DocTV, modelo de financiamento público

O FINANCIAMENTO da produção cultural no Brasil se faz por meio de verbas orçamentárias, de patrocínios de empresas estatais e das leis de incentivo fiscal. Muito pouco é destinado ao consumo dos bens culturais, e as leis de incentivo fiscal apresentam deficiências conhecidas, mas até hoje não corrigidas.

As verbas públicas se destinam principalmente ao funcionamento do MinC, sua estrutura e seus projetos. O bom uso dessas verbas depende das virtudes do titular.

Nesse contexto, contemplando e aperfeiçoando as expectativas, surgiu o DocTV, com o objetivo de promover a produção e a regionalização de documentários, articular um circuito de divulgação de caráter nacional e criar ambientes de mercado para o documentário brasileiro. Também visava incentivar a produção independente e usar, para sua realização, os préstimos e a experiência do MinC, da TV Cultura, das emissoras associadas à Abepec, com apoio da Associação Brasileira de Documentaristas.

Disponibilizar um fundo público de recursos para um projeto descentralizado, conseguir a parceria das geradoras públicas de televisão, tanto numa parcela de 20% quanto no encaminhamento das concorrências de roteiros e projetos, encarregar a TV Cultura de São Paulo, que não pertence à estrutura federal, da administração do projeto, selecionar os candidatos e colaborar intelectual e tecnicamente para o bom desempenho da tarefa pode parecer um milagre no Brasil. Mas o milagre se realizou.

E tanto que já tivemos três séries de DocTVs nacionais, a partir de 2.380 projetos de documentários em 74 concursos estaduais, que produziram 114 documentários e 3.026 horas de programação. Tudo isso divulgado semanalmente, por 35 semanas consecutivas, em 26 Estados e no Distrito Federal, aos domingos.

Importante foi constatar a melhoria de qualidade nos documentários em cada etapa. Isso devido ao fato de que foram realizados 44 seminários com autores e produtores, com a participação de cineastas e documentaristas da qualidade de Geraldo Sarno, Eduardo Coutinho, Eduardo Escorel, Maurice Capovilla, Giba Assis Brasil, Jorge Bodanski, Jean-Claude Bernadet, Ruy Guerra e ainda outros. Nenhuma faculdade de comunicação no país reuniu tal elenco de professores em cursos de cinema e TV.

O projeto proporcionou ainda, com a participação de empresas privadas, um aumento de 14 projetos estaduais, além dos 35 financiados pelo MinC. Completa o projeto a venda "on demand" via internet e a distribuição em "home video".

O DocTV logo chamou a atenção de parceiros latino-americanos, até agora distanciados. Hoje, a tendência de distanciamento entre as nações da América Latina começa a se inverter: os latinos iniciam o exercício do olhar recíproco. Sintoma disso é a receptividade dada ao projeto brasileiro de criar um DocTV ibero-americano.

O escritor Gabriel García Márquez conheceu o projeto DocTV no 26º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano. Manifestou-se com entusiasmo: "Agora estamos ante uma nova versão ibero-americana que propõe levar ao nível da região a produção de documentários e criar um circuito ibero-americano de teledifusão a partir das redes de TVs públicas nacionais. Esse programa se propõe materializar um sonho de gerações: o da integração por meio do audiovisual, atualizado agora pela ambição de fixar como horizonte utópico a articulação de mercados nacionais para o documentário". Cada país, por intermédio de suas televisões públicas, coordena a produção independente de documentários com identidade regional, que são divulgados simultaneamente por todas as emissoras públicas nos países que aderiram ao projeto.

Treze países, 13 TVs, 13 documentários. Dezenas de criadores e produtores. Paisagens, razões, sentimentos, desejos, memórias, lendas, histórias e objetos distantes, mas aproximados pela busca da própria identidade.

Da vingança chilena ao canto da ressurreição colombiana; dos títeres ("hítleres") do Uruguai aos homens de Marañon no Peru; do fotógrafo mexicano ao amigo que escapou do Iraque; do louco Simon Rodriguez ao canal lendário do Panamá; da paixão pelos carros, em Porto Rico, ao abandono do mar pelos pescadores cubanos; da folha de coca boliviana até nós, chegamos ao "Jesus Maravilha".

"Jesus", o filme brasileiro que iniciou a exibição dos 13 documentários produzidos pelo DocTV ibero-americano, conta a história de três policiais e um palhaço. Traço comum: a nostalgia. Nos policiais, a nostalgia é do passado, quando, com eficiência, tratavam os delinqüentes com a "merecida", no dizer deles, violência. No palhaço, a nostalgia é do futuro, onde se antevê diante da TV, sonho que nem o parque e as crianças compensam.

* Jorge da Cunha Lima, 75, jornalista e escritor, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.

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