdá registrando apenas o número de mortos e ressaltando o fanatismo daquele sujeito que se matou, ou então esquadrinhar a questão de outra forma, perguntando, por exemplo, quais as razões que levam alguém a se explodir ou criticando a invasão do Iraque pelos EUA. A partir daí, tudo muda. As fontes ouvidas serão outras, título e subtítulo serão completamente diferentes e até o conjunto de palavras utilizado deverá variar. Por que o termo "terrorista" é usado para designar alguém que pega em armas para resistir à invasão estrangeira e não para intitular aqueles que invadem?

O triste nisso tudo é que essa falácia da imparcialidade jornalística vem sendo utilizada para a legitimação de toda sorte de crime contra a humanidade, cujo exemplo mais chocante tem sido a cobertura do massacre estadunidense no Iraque a partir de jornalistas embutidos na tropa invasora. As corporações de mídia brasileiras exibem esse material – devidamente monitorado pelo Departamento de Defesa dos EUA – ao mesmo tempo em que seus editores concedem entrevistas sobre os valores nobres da imparcialidade jornalística e criticam a não renovação da concessão da RCTV em nome da liberdade de imprensa.

Por fim, cabe comentar a pergunta que Robert Fisk devolve a Sérgio Dávila. "Se estivéssemos cobrindo o tráfico de escravos no Brasil, daríamos o mesmo espaço ao escravo e ao traficante?". Fisk, como se sabe, vive no Oriente Médio há 40 anos e só esteve no Brasil em duas oportunidades. Porque se vivesse aqui certamente saberia que a resposta para sua pergunta é "claro que não". No Brasil, as corporações de mídia dariam muito mais espaço para os traficantes de escravos, do mesmo modo que deram para os torturadores de outrora e assim como dão para os assassinos de hoje.

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