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Cervejas, publicidade e direito à informação

Na mesma semana em que o Congresso Nacional, atendendo à pressão do lobby de fabricantes de bebidas e de radiodifusores, modificou a MP 415, que proibia a venda de bebidas alcoólicas nos bares e restaurantes à beira de estradas federais, permitindo a venda no perímetro urbano e mantendo a proibição na zona rural (23/4), os grandes jornais publicaram um inusitado anúncio de meia página assinado pela Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP), com o seguinte título e subtítulo:

"Querem proibir a publicidade de cervejas no Brasil.

"É o mesmo que proibirem a fabricação de abridores de garrafas no Brasil."

O texto prossegue:

"Nem a propaganda nem o abridor são a motivação para irresponsáveis dirigirem embriagados.

"A propaganda ou o abridor não são os culpados pela venda criminosa de bebidas alcoólicas a menores.

"Abridores e a propaganda não são incentivadores dos covardes que praticam a violência doméstica.

"Essas são questões que só a educação, a democratização da informação e o rigor no cumprimento das leis podem resolver.

"Por isso proibir a publicidade de cervejas não vai mudar em nada esse quadro.

"A não ser tirar de você o direito de gostar ou não desta ou daquela publicidade.

"De se informar e de formar a sua opinião.

"Um direito tão sagrado quanto o que v. tem de comprar ou não um abridor de garrafas.

"E decidir o que fazer com ele."

Restrições legais

Pelo anúncio ficamos sabendo que a publicidade e o abridor de garrafas produzem o mesmo efeito no comportamento de consumo dos cidadãos, isto é, nenhum. Que a publicidade não tem absolutamente nada a ver com os acidentes provocados por aqueles que dirigem embriagados; ou pelo consumo de bebidas alcoólicas por menores ou ainda com aqueles que, embriagados, cometem violência doméstica. E mais: que a publicidade oferece apenas informação, pura e simples, ao cidadão – aliás, um direito sagrado dele (publicidade e jornalismo seriam a mesma coisa?).

O que o anúncio não informa é quem quer proibir a publicidade de cervejas, nem como e nem por quê.

Na verdade o anúncio da ABAP faz parte de uma campanha pública para pressionar deputados e senadores a rejeitar o PL 2.733/2008, que teve sua origem no Executivo e foi proposto pelos ministérios da Saúde, da Educação, da Justiça e pelo Gabinete de Segurança Institucional. Trata-se de uma alteração na Lei n. 9.294 de 1996 – aprovada pelo Congresso e assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, pelos então ministros da Saúde (Adib Jatene), Justiça (Nelson Jobim) e Arlindo Porto (Agricultura) – para adaptá-la à Política Nacional sobre Álcool (decreto nº 6.117/2007) que considera a cerveja como bebida alcoólica.

Dessa forma, como já acontece com os produtos derivados do tabaco, de medicamentos e terapias e de defensivos agrícolas, a publicidade de cerveja estaria também sujeita a restrições legais, nos termos da lei, como manda o artigo 220 da Constituição.

Regular horários

E quais seriam as restrições de acordo com o Art. 4° da Lei n. 9.294/96?

"Somente será permitida a propaganda comercial de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão entre as vinte e uma e as seis horas.

"§ 1° A propaganda de que trata este artigo não poderá associar o produto ao esporte olímpico ou de competição, ao desempenho saudável de qualquer atividade, à condução de veículos e a imagens ou idéias de maior êxito ou sexualidade das pessoas.

"§ 2° Os rótulos das embalagens de bebidas alcoólicas conterão advertência nos seguintes termos: `Evite o Consumo Excessivo de Álcool´."

O texto da lei mostra, portanto, que o direito sagrado do cidadão/consumidor à informação não foi respeitado pelo anúncio da ABAP: o projeto que tramita no Congresso Nacional (ao qual, aliás, o anúncio não faz referência direta) não pretende proibir a publicidade de cerveja, mas apenas regular os horários de sua veiculação no rádio e na TV para evitar que seja ouvida/vista, sobretudo, por jovens em fase de formação de hábitos de consumo.

O contrário

Outro desrespeito sério ao direito sagrado à informação é a omissão, pelo anúncio da ABAP, das causas que levaram o Executivo a propor a inclusão da cerveja como bebida alcoólica na Lei 9.294. Os dados disponíveis indicam que o consumo de álcool ocorre em faixas etárias cada vez mais precoces, funcionando como porta de entrada para o vício e o consumo de outras drogas.

No domingo (27/4), a manchete de primeira páginas do Jornal do Brasil informava que "Propaganda de bebidas leva jovens para o vício" e a matéria relatava que:

"Tem gente nova chegando aos grupos de mútua ajuda da irmandade Alcoólicos Anônimos. Gente muito nova. O perfil do dependente vem mudando nos últimos anos, e hoje é comum encontrar adolescentes buscando auxílio para se manterem longe da bebida. (…) Coincidência ou não, o fenômeno vem a reboque de uma das maiores ofensivas publicitárias de que se tem notícia, empreendida pelos fabricantes de cerveja, que investem cerca de R$ 1 bilhão por ano em anúncios, grande parte deles – estima-se que 80% – na televisão.

"– A cerveja virou refrigerante, foi desmistificada como bebida alcoólica. Aumentou muito o número de jovens por aqui – confirma J., 75 anos, diretor do escritório de serviços do AA no Estado do Rio, com o cuidado de não se aprofundar em questões polêmicas, um dos postulados da instituição.

"A psiquiatra Maria Thereza de Aquino, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da UERJ, constata que o álcool é hoje a porta de entrada para as drogas e acredita na relação da publicidade na TV com o início precoce.

"– A propaganda estimula. Ninguém daria R$ 1 milhão a um pagodeiro para anunciar seu produto se isso não aumentasse a venda – raciocina. – Não se faz publicidade para diminuir o consumo."

Se tomarmos o anúncio da Associação Brasileira de Agências de Publicidade sobre cervejas e abridores de garrafa – um negócio de mais de 1 bilhão de reais/ano – como referência, passaremos a ver todos os anúncios veiculados na mídia brasileira com desconfiança. Ele faz exatamente o contrário do que afirma ser um direito sagrado do cidadão/consumidor: o direito à informação correta e à publicidade verdadeira.

O consumidor e a alteração do plano de metas de universalização de telefonia

No último dia 7, foi aprovado o Decreto 6424/2008, que altera o Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado. Segundo o governo federal, a iniciativa tem o objetivo de levar internet banda larga às escolas, trocando-se as obrigações iniciais de universalização das concessionárias de telefonia fixa (instalação de Postos de Serviços de Telecomunicações que devem contar com uma estrutura que compreende orelhões, fax e computadores com acesso à internet por linha discada) pela instalação de parte da estrutura para provimento de banda larga (backhauls).

O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) entende ser louvável a iniciativa de universalizar o acesso à internet por meio de banda larga, visto ser hoje esse meio de comunicação essencial na vida dos cidadãos e consumidores brasileiros. A inclusão digital é indiscutivelmente pertinente; sem ela, a cidadania não é plena.

Entretanto, os meios pelos quais o Poder Público, com o forte e poderoso lobby das concessionárias, pretende alcançar esse fim não são adequados e, não só, podem trazer sérios problemas e provocar graves danos à vida do consumidor.

Segundo a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97), pode-se exigir cumprimento de metas de universalização somente nos casos de serviços prestados em regime público. No Brasil, o único serviço assim classificado é o de telefonia fixa (STFC). Como a banda larga é prestada em regime privado, poderá haver, no futuro, questionamentos por parte das concessionárias quanto à obrigatoriedade do cumprimento do novo plano de metas de universalização.

Mesmo que não haja questionamentos quanto à exigibilidade das novas metas – até porque, por enquanto, as mudanças atendem a demanda das próprias concessionárias – outros pontos precisam ser considerados.

Primeiramente, as concessionárias e a Anatel sempre justificaram o pagamento da assinatura básica pelos consumidores como forma de prover recursos para que os custos da universalização da telefonia fixa fossem cobertos. Ora, é sabido que a população de menor renda não tem como comprometer quase R$ 40 de seus ganhos com a assinatura, recorrendo, em muitas vezes, ao uso do celular pré-pago para receber ligações, mas não podendo efetuá-las em razão do altíssimo custo do minuto. Isso nos faz questionar se a universalização do acesso à telefonia foi de fato atingida.

A resposta a essa questão é negativa, o que nos leva a um segundo ponto: é legítimo conceder às concessionárias a opção de substituir um serviço por outro, i) quando o serviço previsto anteriormente deveria ter sido universalizado e não foi; ii) alterando o objeto de um contrato de concessão, decorrente de um edital público e um processo licitatório transparente, já em vigor?

Com essa alteração das metas de universalização, as concessionárias poderão investir os valores antes destinados aos gastos com os postos de serviços na instalação da estrutura para a banda larga. A conseqüência será ter garantido o financiamento dessa estrutura, possibilitando a venda do serviço aos moradores locais, além das escolas, dificultando o surgimento de alguma concorrência efetiva.

Isso nos leva a uma das maiores preocupações das entidades de defesa do consumidor: a baixíssima concorrência e a alta probabilidade de concentração de mercado.

Tal situação gerará, indubitavelmente, a dominância do mercado de internet banda larga pelas mesmas empresas que hoje já dominam a telefonia fixa. Ressalte-se que a utilização da tecnologia de voz por protocolo de internet (VoIP) hoje é uma alternativa à telefonia fixa convencional (STFC). Do ponto de vista concorrencial, de nada adiantará o consumidor trocar o STFC por VoIP se, ao final das contas, ambos os serviços serão providos pela mesma empresa.

Ademais, com a possibilidade de escolha por parte das concessionárias com relação a qual serviço prover, poderemos nos deparar com a seguinte situação: em uma região, na qual opera uma concessionária, serão cumpridas as metas de universalização de banda larga, e, em outra, as metas de universalização de postos de serviços (PSTs), o que não faz nenhum sentido lógico, porque o que é universal deve existir em todo o território brasileiro.

Terminemos com o fato de que a instalação de backhauls não garante que a banda larga chegará nas escolas, pois faltará a instalação da última milha, responsável por ligar o computador da escola à rede mundial de computadores. Corre-se o risco das escolas permanecerem sem internet banda larga – mas estará garantida a infra-estrutura para que a concessionária, dominando o mercado, venda esse serviço no seu entorno.

São muitos os pontos preocupantes no decreto, e aqui procuramos trazer alguns que afetam diretamente a vida dos consumidores. O Idec entende ser imperioso, nesse sentido, que essa norma seja revista, observando todos os preceitos legais, como os princípios da administração pública e a Lei Geral de Telecomunicações, com o fim último de garantir a maior concorrência no mercado, o acesso aos serviços, e o respeito aos direitos dos consumidores.

*Estela Guerrini é advogada do Idec

Ainda o imbBrOiglio da ‘BrOi’

Entre as dúvidas que restam sobre o negócio entre governo, Oi e Brasil Telecom, está o dinheiro do BNDES. O banco estatal afirma que não colocará dinheiro na compra da BrT pela Oi (controlada pela Telemar Participações). Criou-se uma engenharia por meio da qual o BNDES não faria um empréstimo, em sentido estrito, às empresas envolvidas, mas as capitalizaria a fim de permitir a redução do número de acionistas -vá lá. O banco enfatiza que não vai emprestar dinheiro do FAT, fundo público que o financia.

Por meio de seu braço que lida com participações em empresas, o BNDESPar, o banco compraria R$ 1,23 bilhão em ações que a Telemar deve emitir, além de R$ 1,33 bilhão em títulos de dívida a serem emitidos pela AG Telecom (da Andrade Gutierrez) e pela LF TEL (de Carlos Jereissati). Com tal dinheiro, esses candidatos ao controle da "BrOi" comprariam a parte de outros sócios. Ou seja, o BNDES apenas estaria gerenciando sua carteira de investimentos em empresas a fim de otimizar o rendimento.

Resta saber as condições em que um ente público, o BNDES, financiará a valorização de um patrimônio majoritariamente privado. Isto é, as condições em que AG e LF TEL emitirão "valores mobiliários": taxas, prazos, condições de pagamento, punições por inadimplência etc., além das condições em que a Telemar emitirá as ações que o BNDES comprará, embora nesse caso o negócio se preste a menos invenções. O BNDES justifica a operação por meio de um ganho público "intangível", digamos, a constituição de uma empresa nacional de grande escala e mais bem dirigida, e por meio de ganhos financeiros da operação de sua carteira de renda variável.

Para saber o custo real desse capital ofertado pelo BNDES, seria preciso que as empresas buscassem no mercado o dinheiro para a "reestruturação societária", as vendas e as compras de ações que dariam origem à "BrOi". Como isso não ocorrerá, claro, talvez se possa avaliar o subsídio implícito se der para comparar outros empréstimos que os controladores tomarão no mercado com as condições do dinheiro que virá do BNDES. Será possível?

Pondere-se ainda a afirmação de que o dinheiro da compra dos "valores mobiliários" pelo BNDES não virá do FAT. Pode ser, mas a coisa fica mais confusa quando se lembra que o BNDES empresta dinheiro a empresas da qual o BNDESPar é sócio (como teles), para ficar num só caso de complexidades. De resto, não haveria uso alternativo para as aplicações da carteira do BNDESPar?

É verdade que grandes empresas se financiam no BNDES -discriminar, em regra, as teles, seria só isso, preconceito negativo, desculpe a redundância. E empresas brasileiras têm dificuldade de se financiar no longo prazo, decerto, mas agora menos, menos ainda as grandes. Enfim, são muitos e grandes os intangíveis dos negócios que o governo patrocina, negócios politizados -privatizações sob FHC e fusões e aquisições sob Lula (petroquímica, agora teles, amanhã talvez farmacêuticas). Fica assim difícil separar ganhos públicos dos privados, e com certeza faltam transparência e critérios objetivos na prioridade de alocação de um dinheiro que é público e mais barato que o do mercado.

O fuso horário e os mapas dos novos tempos

Engana-se quem pensa que os mapas apontam o lugar das coisas no espaço. A muralha da China passa exatamente por aqui, diz a professora, confiante em sua certeza de pedras. Aquela plataforma de petróleo se situa na latitude tal com a longitude tal, no meio do mar. A fronteira do Brasil com o Paraguai passa bem ali, no meio do rio, no meio das instalações de Itaipu. No computador, o GoogleMaps revela a posição exata da casa da sogra de qualquer um. Lá, acolá, do lado de lá. Quase sempre, pensamos em mapas como uma disposição das dimensões do espaço, ou, mais exatamente, de um espaço meramente bidimensional, plano, ainda que acidentado.

A verdade, a despeito das aparências, é que os mapas nos situam no tempo. Eles são bichos vivos quando observados na dimensão do tempo. As linhas mudam de lugar e os lugares mudam de cor. Países se estreitam, outros engordam, sem falar nas fronteiras que se esfumaçam e somem. Há ainda as unidades que se subdividem, como numa meiose geográfica, dando cria a novas unidadezinhas.

Mapas, na linha do tempo, comportam-se como um filme, como um desenho animado sem roteiro certo. Atlas históricos deveriam ser vendidos como desenhos animados. Na tela do tempo, os mapas móveis mostram a ausência de razão e de propósito, mostram a desvinculação entre causas e efeitos na trama da aventura humana sobre a face da Terra. Mapas são tolos quando congelados – e destrambelhados quando vistos em movimento. Há mais previsibilidade nos abalos sísmicos das placas tectônicas do que nas nuances dinâmicas da geografia política. O que não faz a mínima diferença.

Fuso com fuso

Não é preciso recuar ou avançar nos séculos para experimentar a natureza temporal dos mapas. A cada instante, a cada fração de segundo, os mapas nos situam no tempo, mais que no espaço. Pense o leitor, por exemplo, nos fusos horários. Pense nos mapas de fusos horários. São eles que estabelecem a que horas a vida de cada um de nós acontece. É um tanto pacificador imaginar que ainda somos regidos por institutos como o "relógio natural", o nascer do Sol, a roda das estações do ano, mas, além de pacificador, é mentira. O tempo é uma convenção política – bem de acordo com o que vem escrito no mapa astral, ou melhor, dos fusos horários de cada um. E isso é uma coisa tão recente na linha do tempo…

Os acordos para a unificação dos horários mundiais com referência ao meridiano de Greenwich foram concluídos em 1912, em Paris. Há menos de um século. Foi outro dia. Foi ontem. Mesmo o relógio, embora não seja uma invenção assim tão nova, ganhou centralidade na cena política praticamente às vésperas da Revolução Industrial. A máquina de medir tempo de trabalho, indispensável diante das novas relações de produção, vai parar nas portas das fábricas, medindo a quantidade de força extraída de cada trabalhador.

Para o ordenamento do Estado, a unificação do horário se tornou requisito essencial. O relógio assume também um posto de destaque no espaço público. Instala-se nos campanários, centralizando o tempo comum. O centro do poder passa a ditar também a medida do tempo. As unificações políticas impuseram a unificação dos horários – o tempo virou uma questão de poder, os senhores da política se alçaram à condição de senhores do tempo.

Em tempo, bom tempo, lembremos que o tempo nunca foi um dado da natureza, como os vulcões, os mares, as frutas no quintal e o mosquito da dengue. Ao contrário, nasceu e vive como invenção lingüística – embora subsistam línguas que não têm formas verbais no passado e no futuro. O tempo surge na cultura como abstração e, a partir daí, adquire o estatuto de um vínculo de poder. Habitar um país significa submeter-se a seu horário legal. Nós existimos, portanto, em tempos postos por outros. Pertencemos ao tempo do outro.

Isso é o que nos informam os mapas dos fusos. É o que nos ordenam os fusos.

Acre na velocidade da luz

Mapas são imagens fixas – que, no entanto, se movem.

Aliás, acabam de mover-se no Brasil. Leio no Estado de S.Paulo e na Folha de sexta-feira (25/4), num vôo de São Paulo para Brasília e depois de Brasília para João Pessoa, que o presidente da República sancionou a lei segundo a qual o fuso horário do Pará e o fuso horário do Acre ficam de hoje em diante em outro lugar – outro lugar no tempo, eu quero dizer. Revogam-se as disposições em contrário. Olho para o estado do Acre, no mapinha que a Folha publicou [ver a imagem]. Acho que os infografistas erraram no caso do Pará, que continua exatamente igual no mapa do "antes" e no mapa do "depois". O texto diz que o Pará, inteirinho, adotará um fuso só a partir de agora. Mas o mapa contradiz o texto. Tudo bem.

O que mais me comove é o efêmero estado do Acre. Pobre estado do Acre. O Acre não está mais onde costumava estar, quero dizer, no horário em que costumava existir. Àquele horário, o Acre já não pertence. O Acre sumiu dali, isto é, aquele fuso sumiu de cima do estado do Acre. Cadê o Acre?

Eis então que ele reaparece em outro horário. Por força da sanção do presidente da República, o Acre empreendeu uma viagem no tempo. O poder político suprimiu-lhe uma hora, aquela famosa hora-a-mais. Sua hora foi-se. Virou pó. Alguns acreanos talvez se indagem: o que eu poderia ter vivido naquela hora, justamente da hora que não houve? A hora que jamais terei? São perguntas vãs, quase tolas, posto que aquela ora apenas mudou de lugar, digo, de tempo. No entanto, são interrogações mortais. Como o tempo não é um dado natural, mas lingüístico e político, é apavorante que possam nos arrancar um minuto que seja por decreto. E podem.

Quando a Igreja ajustou o calendário, em 1582, foi bem pior. Suprimiram dez dias inteiros. Quem foi dormir no dia 4 de outubro de 1582 acordou no dia 15 de outubro. Mesmo hoje em dia, quando nos suprimem um minuto que seja, ainda é incômodo. Estão nos suprimindo o chão. Num lapso, passamos a pisar o vazio. Em seguida esse chão temporal será refeito, é fato, mas por um átimo ficamos no vazio. Despencando, soltos, não no espaço, mas no tempo.

Olho o mapa da Folha e penso outra vez que a imagem fixa se move. Lá está o Acre, que desapareceu de onde estava e ingressou onde não existia. Quero dizer: o Acre agora é onde antes não estava. Mas está. E ainda é.

O tempo da TV

A reportagem de do Estadão sobre a incrível viagem no tempo do estado do Acre informa que as razões da mudança do fuso se devem ao lobby das emissoras de TV:

"A pressão pela aprovação do projeto aumentou, por parte das emissoras de televisão, depois que o governo determinou a exibição dos programas em horários de acordo com a classificação indicativa por faixa etária. Essa decisão dificultou o funcionamento das emissoras em rede nacional [ver íntegra aqui]."

A explicação, ainda absolutamente crível, é espantosa. Tanto mais espantosa por ser crível. Com dificuldades operacionais para se adequar aos fusos horários de cada lugar e, assim, cumprir o que estabelece a classificação indicativa do ministério da Justiça, as emissoras encontraram um jeito de eliminar a causa do problema. O tempo do Acre passa a ser idêntico ao tempo do Amazonas e a operação de transmissão em rede será mais fácil. Em vez de se adaptar ao relógio do telespectador do Acre, as redes de TV, que funcionam em rede nacional durante quase todo o dia, adaptaram o telespectador do Acre ao seu relógio.

Relógio? Falei em relógio? Não deveria ter usado essa palavra. O termo relógio é um tanto anacrônico. Falar em relógio agora é como falar em vitrola, em casco de cerveja, em creme rinse. Na era do espetáculo, já não se trata mais de medir o tempo linear em unidades adequadas para quantificar a força de trabalho extraída do corpo humano. A questão, agora, é alargar ao máximo os horários comuns para alargar ao máximo a extensão da platéia ligada nas atrações ao vivo. A tendência já não é a unificação dos espaços nacionais, mas a unificação das audiências, a despeito da posição do sol, de ser dia ou de ser noite: todas as platéias, ao vivo, no mesmo espetáculo.

Como o dinheiro, que viaja na velocidade da luz de uma bolsa de valores para outra, as atrações da TV também voam. Mais ainda: elas são ubíquas e precisam de escala, mais escala, mais escala. Quando possível, atropela os fusos horários, essa coisa tão nova, não tem nem cem anos, e tão antiquada. O nosso país-continente agora só tem dois fusos horários – sem contar Fernando de Noronha. Ficou mais confortável para as redes de TV.

Imagem mutante

Não por acaso, foram princípios análogos que definiram as mudanças de horários nos jogos de futebol. Os atletas começam a jogar às dez da noite não porque rendam mais à medida que os ponteiros se aproximam da meia-noite, mas porque o entretenimento assim impôs. A cada dia mais, o tempo da civilização se afasta dos ciclos da natureza – da natureza do corpo humano, inclusive – para se referenciar no tempo do espetáculo.

Voltando ao Acre, as emissoras de televisão, a rigor, já ignoravam o fuso que vigorava por ali. Transmitiam a programação para os lares acreanos como se eles seguissem o mesmo horário de Brasília – e um pouco seguiam, já que a programação da TV faz as vezes do relógio da nova era. De repente, quando alguém, timidamente, levantou a mão para dizer que o relógio da floresta era outro, o tempo da televisão respondeu sem hesitar: pior para o relógio da floresta; ele que se ajuste ao nosso.

Não que nada disso seja ruim. Tampouco é bom. Isso é apenas o que é. Não há muito o que fazer. Escapo o olhar para a vidraça do escritório e vejo que o sol se põe para lá do rio Pinheiros. Está uma luz bonita lá fora. E também muito brega. A natureza é brega. Volto os olhos para a tela do computador. Daqui a pouco vou ligar a TV. O meu tempo, senhores, é o vosso. A vossa imagem, mutante, é meu espelho.

Fusão Oi/BrT: só falta beatificar Dantas

Talvez ainda chegue o dia em que um prócer do Partido dos Trabalhadores proponha a inauguração de um busto do banqueiro Daniel Dantas em alguma praça importante do País. Não seria surpresa. Em nome dos “interesses nacionais”, que costuma justificar as maiores barbáries e falcatruas, o governo Lula prossegue incólume no propósito de patrocinar a compra da Brasil Telecom (BrT) pela Oi. É possível apontar muitos ganhadores nesta operação. Além de Dantas, os principais acionistas da Oi, Carlos Jereissati e Sérgio Andrade. Quanto aos interesses nacionais e os consumidores, restam dúvidas sobre quais vantagens levariam nesta.

Até a noite da quinta-feira 24, estavam praticamente acertados os termos do acordo e a assinatura do negócio, que depende ainda de mudanças na Lei Geral de Telecomunicações (a legislação não permite a união de empresas concorrentes), deve sair antes de abril acabar.

No fim, os fundos de pensão e o Citibank, principais acionistas da BrT, aceitaram cessar todas as disputas judiciais que moviam contra o Opportunity de Dantas. Ao longo dos últimos anos, as fundações e o Citi reuniram provas suficientes para ingressar com ações diversas contra o banqueiro. A BrT cobra na Justiça brasileira. Seiscentos milhões de reais por danos administrativos e má gestão. Nos Estados Unidos, o Citi pede, no mínimo, 300 milhões de dólares por motivos semelhantes.

O acordo, ressalte-se, não interrompe processos na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nem o caso Kroll, em andamento na 5ª Vara Federal de São Paulo, onde Dantas é acusado de comandar uma quadrilha de espionagem armada para bisbilhotar a vida de desafetos e concorrentes do Opportunity. Não cessam, mas, principalmente o que tramita na CVM, ficam bastante enfraquecidos.

O mais surpreendente é que Dantas não só não terá de desembolsar nenhum tostão pelo fim das pendências judiciais, como ainda receberá uma boa quantia por conta do acerto. Os acionistas da Oi aceitaram pagar 200 milhões de reais à BrT e 150 milhões de reais ao Opportunity pelo acordo de paz, conforme noticiou a revista eletrônica Teletime News. Uma assembléia de acionistas da Brasil Telecom ainda precisa aprovar a proposta.

Ninguém deve se iludir quanto à natureza dessa negociata. Ela não é simplesmente um acerto entre agentes privados em busca de eficiência e rentabilidade em seus negócios. Quem moveu a roda da fortuna nesse caso foi o BNDES, por ordens do Palácio do Planalto. O banco estatal vai financiar uma boa parte da criação da “supertele”, como vem sendo chamada a empresa resultante da união da Oi com a BrT. Deduz-se, portanto, que a parcela a ser paga a Dantas será deduzida da quantia repassada a juros camaradas por uma instituição oficial. Como o governo tem relacionado todo e qualquer projeto federal à idéia do Programa de Aceleração do Crescimento, nada mais justo que chamar essa triangulação de PAC do Dantas. Fica a pergunta: quem assumirá a paternidade ou a maternidade do pacote?

O governo Lula está, assim, prestes a repetir o modelo equivocado dos tempos de Fernando Henrique Cardoso. No período que precedeu o vexame do apagão, o BNDES desembolsou 21 bilhões de reais para o setor elétrico. Desse total, apenas 7 bilhões foram injetados em projetos de expansão da oferta de energia, tão necessários naquele momento. O resultado, catastrófico, todo mundo viu em 2001.

Agora estamos diante de uma tremenda perspectiva de crescimento sustentado e a demanda por financiamento industrial não pára de crescer. Mesmo assim, o BNDES prefere bancar um processo de fusão de vantagens duvidosas e bastidores nebulosos.

Além do mais, não é que o banco de fomento esteja nadando em dinheiro. Na terça 22, a Câmara dos Deputados teve de aprovar um aporte do Tesouro de 12,5 bilhões de reais ao BNDES para que a demanda por empréstimo seja atendida neste ano. Qualquer cidadão razoavelmente informado poderá listar ao menos uma centena de projetos muito mais prioritários e fundamentais ao desenvolvimento do que a criação da BrOi.

Lula, em sua popularidade inabalável, e seus principais assessores deveriam atentar para um fato grave dessa situação, já mencionado por CartaCapital diversas vezes. Há um claro conflito de interesses que deveria manter o Palácio do Planalto longe dessa negociação: a Oi é sócia do filho do presidente da República, Fábio da Silva, em uma produtora de conteúdo para a tevê.

Nada justifica que qualquer nesga de pudor e de postura republicana seja simplesmente atropelada. Nem supostos “interesses nacionais” nem a aparente certeza de que altos índices de aprovação são uma licença para se praticar qualquer ato.