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Comunicação, o desafio da esquerda

Por que jornais e revistas de esquerda penam para decolar no Brasil? Boicote dos anunciantes? Sabotagem dos distribuidores? Incompetência dos profissionais? Falta do que dizer ou não saber como dizer? E, se for um pouco de tudo isso, como superar? O volume deses jornais e revistas hoje é insuficiente – em circulação ou tiragem – para fazer frente à imprensa conservadora. É verdade que poucas atividades são tão arriscadas quanto o jornalismo. Ainda mais em tempos de revolução tecnológica. Anunciantes pesados desaparecem de um dia para o outro. Basta lembrar casos como Varig, Banco Santos, BRA. Os donos do dinheiro não investem no jornalismo impresso pela taxa de lucro, que é baixa; entram pelo prestígio, para fazer política, ou para mamar em verbas de publicidades governamentais.

Mesmo assim, três dos maiores jornais brasileiros quebraram na última década. O Estadão virou refém de bancos credores. Gazeta Mercantil e Jornal do Brasil foram comprados por um empresário especializado em arrematar empresas na bacia das almas.

A maior central sindical brasileira, a CUT, com milhares de sindicatos filiados, em 24 anos de existência nunca conseguiu lançar um jornal ou revista de expressão nacional ou mesmo regional. O PT, um dos maiores partidos políticos do mundo, com 27 anos de vida e mais de 800 mil filiados, só mantém uma anêmica revista, Teoria & Debate, de 6 mil exemplares bimestrais.

No Chile, as dificuldades do mercado jornalístico devem ser ainda maiores, porque a população é muito menor, mas o Partido Comunista chileno, com menos de 5% dos votos, leva às bancas seu jornal, toda semana. Na Bolívia, na Venezuela, na Argentina, em países da Europa, circulam jornais de diversos matizes de esquerda, que contestam as políticas dominantes. No Brasil, há meia dúzia de revistas de baixa circulação e nenhum jornal diário. A esquerda brasileira parece não atinar para a importância estratégica da comunicação.

Uma das razões do fracasso de jornais e revistas declaradamente de esquerda é a dificuldade que bons projetos encontram para não sucumbir ao sectarismo ou a disputas internas. Essa característica enterrou quase toda a imprensa alternativa nos anos 70 e contribuiu para a crise do Jornal dos Trabalhadores e do Brasil Agora, duas tentativas de vida curta de fazer circular um órgão oficial de informação do PT.

Outro motivo dos fracassos é a linguagem, doutrinária, distante do cotidiano do povão. Muitos slogans, poucos fatos e pouca reportagem. É o que acontece, por exemplo, com o jornal do MST, o Brasil de Fato. A linguagem tem de ser contemporânea, aberta, e não refletir pensamentos que não se renovam. O novo Pasquim e a revista Bundas, por exemplo, que não eram de esquerda, mas de contestação, fracassaram porque seu humor envelheceu.

No mundo sindical, em que o lançamento de um jornal nacional poderia até mesmo economizar recursos, ao consolidar grande universo noticioso, ainda predominam a atomização, o atrelamento da comunicação aos interesses políticos do grupo dirigente ou, na melhor hipótese, às lutas locais da categoria. São centenas de veículos que influenciam a base social, mas não conseguem romper o monopólio dos grandes veículos oligárquicos de comunicação de massa.

Focos de resistência

Hoje, o barateamento dos custos levou a uma explosão de revistas de pequena circulação, inclusive revistas temáticas de alto padrão editorial, em todos os campos do conhecimento e da atividade humana. Nos últimos dez anos, de 1996 a 2006, o número de títulos de revistas aumentou em quase 80%, apesar da circulação total ter caído 12%. A tecnologia tornou viáveis revistas de menor circulação. É a fragmentação do mercado. Mesmo assim é ínfimo o número de revistas novas de esquerda, centro-esquerda.

Algumas formas desse tipo de jornalismo, embora de circulação pequena, conseguem incomodar a grande imprensa. São empreendimentos diferentes, mas liderados por personalidades jornalísticas fortes, que não entregam os pontos facilmente. Esse era o traço comum dos condutores dos jornais alternativos dos anos 70. Três desses integrantes da “velha guarda” alternativa que permanecem ativos são Raimundo Pereira, fundador de Opinião e Movimento, que hoje dirige o projeto Retratos do Brasil; Elmar Bones, um dos fundadores do Coojornal e atualmente diretor do mensal Já e de seu associado Jornal do Bairro, em Porto Alegre ; e Sérgio de Souza, fundador do Bondinho, que há dez anos está à frente da revista mensal Caros Amigos.

Caros Amigos, mesmo com sua imagem consolidada e indiscutível prestígio, recebe pouquíssima publicidade e não sobreviveria se dependesse dela. A solução é diversificar. O site tem alguns anúncios e lojinha virtual. A editora, Casa Amarela, publica um fascículo paradidático e livros que “ajudam um pouco” a manter a empreitada, diz Sérgio de Souza. O site promove a revista, que por sua vez promove o site, ambos vendendo livros e assinaturas.

Outro ingrediente forte de Caros Amigos, sua linha editorial, evita o ranço doutrinário e trata das questões mais pela ótica da contracultura e dos valores. Também valoriza a reportagem. A edição de novembro, por exemplo, traz uma entrevista inédita com Harry Shibata, o médico que assinava atestados de óbitos fajutos das vítimas da ditadura. Nos últimos anos a revista assumiu mais claramente uma posição à esquerda, em sintonia com o que vem se passando no Brasil e na América Latina. Tira 40 mil exemplares e tem 10 mil assinaturas.

Quase no extremo oposto, Retrato do Brasil é assumidamente doutrinário, embora não panfletário. São fascículos temáticos de qualidade que já circularam em banca e hoje são vendidos agrupados, na forma de enciclopédia. Já foram vendidas 6 mil coleções para bibliotecas. Está na segunda edição, revista, de 5 mil exemplares. É uma mostra da má vontade do sistema em relação a uma imprensa de contestação. “Apesar de sua qualidade editorial ter sido reconhecida por dirigentes do MEC, nunca foi incluída nas compras do governo para distribuir a professores e alunos”, reclama Raimundo Pereira. A muito custo, vende coleções para algumas prefeituras, como as de São Paulo e Belo Horizonte, e governos estaduais, como Paraná e Pernambuco.

No final de novembro, Raimundo foi surpreendido pela decisão da revista Carta Capital – a mais independente e progressista das semanais – de romper um convênio patrocinado pela Petrobras para publicar dez encartes temáticos de Retratos do Brasil. Estavam no quarto encarte. Raimundo atribui essa decisão a uma divergência editorial – ter “pegado pesado” em Al Gore e na moda das grandes empresas de se apresentarem como socialmente responsáveis, em conluio com a grande imprensa. Resultado: começa a passar por novo teste nas bancas, lançando 20 mil exemplares.

Viabilidade comercial

Dois projetos totalmente diferentes, o de Elmar Bones, em Porto Alegre , e o coordenado pelo jornalista Celso Horta, no ABC paulista, têm em comum a identificação com comunidades bem definidas. No entanto, ambos acabam de ter surpresas desagradáveis, o que mostra os perigos que rondam a imprensa alternativa. Celso Horta valeu-se do apoio de prefeituras numa região com forte presença de esquerda lançando o ABCD Maior, jornal que começou mensal e logo se tornou o quinzenal de maior circulação na região, com 70 mil exemplares. Quando o jornal fazia planos para virar semanal, divergências políticas em torno das eleições municipais, em 2008, afetaram a publicidade. “Projetos não podem depender de apoio político”, reclama Celso Horta. “Ou se montam os projetos com base comercial, ou não sobrevivem.” A mesma advertência é feita por Elmar Bones, do jornal Já, de Porto Alegre: “O que menos vale é contar com apoio do governo”, alerta. “A Caixa, por exemplo, de um contrato de publicidade de 100 mil reais, até hoje só pagou 20 mil.”

Além do alternativo mensal Já, com 21 anos de existência e vencedor de vários prêmios jornalísticos, ele tem outra publicação perto também dos 20 anos. O Jornal do Bairro tirava quatro edições distintas, mas o Zero Hora, do grupo monopolista RBS, passou a publicar cadernos de bairro, solapando seu mercado. Hoje tira só uma edição de 10 mil exemplares, distribuídos gratuitamente em dez bairros centrais de Porto Alegre, em que vivem 250 mil pessoas. Sobrevive de pequenos anúncios.

Com a recente aquisição do controle acionário da petroquímica Copesul (60%) pela Braskem, foi suspensa toda a publicidade das duas empresas no Já. O Já vinha tirando 5 mil exemplares, dos quais vendia 2.500. Elmar também publica livros, com 30 títulos já lançados, e se vale da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. Para sobreviver aos últimos golpes lançou o Já na forma de revista temática, com tiragem de 6 mil exemplares em banca e mais 6 mil por mailing – remessa para cadastro de interessados. O modelo facilita a captação de anúncios e de apoio institucional, alem de ser mais durável. A publicação sai em formato de jornal, mais barato, mas sem periodicidade definida, só quando surge algum assunto mais “quente”. Uma espécie de “guerrilha jornalística”.

Um caso interessante de revista que teve de negar parte da identidade para sobreviver é o da Raça Brasil, mensal, que vende quase 700 mil exemplares. É um sucesso, mas já passou pelo pior, quando anunciantes não queriam associar sua imagem à dos negros. A revista abandonou sua linha editorial de contestação, virando revista de moda e cosméticos para consumo de uma nova pequena burguesia negra. Lentamente, segundo seu fundador, Big Richard, anúncios começaram a chegar. Dez anos depois de lançada, repleta de anúncios dedicados à beleza, Raça Brasil só se distingue das revistas convencionais da Abril pela cor dos corpos que enaltece.

Furar o bloqueio

Um dos problemas da imprensa alternativa dos anos 70 era a distribuição. Para ter alcance nacional, como era o projeto político dos partidos que sustentavam alguns jornais, era preciso imprimir 20 mil exemplares. Se vendia menos, como acontecia com a maioria, era prejuízo certo. Em reação à internet, os grandes grupos editoriais tentam manter o domínio de mercado através do controle dos canais de comercializaçã o, como acaba de acontecer com a compra da segunda maior distribuidora brasileira, a Fernando Chinaglia, que tinha 30% do mercado, pela Dinap, do grupo Abril, então dona dos outros 70%. A Abril, que já concentra maioria esmagadora da publicidade em veículos impressos, criou agora um monopólio na distribuição aos pontos-de-venda e ganhou muito mais poder para complicar a vida dos concorrentes.

Para o jornalista Renato Rovai, fundador da revista Fórum, já complicou: a nova empresa, Tree Log, exige agora tiragem mínima de 30 mil exemplares para distribuição nacional. Fórum nasceu do Fórum Social Mundial. Produto de uma geração de jornalistas contestadores formada após a redemocratizaçã o do país, é assumidamente de esquerda e com muito custo e perseverança completou seis anos. Mas não tira ainda 30 mil exemplares. Os prejuízos são habituais. Quase sem publicidade, sobrevive graças à venda de cotas a entidades ligadas ao movimento e à receita obtida por outros produtos e serviços de sua editora, a Publisher Brasil.

Raimundo Pereira minimiza o problema da circulação, dizendo que algumas minidistribuidoras fazem o serviço miúdo de coleta e devolução do encalhe que as grandes rejeitam. Custa mais, mas é uma alternativa ao obstáculo. Elmar Bones também enfrentou problemas em banca. O papel do Já amarelava rapidamente e os jornaleiros tiravam da exposição. A tiragem de Caros Amigos está acima do mínimo, mas abaixo da escala em que ganharia mercado das revistas convencionais. Ajuda a boa base de assinantes.

Nilson Viana, do MST, está assustado com a formação do monopólio de distribuição. Em entrevista ao site Observatório do Direito à Comunicação, ele diz que há um mês a Fernando Chinaglia começou a impor uma série de exigências novas como parte da nova gestão, inclusive “metas de venda”. É um caso claro de ameaça potencial à livre circulação da informação. A fusão deveria ser impedida liminarmente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia subordinada ao Ministério da Justiça. Mas quem confia no Cade? Renato Rovai considera que uma solução seria acionar os Correios. Para ele, o governo deveria instruir a estatal a criar um serviço próprio de distribuição de revistas, para combater o monopólio ou ao menos servir de parâmetro para as tarifas cobradas.

O problema é que o governo nem sequer tem uma política que estimule a produção alternativa de comunicação. Adormece em Brasília há quatro anos uma proposta de distribuição mais equilibrada das verbas de publicidade, de modo a garantir uma cota que minimamente assegure os veículos alternativos – em respeito ao seu enorme público potencial e à democratização do acesso à informação. Além de deter o monopólio da audiência e da distribuição, as grandes emissoras de rádio e TV e a mídia conservadora comercial ainda absorvem quase toda a receita publicitária dos órgãos públicos e das estatais. O monopólio na distribuição ameaça principalmente as revistas que almejam circulação ampla, capazes de competir em escala com revistas da própria Abril, como é o caso desta Revista do Brasil, que já tira 360 mil exemplares distribuídos pelas entidades sindicais que a criaram e está começando a chegar às bancas (leia mais sobre o projeto no editorial, à pagina 5).

A solução na internet

Se eu fosse hoje fazer um projeto de um jornal de influência nacional, optaria por um site na internet, de alto padrão jornalístico, capaz de gerar sua própria reportagem, com colunas analíticas e interpretativas e uma janela de TV Web, para debates. Uma espécie de UOL de esquerda.

O UOL anuncia que tem 1,7 milhão de assinantes e 9 milhões de visitantes. Quase tanto quanto a tiragem total de todos os diários brasileiros. A internet é comunicação de massa e é a grande chance do campo popular, pelo seu baixo custo de produção, modernidade, facilidade de circulação e acesso. E não precisa de concessão do governo. Há no Brasil 40 milhões de internautas e 866 mil domínios, ou seja, sites, jornais e blogs com o final “br”. No mundo são 110 milhões de blogs. É um universo de comunicação totalmente interativo, dotado de grande capacidade de articulação dos movimentos sociais.

Carta Maior, um dos mais importantes sites de debate político e ideológico no Brasil, é internet pura. Debates ao vivo pela sua TV Web atraem milhares de internautas numa única transmissão. Repórter Brasil é outro projeto internet pura. Quando foi lançado por Leonardo Sakamoto, dedicava-se à denúncia de trabalho escravo e degradante. Hoje conta com 30 jornalistas, uma grande diversidade de projetos e muitas fontes de patrocínio. Um sucesso.

O site do ABCD Maior já é tão importante quanto o jornal impresso e se tornou o carro-chefe do projeto local, que tem também um programa diário de rádio de 30 minutos, permitindo ao público intensa participação nos debates dos problemas da região. A esquerda já descobriu a internet, mas ainda falta entender seu potencial revolucionário.

* Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários livros sobre jornalismo

 

A Globo e a operação de umbigo

A Globo está se anunciando a si mesma. Recrutou as estrelas de seu maior firmamento e, numa revoada alvar de sorrisos e figurinos, sai por aí festejando os méritos que ela própria se atribui. Antes, o Almanaque Capivarol. Hoje, a Rede Globo de Televisão.

É normal, mas, no caso da Globo, é também instigante. A cavaleiro de seu poderio quase hegemônico, vislumbrando aquela planície de concorrência zero, a emissora sempre se deu ao luxo de ser parcimoniosa na contemplação do próprio umbigo. Tem, claro, aquela coisa feérica de final de ano, os arrancos ufanistas do Galvão Bueno e os surtos periódicos do Pedro Bial, o biógrafo do patrão. Mas, olímpica no seu pódio de qualidade tecnológica e competência artística, à Globo bastava olhar em volta e descer sobre o território hostil o véu de sua superior indiferença.

Agora a Globo precisa reiterar e reiterar, além do surrado bordão da qualidade, seu angelical compromisso com conceitos como “liberdade de opinião” e “credibilidade”. Foi o que, com compreensiva incredulidade, este colunista julga ter ouvido enquanto bailavam à sua frente Regina Duarte, Tony Ramos, William Bonner, Fátima Bernardes.

A Globo domina um padrão artesanal de qualidade que é inegável. Aprendeu com o Boni, lá no passado, e ainda não conseguiu desaprender completamente. Por que, então, mentir no que diz respeito a uma pluralidade de opinião que ela jamais cultivou? Cidadania, democracia, liberdade, justiça social são assuntos que a Globo encaminha diretamente para o Departamento Comercial. Princípios, na Globo, vão dormir no setor de achados e perdidos.

Estará ela, então, reagindo ao bafo quente da Record, enfim uma concorrente à altura? A implacável perseguição da Globo e de seus alto-falantes aos evangélicos obedece a uma lógica humanitária ou
é que, de olho na Record, seus bolsos começaram a coçar? Enquanto isso, dá-lhe anúncio.

“Qualidade só se vê na Globo.” Não é bem assim, mas esperteza, pelo menos, a emissora dos Marinho ainda exercita. Convém reconhecer. Monopolista das transmissões esportivas no Brasil, ela parece ter entendido que futebol tem sutilezas que nem sempre a razão reconhece.

A notícia da semana é que a Globo vai transmitir, a partir de maio, a Série B do Campeonato Brasileiro. Brilhou na cabeça de alguém a óbvia idéia de que a graça do futebol, no Brasil, sempre estará onde o Corinthians está. A tal Série A, podem escrever, produzirá um sono de cemitério.

O resultado é que Luciano Huck passa a sair, aos sábados, meia hora mais cedo para dividir com Angélica os cuidados da prole. Perde uma fatia do seu programa sem drama, sem choradeira. Huck é o primeiro a saber que, no entertainment canarinho, a prioridade sempre há de ser aquela magia preto-e-branco.

O silêncio e a calúnia

Pergunto aos leitores: em qual país democrático e civilizado a saída de um jornalista do peso de Paulo Henrique Amorim de um portal da importância do iG seria ignorada pelo resto da mídia? Na imprensa, a notícia só mereceu uma lacônica nota na Folha de S.Paulo, no vídeo o registro pela TV Senado de um discurso do senador Inácio Arruda, do PCdoB do Ceará, a lamentar o episódio e solidarizar-se com Amorim.

E o episódio não somente é muito grave, mas também altamente representativo da prepotência dos senhores, acobertados pelos seus sabujos midiáticos. O espetáculo da tartufaria não é surpreendente. Não cabe espanto, sequer um leve assomo de perplexidade. Tudo normal, na Terra brasilis, tão distante, tadinha, da contemporaneidade do mundo. Porque não há país democrático e civilizado onde o abrupto afastamento de um profissional tão honrado e competente quanto Amorim não teria repercussão na mídia, imediata e profunda.

Não faltaria a busca das razões que levaram o iG a agir de forma tão violenta, ao tirar Conversa Afiada do ar sem aviso prévio, ao lacrar o computador do jornalista e enxotar o pessoal da equipe da sede do portal. Bastaria este comportamento para justificar a repulsa da categoria em peso e a investigação dos interesses envolvidos, necessariamente graúdos.

Pelo contrário, ouviu-se clangoroso silêncio, quase a insinuar que, se a mídia não o noticia, o fato não aconteceu. Que diria Hannah Arendt ao verificar que no Brasil há cada vez menos “homens dispostos a dizer o que acontece e que acontece porque é”, de sorte a garantir “a sobrevivência humana”?

Pois o fato se deu, e não se exigem esforços mentais einsteinianos para entender que os donos do iG (Brasil Telecom, Fundos e Daniel Dantas) decidiram abandonar Amorim ao seu destino. Não é difícil também enxergar como pano de fundo o projeto de fundir Brasil Telecom com Oi, a ser executado com o apoio do BNDES, e portanto do governo federal, a configurar mais um clássico do capitalismo sem risco de marca tipicamente brasileira.

Ocorre-me comparar o mutismo atual diante de um fato tão chocante com a indignação midiática que, recentemente, submergiu a campanha de ações movidas em juízo por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus contra a jornalista Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo, autora de reportagem sobre o êxito empresarial da Iurd. Não está claro até o momento se o Altíssimo acudiu o bispo Macedo e seus prosélitos, mas é certo que, se o fez, ou o fizer, terá de enfrentar a ira da mídia nativa.

Foi um coro de manifestações a favor da liberdade de expressão ameaçada, um rosário de editoriais candentes, de colunas vitriólicas, de comunicados de entidades representativas da categoria. A saber, Fenaj, ABI, ANJ, Abraji, sem contar a associação dos correspondentes estrangeiros (OPC). Ah, sim, a famosa liberdade de imprensa. A mídia verde-amarela não hesita em defendê-la, quando lhe convém. Permito-me concluir que, no caso de Paulo Henrique Amorim, não lhe convém.

Recordo episódio similar que me diz respeito. A minha saída de Veja em fevereiro de 1976. Vai às livrarias na segunda 31, lançado em Curitiba, um livro de memórias de Karlos Rischbieter, presidente da Caixa Econômica Federal no começo do governo do ditador de plantão Ernesto Geisel, depois transferido para a presidência do Banco do Brasil e enfim ministro da Fazenda de outro plantonista, João Batista Figueiredo. Ficou por um ano, saiu contestando as políticas que a ditadura pretendia levar adiante.

Escreve Rischbieter em um dos capítulos:

“No começo de 1975 deu entrada na Caixa um pedido de financiamento do Grupo Abril. O pedido era de um financiamento que equivalia a 50 milhões de dólares, para consolidação de várias dívidas, em grande parte em moeda estrangeira. O pedido foi analisado pelo pessoal competente, recebeu parecer positivo e foi aprovado pela diretoria. Mas faltava a aprovação do Governo. E Armando Falcão, ministro da Justiça e guardião dos “valores revolucionários” vetou o financiamento com o argumento de que a Veja, carro-chefe das publicações do grupo, e que tinha como diretor Mino Carta, era sistematicamente antigoverno. Em seu livro autobiográfico, O Castelo de Âmbar, Mino conta com detalhes o episódio que culminou com sua saída do Grupo Abril. Eu tentei, no meio da discussão, convencer o general Golbery a assumir o controle da situação e convencer o presidente a vetar o veto do ministro da Justiça. Mas foi em vão. O empréstimo só foi aprovado quando Mino Carta deixou a Veja no começo de 1976”.

In illo tempore colegas de profissão também silenciaram, com exceção do jornal do sindicato paulista. Em compensação, alguns insinuavam, quando não afirmavam, que eu prestava serviço ao chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, quem sabe em troca de vantagens financeiras. Tempos depois, em 1979, Figueiredo no poder, um célebre jornalista escreveu um texto na Folha de S.Paulo intitulado “De João a Mino, os donos do poder”. João Figueiredo, está claro. Apresentava-se ali a seguinte tese: “Lá na outra ponta do bonapartismo, em versão microscópica e virulenta, está o jornalista Mino Carta, mini-representante do mandonismo local, que apoderou-se da abertura política concebida e instrumentada pelo general Golbery do Couto e Silva, seu amigo e aparente protetor, para pontificar sobre o que é certo ou errado”.

Vinte anos depois, em 1999, outro jornalista de larga nomeada escreveu um livro para recuperar o tempo perdido e disse que eu fui demitido da Veja. Nada disso, esta é a versão do patrão. Eu me demiti, para não ter de levar as moedas da Editora Abril, e não seriam trinta dinheiros. Mas, desde a eleição de Lula em 2002, há quem sustente, periódica e inexoravelmente, que CartaCapital está a serviço do governo. Eis aí, inúmeros jornalistas nativos não conseguem imaginar um colega digno que não se porte igual a eles.

* Mino Carta é diretor de redação da Carta Capital

Comissão Hutchins: o velho (novo) paradigma faz 61 anos

Março é o mês de aniversário do famoso relatório da Hutchins Commission – "Uma imprensa livre e responsável" (A free and responsible press) – publicado em 1947, nos EUA. A Comissão, formada por 13 personalidades do mundo acadêmico e empresarial, financiada pelo grupo Time Life e pela Enciclopédia Britânica, foi presidida pelo então reitor da Universidade de Chicago, Robert M. Hutchins. Criada em 1942, no correr da Segunda Guerra Mundial, antecipando as mudanças que estavam por vir e respondendo a uma onda crescente de críticas à atuação da mídia, a Comissão tinha como objetivo principal definir quais eram as funções da mídia na sociedade moderna. Objeto de muitas críticas ao longo dos seus 61 anos, o relatório da Hutchins Commission deu origem à chamada teoria da responsabilidade social da mídia.

Responsabilidade social

A responsabilidade social (RS) não é um conceito novo e sua origem está associada à filosofia utilitarista que surge na Inglaterra e nos Estados Unidos no século 19, de certa forma derivada das idéias de Jeremy Bentham e John Stuart Mill.

Nos anos pós-Segunda Grande Guerra, a RS se constituiu como um modelo a ser aplicado às empresas em geral – e às empresas jornalísticas norte-americanas, em particular – e começou a ser introduzida por meio de códigos de auto-regulação estabelecidos para o comportamento de jornalistas e de setores como rádio e televisão. Esse modelo está ligado diretamente à defesa da liberdade, inclusive à liberdade de imprensa e ao desenvolvimento do capitalismo e dos direitos civis.

A RS se baseia na crença individualista de que qualquer um que goze de liberdade tem certas obrigações para com a sociedade – daí seu caráter normativo. Na sua aplicação à mídia, é uma evolução de outra teoria da imprensa – a libertária – que não se preocupava em garantir um fluxo de informação em nome do interesse público. A RS aceita que a mídia deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, mas subordina essas funções à promoção do processo democrático e ao esclarecimento do público ("o público tem o direito de saber").

Cinco pontos

O relatório da Hutchins Commission resumiu as exigências que os meios de comunicação teriam de cumprir em cinco pontos:

1. Propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de opinião);

2. Servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;

3. Retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;

4. Apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo; e, por fim,

5. Distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

Esses cinco pontos se tornariam a origem dos critérios profissionais do chamado "bom jornalismo" – objetividade, exatidão, isenção, diversidade de opiniões, interesse público – adotado nos Estados Unidos e presente nos Manuais de Redação de boa parte dos jornais nas democracias liberais.

Lições contemporâneas

Em livro lançado recentemente nos EUA (The Big Picture – Why Democracies need Journalistic Excellence; Routledge, 2008) o jornalista Jeffrey Scheuer chama a atenção para o fato de que o relatório da Hutchins Commission estabeleceu um precedente ajudando a legitimar a crítica da mídia como uma atividade importante das democracias maduras. Além disso, o relatório talvez tenha sido responsável por uma mudança fundamental de paradigma no jornalismo: da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa.

Teria essa mudança de paradigma de fato ocorrido? Ela chegou ao Brasil?

Talvez o jornalismo brasileiro ainda tenha algo a aprender com o velho relatório da Hutchins Commission. Talvez já seja tempo de os empresários de mídia – que hoje incluem os donos, controladores e gerentes de provedores de internet – se darem conta de que os tempos são outros e a consciência dos direitos individuais e coletivos avança e ganha força dia a dia em camadas cada vez mais amplas de nossa população.

O sucesso empresarial da indústria privada das comunicações – da qual fazem parte as empresas de telecomunicações, seja através da distribuição de conteúdo ou do provimento de tecnologia – está cada vez mais ligado ao respeito aos direitos de comunicação do cidadão consumidor. Talvez seja tempo de pensar menos no surrado "escudo" da ameaça "de fora" à liberdade de imprensa e pensar mais na responsabilidade social daqueles que escolheram a mídia como atividade profissional e empresarial.

Com 61 anos de idade, o velho relatório da Hutchins Commission – "Uma imprensa livre e responsável" – permanece novo, válido e atual, pelo menos entre nós.

Era mesmo preciso suspender a Lei de Imprensa?

Aos 27 de fevereiro último, em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou por maioria de votos a liminar suspensiva de 20 artigos da Lei de Imprensa, determinando, ainda, que os processos então movidos com base na referida legislação seguissem os código civil e penal, no que cabível, até o julgamento final de mérito que deverá ocorrer em até seis meses.

Nosso objetivo nesse texto é procurar esclarecer de que modo a suspensão de vigência dos artigos 20, 21, 22 e 23 da Lei de Imprensa repercutirá justamente nas mencionadas áreas do direito, mormente na esfera penal.

A princípio, em juízo apressado, parece-nos que suspender parte de uma legislação não é a melhor técnica pelo fato de que a outra parte continua em vigor. Mandou-se aplicar os códigos civil e penal para os processos em andamento, mas e quanto ao procedimento para julgamento dos crimes? Segue-se o 519 do CPP? Sim, é certo que a quantidade de pena aplicada em abstrato para os crimes contra a honra admite a incidência da lei 9.099/95, mas não em todas as situações, assim, por exemplo, em caso de calúnia contra o presidente da República, ou chefe de estado estrangeiro e ainda, contra funcionário público no exercício de suas funções (Código Penal artigo 141, incisos I e II).

Não sendo hipótese de incidir a Lei 9.099/95 ou porque o réu já se beneficiara com a transação penal no qüinqüênio anterior (artigo 76, inciso II da lei 9.099/95), ou pelo motivo das circunstâncias do artigo 89 não favorecem a proposta de suspensão do processo, ou mesmo pelas causas de aumento da pena já citadas, convertido o rito em ordinário, segue-se, o Código de Processo Penal já referido, ou os artigos 40 e seguintes da Lei 5.250/67, ainda em vigor, e com aplicação especial? Entretanto, de que maneira seguir-se esse rito, se os crimes contra a honra ali previstos perderam temporariamente a vigência?

A resposta, ao que parece, será a mesma do conflito entre as Leis 10.409/02 e 6.368/76. Sabe-se que a primeira previu procedimento próprio, mas no que tange aos crimes e penas, a segunda manteve-se vigente e eficaz. Para o que restou da Lei de Imprensa deve-se aplicar o mesmo raciocínio, porque é o mais simples, “data venia” e porque a mencionada legislação cuida não apenas de procedimento processual penal, mas de prescrição (artigo 41), de decadência do direito de queixa e representação, de defesa prévia com prazo de cinco dias, dentre outras especificidades, além de que outros crimes mencionados na Lei 5.250/67 ainda estão em vigor (como o artigo 14, por exemplo) situações às quais apenas uma novel legislação poderá sanar.

A propósito já era o ensinamento de Mirabete anotando o artigo 519 do Código de Processo:

“Refere-se o disposto apenas aos crimes de competência do juiz singular, do processo comum, já que há leis processuais especiais a respeito de crimes contra a honra previstos na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), no Código Penal Militar, no Código Eleitoral, na lei de Segurança Nacional e no Código Brasileiro de Telecomunicações. Além disso, nos processos originários dos Tribunais há rito processual próprio”. [Código de Processo Penal Interpretado, 5ª edição, 1997, Atlas, página 658]

No que tange à parte de reparação civil, a qual se escreve aqui somente “en passant”, o Código de 1916 já previa a indenização por calúnia, injúria e difamação, no artigo 1.547, cuja redação foi quase que repetida pelo artigo 953 atual. Claro que um prazo decadencial inferior para ajuizar-se a reparatória, bem como limites de indenização, prazos exíguos para se contestar e exigência de depósito recursal, há muito eram temas polêmicos na jurisprudência e foram, dessa feita, oportunamente suspensos.

Volvamos, contudo, à matéria criminal. Segundo se tem notícia, os fundamentos para suspensão dos artigos que cuidavam dos crimes contra a honra cometidos pela imprensa foram que as penas ali fixadas eram mais severas que as do Código Penal e em algumas situações impedia-se provasse a veracidade das acusações, ou seja, impossibilitava-se, em algumas hipóteses, a exceptio veritatis.

A título ilustrativo, na Lei de Imprensa a calúnia era punida na forma simples com pena de detenção de seis meses a três anos e multa de um a 20 salários mínimos da região (artigo 20, cabeça). No Código Penal, detenção de seis meses a dois anos, e multa (artigo 138). A difamação punia-se com detenção de três a dezoito meses e multa de dois a dez salários mínimos da região. No Código Penal, com detenção de três meses a um ano e multa. A injúria, com detenção de um mês a um ano ou multa de um a dez salários mínimos da região. No Código Penal, detenção de um a seis meses, ou multa.

Claro que os crimes contra a honra perpetrados pela imprensa chegam ao conhecimento de número de indivíduos infinitamente superior àquela calúnia entre dois condôminos e, se à consumação da injúria basta a ofensa chegue ao conhecimento do ofendido, a calúnia e a difamação exigem terceiros saibam das ofensas. Assim, a maior gravidade das sanções impostas na Lei de Imprensa justificar-se-ia, ao menos para a calúnia e para a difamação, devido ao alcance do número de terceiros. Isso sem contar que a Lei 5.250/67 é posterior à parte especial do Código Penal. Assim, haveria uma relação de sucessão de leis no tempo e na matéria: a Lei de Imprensa somente é de se aplicar aos crimes perpetrados pela imprensa após sua entrada em vigor e é especial em relação ao Código Penal devido ao número de terceiros que a matéria jornalística alcança.(“lex specialis derogat legi generali”). Portanto, parece-nos desproporcional punir-se com igual sanção a calúnia que chegou ao conhecimento do edifício “Anhumas” com a mesma pena daquela que foi comentada por pelo menos 500 mil leitores.

Por isso, não concordamos, “data maxima venia”, com os que advogam pela desnecessidade de uma Lei de Imprensa, porque em outros países tal legislação não há. Dizem ser de Aristóteles a parêmia “o direito não é igual ao fogo, que queima igual no Egito e na Pérsia”. Não é porque lá não há, que aqui não deve haver. Mas, é certo que uma nova Lei de Imprensa faz-se necessária, posto que deve abranger os periódicos on line e mesmo os inumeráveis blogs que assolam o mundo virtual.

Mas, isso é assunto para outro dia. No que tange aos crimes contra a honra perpetrados por militares aplica-se a legislação castrense. E em época de eleição, se determinada jornalista calunia, em tese, um deputado federal? As penas do Código Eleitoral para a calúnia, difamação e injúria (Lei 4.737/65), artigos 324, 325 e 326, são idênticas as do Código Penal. Assim, em princípio, incidem as normas eleitoreiras, pela razão de serem especiais frente ao Código Penal.

Finalmente, um tema, contudo, deve causar maiores questionamentos. A exceção de verdade. Constitui-se em procedimento pelo qual o denunciado (a) ou querelado (a) procura mostrar que a acusação de crime é verdadeira (no caso da calúnia) ou que constitui verdade a imputação do fato ofensivo à reputação de funcionário público no exercício de sua função (na difamação), não se admitindo na injúria, mesmo porque nessa última a honra protegida é subjetiva.

A decisão do plenário suspendeu a proibição de exceção da verdade para acusação de calúnia contra o presidente da República, do Senado, da Câmara, ministros de Estado, chefes de Estado ou governo estrangeiro, ou seus representantes diplomáticos (artigo 20 § 3 da Lei 5.250/67) e para o delito de difamação contra funcionário público no exercício de suas funções, ou órgão, entidade que exerça funções de autoridade pública, ou, se o ofendido permite prova (artigo 21 §§ 1º alíneas a e b da Lei 5.250/67).

A exceção da verdade não era exclusividade da Lei de Imprensa. Já a Consolidação das Leis Penais de 1932 impedia-a em caso de ofensa contra o presidente da República publicada pela imprensa, ou em desfavor de chefe de Estado Estrangeiro e os Código Penal e Eleitoral ainda prevêem aquelas proibições.

A razão de ser daqueles impedimentos é bem explicada por Magalhães Noronha quando doutrina: “A segunda ressalva ocorre quando indigitado for o Presidente da República ou o chefe de Governo Estrangeiro, abrangendo esta expressão não apenas o soberano ou presidente, mas também o primeiro ministro. Na hipótese inicial, compreende-se não deva ficar o chefe da nação sujeito a acusações de qualquer um, quando a magnitude de suas funções impõe que só responda perante o Senado ou o Supremo Tribunal Federal (CF artigo 86). No segundo caso, é dispensável encarecer a delicadeza do fato de se provar um crime praticado por chefe de nação estrangeira, e desnecessário advertir das conseqüências que isso poderia ter nas relações internacionais”. [Direito Penal, atualizado por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, 2001,32ª edição, página 126]

Assim, suspensos os impedimentos da exceção de verdade para uma calúnia perpetrada contra o presidente Lula, “verbi gratia”, o jornalista agora poderá ajuizar a exceptio veritatis. Poderá mesmo, se o que foi suspenso na Lei de Imprensa é repetido no Código Penal? Ou houve suspensão das duas normas? Também do disposto no artigo 324, § 2º, inciso II do Código Eleitoral? Será que apenas o jornalista poderá opor exceção de verdade contra o presidente da República, mas o cidadão, digamos, comum, seja ele senador, deputado, eu ou você, não? Ou liberou geral? Quer dizer: com a suspensão dos artigos 20, 21, 22 e 23 da Lei de Imprensa suspenderam-se igualmente os artigos já mencionados do Código Eleitoral e 138 § 3º, inciso II c/c 139 parágrafo único do Código Penal? Mais adiante, qual jurisdição será competente para julgar exceção de verdade de calúnia contra o presidente Hugo Chavez, sabendo-se que em caso de prerrogativa de foro a exceção avoca a competência? (artigos 523 e 85 do Código de Processo Penal).

Da forma que está o jornalista que caluniar o presidente da República pode provar que a acusação é verdadeira. Competirá ao Supremo julgar a exceção de verdade. Se a exceção for improcedente, o jornalista é de ser punido não com a Lei de Imprensa (que está suspensa na parte que comina crimes contra a honra), nem com o Código Penal, mas com a legislação específica da lei de Segurança Nacional, artigo 26 da Lei 7.170/83 — que ao que se saiba ainda está em vigor- ou seja, “a emenda saiu pior que o soneto”.

Ao se pensar que a suspensão do impedimento da exceção de verdade vigora não somente para os profissionais de imprensa, mas, ao reverso, em nome do princípio da igualdade vale para todos, toda e qualquer calúnia contra o presidente da República — que dirá daquela dita em jogo de futebol com “animus caluniandi” — poderá originar exceção de verdade com julgamento afeito ao plenário do Supremo Tribunal Federal, já tão carente de processos.

Assim, permitir-se esse vácuo legislativo para as sanções penais para uma profissão que já alguns alçaram ao quarto poder não nos pareceu a melhor saída, com o maior dos acatamentos, e mostrou-se muito mais ranço da época em que editou-se o diploma legislativo em apreço do que descumprimento de algum preceito fundamental.

Para uma atividade tão importante é necessária sim uma legislação especial e não ficarmos ancorados em aversões temporais, porque assim fosse toda legislação do período militar descumpriria algum preceito fundamental que a Constituição de 1988 nos legou em escala verdadeiramente democrática e expansiva.