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Retrato de uma imprensa às vésperas dos seus 200 anos

A mídia, especialmente a mídia impressa e principalmente a diária, chega atarantada às festas de fim de ano. Ao esquema de fechamento insano, desumano, precário, acrescenta-se o extraordinário volume de páginas para acompanhar a avalanche de anúncios.

Faturar alto seria muito bom se o empresário de jornal não se comportasse exatamente como o empresário que fabrica salsichas, despreocupado com contrapartidas.

Na atual alucinação natalina subverteu-se o critério de relevância que há 400 anos comanda o processo de escolher e destacar informações nos veículos periódicos. O que entra numa edição não é necessariamente o que mais importa ao leitor, o que é destacado nem sempre é o mais pertinente. No lugar do princípio da transcendência, o império da aleatoriedade.

Dogmas "da casa"

Como se não bastassem estes desacertos elementares, nossa redações estão engessadas por fórmulas burocráticas estabelecidas pelo departamento comercial ou decretadas pela direção para preservar o vício da segmentação e do cadernismo.

Antes mesmo de traçado o primeiro esboço da primeira página já estão anotadas tantas recomendações e proibições, tantos preceitos e preconceitos, que a soma das criatividades do diretor de arte e do editor reduz-se a 10% do seu potencial.

A obrigação de valorizar os cadernos para adolescentes, comes & bebes, informática, turismo, TV ou a crônica feminina deixam um espaço mínimo para a valorização decente dos fatos do dia. Além disso, há os "especiais" que antigamente designava-se como "picaretagens", sem eufemismos porém com certo recato, e agora são vendidos despudoradamente com a promessa de destaque na primeira página.

Como se não bastasse, há os dogmas "da casa" ("uma cifra, qualquer cifra, vale mais do que um fato, qualquer fato"), os acertos do pool corporativo, as orientações da direção e a fogueira das vaidades dos colunistas. A sobra é mínima.

Ladeira abaixo

Se o panorama é desanimador nas capas dos jornais, nas páginas internas a deformação é produzida pela licenciosidade publicitária. As agências de propaganda pagam altíssimos salários aos seus criativos (aplausos calorosos!), mas isso não deve significar que esses geniais criativos tenham o direito de pisotear os cânones de leitura e da arquitetura interior de nossos jornais. Quem deve ser endeusado não é o anunciante, mas o leitor que paga para receber um jornal bem informado, bem escrito e… minimamente legível.

Um pouco de hombridade e honestidade da parte dos departamentos comerciais tornaria nossos jornais menos vulneráveis aos malabarismos circenses que infernizam a vida de quem precisa ler jornais. E, atenção: eles são em número cada vez menor.

Pouco interessa ao leitor se a agência ganhou um prêmio em Cannes ou no Canindé com a sua barafunda psicodélica concebida para liquidar as diferenças entre informação e anúncio (caso da recente campanha da agência África para a Phillips). O leitor gosta de anúncios desde que oferecidos como anúncios, sem truques ou mistificações.

As mazelas do nosso grande jornalismo não são políticas, ou melhor, podem não ser claramente políticas, mas são tantas e tão entranhadas que acabam criando padrões jornalísticos inconfiáveis no resto da mídia. Não esqueçamos que no Brasil inexistem agências de notícias autônomas, o jornal é ainda o grande pautador do rádiojornalismo, do telejornalismo e do webjornalismo. Uma pequena asneira produzida pela balbúrdia no fechamento rola ladeira abaixo com tal velocidade que em apenas 60 minutos converte-se numa asneira enorme, difícil de erradicar ou contraditar.

Reserva de qualidade

O quadro parece menos desolador nas temporadas opulentas quando a quantidade disfarça a qualidade. Fica mais visível na saison das vacas magras. Breve, em janeiro, teremos o indefectível "jornalismo de verão" com edições mirradas, mais complicadas para preencher por causa dos recessos, férias, recheadas de modismos e abobrinhas sob o pretexto de atrair o público feminino.

A idéia de que leitoras só se interessam por superficialidades e mundanidades é terrivelmente injusta e preconceituosa, porém condenada à clandestinidade – tabu. Nenhuma jornalista ou colunista ousaria propor uma discussão sobre o assunto numa reunião de pauta. Nenhum jornal ou revista encomendaria uma sondagem a respeito. E, no entanto, quando as tiragens começam a cair a solução mais comum é apelar para a mulher e insistir na tal da "leveza".

Temos editores da melhor qualidade, redatores talentosos, repórteres incansáveis, temos até recantos de bom nível jornalístico (caso do Valor Econômico), mas o quadro geral às vésperas das comemorações dos 200 anos da fundação da imprensa brasileira é lamentável. A festa merece convidados menos mambembes.

Democracia e Comunicação: 39 anos depois do AI-5

Dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira. Foi nesse dia que a ditadura empresarial-militar decretou o infame AI-5, suspendendo as garantias individuais mais básicas e legalizando a opressão do Estado. A tortura foi efetivada como sistema de controle. Ser comunista era sinônimo de bandido.

Não sejamos inocentes. O golpe não veio para acabar com o "socialismo" de Jango. Ele veio, como demonstra René Dreifuss em seu clássico "1964: A Conquista do Estado", para facilitar a implantação das multinacionais no país. As medidas socialistas de Jango eram: aumento do salário mínimo, reforma agrária, controle sobre as remessas de lucros, etc. Nada que os países capitalistas não fazem/fizeram. Os militares foram apenas os testas-de-ferro, que toparam fazer o serviço sujo para que certos empresários ganhassem muito dinheiro, ontem e hoje.

Vale lembrar que as corporações de mídia apoiaram o golpe e a ditadura que sequestrou, torturou e matou milhares de brasileiros. Notícias eram omitidas ou distorcidas conforme os interesses dos políticos e empresários que se beneficiavam com o controle do Estado. Enquanto isso, setores estratégicos foram abandonados, como Educação e Saúde. Outros foram perigosamente submetidos aos interesses estadunidenses, como Energia, Comunicações e Transportes, além das próprias Forças Armadas.

O Brasil de hoje é resultado direto do autoritarismo decretado pelo AI-5. Trinta e nove anos depois, pouco mudou. O modelo continua concentrador de renda, exportador e extremamente violento em relação às classes subalternizadas. A disputa pela CPMF deixa isso bastante claro, seja por aquilo que explicita, seja pelas implicações omitidas. O PT, que antes era contra a tarifa, agora é a favor. Diz que o povo não pode ficar sem os 40 bilhões da arrecadação. É o caso de perguntar: e antes, podia? Já PFL e PSDB, criadores do imposto, agora votam contra. Ou seja, as grandes iniciativas de que o país precisa são substituídas por essa pequeneza política tão hipócrita quanto infame. Objetivamente falando, o que dizer de um presidente que envia carta ao presidente do Congresso garantindo que a CPMF seria usada na Saúde, como se esta já não fosse sua destinação legal? Por que não inverter a problemática e jogar com a sinceridade, presidente? É preciso ser um estadista para afirmar, e cumprir, que em nome da Constituição, temos abandonar o superávit primário porque o povo não pode morrer nas filas dos hospitais. Os especuladores podem esperar, eles já possuem muitos milhões de dólares.

Na verdade, o AI-5 nunca foi revogado. Enquanto existirem 72 milhões de brasileiros em situação de "insegurança alimentar", conforme divulgou o IBGE no ano passado, a memória daquela sexta-feira 13 voltará a assombrar o povo brasileiro. Enquanto o salário mínimo for a quarta parte do mínimo necessário para sobreviver, não se pode dizer que o trabalhador brasileiro tem suas garantias individuais preservadas. Enquanto míseros 26% compreenderem aquilo que lêem, os golpistas de 64 estarão no comando do país.

Para começar a reverter esse estado de coisas, é preciso democratizar a mídia no Brasil. Os avanços serão sempre tímidos e insuficientes enquanto a esquerda não encarar a disputa das representações. É preciso entender que a mídia, hoje, é a instituição com maior poder de produção de subjetividades. Há outras, como a escola, a universidade, a família e etc., mas a mídia é a instituição mais poderosa porque atravessa todas as outras. E produzir subjetividades significa nada menos do que determinar formas de sentir, agir e viver. E votar. Enquanto o país for dominado por uma mídia de direita, brutalmente concentrada e a serviço da exploração do povo, estaremos sempre em desvantagem. Por outro lado, se conseguirmos viabilizar novas formas de comunicar, fiscalizar a destinação das verbas públicas de publicidade e exigir que elas sejam igualmente distribuídas e garantir acesso à produção e divulgação a todos os setores da sociedade, conseguiremos avançar exponencialmente em todas as nossas batalhas.

Ou a esquerda entra de cabeça na luta pela democratização da mídia, ou será esmagada pelas forças do capital.

Políticas de radiodifusão: indefinição legal na terra de ninguém

A (segunda) longa sessão de julgamento de Renan Calheiros no plenário do Senado Federal (terça, 4/12) teve um desfecho esclarecedor para aqueles que se interessam pela regulação das comunicações no país. Refutando a acusação de quebra de decoro por compra irregular de emissoras de rádio em Alagoas – a questão-chave que havia sido convenientemente ignorada por quase todos os oradores –, o já ex-presidente do Senado perguntou dirigindo-se candidamente aos seus pares:

"Por que eu haveria de usar `laranjas´ ou ser sócio oculto [por meio de um contrato de gaveta] se a compra direta de uma emissora de rádio seria perfeitamente legal?".

A resposta oculta à pergunta do senador Renan está implícita nos 48 votos contrários à sua cassação dados por um plenário repleto onde quase um terço dos senhores senadores são – eles próprios ou seus familiares – concessionários de emissoras de rádio e/ou televisão.

Além disso, no dia seguinte, revela-se que na declaração de bens à Justiça Eleitoral feita em 2006, um dos postulantes à vaga de presidente do Senado, o senador Garibaldi Filho (PMDB-RN), aparece como proprietário de 190 mil cotas da Rádio Cabugi do Seridó (RN). Um dia depois, o Ministério das Comunicações exclui o nome e o CPF do senador Garibaldi do cadastro da Anatel alegando, como sempre faz, desatualização (ver aqui, para assinantes).

Entendimento histórico

A legalidade de um parlamentar ser, direta ou indiretamente, o controlador de uma concessão de rádio ou televisão, no exercício do mandato, parece, no mínimo, questionável.

O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº. 4117/62) determina que quem esteja em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do artigo 38). Esta norma foi confirmada pelo Regulamento dos Serviços de Radiodifusão que exige, como um dos documentos necessários para habilitação ao procedimento licitatório, declaração de que os dirigentes da entidade "não estão no exercício de mandato eletivo" [nº 2, alínea d), § 5º do artigo 15 do Decreto 52.795/63].

Ademais, a Constituição de 1988 também proíbe que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (alíneas a. e b. do inciso I do Artigo 54). Apesar disso, como na pergunta do senador Renan, o entendimento histórico tem sido que parlamentares podem sim ser concessionários.

Quatro ações

Uma representação inédita do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor – entidade mantenedora deste Observatório) junto à Procuradoria Geral da República, protocolada em outubro de 2005, deu origem, em julho de 2007, a ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal (MPF), postulando a nulidade de renovações de concessões de rádio e televisão aprovadas na Câmara dos Deputados entre 2003 e 2005.

A pesquisa na qual se baseou a representação revela que, além de existirem pelo menos 51 deputados, no exercício do mandato, que continuavam concessionários de emissoras de RTV, alguns deles eram membros da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e haviam participado e votado na reunião em que foi aprovada a renovação de sua própria concessão. Isto equivale a dizer que deputados foram, ao mesmo tempo, poder concedente e concessionário de um serviço público – a radiodifusão.

Das seis ações iniciais sobrevivem apenas quatro. Duas foram extintas por questões técnicas. As que sobrevivem tratam das renovações das seguintes concessões:

1. Emissoras Reunidas Ltda. (OM), Alegrete, RS, de propriedade do deputado Nelson Proença (PPS-RS);

2. Rádio Renascença Ltda. (OM), Ribeirão Preto, SP, de propriedade do deputado Corauci Sobrinho (PFL-SP);

3. Alagoas Rádio e Televisão Ltda. (FM), Maceió, AL, de propriedade do deputado João Mendes (s/partido); e

4. Sociedade Rádio Atalaia de Londrina Ltda. (OM), Londrina, PR, de propriedade do deputado João Batista (PFL-SP).

Fora de julgamento

Apesar das quatro ações ainda estarem em andamento, as perspectivas de que o MPF consiga a nulidade das concessões é remota. Até aqui os juízes têm indeferido os pedidos de liminar para suspender os efeitos das concessões, sob dois argumentos principais: (a) de que os parlamentares teriam simplesmente violado dispositivos do Regimento Interno da Câmara, sujeitando-se exclusivamente a processos por quebra de decoro parlamentar; e/ou (b) alegando que, representando o parlamentar interessado apenas um voto e tendo sido as renovações das concessões aprovadas por unanimidade, de qualquer forma o resultado das votações na CCTCI seria o mesmo.

Na verdade, as próprias ações propostas pelo MPF partem da polêmica interpretação de que a Constituição de 1988 "coíbe apenas a participação dos parlamentares na gestão das empresas concessionárias do serviço (de radiodifusão)", e permite, inclusive, "a celebração de contratos com o ente público, desde que obedeçam a cláusulas uniformes".

Dessa forma, a justificativa para as ações de nulidade das renovações das concessões funda-se exclusivamente na violação dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e legalidade. Vale dizer, ao fato de o deputado ter votado pela aprovação de matéria de seu interesse pessoal privado. Ficam inteiramente fora de julgamento as restrições à outorga de concessões do serviço público de radiodifusão aplicáveis àqueles no exercício de mandato eletivo, existentes tanto no CBT como na própria Constituição, como mencionado acima.

Assimetria de poder

A questão, no entanto, permanece em aberto. Exatamente para evitar a dubiedade legal, o relatório final da Subcomissão Especial da CCTCI que analisa "mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens", apresentado pela deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), na terça-feira (4/12) – coincidentemente, o mesmo dia do segundo julgamento do senador Renan – sugere a apresentação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nos seguintes termos:

"Acrescente-se o § 6º ao art. 222 da Constituição Federal, com a seguinte redação.

`Art. 222…………………………………………………………………….

§ 6º Não poderá ser proprietário, controlador, gerente ou diretor de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens quem esteja investido em cargo público ou no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial´."

Existe, portanto, a possibilidade – remota, é verdade – de que, por iniciativa do próprio Congresso Nacional, o assunto seja definitivamente esclarecido e resolvido.

Se a lei permitir que os detentores de mandatos eletivos continuem a ser concessionários do serviço público de radiodifusão estará se perpetuando uma situação de óbvia assimetria de poder que desqualifica, de forma incontornável, a nossa democracia representativa.

Diversidade na TV: a singular batalha por uma tela plural

Um dos muitos aspectos positivos da nova TV pública federal – e que, por si só, já justificaria a resoluta aprovação da medida provisória que a institui – é o debate que ela vem suscitando sobre as relações entre o sistema de televisão implantado no país e a sociedade a que ele serve. Inúmeros grupos sociais, em particular os organizados, discutem intensamente as deficiências da televisão comercial e as limitações da televisão pública existente, apresentando as suas propostas de correção de rumos e as suas demandas específicas.

O movimento negro, por exemplo. Ou as feministas. Nas últimas semanas, dois eventos realizados em São Paulo dedicaram-se a examinar a questão da diversidade na televisão, no primeiro caso a de etnia, no segundo a de gênero. O ciclo de debates "Ações afirmativas: Ações para ampliar a democracia", organizado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, do governo federal, e pela PUC-SP, analisou o impacto dessas ações na comunicação social. E o ciclo "A mulher e a mídia", do Instituto Patrícia Galvão, pôs em foco o papel da TV pública na expressão da diversidade.

Como expositor nos dois eventos, tive a oportunidade de organizar algumas idéias em torno desse tema central da democracia – a diversidade. Também pude testemunhar, mais uma vez entre outras tantas numa longa carreira de militância, como são complexas as implicações psicossociais e políticas dessa questão, e como é fácil a análise racional perder terreno para o emocionalismo, em seu debate. Séculos de opressão, inconformismo e frustração geram uma formidável panela de pressão que pode explodir facilmente em raiva e vociferação, em prejuízo da análise serena dos fatos e da superação dos problemas pelo diálogo democrático.

Quintal dos EUA

A primeira questão a considerar, no debate sobre a diversidade na TV, é conceitual. De que diversidade estamos falando? Aquela restrita aos conceitos de gênero, etnia e orientação sexual? Ou aquela mais ampla, relativa à multiplicidade de experiências do ser humano, em todas as suas dimensões e em todas as partes do globo – a diversidade cultural? Os grupos militantes, compreensivelmente, priorizam a visão mais restrita, focados que estão na sua missão imediata. Mas é conveniente pensar a questão amplamente, considerando que a diversidade cultural é o grande valor a ser instaurado na televisão brasileira e que as representações de gênero, etnia e outras serão abrangidas por ele, quando o culto ao diverso for sagrado entre as emissoras.

A televisão brasileira, sem a menor dúvida, está a anos-luz da diversidade. Nas emissoras comerciais, a programação cultiva o oposto – a uniformidade –, quase como traço distintivo. Todas, no fundo, querem oferecer ao público a mesma grade, a que mais se aproxime da Globo, líder de mercado. Todas querem fazer novelas, shows, telejornais; todas querem transmitir futebol, filmes, desenhos animados, programas femininos. As que não oferecem alguns desses gêneros, não o fazem apenas por falta de recursos. Se pudessem, clonariam a grade da Globo com o mesmo empenho com que faz a Record. Uma fórmula de sucesso, na TV comercial, é sempre vista como filão aurífero que se deve garimpar até o esgotamento.

Também contribui muito para a uniformidade da programação o monopólio norte-americano na distribuição de filmes, desenhos e seriados. Da mesma forma como ele controla o mercado de exibição de cinema, domina amplamente as vendas para as emissoras brasileiras, graças ao marketing avassalador, que faz os produtos conhecidos dos brasileiros antes de surgirem por aqui, e às vendas casadas de produtos, que derrubam os preços. Não sobra nada para a televisão da França, Itália, Inglaterra ou de qualquer outro país fazer por aqui. O Brasil é quintal, jardim, garagem e playground da indústria audiovisual dos Estados Unidos.

Política indutiva

Na televisão pública, a situação é melhor, mas está longe do ideal. Há uma preocupação com a diversidade e a percepção de que a sua falta é um déficit democrático do país, mas isso não se traduz automaticamente em políticas universalistas de produção e de aquisição de programas. Os canais públicos têm, certamente, pautas culturais de abrangência muito mais ampla que os canais comerciais, e também exibem muito mais material europeu, asiático ou latino-americano. Mas estão aquém do que os programadores desejariam, em razão dos baixos orçamentos com que operam. A TV pública brasileira não faz co-produções com as suas congêneres de outros países, prática comum em outras regiões, nem prospecta programas regularmente em fontes produtoras incomuns. Quando escapa dos EUA, é para comprar na Europa Ocidental e no Japão.

Daí porque se deve saudar experiências como a do projeto "DOC TV Ibero América", que mobiliza governos, emissoras públicas e produtores independentes de 15 países. Uma inteligente engenharia de produção, proposta pelo Ministério da Cultura do Brasil, permite que os produtores tenham recursos para realizar documentários e que as emissoras públicas os compartilhem, gerando trocas culturais bastante significativas. Da mesma forma, é alentadora a disposição anunciada pela direção da TV Brasil, o novo canal público federal, de cobrir intensamente a realidade política e cultural da América Latina e da África, regiões com as quais o país tem laços étnicos e históricos profundos.

Se há muito por fazer, no tocante à diversidade cultural ampla, na TV comercial ou na pública, há ainda mais a perseguir para a melhor representação de grupos étnicos, de mulheres e de minorias sexuais na tela. As organizações militantes queixam-se de que as suas temáticas não encontram o acolhimento desejável nas pautas dos programas, em particular nos telejornais. Mas ressentem-se, sobretudo, de maior equilíbrio na participação dos diversos grupos nas equipes profissionais da televisão, seja as da frente do vídeo, seja as da retaguarda.

De fato, ainda estamos em terreno privilegiado da "elite branca", aquela apontada pelo ex-governador paulista Cláudio Lembo. A TV ainda mostra pouquíssimos negros e mestiços, se considerada a sua presença na população brasileira. Os afrodescendentes têm visibilidade equivalente à dos orientais, o que é um óbvio falseamento da composição étnica do país. Os índios, por sua vez, inexistem na tela e os homossexuais são quase sempre caricaturas. Há maior equilíbrio apenas na participação de mulheres, mas boa parte das faces femininas no vídeo não são consideradas, por suas pares, efetivamente representativas das aspirações de identidade e autonomia das mulheres.

Na retaguarda, nas equipes técnicas e de produção, também se repete o desequilíbrio observado na tela. E é para enfrentá-lo que os movimentos organizados propõem ações afirmativas, entre elas uma política de cotas igual à utilizada hoje para o preenchimento de vagas em universidades. Ou seja: uma política indutiva, impositiva, para promover mudanças profundas em prazo curto.

Avançar o debate

As questões que essa proposta coloca são inúmeras. Em primeiro lugar, há que considerar se é o caso de impor o equilíbrio na representação de gênero-etnia-orientação sexual, por força de lei, ou de fomentá-lo com políticas de estímulo às emissoras. Em outras palavras: obrigar as emissoras, penalizando-as com punições, ou convencê-las, premiando-as pela conversão à causa?

Vale lembrar que a Constituição federal não obriga os meios de comunicação à diversidade, embora o espírito do artigo 221 seja exatamente esse, ao estabelecer como princípios da produção e da programação do rádio e da TV a "promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação" (inciso II) e a "regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei" (inciso III). Se obedecidos esses preceitos, haveria um aumento notável da diversidade na tela.

Mas, avançando nas questões, o equilíbrio de representação que se busca deve ser matemático, considerado o perfil da população brasileira, ou admite-se alguma flexibilidade? O programador de TV deve ser livre para escolher seu elenco, seus produtores e seus técnicos por critérios de competência individual, ou deve obedecer a cotas para fazê-lo? Quais serão os critérios de aplicação de uma política de cotas na televisão? Como serão definidos e por quem? Essa política deve ser temporária ou permanente? E, acima de tudo: como os seus critérios interagirão com a criação artística e a informação jornalística, sem cerceá-las?

A televisão – em uníssono, privada ou pública – teme perder a liberdade de ação. Teme defrontar-se com uma situação em que montar uma equipe de produção, um elenco de novela, um time de apresentadores ou uma grade de programação exija uma complexíssima matriz combinatória, para acomodar todas as demandas de representação que se apresentam atualmente. Teme ser forçada a privilegiar o equilíbrio de representação em vez da qualificação individual de cada aspirante a um posto profissional.

Responder às questões acima, portanto, é imperioso, para fazer avançar o debate sobre a diversidade na TV. Os grupos organizados têm sido competentes em levantar o problema, mas devem evoluir para as proposições mais objetivas. E devem manter a pressão sobre as emissoras, seus organismos de gestão e suas entidades representativas, para trazê-las à discussão conseqüente e à disposição de mudar.

Será uma batalha difícil, mas vale a pena lutá-la.

Os Descaminhos dos Direitos Autorais

Desde o início da década de 90, os direitos de propriedade intelectual – em seus dois grandes ramos, a propriedade industrial (patentes e marcas) e os direitos autorais (direito de autor e direitos conexos) – passaram a fazer parte dos principais acordos multilaterais de comércio.

A razão para tal fato vem do grande salto tecnológico ocorrido nas últimas décadas do séculos XX, tornando os bens intelectuais um ativo de grande relevância nas trocas comerciais e revestido de uma importância estratégica para as políticas publicas de todos os países.

No que diz respeito aos direitos autorais, o advento da tecnologia digital e da Internet proporcionou facilidades antes inimagináveis. Além da reprodução de obras com a obtenção de cópias de alta qualidade, tornou possível a distribuição de obras protegidas numa escala planetária, criando sérias dificuldades para o controle da circulação das obras. Ao mesmo tempo em que abriu formidáveis perspectivas para a difusão da cultura, da informação e da tecnologia, criou um terreno fértil para a disseminação da reprodução não autorizada.

Nesse contexto, o surgimento do Acordo TRIPS – Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (1994), anexo do acordo constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC, aparece como um grande divisor de águas. Desde então, a propriedade intelectual tem sido matéria constante em qualquer acordo de livre comércio. Assim foi na ALCA, no Mercosul e nas negociações com a União Européia.

Antes do Acordo TRIPS já existiam convenções internacionais de direito privado, com destaque para a Convenção de Berna (para os direitos de autor) e a Convenção de Roma (para os direitos conexos). Ambas já incluíam o compromisso das partes signatárias de garantir aos estrangeiros titulares de direitos em um dado país o mesmo tratamento dado aos titulares de direito nacionais do próprio país – a chamada “cláusula de tratamento nacional”. Porém, com a passagem desse dispositivo para o plano do direito comercial internacional, tal compromisso passou a prever obrigações para a observância dos direitos, podendo ser objeto de mecanismos de solução de controvérsias, inclusive com possibilidade da imposição de severas sanções no comércio internacional.

O impacto econômico da legislação sobre direito de autor se concentra em grande medida no resultado das chamadas indústrias de direito de autor, que produzem/distribuem bens ou prestam serviços protegidos pelos direitos autorais. Estas indústrias incluem uma grande variedade de produtos: são livros, periódicos, fonogramas, obras audiovisuais, bases de dados, programas e jogos para computadores. Estudos vêm comprovando que estes setores produtivos vêm adquirindo uma participação cada vez mais importante dentro das economias nacionais.

De acordo com o relatório da IIPA – International Intellectual Property Alliance, em 2006 as chamadas indústrias de Copyright responderam por 6,56% do PIB norte-americano, agregando cerca de 819,97 bilhões de dólares. Uma participação superior ao de diversos outros ramos da economia, se tomados isoladamente (tal como a indústria de alimentos, a de eletro-eletrônicos, a indústria química e a de equipamentos industriais).

O Brasil também já possui dados preliminares, graças a um estudo patrocinado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em atendimento a solicitação da CDA/ MinC e realizado pela UNICAMP/GEOPI no ano 2000. Tendo como objeto os países dos Mercosul mais o Chile, os dados obtidos confirmam a tendência já detectada nos estudos acima citados. No caso brasileiro, as indústrias de Direito de Autor agregaram no ano de 1998 parcela equivalente a 6,74% ao PIB e respondendo por 5% do pessoal ocupado.

Outro aspecto relevante foi a confirmação do que já presumíamos: nossos países são fundamentalmente importadores de bens culturais. A importação de bens protegidos por direito de autor somou, no mesmo período, cerca de 1,3 bilhões de dólares, contra apenas 450 milhões das exportações (com uma ligeira tendência de crescimento desta última).

Observa-se um movimento crescente – tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento – no sentido de modificarem suas estruturas internas na área autoral para se adequarem às exigências impostas pela convergência tecnológica com vista a globalização da informação.

A situação no Brasil nesta área é preocupante, na medida em que o Executivo não possui mecanismos efetivos de ação na área autoral.Há, no âmbito do Ministério da Cultura, uma Coordenação-Geral de Direito Autoral, subordinada à Secretaria de Políticas Culturais do MinC, que possui uma estrutura tímida e limitada e que não tem como dar conta das demandas, cada vez mais freqüentes e urgentes, na área de direito autoral. No que pese o esforço empreendido pela gestão do Ministro Gilberto Gil.

Após a desativação do Conselho Nacional de Direito Autoral – CNDA, em março de 1990, a formulação de políticas públicas para área dos direitos autorais ficou consideravelmente prejudicada. Predominou desde então uma equivocada concepção que vê os direitos autorais como objeto de interesse essencialmente privado, não cabendo ao Estado nenhum tipo de ação ou tutela.

Essa concepção vai de encontro à tendência internacional onde, conforme salientamos, dado o impacto econômico da tecnologia digital o tema se deslocou do âmbito de direito internacional privado para o direito comercial internacional, gerando obrigações adicionais que os Estados devem observar.

A ausência de instrumentos que possibilitem a formulação e implementação de políticas públicas nessa matéria significa abdicar de sua inclusão numa estratégia global de desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural. As conseqüências dessa lacuna poderá ser o agravamento da irremediável dos mecanismos de dependência externa, sobretudo, no que se refere às novas tecnologias, bens e serviços no âmbito da indústria cultural.

A proteção ao direito autoral no limite da legislação nacional é a primeira condição a se observar para criar as condições que permitirão aos autores nacionais obter um benefício da utilização de suas obras e, portanto, consagrar todos os seus esforços para a criação de obras literárias ou artísticas. A proteção dos direitos patrimoniais e morais devem estimular os autores a contribuir para uma maior difusão possível das obras dentro da ótica do progresso artístico e tecnológico.

É necessário, pois, ocupar este grande espaço em matéria de modernização e adaptação das legislações nacionais e das instituições de gestão governamental de direito autoral no Brasil. A redefinição dos aspectos relacionados com a tutela administrativa dos direitos autorais permitirá a retomada desse processo, estabelecendo os limites exigidos para a atuação do Estado na área autoral e sua presença ativa na formulação das estratégias de desenvolvimento do país.