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Plebiscito da Vale reafirma divórcio entre a grande mídia e o país

Os movimentos sociais e entidades organizadoras do plebiscito popular da campanha "A Vale é Nossa" divulgaram nessa segunda (08/10) os resultados do pleito, que mobilizou mais de 100 mil voluntários em quase 3.200 municípios do país. Foram 3.729.538 votantes, sendo que 94,5% deles disseram não à permanência da Companhia Vale do Rio Doce nas mãos do capital privado.

Embora a imensa maioria dos votantes – trocando em "miúdos", mais de 3,5 milhões de brasileiros – tenha expressado sua contrariedade à privatização da empresa, o cidadão que tenha acompanhado a cobertura do tema pela mídia corporativa durante os dias do plebiscito, no início de setembro, teria a impressão de que o questionamento à venda da empresa era uma exceção. Esta é a conclusão do levantamento exclusivo realizado pelo Observatório do Direito à Comunicação sobre a cobertura da mídia comercial na semana de realização do plebiscito popular.

Como visto nas eleições presidenciais de 2006, em que o histórico do PSDB de privatizações das empresas pertencentes ao povo brasileiro teve peso decisivo na vitória de Lula, mais uma vez a população demonstrou no plebiscito um saudável espírito de nação e de defesa de um Estado presente e atuante. A grande imprensa, por sua vez, reafirmou em sua cobertura a contrariedade em relação a um Estado que planeje e colabore com o desenvolvimento e o crescimento do Brasil e que atue em diversas áreas da economia e da sociedade de modo a promover a superação de desigualdades históricas.

Ainda que a cartilha do governo Lula em relação às privatizações tenha mudado substancialmente do discurso das eleições de 2006 para as ações do segundo mandato, iremos aqui nos ater a outro divórcio: o verificado entre o que a população expressou como opinião e vontade de mudança e o que a grande imprensa buscou reportar em relação ao plebiscito. E veremos que, apesar de a mídia corporativa não ter a capacidade de inventar de fato um outro povo e um outro país, a cobertura da mobilização sobre a Vale foi mais uma tentativa de criar uma versão dos fatos e da história em evidente desacordo com a realidade.

A situação verificada em relação ao plebiscito da campanha "A Vale é Nossa" reafirma, assim, a necessidade de uma profunda democratização das comunicações e da criação de um efetivo sistema público de comunicação no país. Ambas são iniciativas que fortalecerão outras vozes, leituras e atores de nossa sociedade. E que certamente contribuirão para que a população não seja mais refém das construções da realidade produzidas por uma mídia divorciada de seu país.

A cobertura

Não é possível afirmar que o Plebiscito Popular sobre a Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce esteve fora do noticiário, pelo menos nos veículos impressos. Na TV, sim, a cobertura foi escassa. Porém, também é fato que esta cobertura de forma alguma teve a intenção de instaurar o debate público sobre o mérito da consulta, ou seja, a reestatização da mineradora e de suas jazidas.

Quando não se limitou a usar o plebiscito como mote para criar uma confusão de identidade entre os movimentos populares e o governo, buscou oferecer claramente argumentos que apontam que a privatização foi responsável pela modernização da empresa.

O noticiário diário nos principais jornais apostou de forma constante na primeira estratégia, ora colocando movimentos e governo como próximos (afirmando que as idiossincrasias dos primeiros atrapalham o segundo), ora criando um abismo entre os dois (mostrando que o segundo não iria sequer considerar a questão).

Já as revistas fizeram largo uso de suas páginas para defender as benesses da privatização. Na TV, o plebiscito apenas existiu durante a realização do Grito dos Excluídos.

De maneira geral, a imagem construída pela mídia sobre o plebiscito foi a de que se tratava de iniciativa anacrônica e restrita a uma pequena e pouco representativa parcela da sociedade, que seriam os movimentos sociais ou os setores de uma esquerda mais radical.

Jornais diários

Durante a semana de realização do Plebiscito Popular sobre a Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce, a iniciativa foi citada todos os dias pelos principais jornais diários, ainda que diversas vezes de forma muito discreta – em colunas de cartas do leitor ou em frases perdidas no meio de textos de colunistas.

A cobertura, porém, centrou-se, basicamente, em fatos relacionados ao plebiscito, não ao processo de consulta em si. É sintomático que o plebiscito só tenha entrado, de fato, na pauta dos jornais a partir da aprovação à realização da consulta pelo Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT). De modo geral, o noticiário e as colunas de opinião viram no plebiscito um tipo de evento exemplar da esquerda folclórica, cuja "importância" só se deveu ao fato de que a questão posta pela consulta poderia criar certo desconforto à parte da esquerda que assumiu o pragmatismo do governo.

Assim, o plebiscito em si e, especialmente, o tema posto em questão pela iniciativa ficaram em último plano. Por exemplo, boa parte das matérias sequer citava que o plebiscito já estava em andamento.

Apenas no dia 5, passada já a metade dos dias para coleta de votos, a Folha de S. Paulo registra, em um pequeno box, informações sobre quem organizava o plebiscito, onde poderiam ser encontradas outras informações e como votar. Nos demais jornais analisados – O Estado de S. Paulo e O Globo – não há qualquer indicação neste sentido. Os textos chegam a dar a impressão de que a consulta ocorreria apenas meses depois.

A repercussão da decisão do Congresso do PT durou pelo menos quatro dias e, embora não tenha havido uma declaração oficial do governo federal, os jornais apressaram-se em repercutir a decisão do partido junto a fontes do governo ou membros do PT próximos a Lula.

Registraram, assim, que a parte governista do PT estava insatisfeita e deram títulos que ressaltavam que, para o presidente Lula, o apoio ao plebiscito era uma forma de "fazer média" com uma parte dos movimentos sociais.

A única notícia de fato sobre o plebiscito em si foi a discussão entre deputados por conta da instalação de uma urna da consulta dentro do Congresso Nacional.

As discussões de mérito a respeito da reestatização da Vale só foram registradas de forma aberta em artigos de opinião assinados por apoiadores do plebiscito: na Folha de S. Paulo, artigo de Fábio Konder Comparato apontou as questões judiciais a respeito do leilão; em O Globo, João Pedro Stédile e D. Demétrio Valentini fizeram um apanhado das razões que levaram à organização do plebiscito. A Folha, cinco dias depois de publicado o artigo de Comparato, publicou artigo de Adilson Dallari respondendo às questões jurídicas e defendendo a validade do leilão.

Em alguns outros artigos de opinião publicados naquela semana, o tema da reestatização é tratado como um "passo atrás", como andar na "contra-mão", como "anacronismo". Interessante notar que nenhum destes artigos tratava diretamente do tema do plebiscito ou da anulação do leilão: as críticas apareceram a esmo, como para compor um quadro do quê "atrapalha o Brasil", do qual faz parte tanto o governo Lula com seus erros, quanto as esquerdas que não deixam de cercar Lula (e aí é importante ressaltar como é propositadamente criada uma confusão sobre a proximidade e os distanciamentos entre o governo e os movimentos sociais).

No dia 4, por exemplo, o economista Ilan Goldajn, escrevendo sobre a crise dos mercados internacionais, registra: "No Brasil, na contramão, o governo baseia seu orçamento em receitas cada vez maiores, para financiar gastos crescentes. E o 3º Congresso do PT, partido do governo, em vez de delinear as reformas que considera necessárias para sustentar um crescimento sustentado, prioriza a revisão do que deu certo no passado: a privatização da Companhia Vale do Rio Doce."

Por outro lado, os colunistas fixos dos jornais optaram basicamente por reforçar a estratégia do noticiário, comentando o apoio do PT ao plebiscito. Nos comentários, de forma muito taxativa, a idéia da anulação do leilão da Vale ganha qualificações como "absurdo", "retrocesso".

Poucos citaram abertamente o mérito da reestatização, ou os desdobramentos do plebiscito em si. A rara exceção foi Ancelmo Góis, que no dia 4 registra nota sobre a reação da Vale do Rio Doce e comenta a realização da consulta: "A Vale acompanha discretamente a campanha para anular a sua privatização. Por enquanto, há mais espuma do que chope. Mas nunca se sabe. A maior preocupação é com as 67 ações populares que pipocam por todo o país contra o leilão. A defesa está com o escritório Siqueira Castro." No dia 9, Góis ainda falou do plebiscito, mas já em outro tom: desqualifica os argumentos pró-anulação dizendo que os funcionários que investem nos fundos de pensão que hoje controlam a empresa (inclusive os que já eram empregados da Vale estatal) seriam prejudicados pela reestatização.

No 7 de setembro, apenas Folha e Estadão registraram a realização do Grito dos Excluídos. Sintomaticamente, o registro da manifestação é feito pelo Estadão em um último parágrafo de uma matéria sobre ocupações realizadas pelo MST no dia anterior. Como chapéu (pré-título), o jornal escolheu a expressão "Terra sem lei".

Na edição do dia 8, há registro razoável do Grito tanto na Folha, como no Estadão. Enquanto a primeira destaca a realização do plebiscito na Sé e a não-realização na Basílica de Aparecida, o segundo fala apenas de passagem na consulta e dá mais importância em descrever – com certo ar carnavalesco – as bandeiras diversas que tiveram vez na manifestação. Já O Globo escreve apenas 3 parágrafos, registrando o número de pessoas presentes no Rio, SP e Recife.

No dia 9, foram registradas as últimas referências ao plebiscito, apenas nas colunas de opinião. Na mais curiosa de todas, Elio Gaspari (publicado em O Globo e no Estadão) ataca ambos os lados: denuncia o arremate da Vale "com dinheiro da Viúva", para depois dizer que a reestatização poderia servir para os petistas conseguirem uma "boquinha".

TVs privadas

O plebiscito e o Grito dos Excluídos só existiram no próprio dia 7 para as principais redes de televisão do país. Segundo levantamento das edições dos maiores telejornais da Globo, SBT, Record e BAND, o tema só foi pautado no feriado de 7 de setembro. Entre 30 de agosto, data da coletiva de imprensa dos movimentos sociais sobre as mobilizações, e 9 de setembro, último dia do plebiscito, a única exceção a essa regra foi o "SBT Brasil", que trouxe comentário de Carlos Chagas, no dia 4 de setembro, referente ao Congresso do PT e ao plebiscito da Vale, apoiado pelo encontro do partido.

Após a chamada da apresentadora Cynthia Benini ("Deputados e senadores estranharam as propostas feitas pelo PT no Congresso Nacional do partido"), o comentarista Carlos Chagas afirma que "os companheiros aprovaram propostas que seriam cômicas, se não fossem trágicas". Para Chagas "essa privatização pode até ter sido um crime de lesa-pátria, mas foi um ato ato jurídico perfeito". Ignorando a análise de importantes juristas e a existência de mais de 100 ações questionando o processo na Justiça, que aguardam pela decisão do STJ, o comentarista cria uma versão simplesmente irreal para o fato: "para revogá-lo, apenas com uma ditadura, com um Ato Insitucional".

Se as tevês só pautaram o tema do plebiscito e do Grito no dia 7, há detalhes importantes a se apontar em relação a essa opção. O primeiro deles é que a data apresenta uma forte carga de possíveis notícias e imagens, entre as mais relacionadas à própria proclamação da Independência do Brasil, às comemorações e desfiles militares referentes ao tema e, ainda, à presença das autoridades do país – com as possíveis vaias ou apoios – nos respectivos eventos. Ou seja, se as discussões propostas pelos movimentos só são pautadas no dia 7, elas enfrentarão a forte concorrência de temas relevantes, e no mais das vezes serão colocadas de forma secundária pelos telejornais.

Nesse sentido, o "Jornal da Band" foi o que "melhor" representou tal tendência, ao noticiar o dia 7 em duas matérias ("Renan Calheiros não foi ao desfile de 7 de setembro" e "Confusão no desfile da independência em Maceió"), que sequer citaram as palavras "plebiscito" ou "excluídos".

O segundo detalhe fundamental diz respeito ao aprofundamento do tema: se os debates, construídos ao longo de meses pelos movimentos, só se tornam pauta dos telejornais no dia 7, outra conseqüência óbvia é que pouco ou nenhum tempo haverá para os temas serem discutidos com a mínima profundidade nos telejornais – e ainda menos com possibilidade de incentivar a população a refletir e a participar das duas mobilizações.

Juntando-se o primeiro fator ao segundo, tem-se que as notícias sobre o Grito e o plebiscito na televisão comercial brasileira acabam praticamente não dando voz às pessoas que os construíram, tampouco às idéias que elas gostariam de apresentar. Tudo isso só chega aos demais cidadãos brasileiros de forma intensamente mediada pelos repórteres, apresentadores e analistas dos telejornais, que pouca ou nenhuma ligação possuem com a questão. Os jornalistas, afastados dos temas, afastam por sua vez os telespectadores.

No "Jornal Nacional", da Globo, a notícia "'Grito dos Excluídos' questiona reforma da previdência e privatização da Vale" trouxe o apresentador William Bonner resumindo os protestos: "representantes de movimentos sociais e da Igreja Católica realizaram hoje, em várias cidades, a 13ª edição do Grito dos Excluídos", no que foi seguido por repórter da emissora anunciando que "em todo o país, o Grito dos Excluídos colheu votos em uma consulta popular sobre a reforma da Previdência e a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, entre outros assuntos". Foi o máximo de profundidade que a maior emissora do país dedicou ao tema. Esta foi a forma como a rede mais poderosa de comunicação do Brasil explicou e desenvolveu sobre o que seriam os questionamentos à privatização da Vale.

O "Jornal da Record", padecendo do mesmo mal de um único dia para o tema, dedicou maior espaço aos debates em si, aprofundando-os minimamente. Na matéria "'Grito dos Excluídos' pede mais justiça social", a apresentadora Adriana Araújo resumiu: "Mais justiça social e revisão de uma privatização de dez anos atrás. Foi o que pediram as manifestações do 'Grito dos Excluídos'". Relatando uma das cenas do Grito, o repórter da emissora inicia sua participação: "nas mãos de crianças, jovens e adultos faixas e cartazes pedindo um país mais justo", que é seguida por frases dos manifestantes reivindicando direitos fundamentais, como um entrevistado que afirmou "precisamos de moradia que nós não temos. É difícil com o salário que ganha". Logo depois, rapidamente, o repórter aproveita para explicar que "o 'Grito dos Excluídos' deste ano questionou a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Os líderes do protesto fizeram um abaixo-assinado pedindo a anulação do leilão".

Vale registrar, por fim, que para a imensa maioria da população brasileira, que se informa essencialmente por meio da TV, as ações na Justiça, cuja análise por parte do STJ pode até mesmo declarar a nulidade do leilão de privatização, simplesmente não existem.

Revistas semanais

Aprofundando a linha apontada indiretamente pela cobertura dos jornais, as revistas semanais que incluíram o tema do plebiscito em suas pautas o fizeram para apontar o suposto "anacronismo" da idéia e ressaltar as benesses da privatização.

Na IstoÉ Dinheiro que chegou às bancas no dia 1 de setembro, artigo assinado por Octávio Costa atira em duas direções: desqualificar o mérito do plebiscito e também o processo da consulta em si. A sanha pela desqualificação do plebiscito já no primeiro dia da coleta de votos fica evidente pela própria escolha do opinador de puxar o assunto pelo apoio ao plebiscito aprovado pelo Congresso do PT. Quando escreve seu artigo, o Congresso não havia começado.

Para atacar o mérito do plebiscito – a anulação da privatização –, faz uma apologia aos resultados da Vale privatizada e diz que só o "ranço ideológico" explicaria o fato dos "militantes do PT" ainda "perderem as estribeiras diante da simples menção da palavra privatização".

Ao citar apenas "os militantes do PT", o opinador da IstoÉ Dinheiro reforça a escolha pela desqualificação das entidades que organizaram o plebiscito apontada no primeiro parágrafo do texto: as entidades às quais o PT ("partido esquizofrênico") se somou são tomadas como nanicas, inexpressivas ou desconhecidas.

A Época publica no final de semana seguinte (8 de setembro), quando já se encerrava a coleta de votos, o que chega a parecer um release da Vale do Rio Doce.

A mobilização é apresentada como "uma espécie de plebiscito" organizado por um "grupo de entidades de esquerda", que "ganhou importância" pelo "apoio" recebido do Congresso do PT.

Apesar de a consulta ser o gancho da matéria (a informação que introduz o tema), os argumentos pró-anulação cabem em uma frase. O restantes das 3 páginas da revista são dedicados a descrever como a Vale cresceu e se tornou a 3ª maior mineradora do mundo.

Diz a matéria em seu segundo parágrafo: "Os defensores da reestatização consideram que a volta do controle do governo traria mais benefícios para o país." A frase seguinte introduz com clareza a intenção do restante da matéria: "A história da Vale, no entanto, não endossa essa opinião".

Considerando que a Vale do Rio Doce não emitiu uma única nota oficial sobre o plebiscito ou apresentando argumentos contrários à anulação, pode-se considerar que esta matéria foi, na prática, esta resposta devida pela empresa.

Já a Veja publica matéria que poderia ser tomada como artigo de opinião. No entanto, o foco da matéria não está sobre o plebiscito ou a privatização da Vale, mas trata dos resultados do Congresso do PT. A aprovação do apoio ao plebiscito pelo partido é incluída no rol das esquizofrenias do PT, que segundo a revista viveria em uma espécie de "realidade virtual". O contraponto a esta virtualidade em que navega o partido viria do "mundo real" do governo Lula. O presidente é citado na matéria, que lembra que Lula disse que o apoio ao plebiscito era "jogar para a platéia". E Veja registra ainda que o presidente "garantiu que não quer a reestatização nem pretende discutir a idéia".


*Antonio Biondi e Cristina Charão são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Imprensa e Liberdade: a qualidade da cobertura da agenda social

(Terceiro de uma série de quatro artigos sob o título geral "A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias". Leia também "A missão de servir ao cidadão e vigiar o poder" e "A liberdade de imprensa entendida como um dever" )

Um dos indicadores mais comumente adotados para a verificação do cumprimento da responsabilidade social do jornalismo tem sido a cobertura dos movimentos sociais, entendidos como aqueles movimentos organizados cujos protagonistas pertencem às camadas mais pobres do país. Pesa, também, nesse tipo de avaliação, a cobertura dos debates suscitados por esses movimentos dentro do Estado, ou no contato entre as estruturas do Estado com a sociedade civil, como nas recentes conferências nacionais – com milhares de participantes, primeiro nos Estados e depois em plenárias nacionais em áreas como cultura, cidades ou meio ambiente. Numa visão um tanto linear, acredita-se que, quanto maior a cobertura em qualquer tipo de órgão de imprensa, maior o compromisso do jornalismo com a sua responsabilidade social. Há outros indicadores, mas esse tem se sobressaído.

De início, é bom saber que existe aí uma cobrança tipicamente militante. Proposital ou inadvertidamente, alguns dão o nome de responsabilidade social ao engajamento do jornalista nas reivindicações desses que também são chamados de movimentos populareslitantes, que aqui precisam ser desprezadas. . O que os adeptos do engajamento postulam não é, portanto, uma imprensa livre, mas uma imprensa submissa ao discurso desses setores organizados. Claro que quando o jornalista aceita cumprir tal papel renuncia à sua liberdade e à sua responsabilidade social – que não se realiza pelo engajamento, mas pelo seu contrário, quer dizer, pelo desengajamento em relação aos discursos prontos que buscam se infundir no seu relato.

A cobrança militante não leva em conta que, a despeito de valorações subjetivas que comparecem a qualquer enunciado, jornalístico ou não, o jornalismo almeja prover a sociedade de informações objetivas e, portanto, úteis ao debate público; por isso, procura apurar, editar e veicular conteúdos tendo em vista as necessidades, as demandas e os direitos do seu público, ao qual informa e com o qual dialoga. Logo, para fins de análise da boa ou má cobertura dos movimentos sociais, a cobrança militante em nada ajuda. Deve ser descartada sumariamente.

Atendimento parcial

O problema da cobertura, contudo, persiste. Se for verdade que a imprensa ignora, ainda que apenas em parte, os movimentos sociais, será também verdade que ela fecha os olhos para uma parcela significativa da realidade com que lida. Por certo, seria um destempero pretender que todos os órgãos de imprensa falassem do assunto do mesmo modo, assim como seria pouco sensato esperar de todos, indistintamente, notícias iguais sobre astronomia, golfe, futebol ou agropecuária. Cada um tem o seu repertório próprio, sua agenda própria, sua audiência própria, mas, se é fato que o cidadão não dispõe de veículos que o informem com qualidade sobre os movimentos sociais, algo não vai bem.

Costuma-se dizer que a cobertura dos movimentos sociais é insuficiente. Ainda que não tenhamos estatísticas exaustivas à mão, admitamos que a postulação seja verdadeira, nem que seja para efeito de raciocínio. Sem cobranças militantes, é o caso de refletir sobre as razões da possível insuficiência. Por que, afinal de contas, a cobertura seria escassa? Talvez pela falta de público interessado. Será? Haveria público para essa cobertura? Há demanda?

Admitindo, pois, a possibilidade de insuficiência da cobertura, eu gostaria de suscitar uma hipótese que ajudasse, se não a explicá-la, ao menos a considerar a plausibilidade de sua veracidade. A minha hipótese diz respeito, de início, ao jornalismo impresso: eu diria, então, que a cobertura é débil porque, em parte, os personagens dos chamados movimentos sociais não estão entre os leitores das principais publicações do país. Ou seja: os movimentos sociais não figuram tanto na pauta porque seus protagonistas não figuram entre os consumidores do pacote jornalístico (que é a mercadoria comercializada por jornais e revistas).

A cobertura deixaria a desejar não porque os jornalistas são técnica ou culturalmente despreparados, embora a variável não possa ser desprezada – assim como não pode ser desprezada a origem social dos jornalistas que, em sua imensa maioria, são filhos de classe média que, em sua história de vida, tiveram pouco ou nenhum contato com integrantes dos movimentos sociais e as áreas em que estes moram –, mas porque seus públicos leitores ainda são quantitativamente reduzidos e qualitativamente pouco heterogêneos, não refletindo a composição da sociedade inteira. Dessa forma, os jornalistas, ao prestar serviços aos seus públicos habituais, cumprindo, portanto, o seu papel de servir ao leitor, atendem apenas a uma parte da sociedade, a parte que os lê. O público com que dialogam é parcial – daí a parcialidade da pauta com que trabalham.

Baliza do consumo

Um veículo jornalístico, se bem-sucedido, tem menos a cara do seu editor e mais a cara do público ao qual se dirige. A ele presta serviços. É, pois, explicável, ainda que não seja desejável, que os jornais diários, no intuito de ser úteis a seu leitorado, falem da realidade das pessoas que os lêem como sendo toda a realidade imediata que interessa.

O ponto é que, nos grupos de leitores dos diários tradicionais do Brasil, ao menos como regra, não entram a maior parte dos ativistas dos movimentos sociais – estes não são assinantes, raramente são compradores de exemplares avulsos e também não consomem os produtos anunciados nas páginas de publicidade. Se é mesmo assim, por que é que se vai se falar, vejamos, de um movimento de favelas num jornal que é lido nos bairros elegantes? A resposta é simples: só se falará disso quando esse movimento afetar a normalidade dos habitantes dos bairros onde se concentram os leitores.

De acordo com a minha hipótese, os participantes dos movimentos sociais, em sua maioria, são retratados meramente como terceiros distantes, comparecendo às reportagens como ameaças externas à rotina dos leitores. Considerando ainda que as fontes mais habituais dos jornais emergem do grupo daqueles que os lêem, ou seja, considerando que o conjunto das fontes pertence ao conjunto dos leitores, vê-se também que o diálogo estabelecido, nas páginas dos jornais, entre os agentes do debate público, também exclui, ao menos como regra, se não todas as lideranças, ao menos os participantes dos movimentos sociais. Nesse ambiente, eles surgem como seres longínquos e estranhos, mais ou menos como os rebeldes das cercanias de Bagdá ou os famélicos da África. Com uma distinção: podem atirar uma pedra no telhado dos leitores e, por isso, tangenciam mais de perto a agenda desses leitores.

A ser válida a hipótese que apresento, as conseqüências se projetam para além dos meios impressos. Como as redações de jornais diários e de revistas têm sido escolas para gerações sucessivas de profissionais, que depois migram para outros veículos, a mentalidade que nelas se cultiva interfere também nos outros meios. Os parâmetros, os valores e, por vezes, os preconceitos que se verificam nas redações dos meios impressos viram referências – não necessariamente dominantes – para a prática do jornalismo em geral.

Com efeito, sem cair na armadilha das generalizações, podemos observar que, às vezes, até nos noticiários de televisão os movimentos sociais ainda aparecem como um "movimento deles", como se seus protagonistas não compusessem sequer o público telespectador.

Há um elemento perverso nessa exclusão que alcançaria os meios de radiodifusão, a TV em especial. Os agentes dos movimentos sociais, quando pertencentes a camadas sociais que não têm acesso aos bens de consumo, a despeito de integrarem o amplo espectro de telespectadores, não fazem parte da audiência com poder de compra mínimo. Como o consumo serve de baliza para o modo como a publicidade na TV dialoga com o telespectador, esse público que não chega a ser consumidor potencial termina por se ver estigmatizado, diante da tela, como sendo uma subplatéia: os mais pobres não são vistos como compradores pelo anunciante. Por desdobramento, quase que automático, por mais que os editores de televisão creiam no contrário, esses segmentos não são convidados a ser interlocutores do discurso jornalístico da TV.

Desafio editorial

Guardadas as proporções de praxe, pode-se considerar a mesma hipótese para uma análise do radiojornalismo. O não-consumidor tende a ser um não-interlocutor. Nessa medida, os parâmetros estreitos herdados da tradição dos diários se converteriam, sempre em hipótese, num tipo de preconceito inercial no jornalismo da TV e do rádio, mas um preconceito perversamente lógico, sustentado pela estratificação imposta pelo consumo.

A história recente traz casos que reforçam a hipótese. O Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, entrou na cobertura da televisão um pouco tardiamente, em meados dos anos 1980. Adquiriu destaque nos noticiários por ocasião do massacre do Eldorado dos Carajás, que foi ao ar em cenas trepidantes gravadas por amadores. [Neste episódio, ocorrido em abril de 1996, 19 trabalhadores rurais foram assassinados pela polícia militar do Pará. As vítimas eram integrantes da Caminhada pela Reforma Agrária, que reunia 1.500 famílias de trabalhadores sem terra. De acordo com o Instituto Médico Legal (IML) do estado, todos os mortos foram atingidos por balas, várias delas disparadas à queima roupa: o parecer final concluiu que muitas das vítimas foram dominadas e, em seguida, executadas. Apesar das provas contundentes, até o momento de fechamento deste livro a Justiça não havia punido de forma efetiva os responsáveis pelos crimes.] Foi por ter rendido imagens espetaculares, e não em função da identidade dos mortos, que o massacre ganhou destaque nos telejornais.

Depois, principalmente pela novela O Rei do Gado, da Rede Globo, o drama dos sem-terra foi admitido na sala da família brasileira. Mesmo assim, até hoje, é em regra como ameaça externa, semelhante a uma gripe aviária, que as lutas sociais do campo irrompem na tela. Os trabalhadores da terra, talvez mais do que seus líderes, ainda não desfrutam do status de interlocutores no âmbito da comunicação jornalística. O fato de não pertencerem ao grupo dos que se comunicam normalmente pelas páginas dos jornais e às camadas sociais com acesso ao consumo é o que mais os segrega, muito mais do que os julgamentos morais ou políticos que recebam de uns e outros.

A responsabilidade social do jornalismo passa por assumir o desafio editorial de expandir e qualificar a base de leitores de notícias, em meios impressos e eletrônicos. Do mesmo modo, passa por separar os critérios que filtram o acesso ao consumo dos critérios da admissibilidade do cidadão à condição de interlocutor do discurso jornalístico. 

A TV digital e o respeito ao consumidor

O BRASIL vive um momento decisivo para o futuro da TV digital. Após adotar o padrão de tecnologia japonês, caberá agora ao presidente Lula decidir se a televisão digital brasileira deverá ou não incorporar um sistema anticópia que, se aprovado, limitará drasticamente a forma como o consumidor poderá usar e reproduzir, legalmente, o conteúdo recebido em sua TV.

Sob o argumento de evitar a "pirataria", não mais se distinguirá quem copia em larga escala e com intuito de lucro (o verdadeiro pirata) daquele que reproduz uma única vez um trecho de um programa para fins privados ou educacionais, o que é permitido pela lei de direitos autorais.

Evidentemente, não se pode afastar o legítimo interesse de autores em receber pelo seu trabalho. Mas tampouco se pode, em decorrência da adoção de regras exageradamente restritivas, empurrar os cidadãos de bem para a ilegalidade por copiar um pequeno trecho de um programa para comentá-lo em sala de aula ou inseri-lo em um vídeo pessoal.

A principal idéia que rege o sistema de direito autoral é a de que se deve garantir um ciclo próspero de inovação, conciliando a justa remuneração de autores e inovadores com o direito de acesso de toda a sociedade aos benefícios trazidos pelas invenções e pelos bens culturais desenvolvidos.


Para tanto, é concedido aos autores um monopólio fictício e temporário para exploração comercial das obras.
Mas esse direito de exclusividade tem tempo limitado, após o qual as obras são disponibilizadas em domínio público, possibilitando a reprodução e a circulação do conhecimento.

Além disso, o direito de acesso também é assegurado mediante limitações e exceções ao direito do autor, que permitem a reprodução em certos casos – como a cópia privada sem fins lucrativos ou para fins exclusivamente didáticos. Esse equilíbrio entre a proteção e o acesso, entretanto, foi-se perdendo com o tempo, em especial no final do século 20. Com a crescente importância da informação na economia, a proteção dos direitos da indústria que os explora passou a sobrepor-se ao direito de acesso de toda a sociedade.

Por influência dos países desenvolvidos – detentores de grande parte dos direitos sobre tecnologias e conhecimento -, deu-se início a um movimento internacional de enrijecimento das regras de proteção à propriedade intelectual, que inclui direitos autorais e patentes.

Internacionalmente, o prazo para que obras artísticas voltassem ao domínio público passou de sete anos, em 1908, para os atuais 50 anos após a morte do autor.

As limitações e exceções ao direito do autor foram gradativamente eliminadas ou restringidas. Esse movimento encontrou eco no Brasil. A nova lei brasileira, aprovada em 1998, elevou o prazo de proteção das obras artísticas de 50 para 70 anos após a morte do autor. Além disso, jogou para a ilegalidade a cópia privada sem intuito de lucro, permitida em diversos países da Europa e nos EUA, limitando-a, mesmo quando sem fins lucrativos, somente a pequenos trechos. Nossa lei tornou-se uma das mais rígidas do mundo, indo além do que estipulam todos os acordos internacionais assinados pelo Brasil.

A lei de direitos autorais é extremamente restritiva e precisa de reformas. E são inadmissíveis propostas que venham restringir ainda mais o acesso, como essa da instalação do sistema anticópia no televisor de cada cidadão, sob o argumento de que, sem isso, a TV digital seria inviável.

Não é o que nos mostra o exemplo dos EUA, onde o sistema não foi adotado. Lá são transmitidos todos os tipos de conteúdo, inclusive os de alto valor, como os Jogos Olímpicos e outras competições esportivas.

Naquele país, a adoção de mecanismo semelhante foi duramente combatida, inclusive judicialmente, por organizações de interesse público e de consumidores, incluindo-se aí a Consumers Union, que conta com mais de 7 milhões de associados.

Por fim, estudos como o da Universidade de Princeton (EUA) apontam que quem faz da pirataria profissão facilmente violará o sistema anticópia. E o público, em geral, perderá direitos consagrados na lei em nome do combate ineficaz à pirataria.

Por essas razões, o Idec reprova a implantação do sistema anticópia na TV digital brasileira. E espera que o presidente Lula tenha a sensibilidade de estabelecer no Brasil a mesma situação estabelecida nos EUA: rejeite o sistema de bloqueio da TV digital, afirmando o interesse público e o dos consumidores do país, preservando os já reduzidos direitos existentes na lei autoral.

* MARILENA LAZZARINI , 59, é coordenadora-executiva do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e presidente da Consumers International. LUIZ FERNANDO MARREY MONCAU , 25, é advogado do Idec.

Concessões no Espírito Santo: a barbárie que não passa nos rádios e TVs capixabas

No dia 05 de outubro venceram as concessões públicas de diversas emissoras de televisão do país. Esta foi a data escolhida para o lançamento da Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV, que aconteceu em 16 capitais brasileiras. No Espírito Santo, um ato em frente à TV Gazeta de Linhares, que está na lista das centenas de emissoras com a concessão vencida, foi um marco na relação entre a sociedade capixaba e as empresas de comunicação do Estado.

Para obter o direito de transmitir sinais de TV e rádio é preciso que um grupo empresarial receba uma concessão pública. Cabe portanto ao Estado conceder, por um determinado tempo, o direito de utilização de um bem que é público, ou seja, pertencente ao conjunto dos cidadãos deste país. Contraditoriamente, essa informação não é de conhecimento geral da população brasileira. Qual emissora de TV ou de rádio tem como hábito transmitir essa informação à população? Esta omissão deliberada ajuda a construir a imagem de que não cabe ao Estado e a sociedade construirem um processo de avaliação da programação das concessões públicas de rádio e TV e de se posicionarem quando do momento de sua renovação.

As concessões comerciais de rádio têm duração de 10 anos, enquanto na TV o prazo é de 15 anos. Após este período as concessões podem ou não ser renovadas. Infelizmente, historicamente o processo de renovação destas concessões é automático e sem qualquer debate público e fiscalização por parte do Estado e da sociedade. Sabe-se que jamais na história deste país uma concessão pública de rádio e TV não foi renovada. E pior, centenas de emissoras de rádio e TV estão com suas concessões vencidas há anos. No Espírito Santo o quadro, sem qualquer visibilidade pública, é de total descontrole.

Das 14 concessões de TV em funcionamento no Estado, três (21,4%) estão vencidas: TV Gazeta (2005), TV Gazeta Linhares (maio de 2007), e TVE (1991). Entre as emissoras de rádio FM, das 54 outorgadas existem 24 vencidas (44,4%). Já entre as 23 rádios AM existem 16 vencidas (69,5%). Através das chamadas "autorizações precárias" estas emissoras continuam a operar normalmente. Em muitos casos o processo de renovação pode ter duração de até sete anos. Ou seja, ao longo deste período, que legalmente deveria ser de poucos meses, a emissora continua operando com uma concessão pública vencida e nada acontece. 

Nunca houve um processo amplo, transparente e democrático de debate na sociedade sobre o papel desempenhado por uma emissora ao longo do tempo em que esta deteve a concessão pública. Audiências públicas para que o cidadão possa emitir sua opinião sobre a programação não são realizadas. As emissoras comerciais não promovem programas que tratem deste assunto. As mesmas emissoras não realizam ao longo dos anos seminários para que a sociedade possa constantemente avaliá-las. Como no Brasil, diferentemente de outros países, um mesmo grupo comercial pode controlar TV's, rádios, jornais e Internet, há um silêncio autoritário sobre o tema.

É importante destacar que a Constituição Brasileira estabelece que as emissoras de TV e rádio atenderão aos seguintes princípios: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Quem liga a TV e o rádio no Brasil percebe que muitas vezes estes princípios não são cumpridos por conta de interesses comerciais.

Inúmeras outras irregularidades acontecem em detrimento do interesse público. A Constituição estabelece que nenhum parlamentar pode ter relação direta com qualquer empresa concessionária pública. Entretanto, um em cada três senadores é concessionário de rádio e TV. Na Câmara dos Deputados 15% dos parlamentares são radiodifusores. Na Assembléia Legislativa do Espírito Santo existem pelo menos três deputados (10%) que mantêm relação com emissoras de rádio: Guerino Zanon (PMDB), Luciano Pereira (PSB) e Giuliano dos Anjos (DEM). Esta relação histórica entre as emissoras de rádio e TV e parlamentares contribui decisivamente para a falta de transparência e fiscalização no setor além de possibilitar a utilização de concessões públicas para fins políticos partidários.

No que diz respeito às rádios comunitárias capixabas esta relação é muito semelhante. Um estudo realizado pelos pesquisadores Venício Lima e Cristiano Lopes apontou que entre as 35 autorizações concedidas pelo Ministro das Comunicações entre 1999 e 2004, 22 (63%) mantêm vínculo com políticos e duas (6%) com entidades religiosas. Um caso de conhecimento público na capital capixaba é a presença do vereador licenciado José Carlos Lyrio Rocha (PSDB) no controle da Rádio Comunitária da Praia do Canto.

Foram essas e outras irregularidades no processo de autorização, renovação e utilização das concessões públicas de rádio e TV que motivaram o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) a protocolarem no Ministério das Comunicações, no último dia 05, um pedido de informação sobre as centenas de concessões públicas vencidas em todo país, incluindo as emissoras capixabas. Outras ações judiciais serão utilizadas para que a barbárie no setor não permaneça.

Silêncio na mídia capixaba. No último dia 05, cerca de 300 pessoas da Via Campesina e da Rede Alerta contra o Deserto Verde realizaram em frente à TV Gazeta em Linhares um júri popular durante o qual a emissora foi acusada de criminalizar os movimentos sociais, principalmente as comunidades indígenas de Aracruz e as comunidades quilombolas do Sapê do Norte que lutam pela retomada de suas terras. Pela decisão popular do júri, a Rede Globo e a Rede Gazeta foram condenadas a não terem suas concessões renovadas.

A Campanha Nacional por Democracia e Transparência nas Concessões Públicas de Rádio e TV reivindica ainda a convocação de uma Conferência Nacional de Comunicação ampla e democrática para a construção de políticas públicas e de um novo marco regulatório para as comunicações ( www.proconferencia.com.br). Outra exigência é a instalação de comissões de acompanhamento da programação das concessionárias, com participação efetiva da sociedade civil, para avaliação e elaboração de pareceres que subsidiem a renovação ou não das concessões.

Nos últimos meses os mais diversos setores e grupos sociais vêm construindo um processo contínuo e muito bem qualificado de questionamento ao oligopólio da comunicação no país. Pesquisas apontam a perda de credibilidade e audiência das grandes redes de comunicação. A crítica à mídia está na ordem do dia para aqueles e aquelas que não vêem o pluralismo presente na sociedade brasileira representado nos meios, e para os que compreendem que para uma efetiva transformação da realidade social, política e econômica brasileira é preciso que haja uma profunda democratização da comunicação neste país.

No Espírito Santo, os desafios são os mesmos. Por isso precisamos do envolvimento de todos e todas neste processo para que possamos romper o silêncio e construirmos juntos mecanismos de avaliação e acompanhamento das concessões públicas de Rádio e TV do Estado. 

*Flávio Gonçalves é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

TV Pública, um olhar dos brasileiros?

“Quem é dono da flauta dá o tom.” A TV Pública começa a nascer sob um tom menor, pois o Poder Executivo, o dono da flauta, dá todas as pistas de que a emissora, planejada para ser a voz plural da brasilidade, terá um forte viés estatal. Não se justifica a adoção de uma medida provisória para implantar a rede TV Brasil. Onde estão os critérios de relevância e urgência inerentes a esse instrumento excepcional? O presidente da República indicará os membros do Conselho Curador da nova cadeia, com suporte na estrutura da Radiobrás, que tem selo chapa-branca e possui o maior complexo de transmissores e antenas de radiodifusão em ondas médias e curtas da América Latina. Os executivos que definirão a melodia também são escolhidos pelo ministro da Comunicação Social. Sob esta concepção de organização e mando, forja-se o aparato para vitaminar a comunicação governamental, mesmo que se perceba o esforço dos gestores do sistema em dizer que o Poder Executivo não influenciará a programação. Um ente gerado com o sangue do doador tende a replicar seu DNA.

Em se tratando do atual governo, há razões para acreditar que a marca do lulismo permeará a condução da TV Pública, indicando pautas, induzindo atitudes, marcando posições. Remanesce a lembrança de sua recente tentativa de impor amarras aos sistemas de comunicação e cultura. Ademais, o presidente, escudado na aura do carisma e na confiança que ainda desperta, principalmente na base da pirâmide social, não parece inclinado a flexibilizar posições e a ponderar sobre escolhas e rumos. Ao dizer que o novo órgão pretende manter os diversos “sotaques” do País e reforçar o debate, Lula olha mais para si do que para outros, porque sabe que, na Babel nacional, o “sotaque” que reverbera é o dele.

Na História da humanidade são raros os casos de governantes que construíram impérios sem amparo na força da comunicação. Da antiguidade ao século 15, os mandatários usavam o gogó e os gestos. Na passagem do Estado-cidade para o Estado-nação, a expressão ganhou mais fôlego, saindo da galáxia de Gutenberg – livro e imprensa – para a de Marconi, a era do rádio. Foi este canal de comunicação, primeira experiência da implosão eletrônica, que garantiu a Hitler estreito contato com as massas. A personalização do poder avançou nas ondas do rádio. Na seqüência, chegou a vez da televisão, que funciona, hoje, como palco central da telepolítica. Aí, os atores se esmeram na maximização da performance. Kennedy costumava dizer que a TV era a sua melhor arma, pois “o eleitor reage à imagem, e não ao homem”. Voltemos aos nossos tumultuados trópicos. Lula atira com todas as armas, mas o gogó é a principal. Freqüenta a galáxia de Marconi nas segundas-feiras, ao dar recado às margens sociais, abusando da “telecracia” ao perorar para platéias sob os holofotes da televisão. Aliás, a TV comercial é que promove os maiores comícios eletrônicos do País. São 21 emissoras abertas, convocadas para fazer chegar a 1.561 retransmissores, 2.911 municípios e 40 milhões de lares que contam com aparelhos de TV os gargarejos das nossas autoridades. Este ano, 12 integrantes do primeiro escalão governamental usaram a telinha comercial para a cerimônia de autoglorificação. Vale lembrar que a administração federal já dispõe da Rede Governo, exclusiva para enaltecer seus feitos.

A nova proposta televisiva cairá como uma luva na forma lulista de governar. Sob o conceito de que será o “olhar dos brasileiros”, expresso pelo futuro presidente do Conselho Curador, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, defenderá um ideário plural: valores éticos e sociais da família, regionalização da produção cultural, artística e jornalística e estímulo à produção independente. Estará imune às pressões do Executivo? Não. Os gestores nomeados pelo governo terão coragem de criticá-lo? O mais destacado exemplo mundial de TV pública, a BBC não escapa das pressões do governo inglês. Mas resiste com bravura. Lá, quem dá o tom são os contribuintes, que garantem à rede uma receita anual de 2,5 bilhões de libras, equivalentes a R$ 12 bilhões. A fragilidade do modelo brasileiro de TV Pública começa na origem dos recursos. Os “donos do poder” se acham no direito de, ao conceder as verbas, declinar os verbos. A programação focada na promoção da cidadania passará pelos palácios, razão pela qual a independência e a autonomia só serão viáveis sob ordenamento jurídico adequado, participação efetiva da sociedade no processo decisório, definição de custeio e conteúdo.

É utopia imaginar que a TV Pública brasileira estará imune às pressões do governo. Não por acaso, dedica-se intenso esforço para estatizar meios e recursos voltados para a meta de desenvolvimento de um projeto de poder de longa duração. Essa modelagem se assenta em alguns eixos, a saber: consolidação da estabilidade econômica, reforço à política social-distributivista de renda, ampliação do tamanho do Estado, partidarização da administração e fortalecimento dos movimentos sociais. A comunicação pública é o fecho do circuito. Ainda mais quando se tem no comando do País um comunicador por excelência. Lula já se comparou a Getúlio e Juscelino. No quesito comunicação, porém, seu modelo está mais para Napoleão, que adorava ver-se como Narciso. Bonaparte recorria à imprensa para embelezar o perfil. Lula parece sonhar com a mesma idéia.

* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político