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45 anos do CBT: sem festas, nada a celebrar

O que sobrou do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) – a Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962 – completou 45 anos na segunda feira (27/8). Velho e desatualizado, ele ainda é – por incrível que possa parecer – a principal norma legal da radiodifusão brasileira, levando-se em conta, sobretudo, que a Lei Geral de Telecomunicações (a Lei 9.472/1997) retirou dele toda a parte referente às telecomunicações. Aliás, na pressa da privatização das telecomunicações e na contramão do que ocorre no resto do mundo, a Emenda Constitucional 08 de 1995 já havia separado a radiodifusão das telecomunicações.

O CBT, na verdade, é o símbolo perfeito da regulação – ou da ausência dela – no setor de radiodifusão. Sua elaboração e aprovação no Congresso Nacional marcam a fundação da Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão –, que até hoje é a principal representante dos interesses dos empresários de radiodifusão. A maioria desses empresários apoiou o golpe de Estado que, apenas um ano e meio depois da aprovação do CBT, destituiu do poder o presidente João Goulart, responsável por 52 vetos à Lei 4.117, todos posteriormente derrubados no Congresso Nacional, numa inédita demonstração de força da radiodifusão privada no país.

Os artigos cujos vetos foram revogados determinaram, dentre outros, os prazos de 15 e 10 anos para as concessões de televisão e rádio, respectivamente, e o deferimento da prorrogação da concessão se o órgão competente não se pronunciasse em 120 dias. Mais importante, todavia, são as omissões do CBT em relação aos limites da propriedade e à propriedade cruzada dos meios. Essas omissões são as principais responsáveis pela concentração da propriedade da mídia entre nós.

Coronelismo eletrônico

Na verdade, a única limitação existente à propriedade dos meios de comunicação – e, mesmo assim, ignorada – foi introduzida cinco anos depois no CBT em modificação feita pelo Decreto 236/1967. Em seu artigo 12, o decreto reza que:

"Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (…)

I – estações radiodifusoras de som:

locais: ondas médias, 4; freqüência modulada, 6; regionais: ondas médias, 3; ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado); nacionais: ondas médias, 2; ondas curtas, 2;

II – estações radiodifusoras de som e imagem – 10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (…)

Essas limitações, no entanto, se tornam inócuas porque, contrariamente a toda evidência, o Ministério das Comunicações considera "entidade" como significando "pessoa física" e, ademais, não leva em conta o parentesco.

Por outro lado, não existe no CBT qualquer restrição à propriedade cruzada dos meios, isto é, à possibilidade de um mesmo grupo empresarial controlar, num mesmo mercado, emissoras de rádio (AM e/ou FM) e televisão (aberta ou paga).

Ademais, não é clara no CBT a restrição àqueles que estiverem em gozo de imunidade parlamentar para ser concessionários de rádio e/ou televisão. O Parágrafo Único do Artigo 38 determina que o parlamentar não possa exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária. Apesar da Constituição de 1988 também proibir que deputados e senadores mantenham contratos ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54), é de conhecimento público o fenômeno do coronelismo eletrônico que historicamente tem caracterizado o vínculo de oligarquias políticas regionais e locais com a radiodifusão no Brasil.

Marco regulatório

O resultado de tudo isso foi a formação e consolidação histórica de um sistema de mídia que tem, desde as suas origens, a propriedade cruzada e o vínculo político como uma de suas principais características.

Os exemplos mais significativos, claro, são os dois maiores conglomerados de comunicações já formados no país: os Diários Associados, dominantes durante boa parte do século passado, e as Organizações Globo, hegemônicos dos anos 70 até os nossos dias. Esses grupos cresceram e se consolidaram através da propriedade cruzada e de afiliações regionais com oligarquias políticas, em diferentes estados da federação.

Dessa forma, a lição histórica que os 45 anos do CBT nos deixa é a reafirmação da necessidade inadiável de um marco regulatório para as comunicações no Brasil que substitua esse superado diploma legal. Fundado no direito à comunicação e considerando a convergência tecnológica – que dissolve as fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática – esse marco regulatório deve assegurar a pluralidade, a diversidade e o localismo nas comunicações e ter como horizonte o interesse público.

Não há outro caminho para a consolidação da nossa democracia.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007

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Jornalismo econômico: imprensa não faz a crítica do capitalismo

A crise financeira internacional revela como a imprensa brasileira está distante dos paradigmas modernos da economia. Comparada cuidadosamente a cobertura das turbulências deste ano com aquela que se seguiu à crise dos mercados asiáticos em 1998, pode-se observar que a mídia deixa de agregar aos elementos de análise o conhecimento produzido mais recentemente pelo questionamento do fenômeno da expansão do capitalismo em detrimento do meio ambiente e das questões sociais.

Como no terremoto provocado na década passada pela queda sucessiva das Bolsas ao longo do fuso horário, a partir dos mercados asiáticos, a crise de inadimplência no mercado imobiliário norte-americano emitiu muitos sinais antes de mandar a economia global para a enfermaria. A imprensa acompanhou os sinais, mas não teve o cuidado de apresentar ao leitor uma leitura sistêmica desses sintomas, que permitisse uma visão de longo prazo.

Tudo bem que não se pode exigir de jornalistas que adivinhem o futuro, mas os paradigmas da sustentabilidade, amplamente disponíveis, permitem analisar com muito mais acuidade os fatos econômicos. Muito além dos elementos tradicionais de análise, baseados essencialmente no desempenho financeiro das empresas e na rentabilidade dos investimentos, e de forma bem mais ampla do que o espaço delimitado pelos riscos e oportunidades associados diretamente aos negócios, os fatores de sustentabilidade permitem uma visão mais precisa e de prazo mais longo da economia.

Distanciamento inevitável

Os paradigmas da sustentabilidade apontam para uma relação mais íntima e interdependente entre o capital financeiro e os outros tipos de capital, como o capital conhecimento, o ambiental, o social. Assim como as economias de todos os países – com exceção das nações mais isoladas, como a Coréia do Norte – se influenciam reciprocamente no mercado globalizado, também os fatores antes chamados de intangíveis são atualmente considerados na avaliação do desempenho futuro de empresas e do potencial de setores da economia.

O olhar com essas lentes permitiria à imprensa oferecer ao público uma visão mais completa do cenário econômico. No entanto, para isso a mídia precisaria desenvolver um conceito menos condescendente do próprio sistema capitalista. Se fosse capaz de fazer a crítica do sistema, estabelecendo como plataforma de análise o bem-estar da sociedade, e não o sucesso econômico puro e simples, a imprensa teria condições de desenvolver essa visão.

Mas isso exigiria da mídia uma atitude soberana que ela não tem há muitos anos. Com o jornalismo cada vez mais mesclado aos interesses de negócio, torna-se inevitável o distanciamento entre a escala de valores da imprensa e as cada vez mais complexas necessidades da sociedade.

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Autonomia e independência em risco na nova TV pública

Quando o Governo Federal anunciou a intenção de construir uma rede pública de televisão, setores da sociedade logo se preocuparam em definir as diferenças fundamentais entre emissoras públicas e estatais. Para ser de fato pública, a nova TV deveria ter gestão independente do governo, financiamento não contingenciável e uma programação que refletisse a diversidade da sociedade brasileira. Não cumpridas estas premissas, a nova instituição acabaria por se constituir como uma TV estatal ou governamental, mas não uma TV pública.

A apreensão de que tais princípios não fossem respeitados não nos impediu de apoiar a iniciativa. Afinal, é evidente a necessidade de se instituir no país um autêntico sistema público de comunicação, autônomo e independente em relação aos governos e ao mercado. Historicamente, o setor comercial de rádio e TV tem se mostrado incapaz de garantir o debate plural sobre as questões centrais para o Brasil. São inúmeros – e permanentes – os exemplos em que os interesses particulares dos donos da mídia se impõem frente ao interesse público, com resultados desastrosos para a democracia.

A polêmica sobre “público X estatal” parecia ter sido dirimida com a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas, em maio deste ano, quando governo, emissoras do campo público e organizações da sociedade civil assinaram a Carta de Brasília, documento que estabelecia diretrizes para a nova TV pública: ela deveria ser independente em relação ao governo federal, com autonomia para estabelecer sua programação e gerenciar seus recursos. O conselho gestor da TV Brasil, explicitava o documento, deveria ser representativo da sociedade e, em sua composição, o governo não deveria ter maioria. Buscava-se, assim, afastar o risco de a emissora se tornar braço político do Executivo federal, qualquer que seja seu ocupante.

Nos últimos meses, prevaleceu a convicção de que o governo cumpriria o compromisso assumido e daria efetividade aos princípios pactuados. De fato, alguns princípios parecem estar se concretizando. Será um avanço se o governo realmente adotar um modelo de rede horizontal e descentralizado. Também é positivo o incentivo à autonomia das emissoras estaduais em relação aos governos locais.

Entretanto, o que parecia consolidado – o caráter público da nova instituição – está sob risco. A proposta atual do governo contraria os princípios da Carta de Brasília ao estabelecer mecanismos de gestão vinculados direta e exclusivamente ao Executivo federal. Pela proposta, tanto o conselho gestor da TV (responsável por zelar pelas finalidades públicas da instituição) quanto a presidência da nova emissora seriam indicados pelo presidente da República, sem qualquer necessidade de aprovação por órgão independente.

Ora, com um conselho de “personalidades” indicado pelo presidente, a TV perde sua autonomia e independência, ameaçando seu caráter público. Não é a mera existência de um órgão gestor que confere à emissora este caráter. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência da instituição em relação ao governo. Além disso, é a própria sociedade quem deve escolher os seus representantes. A idéia de um governo que indica, em nome da sociedade, quem a representa, é paternalista e anti-democrática, independentemente de quem sejam estes indicados.

Alega o ministro Franklin Martins que representantes de instituições no conselho gestor da emissora tendem a defender interesses corporativos. A preocupação com a possível contaminação da instituição por interesses particulares é legítima, mas a solução proposta é a pior possível. É certo que não deve haver no conselho vagas fixas para qualquer instituição. O desafio é estabelecer mecanismos democráticos e participativos de indicação, seja por conferência ou por eleição direta. Esse modelo já é utilizado – e bem-sucedido – em estruturas como o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho das Cidades que, embora tenham atribuições distintas do conselho de gestão da nova TV pública, também têm a missão de representar o conjunto da sociedade.

A ousadia e coragem que o governo teve ao propor a criação de uma nova rede de televisão devem permanecer na escolha de seu modelo de gestão. Neste momento de definições, é imprescindível zelar pelo caráter efetivamente público da futura instituição, para que nenhum governo, a qualquer tempo, possa utilizá-la como um instrumento político. Que assim seja, para o bem da ainda incipiente democracia brasileira.

*Diogo Moyses e João Brant são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

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TV Brasil: precisamos de uma Globo de sinal contrário?

Se as notícias se confirmarem, antes de outubro o governo federal deverá encaminhar ao Congresso Nacional uma Medida Provisória criando uma rede de televisão que será a cópia quase fiel do sistema privado de comunicação que conhecemos nos Brasil desde os anos 1960. Ou seja, vertical, centralizada, com programação majoritariamente não-local, na qual as afiliadas não passam de coadjuvantes. 

As informações que nos chegam dizem que a cabeça-de-rede será a TV Brasil, parida das estruturas da estatal Radiobrás e da organização social Acerp, tendo de 40% a 60% de programação nacionalizada. Só o malabarismo jurídico envolvido na fusão das duas instituições deveria ser suficiente para fazer nossa elite decisória pisar no freio e perceber que não se cria uma rede de cima para baixo. Mas não é isso que vem ocorrendo. Diante desse quadro, resta-nos pouco tempo para fazer aqui uma pergunta: precisamos reproduzir mais do mesmo, apenas seduzidos pela promessa de que o conteúdo da rede pública será mais emancipador e civilizatório do que o vale-tudo testemunhado na TV comercial?

Retoricamente, o governo parece saber a resposta por exclusão. Basta fugir do que foi feito até aqui com as TVs privadas e estatais. Na prática, entretanto, está conduzindo o processo de modo a repetir o erro. Afinal, uma nova rede vertical é mais fácil de ser criada do que uma organização horizontal, o que podemos apelidar de uma "anti-rede".

Recursos financeiros e concordância política dos participantes resolveriam a questão para as estações que irão se afiliar. Prova de que isso funciona é a permanência do modelo da Rede Globo, seguido de perto pelos demais sistemas comerciais que operam nacionalmente com a vinculação de dezenas de grupos regionais [é importante levar em consideração que a vasta penetração geográfica das redes privadas (90% das emissoras de TV são ligadas aos seis principais grupos) é fruto de um processo de articulação que tem como comissão de frente ganhos financeiros e apoio político local e nacional] e o apoio de aproximadamente 1,6 mil prefeituras, que mantêm mais de 3 mil retransmissoras de televisão pelo interior do Brasil. Em alguns casos, os contribuintes dos municípios pagam para que seja retransmitido o sinal de até cinco redes em sua localidade. As redes lucram, o morador paga.

No caso dos grupos privados, as vantagens oferecidas às afiliadas comerciais são participação na receita publicitária e poder político regional. Para os prefeitos, o retorno é principalmente eleitoral com alguma bonificação ao município para assegurar a fidelidade da retransmissora à programação da cabeça-de-rede. Em troca, os "sócios majoritários" distribuem seu sinal em praticamente 100% do território nacional, o que garante anunciantes de peso e poder de formação de opinião em escala nacional. [O sistema privado atual foi estabelecido com o apoio da política de segurança nacional dos sucessivos governos militares. Seu auge foi o uso dos satélites brasileiros para a interligação das emissoras regionais com as cabeças-de-rede. Como demonstra farta literatura, a maior beneficiada com este processo foi a Rede Globo.] Em síntese, este é o modelo vigente no Brasil há quase 40 anos.

Berço público

As mensagens deste governo vão no sentido de que é preciso criar um modelo alternativo à lógica desumanizante do mercado. Quais seriam os bônus oferecidos aos futuros integrantes da chamada rede pública? Promete-se não fazer uma "TV chapa-branca", estabelecer mecanismos de inserção de produção independente e de controle público, dar carona para os canais primos-pobres em seus multiplexes, financiar a migração digital e outros benefícios tentadores. O desenho na prancheta do comitê executivo formado para pensar a TV Brasil até sobrevoa esses pontos. Só que a timidez é tamanha, e os itens esquecidos são tantos, que as pretendidas horizontalidade estrutural e democracia organizacional se perdem já de saída.

Com boa vontade, benesses como essas podem até seduzir as emissoras universitárias, comunitárias e legislativas convidadas a se integrarem à iniciativa do governo e ávidas por ganharem as ondas hertzianas. Mas com as educativas, a maior parte delas atrelada à lógica dos governos estaduais e estabelecidas em sinal aberto há mais de duas décadas, a conversa é outra. Historicamente, a pouca disposição para a formação de redes verticais foi uma constante no seio das emissoras estaduais.

Quem tem memória (ou usa bem o Google) sabe que não é a primeira vez que se tira do papel uma iniciativa dessas no Brasil. A mais recente, na década de 1990, foi a Rede Pública de Televisão (RPTV). Um esforço louvável, mas morto prematuramente no momento em que algumas de suas proponentes resolveram hegemonizar a grade de programação impondo seu conteúdo majoritariamente no horário nobre. Uma prova cabal de que verticalidade e autoritarismo é um modelito que veste melhor no auto-intitulado moderno e democrático mercado. [Cálculos simples de se fazer analisando a programação das emissoras regionais revelam que a maioria das afiliadas das redes privadas não produz localmente mais do que 15% do conteúdo que distribui diariamente. Muitas emissoras educativas, como a TVE do Rio Grande do Sul e a TV Cultura de São Paulo, hoje produzem em casa mais de 30% da sua grade.] Não aprendendo com a história, o governo pretende começar uma rede pública partindo justamente dessa experiência malograda.

Mais curioso é que o governo implementará uma Globo de sinal contrário depois de ouvir a sociedade em um processo inédito de criação de um espaço público que articulou, ao longo de quase um ano, entidades representativas do chamado "campo público de televisão". Faz isso depois de despender recursos e tempo para estudar os demais modelos existentes no mundo e sistematizar diversas contribuições, criando um produtivo e legítimo debate nacional jamais visto na história das comunicações da nossa jovem democracia. Faz isso tendo em seus quadros pessoas que sabem como funciona (ou deveria funcionar) uma televisão que não reproduza o modelo vigente no setor privado.

Quero crer que são justamente essas pessoas que continuam tentando reverter as idéias de um ministro neófito em políticas públicas de comunicação, ao qual foi dado um cheque em branco para conduzir o trabalho.

O presidente Lula dá seu aval persuadido por um mito que encanta a todos nós: o modelo BBC é o melhor do mundo e seria o mais adequado para uma rede de televisão brasileira voltada ao interesse público. Não tenho dúvidas que ele é eficiente e parece ser o melhor para o contexto da Europa. Por lá, os sistemas de comunicação eletrônica nasceram de forma majoritariamente pública, sustentados por taxas cobradas diretamente dos cidadãos e submetidos a gestões fiscalizadas por conselhos formados por representantes da sociedade. Mesmo assim, a entrada na competição de grupos privados pós-Tatcher, principalmente com os serviços pagos por satélite, mudou a situação.

Princípios norteadores

Desde o final da década de 1990, o modelo vem bebendo em outras fontes para se manter. Prova disso, é a compra de produções independentes que consigam neutralizar o interesse do público pelo conteúdo provocativo e iconoclasta dos canais comerciais; a instituição do Channel Four para a negociação com 300 produtoras independentes; e o questionamento sobre a cobrança da taxa que financia o sistema. E as constantes revisões da Royal Charter que criou a BBC com consultas públicas que procuram respostas principalmente para a questão do financiamento e da gestão.

Se ainda vale (com ressalvas) para a Europa, ouso sustentar que este não é o modelo para o Brasil. Por que não deixar Londres um pouco de lado e olhar para os Estados Unidos com menos preconceito? Desde 1969, lá funciona o Public Broadcasting Service (PBS). Valendo-se de um modelo organizacional que sugere uma "anti-rede", o sistema público de televisão dos EUA conseguiu se estabelecer como uma verdadeira rede horizontal. Como não o vi explicado publicamente durante o processo de discussão, tomo a liberdade de trazer algumas informações. Não o defendo na íntegra, mas acho que existem bons caminhos, principalmente em termos de governança, accountability e financiamento.

Para começar, eles possuem um quadro de diretores integrado pelos dirigentes de diversas emissoras públicas norte-americanas dentro do total de associadas (são 26 diretores atualmente eleitos pelas 354 estações dos 50 estados). Suas reuniões são trimestrais e até bimestrais (o calendário é definido com antecedência e abrange dois anos). Alguns encontros são abertos ao público em geral. Um encontro anual reúne representantes de todas as estações associadas, além da diretoria profissionalizada.

Em um segundo nível de decisão, a administração fica a cargo de um grupo de 11 executivos profissionalizados. Reproduzo o quadro abaixo para demonstrar a amplitude do que eles entendem como uma rede pública:

** Presidente e CEO

** Executivo-chefe de Operações

** Executivo-chefe Financeiro e vice-presidente sênior (cuida também dos negócios da rede)

** Executivo-chefe de Conteúdo

** Executivo-chefe de Tecnologia

** Diretor de Serviços de Programação e vice-presidente sênior

** Executivo-chefe do Conselho Geral e Secretaria Corporativa (cuida dos departamentos Jurídico, Relações Comerciais e Relações Regulatórias e Legislativas) e vice-presidente sênior

** Executivo-chefe da PBS Kids e Mídias da Próxima Geração e vice-presidente sênior (cuida das áreas de conteúdo infantil e multiplataforma digital)

** Executivo-chefe de Programação de TV e vice-presidente sênior

** Vice-presidente sênior de Serviços Interativos

** Controller e assistente do tesouro (cuida da administração financeira e de investimentos da rede, além da auditoria interna)

Todas essas pessoas interagem em diversas comissões: executiva, finanças, serviços de emissoras, interconexão, governança corporativa e nomeações, auditoria, orçamento, força-tarefa de diversidade, indicadores de desempenho corporativo e outras comissões temporárias como a de revisão dos padrões editoriais. O interessante também são os princípios norteadores, a designação de papéis, responsabilidades e os padrões editoriais da rede.

Cultura massacrante

Creio que o principal diferencial da PBS é um ponto que os formuladores do governo falam pouco. A PBS não produz programação. Tudo é adquirido de suas estações associadas e de produtores independentes (nacionais ou internacionais). Depois de montado o pacote de programação, ele é distribuído às emissoras associadas. Este modelo, financiado por um fundo público mantido pela CPB, gera de tempos em tempos programas excepcionais que acabam internacionalmente distribuídos por seu grau de excelência. Um dos exemplos mais conhecidos é Sesame Street (Vila Sésamo). Produzido inicialmente pela televisão educativa nacional foi guindado para o horário nobre da PBS e depois ganhou o mundo (120 países e 30 versões nacionais).

É preciso entender que só teremos uma indústria audiovisual pujante quando "anti-redes" no estilo PBS pipocarem pelo país, dando chance para que formatos inovadores e conteúdos experimentais tenham campo para crescer e multiplicar.

No início, uma rede com esse perfil será traço de audiência? Com certeza. A PBS tem quase 40 anos e mesmo assim luta contra a maré de operar uma rede com finalidades públicas num ambiente de uma cultura audiovisual massacrante. Mas temos que começar em algum momento. Do contrário, continuaremos lutando pelo conteúdo nacional (basicamente o da Globo) e remetermos a busca por conteúdos nacionais para um futuro mais que imperfeito. Para fazer isso, definitivamente o sistema privado brasileiro não é referência.

* James Görgen é jornalista, coordenador de projetos do Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação – e membro eleito do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão, mantenedora da TVE-RS e da Rádio FM Cultura.

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O recadastramento das emissoras e o direito à informação pública

Quando assumiu o Ministério das Comunicações (MiniCom), em janeiro de 2003, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) declarou à Folha de S. Paulo que iria abrir a "caixa-preta" da radiodifusão divulgando, pela internet, o cadastro com os nomes dos sócios das emissoras de rádio e de televisão do país (cf. "Lista de nomes de donos de rádios e TVs estará na internet, diz ministro", Folha de S. Paulo, 5/01/03).

A promessa tornou-se realidade onze meses depois, em novembro de 2003. De fato, o cadastro das entidades concessionárias de radiodifusão passou a estar disponível no URL http://www.mc.gov.br/rtv/licitacao/ACIONISTAS.pdf (hoje uma página desativada).

Por incrível que possa parecer, foi a primeira vez que o público tomava conhecimento dessa informação que sempre deveria ter sido pública. Os Decretos Legislativos, publicados no Diário Oficial da União, trazem os nomes das empresas concessionárias, mas não especificam os nomes de seus sócios. Dessa forma, o interessado só poderia saber quem eram os titulares das concessões de radiodifusão se fosse diretamente às Juntas Comerciais e cartórios de registro de documentos em cada um dos municípios do país onde existisse uma concessionária.

Informação não acessível

A divulgação do cadastro possibilitou conhecer os nomes dos sócios que aparecem nos contratos de concessão desse serviço público. Apesar da maioria das irregularidades descobertas ter sido sempre atribuída pelos envolvidos à "desatualização" do cadastro, ele passou a ser uma referência básica. O cruzamento dos nomes constantes no cadastro com a relação de políticos no exercício de mandato eletivo, por exemplo, revelou que muitos deles controlavam boa parte das emissoras de rádio e televisão pelo país afora. Claro, os "laranjas" e os parentes não são detectados nesses cruzamentos.

O cadastro esteve no sítio do MiniCom de novembro de 2003 até o início deste ano. Depois, desapareceu. Quem acessar o URL mencionado acima lá não encontrará nada. E quem acessar o sítio do MiniCom, clicar em "radiodifusão" e depois em "sócios e dirigentes", encontrará um aviso de "PÁGINA EM MANUTENÇÃO" com a seguinte orientação:

"A consulta ao Relatório de Sócios e Dirigentes das Entidades de Radiodifusão, deverá ser realizada através do link ANATEL (http://sistemas.anatel.gov.br/siacco/), onde os dados são atualizados periodicamente".

Acontece que o Sistema de Acompanhamento de Controle Societário da Anatel (SIACCO) oferece informações sobre o perfil das empresas de radiodifusão desde que quem consulte saiba o nome da entidade e o seu CNPJ. É um cadastro de cada uma das entidades, isoladamente. Não é um cadastro geral das entidades concessionárias. Essa informação não está mais acessível. Regredimos, portanto, à situação pré-2003.

Apenas um esquecimento

A dificuldade de acesso a essa informação é tão incrível que mereceu, inclusive, um Projeto de Lei (PL 1879/03), de autoria do deputado Edson Duarte (PV-BA). Ele tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e "dispõe sobre a obrigatoriedade da divulgação na internet da relação de proprietários e diretores das empresas de radiodifusão sonora e de sons e imagens".

Qual será a razão para se tratar uma informação que é pública por sua própria natureza – a relação dos concessionários de um serviço público – como segredo de Estado?

Nesse contexto, surge a Portaria 447 do Ministério das Comunicações, publicada no Diário Oficial da União em 13/8, que determina o recadastramento de todas as concessionárias, permissionárias e autorizadas a prestarem serviço de radiodifusão sonora e de sons num prazo de 60 dias. Segundo release do MiniCom, o último recadastramento foi realizado há 35 anos e o objetivo é atualizar as alterações contratuais e estatutárias havidas, bem como as que modificaram a composição dos quadros societários e diretivos das 3.530 entidades detentoras de outorgas de rádio e TV no país. O número de emissoras pertencentes a essas entidades, no entanto, é certamente maior, de vez que muitas oferecem mais de um serviço de radiodifusão ao mesmo tempo.

Entre as informações solicitadas, estão: a composição do capital social, com distribuição entre os sócios e indicação individual do número de cotas ou ações; composição do quadro diretivo; nomes dos procuradores com poderes de gerência e administração, quando houver; endereço da sede social e para correspondência; e a denominação de nome fantasia, se for o caso.

Nenhuma referência foi feita nas declarações do ministro das Comunicações ou na Portaria 447 ou no release de sua divulgação ao sumiço do cadastro com os nomes dos sócios das emissoras de rádio e de televisão do sítio do MiniCom. O fato também não mereceu qualquer atenção da grande mídia. Deve ter sido apenas um esquecimento.

Para além do recadastramento, no entanto, é indispensável que se recoloquem as informações sobre os concessionários à disposição do público – razão última da existência das próprias concessões.

O público tem o direito à informação pública, vale dizer, saber o nome dos "curadores" do serviço público de radiodifusão no país.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

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