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Comunicação é diálogo

Ninguém é dono da razão final a priori. A razão não se impõe pela propaganda, pelo monólogo do proselitismo. Ela só adquire validade quando faz sentido natural para o conjunto dos interlocutores – e comunicar é justamente isto: tecer o sentido comum. Comunicar é buscar pontes de entendimento. É dialogar.

Os responsáveis pela mediação do debate público não podem mais ignorar o fato de que nada é mais danoso – e enganoso – do que pôr os meios de comunicação a serviço de ideários prontos e fechados. Esse tipo de prática – em meios públicos ou privados, tanto faz – não constrói confiança, não estimula a divergência e a participação crítica, não emancipa o cidadão. Nos dias atuais, de inovações tecnológicas e políticas que não cessam, nenhuma sociedade gera um espaço público saudável na base da obediência e da concordância. Foi-se o tempo em que comunicação era um alto-falante na pracinha da província. Foi-se o tempo em que a receita era adestrar as massas.

As técnicas de massificação corroem a credibilidade dos próprios meios. Não promovem o encontro de opiniões complementares, não respeitam nem assimilam os pontos de vista alternativos – apenas militam para fazer prevalecer o interesse de quem exerce poder econômico ou político sobre a mediação do debate. Não raro, poder abusivo. A massificação até consegue potencializar fanatismos de diversas naturezas, mas não gera sabedoria compartilhada. Pode compactar as maiorias em momentos específicos, mas no longo prazo conduz à destruição. O século 20 é pródigo em exemplos trágicos – e, no século 21, ainda há quem insista em retomar e reeditar as fórmulas ultrapassadas.

Causas estranhas

Aos mais ansiosos os três parágrafos acima talvez soem genéricos, abstratos, descolados das atualidades ditas jornalísticas, dos dossiês da vida, da dengue desgovernada, dos congestionamentos. E, no entanto, essas palavras, assim mesmo, aparentemente vagas, tocam no âmago da qualidade do debate público e na capacidade que ele tem ou não tem de encarar e superar seus impasses. Eis aqui um dos temas mais graves dos nossos tempos. Um dos mais urgentes, também. Eis aqui um tema visceralmente jornalístico.

No universo da comunicação social brasileira, temos vivido sob o risco crescente da polarização extremada e suas deturpações inerentes: a desqualificação de quem diverge, a tentativa de dizimar a reputação alheia, a agressividade que se volta contra a pessoa sem se ocupar dos argumentos, as manipulações deliberadas. O mesmo risco pesa de modo particular sobre o jornalismo.

Embora não caiba, aqui, nenhum tipo de generalização, é possível notar, em alguns episódios, que notícias e manchetes são moldadas, voluntária ou involuntariamente, segundo uma lógica que tende a submeter o significado dos fatos a uma disputa meramente partidária e ocasional. Aí, o relato dos acontecimentos vira um acessório no embate oposição versus situação e o noticiário se reduz a um ringue em que se enfrentam as vaidades da esquerda, ou do que se diz esquerda, e da direita, ou daquilo que se supõe ser a direita.

De um lado, é notícia o que fere o governo. Do outro lado, é notícia o que desmoraliza a oposição. Onde estão os fatos? Onde estão as discussões de fundo? Onde está a realidade complexa e surpreendente? Será que o que define a essência de um veículo jornalístico, então, é isto: saber se ele é contra ou a favor desse ou daquele governo?

O jornalismo – assim como a comunicação social – não funciona adequadamente quando se deixa reger pelos parâmetros da lógica partidária. Ao se render a esses parâmetros, a imprensa renuncia a seu campo próprio e se converte em instrumento de causas estranhas ao direito à informação. A própria política – a política em seu sentido mais alto – sai prejudicada.

Partidos raivosos

Em vez de operar segundo ditames partidários de ocasião, cabe à imprensa observar e cobrir os partidos e suas escaramuças, vendo-os de fora. Os interesses dos partidos e dos governos devem representar, para os encarregados da comunicação social, não uma baliza para alinhamentos ou combates sistemáticos, mas um fenômeno externo. Infelizmente, contudo, se observarmos com cuidado, veremos que esse tipo de desvio ainda não foi totalmente superado. Entre nós ainda sobrevive uma concepção excessivamente instrumental dos meios de comunicação, que são vistos – e, por vezes, são administrados – como porta-vozes da corrente A ou B e nada mais.

Ora, sem prejuízo das visões de mundo que toma como missão – visões que jamais se deveriam rebaixar a programas partidários –, um órgão de imprensa alcança sucesso quando presta serviços e dá voz a seu público e quando abre novos canais entre os cidadãos. Sobretudo agora, com as novas tecnologias, o diálogo passa a ser o centro do sistema nervoso da comunicação. Os veículos ganham mais vitalidade quanto mais escapam da opacidade, quanto mais refletem a diversidade e quanto menos pretendem ser, eles mesmos, uma posição fechada a ser seguida pelo rebanho.

O Brasil precisa de pontes de diálogo – e só poderá obtê-las da qualidade de sua comunicação social, não das querelas partidárias. Há bons pensadores de um lado e de outro. Há homens públicos de valor dentro e fora do governo. Que suas idéias dialoguem no espaço público. Se a comunicação social e o jornalismo se deixarem formatar e organizar pelas trincheiras que partidos raivosos tentam imprimir sobre a realidade, não serão capazes de erguer as pontes necessárias. Continuarão, eles mesmos, entrincheirados. Abdicarão de seu compromisso com o público e com a busca da verdade – que, a propósito, não é monopólio nem de governos nem da oposição. 

Os novos terroristas da mídia

Poucas vezes uma reportagem foi tão distorcida quanto a do Jornal Nacional desta quarta-feira (9/4) a respeito do MST. Nos dois minutos e vinte e quatro segundos da matéria busca-se a criminalização dos camponeses; para tanto, imagens e palavras são cuidadosamente articuladas para transmitir ao telespectador a idéia de que os militantes do MST é quem são os responsáveis por todo o medo que ronda os paraenses.

Logo na abertura da matéria, o fundo escurecido por trás do apresentador exibe a sombra de três camponeses portando ferramentas de trabalho em posições ameaçadoras, como a destruir a cerca cuidadosamente iluminada pelo departamento de arte da emissora. Quando os militantes aparecem nas imagens, estão montando o acampamento e utilizando folhas de palmeiras – naturalmente já arrancadas das árvores. Quando a matéria corta para ouvir a opinião de um empresário local, ele tem ao fundo exatamente uma folha de palmeira, só que firme no solo – e vistosa, viva. O representante da Vale do Rio Doce é o que tem mais tempo para se manifestar, tanto tempo que até gagueja – e balbucia: "esses movimentos… estão [nos] impedindo de trabalhar". Em nenhum momento os representantes do MST são ouvidos, o que contraria, inclusive, as próprias regras do jornalismo da Globo. Mas quando os interesses comerciais de empresas amigas estão em jogo, no caso a Vale do Rio Doce, tudo indica que essas regras são postas de lado.

Outro dado marcante desta reportagem veiculada pelo Jornal Nacional é a descontextualização dos fatos. O telespectador é apenas informado que o MST “ameaça invadir a Estrada de Ferro Carajás, da Companhia Vale”, mas não se explica que esta ação direta tem uma origem: a privatização fraudulenta da Vale do Rio Doce. A companhia foi leiloada, em 1997, por R$ 3,3 bilhões. Valor semelhante ao lucro líquido da empresa obtido no segundo trimestre de 2005 (R$ 3,5 bi), numa clara demonstração do prejuízo causado ao patrimônio do povo brasileiro. Desde então, cidadãos e cidadãs vêm promovendo manifestações políticas e ações judiciais que têm por objetivo chamar a atenção da sociedade brasileira e sensibilizar as autoridades competentes para anular o processo licitatório. Se há uma diferença brutal entre discordar de uma determinada opinião e omiti-la, este caso torna-se ainda mais grave porque não se trata de uma opinião, e sim de um fato político: a privatização da Vale está sendo questionada na Justiça – e com grandes chances de ser revertida. Ao sonegar esta informação, a Globo comete um crime e deveria ser punida pelos órgãos competentes.

Com a mesmíssima parcialidade age o jornal O Globo. A reportagem publicada no mesmo dia sobre o MST não deixa dúvidas quanto ao lado assumido pela publicação. A chamada na capa diz tudo: “MST desafia a Justiça e volta a ameaçar a Vale”; o pequeno texto, logo abaixo, aprofunda a toada: “O MST ameaça descumprir ordem judicial e invadir novamente a ferrovia de Carajás, da Vale, no Pará. Moradores da região estão atemorizados, com a cidade cercada por mais de mil militantes do MST, a quem acusam de terrorismo”. A reportagem principal, à página 9, é acompanhada de outra de igual tamanho. Ambas ouvem apenas a versão da mineradora privatizada pelo governo tucano de FHC. Imediatamente abaixo, como a reforçar a visão policialesca, uma fotografia de um homem morto sobre o título: “Em Porto Alegre, um flagrante de homicídio”. Nenhum dos dois veículos (O Globo e JN) registrou o apoio recebido pelo MST por artistas, intelectuais e lideranças partidárias.

Esta falsa preocupação do “Globo” com a defesa do povo brasileiro não é de agora. O mesmo jornal que hoje sugere que os militantes do MST são terroristas por atemorizar os paraenses procedeu da mesma forma há 44 anos, quando um golpe de Estado derrubou o presidente constitucional João Goulart. Em texto editorial do dia 2 de abril de 1964, o “Globo” assinalou:

– Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas (…) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas (…), o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (…) Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente (…) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (…) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(…) A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.(…) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos (…).

Assim como para o “Globo” os inimigos do passado eram aqueles que se insurgiam contra a ditadura que seqüestrou, torturou e matou milhares de brasileiros, hoje os terroristas são aqueles que lutam contra as multinacionais que roubam o patrimônio público, danificam o meio-ambiente e produzem graves problemas sociais. É exatamente por isso que ao interromper o fluxo de exportação de uma dessas empresas os militantes do MST acertam em cheio no sistema nervoso do capitalismo. Dotados apenas de enxadas e coragem, os sem-terra enfrentam jagunços armados, policiais e poderosos grupos de comunicação – esse coquetel que tem como objetivo massacrar o povo organizado. Assim é que os militantes do MST ensinam ao povo brasileiro: não é uma luta justa, mas é uma luta que pode ser vencida.

Por outro lado, o jornalismo das Organizações Globo mais uma vez revelou seu caráter covarde e submisso. Aliou-se aos poderosos e rasgou o juramento profissional da categoria, sobretudo no seguinte trecho: "A Comunicação é uma missão social. Por isto, juro respeitar o público, combatendo todas as formas de preconceito e discriminação, valorizando os seres humanos em sua singularidade e na luta por sua dignidade".

Mas não há de ser nada. A História vai se ocupar de reservar a cada qual seu devido lugar.

 

* Marcelo Salles é editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com).

Governo troca política de inclusão ampla por banda larga nas escolas

No dia 7 de abril foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto Presidencial 6424 que determina uma mudança nos contratos de concessão com as operadoras do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC): Telefonica, Oi e Brasil Telecom.

Os contratos, assinados em 2005, obrigavam que as empresas instalassem Postos de Serviço Telefônico (PSTs) em cada cidade brasileira. Menos de três anos depois, chegou-se à conclusão que aquelas obrigações estavam erradas e o próprio governo sugeriu a mudança, sem contudo, assumir publicamente o equívoco cometido em 2005.

Pelas novas regras, acordadas com as operadoras, estas deixam de estar obrigadas a instalar os PSTs  (exceto no caso de cooperativas rurais), mas passam a ter que colocar seus backhauls em todas as sedes municipais brasileiras.

Se a banda larga pudesse ser comparada com árvores, os backbones que  as operadoras possuem seriam os troncos, o backhaul os galhos e cada cidade brasileira uma folha. Sem o backhaul, não é possível levar a seiva que vem do tronco para cada folha. Ou seja, o backhaul interliga o backbone da operadora às cidades. No Brasil, mais de 2000 municípios não têm backhaul e, portanto, não podem se conectar à banda larga.

A proposta do governo é digna de mérito, porque, no século XXI, é muito mais importante garantir a universalização da banda larga do que do telefone fixo. Contudo, este adendo aos contratos de 2005 ainda apresenta problemas. São pelo menos dois.

As velocidades mínimas exigidas para cada backhaul são muito baixas. Por exemplo, uma imaginária cidade com 70.000 habitantes teria, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em torno de 20.000 residências, mas contaria com um backhaul de apenas 64 Mbps. Ou seja, se apenas 1.000 casas tiverem dinheiro para contratar o serviço de banda larga oferecido pela tele, ainda haveriam 19.000 excluídas e a velocidade máxima disponível para cada residência conectada à suposta banda larga seria de apenas 64 Kbps, ou igual àquela obtida por uma linha telefônica comum.

E não há a obrigação para que a operadora faça unbundling em seu backhaul. Por detrás desse palavrório técnico, tal obrigação significa que a operadora teria que vender parte da capacidade instalada do seu backhaul a qualquer provedor interessado em competir com a própria tele. E a preços não discriminatórios, regulados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Essa seria a única forma de estimular a concorrência. Do jeito como ficou, o Decreto permite que os backhauls sejam usados exclusivamente pelos próprios serviços de banda larga das operadoras (BrTurbo, Velox e Speedy), matando qualquer possibilidade de concorrência local.

Mas, principalmente, a falta do unbundling dificulta em muito o surgimento de experiências de redes comunitárias, organizadas pelas prefeituras e/ou pela sociedade civil, usando tecnologias sem fio, e que levam a Internet gratuíta à prédios públicos (como bibliotecas e telecentros), mas também às próprias casas, o que já fazem Sud Minucci (SP) e Duas Barras (RJ).

Em resumo, ainda que amplie o alcance da banda larga, o Decreto Presidencial 6424 está longe de garantir a tão sonhada inclusão digital de nossa população e tem como efeito colateral o aprofundamento do monopólio regional exercido por cada tele em sua área de concessão.

O acordo subterrâneo

A mudança dos contratos de concessão teve que contar com a concordância das teles. Caso contrário, ficaria valendo a obrigação inicial dos PSTs. Para convencer as teles, um estudo da Anatel comprovou que o custo de instalação dos backhauls nos municípios que ainda não o possuem seria o mesmo da instalação dos PSTs. Seria trocar seis por meia dúzia, sem onerar o caixa destas empresas. E é óbvio que as teles perceberam, também, que a futura prestação de serviços de banda larga lhes trará muito mais receita do que a administração de postos telefônicos.

Tudo certo, eis que surge um novo elemento. Além da troca dos PSTs pelos backhauls, o governo negociou um segundo acordo com as teles, que prevê a instalação de conexão de 1 Mbps em cada uma das 56 mil escolas públicas urbanas brasileiras, sem custos para os governos (federal, estaduais e municipais) pelo menos até 2025 (quando vencem os atuais contratos de concessão). Até 2010 todas essas escolas deverão estar com a conexão funcionando.


Se as teles brigaram tanto para ter certeza que a obrigação dos backhauls não lhes custaria nada a mais do que a antiga obrigação dos PSTs, se não queriam desembolsar nada além do que fora previsto inicialmente, por que aceitaram tão prontamente este novo acordo, que foi anunciado no dia 8 de abril pelo presidente Lula? Nada as obrigava a este novo acordo. Por que concordaram? Puro patriotismo?

Coincidência ou não, ao mesmo tempo em que começaram as negociações em torno deste segundo acordo, saía de cena o debate no interior do governo sobre o “backbone estatal”. Essa proposta consistia em dois movimentos. Primeiro, unificar a gestão dos cerca de 40 mil Km de fibra óptica que o governo federal já possui, seja através das estatais ou da massa falida da Eletronet. Em segundo lugar, construir sua própria rede de backhaul, levando a conexão deste backbone estatal a cada município brasileiro. Com isso, o governo estaria em condições de ofertar às cidades (prefeituras e/ou sociedade civil) a possibilidade de construirem redes locais que posteriormente seriam conectadas à infra-estrutura do governo federal. Sem fins lucrativos, este backbone estatal poderia cobrar das cidades apenas o necessário para se manter e crescer (o que é bem menos do que cobram atualmente as teles). De inicío, já seria possível prever que as prefeituras e governos estaduais poderiam usar os serviços de telefonia por IP desta rede, deixando de ser usuárias das operadoras privadas. Uma economia de muitos milhões para os cofres públicos. Mas, também seria possível construir redes comunitárias, que levassem Internet banda larga, telefonia por IP, webrádio, IPTV e muito mais para todas as comunidades hoje excluídas das estratégias de mercado das teles. Uma ligação local, feita de um telefone conectado a esta rede comunitária para outro igualmente conectado, teria preço igual a zero!

Mas, o acordo subterrâneo com as teles foi além. Não bastava apenas garantir que o governo abriria mão de usar sua própria infra-estrutura para fazer inclusão digital. As teles também ganharam o direito de explorar sozinhas a rede que irão construir para chegarem até as escolas. Essa rede passará na porta de milhares de residência e obviamente as teles a usarão para vender seus serviços de banda larga. A proposta do governo não obriga a que as teles tenham que partilhar essa rede com os provedores locais (o tal unbundling).

Com backhauls e redes de “última milha” para uso exclusivo, as teles acabaram de ganhar o monopólio da banda larga em todo o país.

Se tudo isso for mais do que uma simples coincidência, quando o presidente da República inaugurar a primeira escola conectada em banda larga através deste segundo acordo com as operadoras, o que pouca gente saberá é que esse evento festivo também será o funeral de uma idéia muito mais inclusiva. Por esta linha de raciocínio, o governo negociou a instalação da banda larga nas escolas em troca do abandono da idéia de um backbone estatal e da morte dos pequenos provedores locais.

Para as teles, as 56 mil escolas conectadas até que saíram barato…

* Veja mais em 'Governo troca banda larga nas escolas por política de inclusão digital mais ampla'

** Gustavo Gindre é pesquisador em políticas de comunicação, membro eleito do Comitê Gestor da Internet no Brasil e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Telecomunicações: da troca de metas emerge um novo modelo

Até 2010, todos os municípios brasileiros vão contar com infra-estrutura de banda larga e todas as 55 mil escolas urbanas vão estar conectadas à internet a pelo menos 1 Mbps. Qual é o impacto desse investimento, da ordem de R$ 1,2 bilhão, no desenvolvimento do país, especialmente dos 2,7 mil pequenos municípios que ainda só acessam a internet por linha discada, e na melhoria da qualidade do ensino ainda não se sabe. Mas certamente o Brasil conectado à banda larga será um país diferente, capaz de oferecer mais oportunidades a seus cidadãos e a milhões de pequenos e micro-empresários. Se as políticas compensatórias permitem distribuir renda, o acesso à rede mundial dos computadores permite distribuir e compartilhar conhecimento. A construção dessa infra-estrutura significa redesenhar o modelo de telecomunicações – seu eixo deixa de serviço de telefonia fixa e passa à oferta multisserviços, a partir da plataforma de banda larga.

Esse novo cenário que começa a ser desenhado, com a assinatura hoje, 8, pelas concessionárias de telefonia local do novo plano de metas de universalização só foi possível porque o governo Lula soube entender que a banda larga se transformou em insumo vital para o desenvolvimento do país e para reduzir as desigualdades sociais por meio do acesso, via internet, à rede de conhecimento. Essa consciência foi que levou a equipe técnica do Ministério das Comunicações a propor a troca de metas de universalização, substituindo a instalação dos Postos de Serviço de Telecomunicações, prevista no contrato de concessão então em vigor, pela expansão da infra-estrutura de banda larga (backhaul) a todas as sedes de municípios.

O alcance da proposta atraiu apoios políticos decisivos dentro do governo, em especial na Presidência da República e na Casa Civil, sem falar na Anatel. Mas foi, sem dúvida, a determinação do presidente Lula, de que queria que todas as escolas públicas estivessem conectadas à internet até o final de seu governo, que animou o enorme esforço de negociação, que consumiu vários meses e a superação de muitos obstáculos, inclusive de ordem legal. Ao final, não só as concessionárias concordaram em substituir os PSTs pelo backhaul, num investimento 55% maior, de acordo com os cálculos das empresas, como entenderam a demanda do governo e vão conectar as escolas, garantindo a gratuidade da conexão até 2025, quando termina o atual contrato de concessão.

Com a troca de metas, o futuro Plano Nacional de Banda Larga já tem sua espinha dorsal. Mas ainda vão faltar vários passos complementares para que a banda larga ganhe capilaridade nos municípios. Como financiar essa malha? Como permitir a competição na última milha e impedir a ampliação do monopólio das concessionárias? Que aplicações devem estar associadas à oferta de banda larga às prefeituras para garantir a sustentabilidade do serviço ? Essas são as questões que se colocam para o debate, a partir de agora.

A construção da última milha do Plano Nacional de Banda Larga demanda uma ampla articulação que vai muito além dos atores que fizeram, com sucesso, a troca de metas. Mas o fato de o governo ter usado com competência seu poder concedente para fazer política pública e de ter compreendido a dimensão da revolução que se pode fazer no país a partir de uma infra-estrutura de banda larga nos anima a ser otimistas.

Em Brasília, 19 horas: uma odisséia pelo direito à informação

Em Brasília, 19 horas: a guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula, de Eugênio Bucci, 294 pp., Editora Record, Rio de Janeiro, 2008. Lançamento em São Paulo na quinta-feira (10/05) no Sesc Vila Mariana.

Quando assumiu a direção da Radiobrás, em 2 de janeiro de 2003, Eugênio Bucci começou a escrever uma nova história da comunicação pública no Brasil. Com uma idéia na cabeça – lutar pelo direito à informação – munição intelectual e alguns poucos mas fiéis soldados, invadiu o Planalto Central brasileiro ciente de que sofreria vergonhosa derrota. Ao fim e ao cabo, deixou a guerra quando quis, como quis, o que só ocorre com grandes estrategistas. Venceu.

Recolheu as armas e iniciou seu périplo de retorno ao Planalto Paulista em 20 de abril de 2007, deixando para trás uma empresa transformada, um trabalho reconhecido por parte da população e as bases da reforma que o governo agora promove com a transformação da Radiobrás e da Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) em Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Em seus quatro anos, três meses e vinte dias de Brasília, pelejou, acertou, errou, de forma destemida, consciente que estava dos riscos.

O compilado das batalhas foi reunido em uma obra de 294 páginas que leva o nome de Em Brasília, 19 horas – A guerra entra a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula, da Editora Record. Uma "crônica de Aldeia", no dizer do próprio autor, honesta e profunda, em que Bucci dialoga não apenas com os iniciados no debate da comunicação – muito embora o livro seja obrigatório para comunicadores em geral –, mas potencialmente com todos os brasileiros que querem conhecer como o governo Lula se processa.

É o melhor dos livros publicados, até agora, sobre os bastidores de Brasília pós-2003 – não porque faça revelações bombásticas, mas porque descreve verdades. Algumas delas incômodas, com valor de notícia, o que ficou comprovado no último fim de semana, quando o livro chegou às páginas dos principais diários do país. No sábado (5/4), Em Brasília, 19 horas mereceu uma resenha sensível e bem apurada de O Globo, uma página bem feita de O Estado de S.Paulo e uma leitura da Folha de S.Paulo, escrita pelo apresentador do Roda Viva, da TV Cultura, Carlos Eduardo Lins da Silva [ver aqui].

No trabalho, Bucci reproduz bilhetes de José Dirceu, então ministro da Casa Civil, e de Ricardo Berzoini, ex-ministro e atual presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), narra as reações do ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação (Secom) e do próprio presidente da República, e torna pública as ações subterrâneas do assessor de comunicação da Secom, Bernardo Kucinski. Sem essas histórias, não estaríamos diante de uma obra veraz. As contrariedades, disputas e pressões fizeram parte do cotidiano do presidente da Radiobrás. Mas elas são tratadas, no decorrer do texto, com extrema naturalidade – afinal, guerras pressupõem, no mínimo, dois lados contrapostos. E essa não foi uma guerra diferente de qualquer outra.

"(…) Todas as minhas críticas sobre o equívoco editorial da Radiobrás já foram feitas por escrito e oralmente ao Gushiken, ao Bucci, ao Garcez, ao Dieguez, mais de uma vez. Além disso ofereci as soluções, por escrito, também mais de uma vez. Acho que um dos problemas do nosso governo foi a forma como deixamos setores vitais em mãos despreparadas e principalmente não dispostas a ouvir. Demiti-me do Conselho da Radiobrás por causa disso e o Lassance se demitiu há pouco por causa disso. Betty [sic] Carmona também se demitiu. Registre, para todos os efeitos, que a direção da Radiobrás imprimiu uma determinada direção à cobertura jornalística da Agência Brasil, chamada por eles de jornalismo público, que além de executada de forma incompetente e não atender as nossas necessidades de comunicação, nunca recebeu mandato explícito do governo." (Trecho de carta de Bernardo Kucinski, enviada a Gilberto Carvalho, chefe do gabinete de Lula, com críticas à gestão da Radiobrás, especialmente da Agência Brasil).

A face humana da guerra

Mas há muito mais que revelações de bastidor no livro. Em Brasília, 19 horas descreve o trabalho cotidiano de engenharia republicana que ocorreu na Radiobrás durante o governo Lula. Um esforço bélico de lapidação de conceitos, parâmetros editoriais e compromisso público realizado por personagens até então desconhecidos (entre os quais eu me incluo) e que são generosamente apresentados pelo autor-general.

Durante o tempo em que esteve à frente da Radiobrás, Bucci imprimiu – como ele mesmo afirma na introdução – o melhor de "sua personalidade para construir a impessoalidade". Esse seu movimento foi assimilado por sua equipe, configurando uma gestão radicalmente partidária do apartidarismo, da objetividade, da pluralidade e da transparência. O resultado imperfeito – e muito aquém do necessário – a que se chegou é fruto das nossas limitações, não da falta de empenho.

O livro de Bucci também tem o mérito de contar a história da Radiobrás, uma empresa criada durante a ditadura militar e bancada há 30 anos pelo dinheiro do contribuinte ao custo médio de 100 milhões de reais por ano. Absolutamente desconhecida da maioria dos brasileiros – a não ser por ser a produtora dos 25 minutos destinados ao poder executivo em A Voz do Brasil – a Radiobrás é o óvulo da nova Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que será responsável pela TV Brasil, a imberbe TV Pública brasileira.

Conhecer de que trompas se origina a nova comunicação pública brasileira é fundamental, por um lado, para que os atuais gestores não repitam erros do passado e, por outro, para que os cidadão ampliem sua capacidade de fiscalizar os produtos editoriais da nova empresa, que será melhor à medida que mais e mais brasileiros dela se apropriarem. Tomar contato com o passado de servilismo e governismo imemorial pode impedir que retrocessos ocorram.

"Em suma, apesar do período em que ficou encarregada da promoção de civismo autoritário, a Radiobrás jamais teve a seu cargo qualquer outra função que não fosse a de informar o público, e nisso baseou sua gestão iniciada em janeiro de 2003. Com base na lei, e no que entendíamos ser o espírito da lei no transcurso do tempo, reforçamos a objetividade impessoal dos noticiários e pusemos cada vez mais para longe os resquícios de promoção governamental que subsistiam dentro da organização. De novo, a dificuldade não era tanto a lei, mas os condicionamentos internos de profissionais, herdados de traumas profundos." (Em Brasília, 19 horas, pág. 85)

Em nome da liberdade

Outro ponto alto do livro é a defesa radical que Bucci faz da liberdade, para ele um valor inegociável. Homem de esquerda, o autor não é um liberal clássico, como afirma Lins da Silva em sua resenha da Folha – se fosse, não haveria nenhum problema, mas essa é uma afirmação falsa.

No capítulo "Um caso de bem-estar entre o presidente e a empresa", Bucci recupera sua trajetória de militante iniciada no movimento estudantil, durante a ditadura militar, para demonstrar que sempre foi integrante de uma corrente de pensamento que via como "falso dilema" a oposição entre liberdade e igualdade. Em seu raciocínio, a liberdade é uma causa universal, "mais que burguesa, mais que liberal". Uma defesa libertária.

"Entre janeiro de 2003 e janeiro de 2007, quando pude conversar com o presidente da República sobre imprensa, falei como um liberal convicto, embora o liberalismo não tenha sido propriamente a minha escola. A bandeira da liberdade pertence a todos, não apenas aos liberais que gostam de ostentar pedigree. Não há outro caminho: é preciso cultivar e cultuar incondicionalmente a imprensa livre, ou melhor, a imprensa, sem adjetivos – se ela não é livre, não é imprensa. Sem medo de excessos retóricos, digo que só ela pode iluminar a casa da liberdade." (Idem, pág. 225-226)

Ao empunhar a bandeira da liberdade, pressuposto para a existência e efetivação do direito à informação, Bucci apontou um novo caminho para a comunicação pública, tema que sequer figurava na agenda da democracia brasileira quando ele acordou presidente da estatal Radiobrás, cinco anos atrás. A guerra empreendida contribuiu para modificar esse cenário. No início do segundo mandato de Lula, se discutiu comunicação pública como jamais. Em Brasília, 19 horas é mais uma contribuição a esse debate, que ainda está longe de terminar.