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PL-29 em debate: Quem tem medo das cotas?

O panorama da TV por assinatura no Brasil está prestes a mudar. Mas qual seria o milagre capaz de baixar o alto preço da mensalidade? O que fazer para elevar o atual patamar de 5 milhões de lares para algo mais próximo da vizinha Argentina, onde 30 milhões de famílias possuem TV por assinatura? Como ter o direito de consumidor respeitado, fazendo com que canais não sumam de uma hora para outra, obrigando o cliente a mudar para pacotes cada vez mais premium e com complicadas cláusulas de fidelidade?

As respostas são duas: regulação e choque de capitalismo. O problema é que nossos capitalistas gostam muito de concorrência para os outros. O Projeto de Lei 29 da Câmara dos Deputados tenta atender à primeira parte da questão. Quanto ao choque, este parece estar acontecendo com a pressão das teles por uma fatia desse mercado. Hoje as companhias de telefonia estão impedidas por lei de vender TV por assinatura, embora a tecnologia o permita. Cada dia que passa mantida a proibição é mais prejuízo.

A interessante discussão levada ao longo de 2007 pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados teve o mérito de apresentar os vários agentes que gravitam em torno desse mercado. Mostrou quem são os produtores independentes de conteúdo audiovisual brasileiro. São empresários que até agora buscam mercado para suas produções fora do Brasil. Não por falta de qualidade, já que produtos brasileiros cada vez mais são vistos em canais como Discovery, National Geographic, ou outros para audiências mundiais em torno de 300 milhões de pessoas. No entanto, suas produções não passam no Brasil porque aqui a televisão exibe tudo o que ela mesma produz dentro de casa.

Riqueza e empregos

O debate também iluminou um pouco o nevrálgico tema das cotas. Ficamos sabendo que nos Estados Unidos, a partir da década de 70, vigorou o ato conhecido como Fin Syn (Financial Interest and Syndication Rules). Os norte-americanos entenderam que a televisão, por já ter o direito de exibição, não podia ser produtora de conteúdo, pois isso criava concorrência desleal com as produtoras que não tivessem canais de exibição. A legislação norte-americana limitou o número de horas que os canais podiam produzir internamente, garantiu ao produtor independente direitos patrimoniais e promoveu a regionalização do conteúdo. Hoje, nos EUA, 70% dos programas são feitos por independentes.

Na Europa, a diretiva "Televisão Sem Fronteiras" exige, desde 1997, que os canais de TV de seus Estados-membros exibam conteúdo europeu na maior parte da transmissão. Isso não inclui notícias, esportes e publicidade. E garante que pelo menos 10% da programação seja feita por independentes. No Canadá, há uma cota de 50% para produção canadense e tudo é feito por produtores independentes, exceto jornalismo. Todos os países que hoje possuem uma indústria audiovisual robusta protegeram seu conteúdo local e por algum tempo ampararam seus produtores com cotas. Isto gera riqueza para um número maior de pessoas. No Canadá, a indústria audiovisual responde por 4% do PIB do país e gera 600 mil empregos.

Por que assustam?

Na iminência de ser votado, o PL 29 prevê três horas e meia de conteúdo nacional por semana e, dessas, escassos 15 minutos diários realizados por independentes. É quase nada. Mesmo assim, pesadas baterias são assestadas contra o texto por canhoneiras diversas. A lei pretende ainda injetar 300 milhões de reais por ano no fomento sem criar imposto, apenas redirecionando 11% da Taxa de Fiscalização do Fistel para o Fundo Setorial do Audiovisual.

A entrada das operadoras de telefonia vai aumentar o mercado consumidor e o estabelecimento de cotas mínimas para a produção independente garantirá um acesso à distribuição que hoje não existe. Cotas não deveriam ser bicho-papão. Por que será que assustam tanto?

* Leonardo Dourado é vice-presidente da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão (ABPI-TV).

Jornalistas por formação: essencial para a profissão e melhor ainda para a sociedade

Depois de uma longa tramitação, o processo – (RE) 511961 – que questiona a exigência da formação específica para o exercício do Jornalismo entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal e ainda este ano deve ser finalmente julgado. É, com certeza, o momento mais importante nesta longa guerra de exatos 70 anos em defesa da regulamentação profissional dos jornalistas.

É importante esclarecer: defender que o Jornalismo seja exercido por jornalistas está longe de ser uma questão unicamente corporativa. Trata-se, acima de tudo, de atender à exigência cada vez maior, na sociedade contemporânea, de que os profissionais da comunicação tenham um alto nível de qualificação técnica, teórica e principalmente ética.

Grandes empresas de comunicação não admitem a possibilidade de uma profissão organizada e regulamentada e por isso, recorreram à Justiça. O ataque à profissão jornalística é mais um ataque às liberdades sociais, cujo objetivo fundamental é desregulamentar as profissões em geral e aumentar as barreiras à construção de um mundo mais pluralista, democrático e justo.

A Constituição, ao garantir a liberdade de informação jornalística e do exercício das profissões, reserva à lei dispor sobre a qualificação profissional. A regulamentação das profissões é bastante salutar em qualquer área do conhecimento humano. Impor aos profissionais do Jornalismo a satisfação de requisitos mínimos, indispensáveis ao bom desempenho do ofício, longe de ameaçar a liberdade de Imprensa, é um dos meios pelos quais, no estado democrático de direito, se garante à população qualidade na informação prestada.

Desse modo, qualquer tentativa de revogar essa norma sob a alegação de inconstitucionalidade, mal disfarça o objetivo de banalizar a profissão e permitir ao patronato da comunicação social desmobilizar a categoria dos jornalistas e rebaixar o nível salarial, tudo em prejuízo da qualidade da informação prestada à sociedade.

A existência de uma Imprensa livre, comprometida com os valores éticos e os princípios fundamentais da cidadania, portanto cumpridora da função social do Jornalismo de atender ao interesse público, depende também de uma prática profissional qualificada. A melhor forma, a mais democrática, de se preparar jornalistas capazes a desenvolver tal prática é através de um curso superior de graduação em Jornalismo.

O fim da exigência da formação específica fere frontalmente a sociedade em seu direito de ter informação apurada por profissionais, com qualidade técnica e ética, bases para a visibilidade pública dos fatos, debates, versões e opiniões contemporâneas, atacando, portanto, o próprio futuro do país.

Não apenas a categoria dos jornalistas, mas toda a Nação perderá se o poder de decidir quem pode ou não exercer a profissão no país ficar nas mãos de interesses privados e motivações particulares. Os brasileiros e, neste momento específico, os Ministros do STF, não podem permitir que se volte a um período obscuro em que existiam donos absolutos e algozes das consciências dos jornalistas e, por conseqüência, de todos os cidadãos!

* Sérgio Murilo de Andrade é presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)

 

Justiça tardia: o caso do grupo Isaías no Equador

[Tradução: Marco Aurélio Weissheimer]

Em 1998, o Equador mergulhou em uma das piores crises econômicas de sua história. O PIB caiu, a pobreza e a desigualdade aumentaram dramaticamente. Uma migração sem precedentes levou cerca de 1,3 milhões de equatorianos para a Espanha e, em menor medida, aos Estados Unidos, em um tempo relativamente curto. Alguns fatores contribuíram para essa situação: uma queda dramática dos preços do petróleo, o fenômeno do El Niño que inundou e destruiu grandes extensões de cultivos destinados à exportação e ao mercado interno, o super-endividamento do país que fez com que os compromissos de pagamento da dívida absorvessem uma parte importante dos limitados recursos fiscais disponíveis.

A estes fatores externos somou-se a derrocada do sistema financeiro. Não é possível deixar de relacionar essa derrocada com dois tipos de decisões: por um lado, com o conjunto de reformas iniciadas em meados dos anos 1990 com uma agressiva flexibilização das normas que regulavam o funcionamento do sistema financeiro e que permitiu que os bancos e seus acionistas pudessem intervir em outros negócios para além da banca financeira; por outro, o enfraquecimento da capacidade do Estado de regular, controlar e intervir naquelas instituições financeiras que apresentaram problemas ou que descumpriram as leis do país. Um ambiente permissivo permitiu que os grupos econômicos que controlavam a banca financeira usassem os recursos dos correntistas e poupadores tanto em operações especulativas de alto risco, sem as devidas garantias, assim como em empréstimos a membros do grupo e a empresas vinculadas. A isso se somou a grande ingerência política dos grupos financeiros nos governos desde 1992.

Os problemas macroeconômicos, as dificuldades no setor externo e o manejo irresponsável e especulativo da banca privada levaram ao colapso do sistema financeiro. A defesa das reformas que flexibilizaram o sistema financeiro e que limitaram o papel do Estado foi a base das políticas neoliberais que dominaram as políticas públicas nos anos 1990.

O paradoxal é que os setores que defenderam a redução das funções estatais de regulação e controle no âmbito financeiro, não hesitaram um instante em pedir socorro ao Estado para manter a sobrevivência do sistema financeiro. Foi implementado, então, um conjunto de operações de socorro ao setor bancário que, em 1999, ano em que os efeitos da crise afetaram a maioria da população, representaram 30% do PIB equatoriano. Somente um banco, Filanbanco, propriedade do grupo econômico Isaías, recebeu mais de US$ 1,2 bilhões de dólares, o que representou “mais do dobro do que o Estado destinou para a saúde pública entre 1998 e 2001” (1).

O grupo Isaías, proprietário do Filanbanco, a partir de seus negócios no setor financeiro, expandiu suas operações a quase todos os setores da economia. Quando o banco faliu e foi passado para as mãos do Estado – e apesar de ter sido um grupo particularmente favorecido pela operação de socorro bancário – o grupo teve a oportunidade de reestruturar, em condições vantajosas, boa parte dos créditos que tinha junto às empresas vinculadas e inclusive exigiu do Estado a devolução de garantias outorgadas pelos recursos entregues para salvar o banco.

Convertido em um dos grupos econômicos mais poderosos do país, os chefes do grupo Isaías protegeram-se da ação da Justiça refugiando-se nos Estados Unidos. Seu poder paralisou qualquer tentativa do Estado equatoriano, através da Agência de Garantia de Depósitos (AGD), para ressarcir os prejuízos econômicos causados aos depositantes e ao próprio Estado.

Tem razão o governo do presidente Rafael Correa ao afirmar que a decisão de bloquear os bens dos principais acionistas do Filanbanco devia ter sido tomada há dez anos. A longa espera para que se faça justiça permitiu que os irmãos Isaías continuassem e ampliassem seus negócios no Equador (incluindo aí a propriedade de dois canais de televisão aberta e um de tv a cabo) e aumentassem seu poder de influência, amparados por uma justiça lenta e ineficiente, um Estado que se recusou a enfrentá-los e a falta de vontade política dos governos que se sucederam desde 1998 até hoje para cumprir a lei.

A decisão histórica é, sem dúvida, a mais importante das já adotadas por um governo para enfrentar um grupo de poder que se transformou na maior expressão da impunidade, da prepotência e de um poder ilimitado frente à lei e as instituições jurídicas e políticas. Que a falta de memória não sirva de pretexto para esquecer os amargos dias do latrocínio que significou o “socorro” bancário e lançar terra sobre o custo que teve para o Equador e as famílias equatorianas.

Os críticos da decisão da AGD, tomada no estrito respeito às leis vigentes, esgrimem dois argumentos: por um lado, que se trata de uma decisão política e eleitoral: por outro, que é uma ação que tem como objetivo atacar a liberdade de expressão. Os dois são argumentos débeis. É evidente que a decisão, por sua natureza e os interesses em jogo, independentemente do momento em que tivesse sido tomada, tem natureza política. Tanto é assim que nenhum governo teve a coragem de tomá-la até então. Deveria se esperar mais dez anos? Por outro lado, está dentro das atribuições de um governo fixar a agenda para tomar as medidas que considere oportunas de acordo com o contexto político. Em um ambiente de inevitável desgaste devido ao complexo debate constitucional que vive o Equador, a decisão é uma reafirmação da vontade de mudança que o governo Correa assumiu. É uma jogada no tabuleiro político que dá ao governo novamente a iniciativa para defender sua agenda política e comunicacional.

Por outro lado, o caso do grupo Isaías demonstra o acerto da proposta, atualmente em debate constitucional, que aponta para a necessidade da independência dos meios de comunicação frente ao controle por parte de impérios econômicos como o deste grupo. Outro tema que deve ser amplamente debatido é o futuro desses meios e a forma de convertê-los em verdadeiros espaços plurais de opinião.

* Carlos Arcos Cabrera é sociólogo (Equador)


(1) Acosta Alberto, Recordando los entretelones del salvataje bancario, 8 de julho de 2008.

 

 

Televisão e divulgação científica

A ciência, assim como a cultura e a sociedade nas quais se insere, está em constante construção – atravessa mudanças paradigmáticas, expressa preocupações, crises, anseios e discussões éticas da "comunidade científica". Por isso, ciência é uma categoria muito boa para se pensar a sociedade, seus problemas, atores sociais, conflitos e, inclusive, seu futuro.

Embora grande parte dessas discussões não ultrapasse o universo acadêmico, em alguns casos – como o dos clones de animais, do uso de embriões humanos em pesquisas ou dos alimentos transgênicos – a sociedade acompanha o debate. Esse contato geralmente se dá por intermédio dos meios de comunicação de massa: jornais, revistas, televisão, rádio, computadores em rede, celulares.

Espaço simbólico rico em mediações, os meios de comunicação e seus produtos não devem ser tomados como puro entretenimento. O divertimento que promovem veicula valores, representações, visões de mundo, assim como reforça formas de pensar centradas, por vezes, no estereótipo e no preconceito. Dessa forma, meios de comunicação de forte apelo visual como a televisão – amplamente comercializados como formas de lazer – são, na realidade, constituídos pela veiculação intensa de informações publicitárias, jornalísticas, narrativas e, até, científicas e tecnológicas.

Ciência e tecnologia são temas que interessaram aos meios de comunicação de massa desde suas primeiras versões. Nem sempre no formato de divulgação científica – preocupada com conceitos e evitando distorções; mas como ficção científica ou como apelo noticioso-sensacional. Nesse sentido, até telenovelas brasileiras já trataram de clones e mutantes – é claro que no formato e com enredo de folhetim. No formato jornalístico, o sensacionalismo configura-se um problema em matérias produzidas por jornalistas nem sempre afeitos ao discurso científico, com pouco tempo para produção em veículos que abrem espaço exíguo para uma edição cuidadosa e veiculação de assuntos que precisam de explicação.

Tais problemas, contudo, não desfazem as possibilidades dos meios. Mostram, de fato, que televisão e ciência envolvem esferas discursivas diferentes, mas que televisão e divulgação científica são termos que podem ser conjugados. Se com a especialização na área científica as pessoas "leigas" têm cada vez menos acesso às pesquisas recentes, os meios de comunicação de massa têm a possibilidade de promover a divulgação da ciência a um público vasto. Além disso, a televisão tem forte apelo visual, adota uma linguagem coloquial, um ritmo acelerado e a mistura de vários elementos que fazem do meio um espaço privilegiado na cultura contemporânea. Os recursos técnicos são inúmeros: gráficos, imagens filmadas e digitais, animações, entrevistas, depoimentos, falas de jornalistas intercaladas com de especialistas. E comodidade: na internet é preciso procurar informações. Na televisão, o espectador não procura: elas são dadas sem que se precise usar mecanismos de busca.

Por todos esses aspectos, a televisão tem amplas possibilidades educativas. Educação, formação são processos sociais e culturais, não cessam enquanto o indivíduo vive. Durante toda a vida, cada um se educa em contato com outras pessoas, fontes de referências, meios de comunicação de massa e, também, por meio da educação formal aplicada por escolas em todos os níveis – da educação infantil à pós-graduação. Olhando por esse prisma, considerar educação apenas como instrução formal seria reduzir todo o processo e minimizar o papel dos grupos sociais e das culturas na formação.

Assim entendendo, a programação dos meios de comunicação de massa também poderia ser considerada formadora: programas de entretenimento, jornalísticos, publicidade, divulgação científica. A questão a se propor é: educam para quê? Para um olhar crítico, cidadão, responsável sobre o espaço, a comunidade e os próprios meios de comunicação? Ou para o consumo e o desperdício? Ou ainda para se adotar determinados pontos de vista guiados por posições políticas e econômicas que atendem a interesses de poucos?

Autores como Jesús Martín Barbero (1997) entendem os meios de comunicação de massa, a televisão de forma especial, como tendo um importante papel na construção e reforço de representações. Os meios não determinam normativamente representações ou comportamentos, afinal, os sujeitos filtram, interpretam e ressignificam segundo outras lógicas os conteúdos dos programas. Contudo, ao lado da família, da escola, do trabalho, da igreja e de outras importantes instituições sociais, a televisão também opera nessas construções. Como tais instituições, a TV por si só não tem capacidade de mudar juízos. É importante contextualizar o universo cultural, informativo no qual o receptor, a audiência estão inseridos.

Tal espaço, um locus de costumes, crenças, concepções de mundo entre o meio de comunicação e o receptor, Barbero (1997) chama de mediação. Cada indivíduo possui filtros culturais diferentes que influenciam a maneira como recebe as mensagens dos mais variados meios.

Operando como uma instância de mediação, a divulgação científica pela televisão pode despertar a atenção para o discurso científico. Contudo, do ponto de vista da divulgação de ciências, o uso que se vem fazendo da televisão no Brasil ainda é problemático. Nos canais comerciais abertos a programação científica é quase inexistente. Programas de discussão sobre pesquisas, acerca do andamento de trabalhos científicos, enfim, sobre a ciência como construção e relacionada ao cotidiano são incomuns. Existem programas do gênero Globo Repórter e Fantástico com matérias, em geral, pouco explicativas, muito afirmativas e, muito freqüentemente, de caráter sensacional. Esses, pouco contribuem para o esclarecimento porque além de não terem objetivo formador, educativo, atingem, em grande parte, um público com pouco acesso a outras mediações que traduzam criticamente aquilo que é veiculado. Juntam-se dois problemas de ordens distintas: a falta de intenção de informar sem distorcer e a falta de acesso a outras fontes de informação que possibilitem à audiência conferir a informação assistida.

Em termos de conteúdo, os programas não voltados para a divulgação científica, mas que se referem à ciência mesmo assim, tendem a apresentar uma espécie de ruptura entre conhecimento científico e suas inter-relações com o conhecimento escolar e o conhecimento cotidiano. Além disso, trabalham com a idéia reduzida da ciência como aquela produzida em laboratórios tecnológicos. Campos de conhecimento ligados às ciências humanas e sociais não são privilegiados.

A programação televisiva voltada para o público jovem e infantil não foge a essa lógica. A maior parte das animações e programas voltados para as crianças submete-se somente ao caráter de espetáculo, de atrativo. Novas tecnologias são introduzidas, mas a violência, o vocabulário vulgar, a competição e o consumo são incitados. Além disso, artistas, cientistas, professores, idosos, estudiosos são amplamente divulgados de modo estereotipado. Exemplos de cientistas excêntricos em animações recentes estão em desenhos como Jimmy Neutron, o menino gênio, O laboratório de Dexter e no professor Utônio, de As meninas superpoderosas – animações de televisão que geraram linhas de produtos: mochilas, camisetas, estojos, lancheiras, tênis – originais e copiados.

A força discursiva desses estereótipos é tal que em oposição a muitos canais que exibem programação despreocupada com a violência, com a linguagem vulgar e com os temas abordados – mais apropriados para adultos –, surgem canais voltados exclusivamente para a programação dita "educativa", atentos ao desenvolvimento e à formação de crianças e adolescentes. Alguns são públicos, como TV Cultura, de São Paulo, e outros, como o Discovery Kids, da TV paga, são comerciais.

Esse tipo de iniciativa parece resistir à cultura de massa, mas um olhar atento capta que são os meios de comunicação mostrando-se culturalmente híbridos ao mesmo tempo em que é a própria indústria segmentando-se, abrindo espaço para "produtos" diferenciados – nesse caso, interessados e comprometidos com conteúdos apropriados para o público jovem.

Ainda no plano do conteúdo, e fazendo uma breve reflexão epistemológica, o interesse torna-se uma questão muito importante relativa à divulgação científica pela televisão. O filósofo alemão Jürgen Habermas (1987) ao desenvolver a "teoria dos interesses cognitivos", mostrou o conhecimento e os interesses como uma unidade indissolúvel para as múltiplas ciências. Habermas procurou mostrar que uma ciência neutra é uma exigência que não resiste a um exame crítico.

No texto "O campo científico", Pierre Bourdieu também discutiu a questão da não-neutralidade e do interesse ao escrever que a idéia de uma ciência neutra " é uma ficção interessada" (1994, p.148). Em uma crítica incisiva, Bourdieu parte do princípio de que "O universo 'puro' da mais 'pura ciência' é um campo social, como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros" (1994, p.122).

Ora, se toda ciência é interessada, a divulgação científica também refletiria interesses. E se a ciência não pode pretender ser neutra, a divulgação científica tampouco pode querer difundir uma ciência neutra. Então, que interesses poderiam ser esses? Enquanto para Habermas o interesse por trás do conhecimento científico situa-se na busca da emancipação e da compreensão mútua, para Bourdieu esse interesse tem um sentido político.

Aproximando essa visão da questão da divulgação científica pela televisão, observa-se que em programas educativos, oriundos, por exemplo, de instituições universitárias ou canais públicos, haveria algum "interesse" emancipatório, em outros programas, no entanto, esse não seria o interesse. Além disso, a idéia de neutralidade impossível não é transmitida por todos os programas que veiculam informações ou representações de ciência.

Longe de desfazer o meio televisivo, esses são motivos para se pensar que a divulgação científica é ainda mais necessária pela televisão. Todo tipo de assunto e tema é abordado pela televisão e seus programas. A ciência não poderia ser deixada de lado. Comunicar a ciência pela televisão é uma forma de dar respostas à sociedade que, afinal de contas, financia a pesquisa e para quem seus resultados precisam ser mostrados. Mas a televisão exige adaptações a seu formato que precisam ser realizadas com atenção para que o que se divulga seja o que a ciência conclui mais do as representações sobre esse discurso que os profissionais do meio de comunicação constroem.

* Denise da Costa Oliveira Siqueira é doutora em comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e professora da pós-graduação em comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora de Comunicação e ciência: estudos de representações e outros pensamentos sobre mídia (EdUerj, 2008) e de A ciência na televisão: mito, ritual e espetáculo (Annablume, 1999).



** Referências :
BARBERO, Jesús Martin. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1997.
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: Bourdieu – sociologia. São Paulo: Ática. p.46-81, 1983.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. A ciência na televisão: mito, ritual e espetáculo. São Paulo: Annablume, 1999.
______. O cientista na animação televisiva: discurso, poder e representações sociais. Em questão, v. 12, n.1. Porto Alegre: UFRGS, jan-jun 2006, p.131-148.

Caso Dantas: a culpa será jogada no pintor de paredes

Quando eu era um jovem editor do Jornal da Cidade, faz tempo, banquei com o repórter Eduardo Nasralla a investigação de um crime cometido por um policial civil de Bauru. Batizamos de "crime da igreja".

Ao descer de um andaime usado para pintar as paredes externas de uma igreja, um homem foi morto por um policial que dizia investigá-lo.

Nasralla descobriu, no entanto, que os dois já se conheciam. Mais: que faziam negócios juntos. De acordo com a viúva, os negócios envolviam o tráfico de drogas.

Bauru era uma cidade pequena. Recebemos ameaças e muita pressão para abandonar o assunto. Nasralla persistiu.

No dia em que o crime foi reconstituído fui assistir junto com o repórter. De repente, a polícia passou a simular uma suposta agressão do morto, que teria causado a reação do investigador – legítima defesa. Buscamos saber o motivo daquela reconstituição inesperada.

Ela se baseava em uma nova testemunha, que dizia ter visto a cena. Mais tarde descobrimos que a "testemunha" havia sido plantada pelo investigador para confundir o processo. Uma forma nem um pouco sutil de "sujar a água".

É o que sinto que está acontecendo, agora, no caso envolvendo o banqueiro Daniel Dantas.

Onde é que estão os nossos congressistas, sempre ávidos por uma CPI? Sumiram.

De Brasília, nem um pio, além do óbvio favorecimento àqueles que foram acusados de cometer crimes gravíssimos.

Durante o escândalo do mensalão, que acompanhei de perto como repórter, não me lembro de ter lido na mídia brasileira nenhuma preocupação com vazamentos da Polícia Federal, nem com o uso de algemas, nem com a possibilidade de que pessoas inocentes fossem acusadas. Agora, curiosamente, sim.

Vozes se levantam contra a polícia, contra o poder dos juízes, contra o Ministério Público, contra os grampos, contra os vazamentos…

Quando um delegado federal se reuniu com repórteres, entregou a eles um CD com fotos do dinheiro dos aloprados e combinou uma mentira coletiva, em 2006, na véspera do segundo turno das eleições presidenciais, toda a mídia brasileira dançou conforme a música.

Todas as emissoras de televisão, os jornais e os portais da internet reproduziram as fotos e as informações e OMITIRAM do público o fato de que profissionais da imprensa tinham obtido o material depois de combinar uma mentira com o delegado. Alguns fizeram isso apesar da posse de uma gravação em que a combinação estava registrada.

Na gravação, o delegado Edmilson Bruno disse aos jornalistas que mentiria ao superior, simulando um furto para justificar o vazamento das imagens.

Os repórteres protestaram? Não. Os jornais divulgaram o teor da gravação? Não. As emissoras de TV reproduziram a gravação? Não. Quando a gravação se tornou pública, a mídia brasileira tratou de reproduzí-la? Não. O comportamento dos jornalistas virou tema de debate da categoria? Não.

Era o caso de divulgar as fotos do dinheiro? Claro que sim.

Mas era uma obrigação jornalística divulgar também as circunstâncias em que aquele vazamento havia acontecido.

A mídia preferiu, no entanto, se calar sobre o assunto, mesmo depois que o delegado Edmilson Bruno assumiu o vazamento – e, portanto, abriu mão do sigilo de fonte.

Fez isso por um motivo muito simples: a mídia não expõe os seus métodos de atuação.

Não cumpre nem mesmo as regras de transparência que cobra de autoridades e governos.

E, ao contrário do que propaga, mistura jornalismo com seus interesses políticos e econômicos.

Isso ficará claro se o esquema de Daniel Dantas com jornalistas e empresas de comunicação vier a tona.

Porém, antes disso, é provável que se encontre uma forma de condenar o pintor de paredes por homicídio qualificado.