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A TV digital e o novo celular do presidente

O presidente Lula foi na terça-feira (4/3) à fábrica da Samsung, em Campinas (SP). Saiu de lá com um celular V820L, preparado para receber o sinal da TV digital. O telefone será colocado à venda em abril, inicialmente só em São Paulo. Ele está apto a receber o conteúdo das sete principais redes de televisão do país. Quem tiver dinheiro para comprar o aparelho dentro de um mês (em um ano o seu preço cairá pela metade) vai acessar a TV aberta da mesma forma com que hoje o faz em casa. É a primeira propriedade da TV digital terrestre que pode fazer sentido para o consumidor brasileiro.

Quando o presidente sintonizar seu receptor, no entanto, corre o risco de se decepcionar. A imagem será boa, mas o conteúdo não será diferente do que ele já deve estar cansado de ver no Palácio da Alvorada. É aí que mora o perigo.

A verdade é que a TV, tal como a conhecemos agora, está perdendo relevância com espantosa velocidade. Envelheceu sem se dar conta disso. Quando tenta ser "jovem" torna-se com freqüência patética. Os "nativos digitais" não querem saber dela há muito tempo. Perceberam que têm o direito de escolha, o que era impensável para seus pais.

Há controvérsias, é claro. O ministro das Comunicações, Helio Costa, por exemplo, acredita que a televisão brasileira é um modelo para o mundo. Falando na quarta-feira (5/3), no Acel Expo Fórum, em Brasília, ele revelou que "a televisão na Europa é ruim; é horrível. O povo europeu odeia televisão. E isso não acontece no Brasil. A nossa televisão é muito boa". E sentenciou: "O nosso conteúdo como está hoje é muito atrativo".

Não é o que acham os jovens e, em escala crescente, o resto da população. Por isso a internet consolida-se rapidamente como o principal meio de informação da sociedade. O Brasil tem hoje 40 milhões de internautas. A eles se somarão mais 5 milhões até dezembro. Isso está bem longe do pequeno nicho ao qual até ontem a internet era associada. Cerca de 40% dessas pessoas está na classe C. A internet deixou de ser coisa da elite. Chegou aonde só a televisão e o rádio chegavam. A televisão não tem opções. Ela e todas as formas de distribuição de produto audiovisual têm que suportar uma convivência incômoda.

180 graus

Não é a substituição de um receptor de TV por um monitor de computador que estabelece a diferença entre a televisão de ontem e a televisão de amanhã. É a maneira como o usuário é capaz de interagir com a tela que está na sua frente, de encontrar nela o que efetivamente está procurando. As pessoas aprenderam a procurar – o que é muito diferente de escolher entre o que lhes é oferecido.

Temos que admitir que, no século 21, não é muito normal que uma pessoa saudável esteja procurando o Faustão, o Gugu ou assemelhados. O público mostra isso todos os dias, empurrando a programação tradicional para patamares de audiência muito inferiores aos que ela operava há menos de cinco anos. Transmitir essa mesma programação em alta definição não vai fazer muita diferença. O público também sinalizou isso. As transmissões digitais, que começaram em dezembro no ano passado, simplesmente não decolaram.

O que pode fazê-las decolar? No topo da lista está a mobilidade e a portabilidade. Se o presidente Lula fosse de ônibus para o trabalho, já poderia ver televisão enquanto se acotovelasse entre os outros passageiros. Isso faz um bocado de diferença. O momento de ver televisão não é mais o espaço entre a hora que um trabalhador chega em casa e a que ele vai dormir. É o tempo em que ele está no transporte ou fazendo um lanche. Tal possibilidade representa uma guinada de 180 graus no que o público e o mercado entendem por "horário nobre" – que gera 80% da receita de qualquer rede de televisão aberta.

Anseios diferentes

A televisão aberta, a televisão fechada e, agora, todos os mecanismos emergentes de distribuição de conteúdo audiovisual falam com segmentos distintos da sociedade – e o que falam é bastante diferente. Não há nada de errado nisso. Na verdade, o que as emissoras mais temem é justamente o que poderá salva-las: a transformação do modelo de negócios praticado há 60 anos. Durante todo esse tempo, a televisão domesticou sua audiência. As novas gerações disseram que não querem ser parte disso. O que elas estão demonstrando é que públicos plurais demandam modelos plurais de construção de conteúdo.

A capacidade de transmissão para receptores móveis e portáteis é um exemplo paradigmático. Demanda novas formas de conteúdo, mas vai além disso. Exige fontes bastante diversificadas de produção e mecanismos que atendam a elas. É um sintoma do que acontece com todas as outras possibilidades de provimento de conteúdo audiovisual.

O novo celular que o presidente tem no bolso é semelhante aos gadgets que todos os brasileiros terão. São brasileiros de idades diferentes, níveis educacionais diferentes, classes sociais diferentes, anseios diferentes. Diante da possibilidade de opção, eles não têm razão alguma para estar querendo consumir a mesma coisa.

Democracia, mídia e formação do cidadão

Na década de 80, Norberto Bobbio analisou algumas das promessas não cumpridas da democracia, ao apresentar um contraste entre os ideais democráticos e seus resultados reais. Dentre essas promessas, a formação do cidadão sempre mereceu destaque. Praticamente todas as obras apologéticas da democracia moderna proclamam que só a educação poderia transformar um súdito num cidadão. Não por meio de uma preparação escolar prévia, mas por um processo educativo resultante da própria prática da cidadania democrática. As instituições políticas formariam cidadãos ativos e comprometidos com os valores republicanos.

No entanto, mesmo em países onde a democracia representativa parece estar consolidada, a promessa moderna não se cumpriu. Ao contrário, assistimos a um processo generalizado de desinteresse pelas instituições públicas e de crescente apatia política. O que dizer, então, de um país como o Brasil, onde menos de 15% da população tem uma imagem positiva do Congresso Nacional! Haveria ainda sentido em se pensar a prática política institucional como principal instância de formação do cidadão?

A constatação de uma incapacidade crônica da vida política moderna para formar o cidadão ativo levou outras instituições e organizações sociais a adotarem o discurso da cidadania. Esse ideal passou a ser proclamado de uma forma tão ampla e difusa que parece ter se transformado num princípio ético-político capaz de congregar as forças sociais mais antagônicas – sindicatos, mídia, escolas, ongs, igrejas. É nesse contexto que as emissoras televisivas privadas, públicas e estatais passaram, em maior ou menor grau, a se identificar com esse esforço educativo.

É claro que tanto a responsabilidade educativa da mídia como a ampliação da preocupação com a formação cidadã devem ser louvadas. Não obstante, há um ponto crucial que merece exame crítico. Trata-se do risco de transformação da expressão “formação do cidadão” num slogan com forte apelo retórico, mas destituído de qualquer sentido claro e historicamente fundamentado. Em campanhas midiáticas e programas televisivos, ‘cidadania’ passou a ser a expressão comum dos mais diversos desígnios: ‘consumidor consciente’ ou ‘jovem altruísta’, trabalhador disciplinado ou voluntário caridoso, em suma, de toda sorte de condutas cuja reprodução deva ser incentivada. Ser cidadão transforma-se, assim, num traço de personalidade ou numa característica moral, em geral concebida como resultante da ‘consciência’ individual.       

Ora, o termo ‘cidadão’ é polissêmico e permite conceituações alternativas. Contudo, o que não pode ficar obscurecido, seja qual for a perspectiva que se tome, é seu caráter político. Caráter impresso, aliás, em sua procedência histórica, já que o termo do qual se origina – civitas – é a tradução romana para polis, essa experiência política singular que foi a cidade grega e que deu origem ao termo ‘política’.Numa polis, identificar alguém como ‘cidadão’ implicava afirmar seu pertencimento a uma esfera pública e política, em que compartilhava com seus iguais o exercício da liberdade e a gestão da coisa pública. Como sintetiza Hannah Arendt, o surgimento da cidade-estado [polis] significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu ‘bios politikos’. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que lhe é comum (koinon).

Daí porque a necessária vinculação entre a formação do cidadão e a existência de uma esfera pública (bios politikos) por oposição e complementaridade à dimensão individual e privada de sua existência. Ora, paradoxalmente é esta dimensão necessariamente pública e política do cidadão que parece tender ao desaparecimento na maior parte das iniciativas das mídias radiofônicas e televisivas que se identificam como esforços para a formação do cidadão.

Uma educação comprometida com os ideais da cidadania não resulta da mera difusão de informações pretensamente capazes de ‘despertar a consciência moral’ para que ‘cada um faça a sua parte’. Ao contrário, ela deve afirmar por seus atos, imagens e palavras o compromisso incessante para com a instituição e a preservação de uma esfera pública, de um mundo simbólico e material compartilhado, no qual o cidadão não seja concebido como um indivíduo cumpridor de deveres exteriormente concebidos e comunicados, mas como agente responsável pela criação e gestão da coisa (res) pública, ou como diriam os gregos, da bios politikos.

* José Sérgio Carvalho é professor de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo FE USP e autor de Educação, Cidadania e Direitos Humanos (Vozes, 2004)

A imprensa e os antídotos contra o assassinato de reputações

O site Consultor Jurídico (13/2) informa que o juiz da 4ª Vara Cível de Brasília, Robson Barbosa de Azevedo, condenou a TV Globo e o deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ) a pagar 100 mil reais de indenização ao assessor parlamentar Luiz Carlos da Silva por associar, indevidamente, o seu nome com o chamado "escândalo do mensalão" [ver aqui]. Além disso, a TV Globo deverá "divulgar o inteiro teor da sentença nos mesmos programas nos quais foi publicada a lista que originou o dano moral, no prazo de 60 dias, sob pena de multa de R$ 50 mil por dia de descumprimento da ordem judicial" (Processo: 2005.01.1.107480-8).

[Caro leitor(a): você soube dessa notícia em algum jornal, revista, emissora de rádio ou televisão?]

O nome do assessor parlamentar apareceu em matérias veiculadas no Jornal Nacional da Rede Globo nos dias 14, 15 e 19 de julho de 2005. Essas matérias foram, à época, objeto de artigo neste OI sob o título "Jornal Nacional: Edição no limite da irresponsabilidade".

Luiz Carlos da Silva foi incluído numa lista de pessoas que estiveram na agência do Banco Rural do Brasília Shopping a serviço de 9 (nove) deputados do PT, que se tornaram também suspeitos. Nessa agência, como se sabe, foram feitos saques destinados a deputados acusados de envolvimento com a corrupção. A lista era resultado de um cruzamento feito pela liderança do então PFL entre nomes que surgiram na investigação conduzida pela CPMI dos Correios e relação de funcionários e ex-funcionários da Câmara dos Deputados, tendo sido encaminhada à Rede Globo pelo deputado Rodrigo Maia, hoje presidente do DEM.

Como avançar?

Ao final da CPMI, comprovou-se que apenas 3 (três) dos 9 (nove) deputados denunciados nas matérias do JN tiveram algum tipo de envolvimento com os saques feitos na referida agência do Banco Rural. O "Luiz Carlos da Silva" que estivera na agência bancária era um homônimo do assessor parlamentar do deputado Wasny de Roure (PT-DF) que, à época dos saques, sequer era deputado federal.

Para o juiz Robson Barbosa de Azevedo, "o interesse público e o direito à informação não podem subsidiar informações inverídicas e tendenciosas". Para ele, a divulgação apressada da lista de nomes sem a verificação dos motivos da presença das pessoas na agência bancária, que é local público, caracteriza dano de natureza extra-patrimonial.

No momento em que o Supremo Tribunal Federal decide manter a liminar do ministro Carlos Ayres Britto (27/2) sobre a suspensão de 22 dos 77 artigos da velha Lei de Imprensa do regime militar, a decisão do juiz Robson Barbosa de Azevedo (para a qual ainda cabe recurso) merece a reflexão de legisladores e integrantes do Judiciário.

Qual a melhor forma de avançar em relação às garantias constituc dos direitos fundamentais – tanto do cidadão, quanto dos jornalistas profissionais e das empresas de mídia?

Previamente culpado

Embora a decisão do STF permita aos juízes o uso de regras dos Códigos Penal e Civil para julgarem ações que versem sobre os 22 artigos temporariamente revogados, existem direitos do cidadão que não estão inteiramente contemplados nestes códigos. Refiro-me especificamente aos (1) direito à presunção de inocência; (2) direito de resposta e (3) direito de imagem.

A "presunção de inocência" é uma das mais importantes garantias constitucionais. O princípio, que tem sua origem na Revolução Francesa do século 18, está consagrado no art. 5º, inciso LVII: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". A obediência a este princípio, portanto, deveria ser parte da conduta profissional e ética de qualquer jornalista, independente das informações que obtiver e de sua convicção pessoal. Não importa que em data futura, uma presunção de culpa venha, eventualmente, a se confirmar correta. O que importa é o direito dos acusados de serem tratados como inocentes até que a Justiça prove o contrário. No entanto, não é esse o comportamento freqüente na grande mídia.

De que forma serão reparados os danos causados a alguém que foi considerado previamente culpado na cobertura de um "escândalo" e que, com o tempo, as investigações e a Justiça revelam ser inocente? Há reparação possível para uma reputação destruída publicamente?

Consolidar a democracia

Da mesma forma, o direito de resposta garantido no inciso V do mesmo artigo 5º da Constituição – "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano moral ou à imagem" – não tem sido observado, na maioria das vezes, pela grande mídia. Acusações feitas na primeira página de um jornal, de uma revista ou reiteradas nas chamadas de abertura de um telejornal, quando comprovadamente desmentidas por aqueles que as sofrem, costumam ser (se, afinal, o são) objeto de uma pequena nota escondida em página par interna do jornal ou revista, ou em pequena nota lida por apresentador(a) de telejornal.

Por fim, ao direito de imagem – considerado inviolável, juntamente com a intimidade, a vida privada e a honra das pessoas pelo inciso X do mesmo artigo 5º – aplicam-se as considerações já feitas em relação ao direito de resposta.

Não se discute que a atual Lei de Imprensa foi um instrumento do período autoritário e que suas normas estão – felizmente – superadas pela Constituição de 1988. Também não se discute que a liberdade de expressão e o direito universal à comunicação precisam ser consolidados e preservados. O que é importante agora é avançar no sentido de garantir os direitos constitucionais fundamentais, tanto para os cidadãos comuns quanto para os cidadãos jornalistas e as empresas de mídia.

O direito à presunção de inocência, o direito de resposta e o direito de imagem devem ser assegurados aos cidadãos e, portanto, observados pelos jornalistas e pelas empresas de mídia. Aliás, a própria mídia estaria cumprindo seu papel e servindo ao interesse público se promovesse o debate livre e amplo dessas questões, criando as condições para que normas e procedimentos reguladores desses direitos fundamentais fossem democraticamente elaborados e aprovados pelo Congresso Nacional.

Somente dessa forma estaremos dando um passo adiante no sentido da consolidação de nossa democracia. Não existe alternativa.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)

** Para ter acesso ao texto no Observatório da Imprensa, clique aqui.

Bilhete à esquerda

Lá está o diretor com sua touca laranja a comemorar o prêmio. Lá está o ator principal a dizer que o prêmio cala a boca dos críticos. Lá está a atriz a beijar o troféu, conquistado em cima do sangue daqueles que tombam pelas mãos das tropas das elites.

Lá estão os principais responsáveis pela obra que deixou extasiados os comandantes das tropas das elites mundo afora. Lá está o deputado que tenta elevar o símbolo da morte à patrimônio cultural.

Lá estão as corporações de mídia a aplaudir o enredo macabro, seja nas páginas policiais ou segundos cadernos, internacional, economia ou política.

E onde estão os aliados da vida? Quando vão começar a articular uma rede de comunicação suficientemente grande para construir um novo discurso e, assim, enfrentar a barbárie? A esses dirijo esta breve mensagem. Caso ela os alcance, por gentileza respondam: que avanços conseguimos na luta pela vida nas últimas décadas? A vida tem sido mais respeitada hoje? E os milhões de seres humanos que são vitimados pelo sistema neoliberal? E os 14 milhões de brasileiros que passam fome, segundo o IBGE, num país rico e repleto de terras férteis? Não amigos, não estamos avançando. E estou convencido de que o inimigo se impõe justamente porque não dispomos dos meios de comunicação
de massa que eles possuem.

Vocês, defensores dos direitos humanos, que estão nessa luta há mais tempo que eu, expliquem: como é que a direita pode estar no poder desde que eu me entendo por gente? Como, se é a direita quem mantém essa situação de exploração; se é ela quem sucateia os serviços públicos de qualidade; se é ela quem entrega a saúde, a educação, a própria vida dos seres humanos à cobiça das empresas privadas? Vocês podem me explicar como isso é possível?

Sim, a direita tem dinheiro. E dinheiro compra belos slogans e propagandas publicitárias, cabos eleitorais e panfletos. Mas será que o dinheiro também não compra mídia?

Pra quem acha que estou falando de matéria paga, permita-me elevar o debate. Embora as reportagens encomendadas existam – e aos píncaros – a esquerda precisa atentar para algo maior: o sentido político da mensagem transmitida. Como as empresas que oligopolizam a mídia no Brasil defendem os interesses da direita, a subjetividade veiculada estará a serviço desses interesses. Em outras palavras, o que chegará à população são estímulos a formas conservadoras/reacionárias de agir, pensar e sentir. De modo que a esquerda não pode se limitar à crítica do consumismo irrefletido; ela terá que buscar suas causas. Também a esquerda não poderá restringir-se à crítica das políticas fascistas de segurança pública; é sua obrigação denunciar os veículos de comunicação que sustentam este discurso. E assim por diante.

Lei de Imprensa: o oba-oba fora de hora e de lugar

Houve um grande oba-oba da imprensa, em benefício do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) e do Supremo Tribunal Federal, especialmente do ministro Carlos Ayres Britto, por conta do pedido de liminar e seu deferimento para sustar a aplicabilidade de preceitos da Lei de Imprensa.

Sem ler a decisão, supus que havia grande tolice na divulgação porque os vários dispositivos da Lei de Imprensa, que são incompatíveis com a Constituição, já não são aplicados faz tempo. O Poder Judiciário já cuidou de aniquilar os trechos da Lei de Imprensa não recebidos pela nova ordem constitucional, e faz isso desde que promulgada a Constituição, há 20 anos. Lendo a decisão liminar do STF, percebo que, mais do que inócua, ela é preocupante.

Para entender de que falamos, é preciso que o leigo saiba algumas coisas sobre o convívio entre leis diferentes. O mais importante é saber que as leis anteriores à Constituição de 1988 só valem, após a promulgação desta, na medida em que sejam compatíveis com a própria Constituição; cada artigo do Código Tributário, do Código Penal, da Lei de Imprensa e todas as demais leis anteriores a 1988, só vale na medida em que não conflite com a Constituição. Dispositivos que conflitem com a Constituição são chamados de "não-recebidos" na nova ordem constitucional. E são muitos. São milhares!

Ação desnecessária

Além disso, é preciso que o leigo se dê conta de que leis mais novas revogam as mais velhas. Quando o legislador aprova uma nova lei sobre um determinado tema (jornalismo, por exemplo), derroga as disposições em contrário, mesmo que não o diga expressamente.

Por isso, a propositura da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre a Lei de Imprensa se reveste de um caráter de grande inutilidade: a ação discute dispositivos que ninguém aplica, seja por que não-recebidos pela nova ordem constitucional, seja porque superados pela edição de leis mais recentes que derrogaram as leis anteriores.

Não era preciso, portanto, propor, em 2008, uma ADPF para descobrir que a Lei de Imprensa não se aplica aos espetáculos e diversões públicas (par. 2º do art. 1º da Lei de Imprensa). Tampouco era preciso julgar que estes espetáculos não estão sujeitos à censura. Até as pedras sabem que a Constituição de 1988 não recebeu tais restrições.

Discussões superadas

O mesmo se diga quanto à chamada indenização tarifada, aquela indenização para a qual a Lei de Imprensa prevê tetos de indenização em favor de eventuais vítimas. Os arts. 51 e 52 da Lei de Imprensa já não são aplicados há anos, em detrimento dos veículos de comunicação e em benefício dos ofendidos. Não precisava o STF se pronunciar sobre este tema, já superado.

Tampouco era necessário propor, nos vinte anos da Constituição de 1988, uma ADPF para obter o reconhecimento de que não há proibição de publicação nem há possibilidade de apreensão de meios de comunicação (arts. 60 a 63 da Lei de Imprensa).

Nenhum desses artigos da Lei de Imprensa foi recebido pela Constituição Federal, nem tem sido aplicado qualquer deles pela Justiça. Não era preciso uma liminar para reconhecer direito incontroverso, velho e óbvio.

A bisonha possibilidade de o ministro da Justiça mandar apreender jornais e revistas (art. 63 da Lei de Imprensa) não era adotada mesmo antes da Constituição. Suspender esse dispositivo (como pediu o deputado Miro Teixeira e fez o ministro Carlos Ayres Britto) é como julgar inconstitucional a escravatura ou a proibição do voto feminino: o Brasil já superou tais discussões e não tem cabimento discutir o tema, a esta altura. Mais do que desnecessária a ADPF, ela é nefasta, na medida em que ressuscita uma discussão morta e dá vida ao argumento superado pela história da democracia.

Dispositivos inconstitucionais

A inconstitucionalidade dos artigos referentes aos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), cometidos por meio da imprensa (arts. 20 a 24 da Lei de Imprensa), além de questionável, pouco mudou o cenário da liberdade de expressão. Primeiro, porque continua sendo crime caluniar, injuriar ou difamar em meio de comunicação. Segundo, porque as penas mínimas são idênticas e as penas máximas (maiores na Lei de Imprensa do que no Código Penal) tenderão a ser aplicadas sempre pelo máximo, porque a Justiça entende que a ofensa à honra, com ampla divulgação na imprensa, reclamará punição maior do que uma ofensa feita na privacidade do convívio social. A proteção que a Lei de Imprensa dá às autoridades públicas (nos arts. 20 a 24 referidos) fica suprimida, o que terá vantagens e desvantagens que o tempo demonstrará.

Já a inconstitucionalidade dos dispositivos meramente processuais da Lei de Imprensa é amplamente discutível, primeiro porque seu acolhimento veio desamparado de qualquer fundamento na decisão do ministro Carlos Ayres Britto; segundo, porque o estabelecimento de prazos é justamente a missão constitucional da Lei processual. Mas tampouco nesse tópico a decisão liminar na ADPF muda a cena da liberdade de expressão porque a Justiça já não as aplicava – caso do art. 57 e seus pars. 3º (prazo de cinco dias para contestar a ação judicial) e 6º (exigência de depósito para poder apelar à instância superior) e do art . 56 (prazo decadencial de 3 meses para propor ação de indenização).

Confusão inconsistente

Mas há um ponto, passado despercebido na cobertura jornalística, que diz respeito às restrições constitucionais contra o capital estrangeiro nas empresas jornalísticas. A liminar julgou inconstitucionais essas restrições impostas pela Lei de Imprensa, quando a Constituição – muito claramente – impõe restrições ao capital estrangeiro na mídia.

A liminar nesta ADPF implica em que as agências estrangeiras de notícias podem funcionar no Brasil sem registro (par. 2º do art. 2º da Lei de Imprensa); as brasileiras devem ser registradas (Art. 8º da Lei de Imprensa); as estrangeiras, não. É um absurdo que ao STF cabe rapidamente corrigir.

Uma leitura literal (e inconstitucional) da decisão do ministro Carlos Ayres Britto e da Lei de Imprensa levará um incauto a supor que a suspensão dos arts. 3º a 6º da Lei de Imprensa, determinada pela liminar na ADPF, implica em que é permitida a propriedade de empresas jornalísticas a estrangeiros e a sociedades por ações ao portador. Mais ainda, o incauto acreditará que estrangeiros poderão ser sócios de empresas jornalísticas. Pior, seria possível supor que a responsabilidade e a orientação intelectual e administrativa das empresas jornalísticas poderão caber a empresas ou organizações estrangeiras. Tudo porque o ministro Britto suspendeu os arts. 3º a 6º da Lei de Imprensa, onde as restrições ao capital estrangeiro estavam regulamentadas. Ao julgar inconstitucionais as restrições ao capital estrangeiro, a decisão liminar do STF criou confusão desnecessária e inconsistente.

Liberdade de expressão

O assunto é regido pelo art. 222 da Constituição e pela Lei Federal nº 10.610/2002, mas também (e parcialmente) pela Lei de Imprensa. A liminar concedida na ADPF acaba por dar foros de constitucionalidade ao controle da mídia pelo capital estrangeiro, o que é explicitamente proibido pela Constituição. É um rematado absurdo.

Cabe ao STF cassar a liminar nos pontos em que, a pretexto de proteger a liberdade de expressão, a liminar deferida pelo ministro Carlos Ayres Britto brigou não apenas com a própria liberdade de expressão, mas também com a Constituição.

Uma lei nova deve tratar do tema, de modo que cabe ao Congresso Nacional o próximo passo. Enquanto isso, os juízes de primeira instância (que a liminar não respeitou, ao impor a eles condutas e entendimentos que eles já adotavam) saberão cumprir a Constituição com cuidado; quando não o fizerem, caberá recurso, até ao próprio STF. Espera-se também que o assunto seja tratado com foco na defesa da liberdade de expressão: cada vitória liberdade de expressão sobre o arbítrio deve ser comemorada não apenas quando o tema é tratado em ação excepcional, perante o Supremo Tribunal Federal, mas sim – e principalmente – quando os juizes, na primeira instância, na segunda instância e nos julgamentos do próprio STF e do STJ derrubarem as barreiras contra a liberdade de expressão.