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DocTV, modelo de financiamento público

O FINANCIAMENTO da produção cultural no Brasil se faz por meio de verbas orçamentárias, de patrocínios de empresas estatais e das leis de incentivo fiscal. Muito pouco é destinado ao consumo dos bens culturais, e as leis de incentivo fiscal apresentam deficiências conhecidas, mas até hoje não corrigidas.

As verbas públicas se destinam principalmente ao funcionamento do MinC, sua estrutura e seus projetos. O bom uso dessas verbas depende das virtudes do titular.

Nesse contexto, contemplando e aperfeiçoando as expectativas, surgiu o DocTV, com o objetivo de promover a produção e a regionalização de documentários, articular um circuito de divulgação de caráter nacional e criar ambientes de mercado para o documentário brasileiro. Também visava incentivar a produção independente e usar, para sua realização, os préstimos e a experiência do MinC, da TV Cultura, das emissoras associadas à Abepec, com apoio da Associação Brasileira de Documentaristas.

Disponibilizar um fundo público de recursos para um projeto descentralizado, conseguir a parceria das geradoras públicas de televisão, tanto numa parcela de 20% quanto no encaminhamento das concorrências de roteiros e projetos, encarregar a TV Cultura de São Paulo, que não pertence à estrutura federal, da administração do projeto, selecionar os candidatos e colaborar intelectual e tecnicamente para o bom desempenho da tarefa pode parecer um milagre no Brasil. Mas o milagre se realizou.

E tanto que já tivemos três séries de DocTVs nacionais, a partir de 2.380 projetos de documentários em 74 concursos estaduais, que produziram 114 documentários e 3.026 horas de programação. Tudo isso divulgado semanalmente, por 35 semanas consecutivas, em 26 Estados e no Distrito Federal, aos domingos.

Importante foi constatar a melhoria de qualidade nos documentários em cada etapa. Isso devido ao fato de que foram realizados 44 seminários com autores e produtores, com a participação de cineastas e documentaristas da qualidade de Geraldo Sarno, Eduardo Coutinho, Eduardo Escorel, Maurice Capovilla, Giba Assis Brasil, Jorge Bodanski, Jean-Claude Bernadet, Ruy Guerra e ainda outros. Nenhuma faculdade de comunicação no país reuniu tal elenco de professores em cursos de cinema e TV.

O projeto proporcionou ainda, com a participação de empresas privadas, um aumento de 14 projetos estaduais, além dos 35 financiados pelo MinC. Completa o projeto a venda "on demand" via internet e a distribuição em "home video".

O DocTV logo chamou a atenção de parceiros latino-americanos, até agora distanciados. Hoje, a tendência de distanciamento entre as nações da América Latina começa a se inverter: os latinos iniciam o exercício do olhar recíproco. Sintoma disso é a receptividade dada ao projeto brasileiro de criar um DocTV ibero-americano.

O escritor Gabriel García Márquez conheceu o projeto DocTV no 26º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano. Manifestou-se com entusiasmo: "Agora estamos ante uma nova versão ibero-americana que propõe levar ao nível da região a produção de documentários e criar um circuito ibero-americano de teledifusão a partir das redes de TVs públicas nacionais. Esse programa se propõe materializar um sonho de gerações: o da integração por meio do audiovisual, atualizado agora pela ambição de fixar como horizonte utópico a articulação de mercados nacionais para o documentário". Cada país, por intermédio de suas televisões públicas, coordena a produção independente de documentários com identidade regional, que são divulgados simultaneamente por todas as emissoras públicas nos países que aderiram ao projeto.

Treze países, 13 TVs, 13 documentários. Dezenas de criadores e produtores. Paisagens, razões, sentimentos, desejos, memórias, lendas, histórias e objetos distantes, mas aproximados pela busca da própria identidade.

Da vingança chilena ao canto da ressurreição colombiana; dos títeres ("hítleres") do Uruguai aos homens de Marañon no Peru; do fotógrafo mexicano ao amigo que escapou do Iraque; do louco Simon Rodriguez ao canal lendário do Panamá; da paixão pelos carros, em Porto Rico, ao abandono do mar pelos pescadores cubanos; da folha de coca boliviana até nós, chegamos ao "Jesus Maravilha".

"Jesus", o filme brasileiro que iniciou a exibição dos 13 documentários produzidos pelo DocTV ibero-americano, conta a história de três policiais e um palhaço. Traço comum: a nostalgia. Nos policiais, a nostalgia é do passado, quando, com eficiência, tratavam os delinqüentes com a "merecida", no dizer deles, violência. No palhaço, a nostalgia é do futuro, onde se antevê diante da TV, sonho que nem o parque e as crianças compensam.

* Jorge da Cunha Lima, 75, jornalista e escritor, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.

Imprensa: jornalistas precisam de formação continuada

(Quarto e último artigo de uma série de quatro, sob o título geral "A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias")

Persiste em parte das redações, ainda, a tristonha presunção de que o jornalismo se faz e se aprende "na prática": se o sujeito leu uns livros bons, tem vocabulário acima do comum, é curioso e esperto, vai brilhar. Assim é que esse ofício se firmou e se reproduz, com base na ilusão de auto-suficiência. Talvez ela bastasse até meados dos anos 1970, mas hoje é apenas vã. O jornalismo, como as demais atividades, impõe a seus praticantes que estudem.

É verdade que temos jornalistas notáveis que nunca foram à universidade, assim como, no passado, também tivemos bons dentistas que não tinham diploma. Ainda hoje, aliás, há parteiras no interior que, sem ter passado pela faculdade, trazem crianças ao mundo. Não se pode mais pretender, porém, que a imprensa atinja bons níveis sem ter pontes com a pesquisa e com a capacitação aprofundada. Estudar com método, se já não era no passado, é no presente parte integrante da responsabilidade social do jornalista.

Mesmo os autodidatas estudam. Estudar é indispensável e, para estudar, com todo o respeito aos autodidatas, é bom ir à escola. Assim agem arquitetos, cirurgiões, advogados. Até mesmo as parteiras acordam para a utilidade de umas boas aulas. Assim começam a agir os jornalistas que mais se destacam. Não se espera deles que sejam cientistas, professores de educação física – um dos piores cacoetes das redações é justamente o de estimular o repórter a bancar o sábio em lugar dos sábios a quem lhe cabe entrevistar –, mas deles se espera que sejam bons jornalistas. Sem estudar, isso não é mais possível.

Além da área que pretende cobrir, o jornalista deve se dedicar ao conhecimento da natureza da comunicação, essa indústria que se avolumou exponencialmente de três décadas para cá. É preciso que ele investigue como se precipitam os modelos de formação de sentido e de significado, como o sujeito desenvolve convicções, o advento do inconsciente na comunicação, entre outros temas.

Um profissional da comunicação precisa estudar para compreender o seu público e ser mais útil a ele. Quem pensa que a prática é o critério da verdade, para lembrar a velha frase feita, está, na sua jornada de trabalho, apenas cumprindo ditames de uma teoria cujo autor desconhece e cujas leis não é capaz de divisar.

Finalmente, para cobrir cidadania e movimentos sociais, é preciso cobrir políticas públicas e, para cobrir políticas públicas, há que se estudar o que vêm a ser essa categoria e suas vinculações de método com os próprios movimentos sociais.

Acompanhar os processos

Vigiar o poder implica um olhar atento, em perspectiva, sobre as políticas públicas – compreendidas no âmbito da administração do Estado como ação, coordenação, processo e programa com vistas a um resultado. Mais do que cobrir acontecimentos chamativos e vistosos, é necessário identificar a direção das linhas evolutivas na seqüência de decisões tomadas pelo poder público. Cada vez mais, a sociedade impõe ao profissional de imprensa que, em lugar de jogar holofotes para um evento isolado, saiba apresentar o fato num encadeamento espacial e temporal cujos limites se alargam desafiadoramente.

Mais que antes, o contexto define o grau de importância da notícia – e destacar os contextos do turbilhão de eventos requer rapidez, profundidade e acuidade dos profissionais, o que se obtém com estudo. Não há outro jeito. As fórmulas prontas já não resolvem as equações. Elas se esboroam sem que seus praticantes percebam – mas o público desconfia.

A este respeito, tive a chance de participar de uma tentativa modesta que talvez interesse ao leitor deste artigo. Entre 2003 e 2007, trabalhei na Radiobrás e, ali, desenvolvi, ao lado de outros profissionais, mecanismos que permitiram às redações – em particular à redação da Agência Brasil, o site jornalístico da empresa – acompanhar a evolução das políticas públicas. O que conto aqui não pretende ser uma receita, mas uma contribuição prática entre outras.

No início da jornada de quatro anos, adotamos parâmetros de cobertura que ajudavam a redação a localizar os processos em curso, indo além da rotina de expor os fatos a granel. Entre esses parâmetros estava a definição do campo de cobertura da Agência Brasil: o triângulo imaginário, cujos vértices seriam Estado, governo e cidadania. Aí dentro cabiam os atos dos governantes, as políticas públicas e os movimentos sociais e a sociedade civil organizada.

Para evitar a captura do enfoque tanto pelas alças do governo como pelas pressões próprias de ONGs, a redação se impôs o dever de cobrir sistematicamente a evolução das políticas públicas segundo o efeito direto que elas tivessem na vida material das pessoas. Uma solenidade, mesmo que superlotada de autoridades, não seria notícia obrigatoriamente. O acesso de uma comunidade a um novo sistema de educação, implantado e em funcionamento, este sim importava na pauta. Uma reivindicação de uma ONG ou de uma central sindical poderia entrar na pauta, mas os seus efeitos sobre a administração pública e o que ela acarretaria em matéria de políticas públicas seriam ainda mais valorizados no noticiário. [Quem quiser conhecer um pouco mais os parâmetros jornalísticos adotados pela empresa poderá obter boas informações em NUCCI, Celso (org.). Manual de Jornalismo da Radiobrás – produzindo informação objetiva numa empresa pública de Comunicação. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006.]

Revelar os contextos

O projeto editorial da Agência Brasil e da Radiobrás gerou um ponto de observação independente, comprometido apenas com os direitos do cidadão genérico, que não era nem assalariado dos ministérios nem militante de ONG ou de movimento de massa. A despeito da tradição governista e subserviente que pesava sobre a estatal, criou-se um ambiente de maior liberdade. Também nesse caso, o cultivo dos cânones do jornalismo conduziu à busca da liberdade.

Para levar adiante a cobertura pretendida, as editorias antigas da Agência foram reformuladas. Até então decalcadas de uma redação convencional – eram editorias que se distribuíam em retrancas como "internacional", "política", "economia", "cultura", "esportes" ou "ciência" –, elas se reorganizaram segundo as áreas a cobrir. Editorias como "esportes", "cultura" ou "ciência" deixaram de existir, mas reportagens sobre esportes, cultura ou ciência não deixaram de ser feitas – apenas mudaram de enfoque: em lugar de ser noticiadas como espetáculos, entravam na pauta quando dissessem respeito diretamente ao atendimento de direitos, com foco no cidadão. Um show, por exemplo, não seria mais notícia. A abertura de uma escola pública de música, esta sim.

Graças às novas lentes, formou-se na redação da Agência Brasil, e, também, em outras redações da Radiobrás, o costume de manter um acompanhamento de médio e longo prazo dos fatos relacionados aos direitos da cidadania. Daí nasciam os elementos da pauta diária. A redação da Agência conseguiu, então, iniciar – apenas iniciar, pois este aprendizado leva tempo – o monitoramento sistemático das políticas públicas, originadas do governo ou dos movimentos, pois uma política pública pode germinar de dentro do Estado ou de uma demanda que se estrutura a partir da sociedade.

A produção da Agência Brasil – pelo menos de fins de 2003 a meados de 2007 – é uma demonstração viva das múltiplas dimensões da cobertura das políticas públicas. A Agência não abriu mão do dever de publicar notícias em primeira mão; o fato de acalentar o ideal de revelar os processos sociais e políticos em curso não a eximiu do dever de dar as notícias antes das demais agências, com agilidade e qualidade. Não se tolerou, ali, que os fatos fossem desprezados pelo jornalista sob a desculpa de que seu negócio, agora, era noticiar processos e não meramente fatos. Ao contrário, o desafio era dar as notícias antes, enriquecidas por descrições mais aprofundadas dos respectivos contextos. Com o tempo, o olhar atento às políticas públicas aparelhou a redação para enxergar algumas notícias antes dos demais, em várias oportunidades. [As coberturas especiais realizadas pela Agência Brasil entre 2003 e o primeiro semestre de 2007 podem ser consultadas em www.agenciabrasil.gov.br]

O interesse público

Durante a campanha eleitoral de 2006, por exemplo, a Radiobrás realizou, não apenas na Agência Brasil, mas também em seus veículos de rádio e televisão, uma cobertura que se distanciou do imediatismo e alcançou grande repercussão em diversos veículos públicos e comerciais, dada a sua utilidade para o eleitor. Em primeira mão, a empresa noticiou a lista de candidatos às eleições que tinham contas não aprovadas ou processos em aberto no TCU (Tribunal de Contas da União), detalhando quais eram as razões desses processos. Só uma equipe que compreendesse a natureza das informações armazenadas no TCU e a relevância delas para a formação da opinião do cidadão poderia levar aquela pauta adiante. Foi uma investigação exaustiva. A seqüência de reportagens rendeu notícias quentes a partir do que aparentemente era mera rotina no TCU.

Esse período na Radiobrás reforçou em mim, de modo definitivo, convicções de fundo que, em parte, foram expostas ao longo deste artigo. Do ponto de vista da lida com a notícia, muitos dos que participamos dessa temporada na Radiobrás aprofundamos a certeza de que o jornalismo não tem mais a prerrogativa de se contentar em reagir a estímulos externos: a um press release, à provocação verbal de uma autoridade, aos eventos espetaculares, à curiosidade caprichosa e volúvel da platéia. Ele precisa encontrar a notícia de interesse público onde não há a aparência ou promessa de espetáculo – o TCU, por exemplo, que não tem poder de cassar mandatos nem de mandar prender ninguém, mas que reúne uma imensidão de relatórios técnicos que, se bem lidos, lançam luz sobre o caráter da trajetória de um político.

Uma conclusão apressada

A democracia ainda depende do jornalismo – e este, agora, depende de identificar e cultivar o que lhe é essencial. Experimentamos uma abundância sem precedentes de referências e de discursos fervilhando nos espaços públicos. Cifras, declarações, afirmações, gráficos, rezas, fotos, desenhos, vídeos, documentários, tabelas, infográficos, mapas – uma infinidade de textos, sons e imagens, em profusão vulcânica, vinda de todas as partes, abarrota os olhos, os ouvidos e, eventualmente, a paciência de todo mundo. ONGs, autarquias, bancos, empresas, governos, fábricas de automóveis, escolas, agências espaciais, igrejas, seitas e furgões que vendem pamonha produzem seus próprios sites, seus auto-falantes, seus filmes e suas emissoras de rádio e de televisão. Ruidosamente, forjam nexos diretos e íntimos com qualquer tipo de público, com qualquer parte física ou imaterial do sujeito.

No meio da tempestade de conteúdos cujas intenções se embaralham e se dissimulam, uma pergunta inquieta o cidadão: "Em quem eu posso confiar?". Cada vez mais, quando se trata de informação e de diálogo sobre temas de interesse público, o olhar desengajado e o relato objetivo adquirem valor. O jornalismo adquire valor. Credibilidade, independência, foco no cidadão e compromisso com expandir progressivamente o universo daqueles que têm acesso à informação: nisso se resume a sua responsabilidade social. É desse modo que ele contribui para a democracia inclusiva e para o desenvolvimento humano. 

Juventude e televisão: quando a inteligência está na cauda

De Cannes (França).

A maior feira de conteúdo audiovisual do mundo, o Mipcom, ocorreu em Cannes de 8 a 11 deste outubro. Estavam lá 13 mil pessoas, inclusive cerca de 60 brasileiros, entre os quais donos e principais executivos de todas as grandes redes de televisão do país.

O Mipcom é a principal ratificação universal do lixo em que se transformou a maior parte da produção televisiva em todo o mundo, seja aberta ou fechada. Mas é também a chance para que alguns dos seus maiores desafios sejam expostos de maneira clara. A forma como isso aconteceu, neste ano, foi um seminário que tratou do desenvolvimento de algumas tecnologias, mas principalmente sobre o comportamento dos jovens em relação a elas.

Os números são impressionantes, ainda que previsíveis. Na Europa e nos EUA, os adolescentes de até 17 anos já trocaram a televisão pelas muitas mídias que surgiram depois que eles nasceram. São os chamados digital natives, as meninas e os meninos que nasceram na época digital. Para eles, mobilidade e conectividade não são conquistas tecnológicas recentes: são parte natural do mundo, como os automóveis ou a Coca-Cola. Também para estes jovens, o peer, construção do conteúdo pelo usuário, tem uma ética mais forte do que os meios que emanam da radiodifusão. Cerca de 32% dessa turma confia plenamente no que está sendo postado por outra pessoa, individualmente – tanto em blogs quanto em sites de compartilhamento. Sejam indicações culturais, informações objetivas ou relatos de experiências. A confiança no que está sendo dito pela mídia é bem menor.

Uma dramaturgia primária

Um reflexo disso está na doença terminal que acomete a idéia do "sucesso", tal como o conhecemos hoje. Nos EUA, em 1970, havia 180 programas de televisão que atingiam mais de 10 milhões de espectadores; hoje, esses programas não passam de 14. O "sucesso" tornou-se mais associado ao alcance global.

O mundo do conteúdo televisivo dividiu-se em três partes, análogas a um animal estranho: a "cabeça", onde estão os programas das principais redes de televisão; a fat belly, barriga gorda, onde estão as emissoras menores porém massivas, como as principais redes de TV por assinatura; e a long tail, cauda longa, que é estreita e infinita e que abriga todo o demais conteúdo.

O que está derrubando o interesse dos jovens pela televisão é que a inteligência do meio não está na cabeça, mas na cauda. O cérebro dos grandes produtores e exibidores está produzindo variações pioradas do que é feito há 50 anos. Essas pérolas podem ter sido mostradas com o luxo habitual em Cannes, mas para os jovens tudo isso parece saído de outro planeta.

O cardápio da televisão é elaborado por empresários corporativos, que demoraram bastante para entender a mudança da lógica dos seus modelos de negócio, no que diz respeito ao conteúdo. Acreditam que esse modelo se baseia na difusão ampla do que chamam de "produtos". Que cardápio televisivo são capazes de criar? Infinitos game-shows que mudam apenas os seus cenários, necessariamente kitsch; reality-shows às centenas, que se clonam sem parar; comédias estúpidas que só parecem divertir quem já foi devidamente descerebrado pela própria TV; novelas e séries que definitivamente só podem ser feitos para sugerir que a televisão é o espaço natural para a construção de uma dramaturgia constrangedoramente primária.

Um exemplo da miopia

Não é de estranhar que os mais novos tenham desligado a televisão e se conectado a um mundo mais real. O planeta Terra, pelo menos, tornou-se móvel e portátil, portanto individualizado. Tal coisa só não foi percebida dentro das emissoras de televisão. O surgimento das novas plataformas não foi entendido como o sinal para a construção de novos conteúdos, mas como uma oportunidade para a diversificação dos meios de distribuição do conteúdo que já vinha sendo produzido. O principal executivo da Joost, Mike Volpi, reconheceu ser refém desse processo e disse acreditar levar dois anos para mudar a relação. Até o Joost acha que só chega à cauda longa se passar pela cabeça que não pensa.

Isso revela uma notável falta de sensibilidade, mas sobretudo uma postura autofágica. Em primeiro lugar porque novos meios precisam de novos conteúdos e vão estar irremediavelmente exigindo isso. Depois, porque há uma geração que se acostumou a ser tratada como gente pela mídia onde estão os seus iguais, como qualquer rede de conteúdo gerado pelo usuário. Um bom exemplo dessa miopia está na mostra de conteúdos para celular que também aconteceu durante o Mipcom. Este ano, ela contou com a presença de megaprodutores de conteúdo televisivo, como a Endemol e a BBC. O conteúdo tornou-se caro e reproduz cada vez mais o que é produzido para a TV. Não é difícil prever quem vai perder esse jogo.

Ser respeitado, para respeitar

Os digital natives escrevem muito e falam pouco. Mais de 53% da sua comunicação é textual. Quando eles falam, não o estão fazendo como os seus pais – e nem mesmo seus irmãos mais velhos – o faziam. Em 2000, 75% das mensagens de voz eram passadas através de telefones fixos. Hoje essa margem está em 26%, e caindo.

Ainda que por meios inesperados, desde 1968 nenhuma geração foi tão crítica em relação à mídia que se desenvolve em torno dela. A televisão – pelo menos a televisão tal como a conhecemos hoje – perdeu toda essa gente e não vai recuperá-la. Nada poderia ter sido melhor para a própria TV. Dentro de dez anos, não mais do que isso, os estudantes estarão rindo da televisão de hoje, como às vezes costumamos rir de velhos anúncios que nos soam primários.

A televisão falsa, massificada, fundamentada na crença de que audiência é gado, será matéria de estudo pouco honroso para o meio que hoje tem a certeza que a fórmula do sucesso é nivelar tudo por baixo e reduzir ao mínimo o nível de exigência de quem está pagando a sua conta.

Os responsáveis por isso serão os jovens que têm hoje, na mídia que consomem, uma interlocução horizontal. Dezenas de milhares de produtores e radiodifusores mostraram com estardalhaço, na grande feira de televisão deste ano, que a televisão que eles estão pensando já foi para outro lugar. A garotada pode não saber escrever muito bem, mas acaba de sinalizar que, para poder respeitar, tem que ser respeitada.

Um novo modelo do princípio de complementaridade na radiodifusão

O princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão (privado, público e estatal), contido no art. 223 da Constituição, exige um novo modelo de disciplina dos serviços de televisão para além do paradigma clássico, voltado unicamente para o serviço público de televisão por radiodifusão, associado à reserva da atividade em favor do Estado.

O novo modelo, que ora se defende, considera que os serviços de televisão devem ser classificados como: (i) serviço público privativo do Estado (sistema de radiodifusão estatal), (ii) serviço público não privativo (sistema de radiodifusão público) e (iii) atividade econômica em sentido estrito (sistema de radiodifusão privado).

A Constituição impõe a complementaridade entre os setores de televisão por radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica harmonia e colaboração entre as estruturas de comunicação social. Em outras palavras, garante-se o equilíbrio apropriado entre os campos de comunicação social com funções diferenciadas, porém, complementares, considerando as diferenças de fundamentos e evitando-se, assim, distorções arbitrárias no processo de comunicação social.

Correção de oportunidades

Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos audiovisuais para a sociedade brasileira. Vale dizer, a interpretação da referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo audiovisual diverso). Assim deve ser porque tal norma tem por função a oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privado, público e estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para cumprir tal tarefa, que logo a seguir serão expostos.

A organização dos sistemas de televisão por radiodifusão há de ser feita pelo Estado, no exercício de sua função regulatória (art. 174), conforme os objetivos da regulação. Há, aqui, uma forte conexão entre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão e o conceito de regulação. A idéia de complementaridade representa a negação de uma relação de hierarquia entre os sistemas de radiodifusão; e, por conseqüência, requer a funcionalidade integrada dentro do sistema de comunicação social.

O princípio da complementaridade exige, ainda, a fixação de critérios de facilitação do acesso prioritário às freqüências do espaço eletromagnético pelo setor público e pelo setor estatal. Isto porque, em face da hegemonia da radiodifusão privada em nosso país, há o dever de que as freqüências disponíveis para uso de canais de televisão sejam, preferencialmente, outorgadas aos setores estatal e público (aqueles responsáveis pela prestação de serviços públicos privativos e não privativos do Estado), pois em relação aos mesmos existem maiores exigências em favor dos interesses públicos e das obrigações constitucionais. Trata-se de uma medida de correção das oportunidades comunicativas no interior da comunicação social, sendo que a própria noção de regulação é que ampara tal medida de planejamento administrativo quanto à gestão do espaço radioelétrico, voltada para o equilíbrio entre os sistemas.

Educação e cultura

Enfim, a atribuição prioritária de freqüências justifica-se em razão da prestação do serviço público. Este, é importante destacar, não se limita à correção das falhas estruturais e (ou) conjunturais do sistema de radiodifusão privado (mercado de televisão). A sua função consiste em atuar mesmo quando o sistema comercial, hipoteticamente, funciona bem. Vale dizer, a existência do regime de serviço público de televisão não está atrelada às falhas do mercado (um paradigma liberal); ao contrário, sua causa originária encontra-se em razões que o transcendem, alcançando bens não-econômicos que necessitam de difusão perante o público em geral, daí a exigência do desempenho da função estatal de distribuição dos bens, por exemplo, culturais.

Os serviços públicos consistem em importante mecanismo de garantia dos direitos fundamentais. Alerte-se, contudo, que não se trata do único meio de satisfação dos mesmos. Nesse sentido, o serviço público de televisão é uma das formas de realização dos direitos à liberdade de expressão, liberdade artística, informação (inclusive informação jornalística), culturais, à educação e à comunicação social, entre outros.

No sistema de radiodifusão estatal, há maior espaço para a realização do direito dos cidadãos à informação de caráter institucional e, ao mesmo tempo, de cumprimento do dever do Estado em termos de comunicação institucional. Isto implica a possibilidade de criação e manutenção de canais de televisão para atendimento da referida obrigação.

Já o sistema de radiodifusão público possibilita a concretização dos direitos à educação e à cultura por intermédio das televisões educativas e, especialmente no caso das televisões comunitárias, o exercício direto pelos cidadãos das liberdades de expressão e de comunicação social. Em outras palavras, o sistema público é o âmbito, por excelência, para a realização dos direitos sociais relacionados à educação e à cultura.

Pluralidade de fontes de informação

Por sua vez, no sistema privado há maior autonomia privada das emissoras de televisão quanto à execução dos aludidos direitos em função de sua liberdade de radiodifusão e, conseqüentemente, sua liberdade de programação. Os princípios constitucionais catalogados no art. 221 da CF, relacionados à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão, consistem em manifestação especial dos direitos fundamentais à liberdade de expressão artística, à educação, à cultura e à informação jornalística, livre iniciativa e dignidade da pessoa humana, o que será visto mais à frente em item específico.

O eixo de estruturação dos três sistemas de radiodifusão consiste na liberdade de comunicação. Esta manifesta-se, de modo especial, no campo da comunicação social (arts. 220 a 224, da CF), sem, no entanto se confundir com a liberdade de comunicação pessoal ou de âmbito coletivo (art. 5.o, IX, CF). Com efeito, é sintomático que o princípio da complementaridade esteja contemplado no capítulo constitucional dedicado à Comunicação Social. Portanto, em virtude disso, os "sistemas de comunicação de massa" atuam como mecanismos de realização das liberdades comunicativas asseguradas aos cidadãos e à sociedade. Tais liberdades servem tanto à autodeterminação individual quanto à autodeterminação democrática do povo brasileiro. Daí a imprescindibilidade da pluralidade das fontes de informação em um país proclamado como Estado Democrático de Direito em garantia da livre formação da opinião pública.

Concessões de rádio e TV: o que precisa mudar e por que

O recente lançamento, por entidades da sociedade civil, da "Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV", sob o mote "Concessões de rádio e TV: quem manda é você", renova as esperanças de que a cidadania finalmente desperte para uma velha questão de interesse público que historicamente tem sido tratada e decidida por um reduzido grupo de atores em benefício próprio.

O conjunto de reivindicações da campanha, divulgado publicamente e encaminhado às autoridades do governo, é o seguinte:

"(a) ações imediatas contra as irregularidades no uso das concessões, tais como excesso de publicidade, outorgas vencidas e emissoras nas mãos de deputados e senadores;

(b) fim da renovação automática: por critérios transparentes e democráticos para renovação, com base no que estabelece a Constituição;

(c) instalação de uma comissão de acompanhamento das renovações, com participação efetiva da sociedade civil organizada; e

(d) convocação de uma Conferência Nacional de Comunicação ampla e democrática, para a construção de políticas públicas e de um novo marco regulatório para as comunicações."

Razões para o debate

Há razões de sobra para se promover o debate sobre as concessões de rádio e TV no Brasil. Aí vão algumas:

1. Existem normas legais diferentes que regem a TV aberta, as operadoras de TV a cabo, as operadoras de TV por MMDS e por satélite. É inadiável a elaboração de um marco regulatório que uniformize essas regras.

2. As emissoras de rádio e TV aberta são concessões de um serviço público outorgadas pela União – com a participação do Congresso Nacional – por prazo determinado e sob determinadas condições. O prazo de concessão é de 10 anos para emissoras de rádio e de 15 para as de TV. Esse prazo dilatado é um dos fatores que acaba por transformar as concessões, na prática, em propriedade dos concessionários.

3. Ao contrário de outras concessões de serviço público, as regras para a outorga e renovação das concessões de rádio e TV aberta privilegiam os concessionários. A não-renovação de uma concessão precisa ser votada no Congresso Nacional por dois quintos dos seus membros, em votação nominal, e o cancelamento durante a vigência do contrato só pode ocorrer com decisão judicial. Essas condições criam uma assimetria em relação aos demais contratos de prestação de serviços públicos que precisa ser corrigida.

4. Apesar de a Constituição de 1988 definir claramente os princípios que devem orientar a produção e a programação das emissoras de rádio e TV aberta, eles não são utilizados como critério para o cancelamento e/ou a renovação das concessões. Nem é utilizada como critério a determinação constitucional de que os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio. Também não é critério o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Além disso, a norma legal reza que se a concessionária requerer a renovação e não houver decisão dos órgãos competentes no prazo de 120 dias, a renovação é automaticamente deferida.

5. O vínculo histórico de deputados federais e senadores com as concessões de rádio e TV cria uma situação absurda na qual o membro de um dos poderes concedentes (o Congresso Nacional) se confunde com o próprio concessionário. Além disso, a controvérsia legal em torno da legalidade ou não de político no exercício do mandato eletivo ser concessionário de radiodifusão esconde a desigualdade na disputa política entre aquele que usa o rádio e a TV em benefício próprio e aquele que não tem acesso – ou só tem acesso parcial – a esses meios de comunicação.

6. A lei proíbe a duplicidade de outorgas. Como, no entanto, o cadastro dos concessionários do serviço público de rádio e TV não é de acesso público, na maioria das vezes não há como verificar se existe ou não duplicidade. Aliás, não se pode sequer saber quem são os concessionários.

7. Não há fiscalização adequada sobre as transferências (vendas) de concessões de rádio e TV para terceiros.

Boicote da mídia

Essas são apenas algumas das razões que justificam a necessidade e a urgência do debate sobre as concessões de rádio e TV no Brasil.

Há, todavia, um obstáculo formidável a ser vencido na mobilização da opinião pública e promoção desse debate democrático: a instituição que tem e exerce o maior poder de definir a agenda pública de discussão – a própria mídia – não se interessa pelo debate e, mais do que isso, boicota a cobertura jornalística das iniciativas e eventos que tentam promovê-lo, como foi o caso agora do lançamento da "Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV".

A democracia brasileira será a grande vencedora quando o debate sobre as concessões de rádio e TV conseguir romper o bloqueio da grande mídia e alcançar a maioria da população brasileira.