Democracia, mídia e formação do cidadão

Na década de 80, Norberto Bobbio analisou algumas das promessas não cumpridas da democracia, ao apresentar um contraste entre os ideais democráticos e seus resultados reais. Dentre essas promessas, a formação do cidadão sempre mereceu destaque. Praticamente todas as obras apologéticas da democracia moderna proclamam que só a educação poderia transformar um súdito num cidadão. Não por meio de uma preparação escolar prévia, mas por um processo educativo resultante da própria prática da cidadania democrática. As instituições políticas formariam cidadãos ativos e comprometidos com os valores republicanos.

No entanto, mesmo em países onde a democracia representativa parece estar consolidada, a promessa moderna não se cumpriu. Ao contrário, assistimos a um processo generalizado de desinteresse pelas instituições públicas e de crescente apatia política. O que dizer, então, de um país como o Brasil, onde menos de 15% da população tem uma imagem positiva do Congresso Nacional! Haveria ainda sentido em se pensar a prática política institucional como principal instância de formação do cidadão?

A constatação de uma incapacidade crônica da vida política moderna para formar o cidadão ativo levou outras instituições e organizações sociais a adotarem o discurso da cidadania. Esse ideal passou a ser proclamado de uma forma tão ampla e difusa que parece ter se transformado num princípio ético-político capaz de congregar as forças sociais mais antagônicas – sindicatos, mídia, escolas, ongs, igrejas. É nesse contexto que as emissoras televisivas privadas, públicas e estatais passaram, em maior ou menor grau, a se identificar com esse esforço educativo.

É claro que tanto a responsabilidade educativa da mídia como a ampliação da preocupação com a formação cidadã devem ser louvadas. Não obstante, há um ponto crucial que merece exame crítico. Trata-se do risco de transformação da expressão “formação do cidadão” num slogan com forte apelo retórico, mas destituído de qualquer sentido claro e historicamente fundamentado. Em campanhas midiáticas e programas televisivos, ‘cidadania’ passou a ser a expressão comum dos mais diversos desígnios: ‘consumidor consciente’ ou ‘jovem altruísta’, trabalhador disciplinado ou voluntário caridoso, em suma, de toda sorte de condutas cuja reprodução deva ser incentivada. Ser cidadão transforma-se, assim, num traço de personalidade ou numa característica moral, em geral concebida como resultante da ‘consciência’ individual.       

Ora, o termo ‘cidadão’ é polissêmico e permite conceituações alternativas. Contudo, o que não pode ficar obscurecido, seja qual for a perspectiva que se tome, é seu caráter político. Caráter impresso, aliás, em sua procedência histórica, já que o termo do qual se origina – civitas – é a tradução romana para polis, essa experiência política singular que foi a cidade grega e que deu origem ao termo ‘política’.Numa polis, identificar alguém como ‘cidadão’ implicava afirmar seu pertencimento a uma esfera pública e política, em que compartilhava com seus iguais o exercício da liberdade e a gestão da coisa pública. Como sintetiza Hannah Arendt, o surgimento da cidade-estado [polis] significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu ‘bios politikos’. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que lhe é comum (koinon).

Daí porque a necessária vinculação entre a formação do cidadão e a existência de uma esfera pública (bios politikos) por oposição e complementaridade à dimensão individual e privada de sua existência. Ora, paradoxalmente é esta dimensão necessariamente pública e política do cidadão que parece tender ao desaparecimento na maior parte das iniciativas das mídias radiofônicas e televisivas que se identificam como esforços para a formação do cidadão.

Uma educação comprometida com os ideais da cidadania não resulta da mera difusão de informações pretensamente capazes de ‘despertar a consciência moral’ para que ‘cada um faça a sua parte’. Ao contrário, ela deve afirmar por seus atos, imagens e palavras o compromisso incessante para com a instituição e a preservação de uma esfera pública, de um mundo simbólico e material compartilhado, no qual o cidadão não seja concebido como um indivíduo cumpridor de deveres exteriormente concebidos e comunicados, mas como agente responsável pela criação e gestão da coisa (res) pública, ou como diriam os gregos, da bios politikos.

* José Sérgio Carvalho é professor de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo FE USP e autor de Educação, Cidadania e Direitos Humanos (Vozes, 2004)

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *