Arquivo da categoria: Análises

O que fazer pelas rádios comunitárias

A política, ao contrário do que imaginam os fiéis jogadores deste jogo, nasceu com o italiano Nicolau Machiavel. Isso tem 500 anos, mas ainda hoje ela é jogada como estabeleceu o florentino. Quer entender o PT, o DEM, o PSDB, a Igreja Católica, a grande mídia? Leia O príncipe.

OK, vão dizer que Sócrates e, antes, Arjuna, Confúcio e Lao Tse, e também as tribos do Xingu e os africanos, tratavam disso… Concordo. Todo mundo tem razão. Mas, para evitar arengas desnecessárias, digamos que Machiavel "inventou" um jeito de fazer política. Um jeito sangrento e cruel, vendido até hoje nas boas casas do ramo sem restrições a faixa etária.

Feito este prefácio exorcista, vamos aos fatos.

Há cerca de um mês, o ministro da Justiça, Tarso Genro, recebeu representantes das rádios comunitárias e anunciou algumas mudanças para o setor. Não é a primeira vez que isto acontece. Talvez não seja o caso, talvez Tarso Genro, que tem um histórico pessoal e político exemplar, esteja de fato querendo resolver a situação, mas não temos nenhuma prova de que o governo pretenda mudar sua política com relação às rádios comunitárias – porque, senhoras e senhores, são seis anos de enrolação. Há seis anos que este governo tenta engrupir aqueles que fazem rádios comunitárias no Brasil. Com uma mão (política) pede calma, fala em parceria, promete mudanças; com a outra (política), determina ao Estado que reprima, humilhe, bata, prenda, execre, exclua…

Burrice como estratégia política

Diante desta realidade histórica, ao invés de apontar correções aqui e acolá, cumpre destacar algumas questões maiores para discussão. Nossa missão aqui é identificar o que pode ser feito pelas rádios comunitárias em alguns setores. Vamos em frente:

O Executivo. Primeiro, parar com a enrolação. Alguém do Palácio do Planalto tem que ser honesto com a sociedade e firmar a palavra: "Nós vamos fazer isso e o prazo é tal." Este interlocutor, por motivos óbvios, não pode vir do Ministério das Comunicações ou da Anatel. Porque submeter os possíveis avanços do setor aos interesses do empresariado da comunicação, ou aos tecnocratas, aos petistas alpinistas no governo ou enroscados em entidades, os jogadores desse jogo, é garantir a continuidade da enrolação.

O Planalto, como é sabido, ainda não sabe o que é rádio comunitária. É uma burrice opcional. Porque a burrice é interessante para o jogo. Cada vez que pega fogo aqui em baixo (no meio do povo das rádios comunitárias) o governo monta um Grupo de Trabalho ou escala um interlocutor que se reúne com as entidades e pergunta mais uma vez o que fazer. A gente tá sempre começando do zero na relação com o governo.

O Executivo poderia fazer muita coisa. Por exemplo, poderia propor ao Congresso Nacional uma lei decente para a Radiodifusão comunitária. A que está valendo hoje, nº 9.612/98, foi feita para impedir o funcionamento das rádios comunitárias. Até as minhocas lá de casa sabem disso. O governo já podia ter modificado o Decreto 2.615/98, que regulamenta a lei e – inconstitucionalmente – vai além dela. O que mudar na Lei e no Decreto? Se o governo não sabe, paciência. É tudo óbvio. É só abandonar um pouco a prática da burrice como estratégia política e ver o que todos vêem.

O crime é querer se comunicar

O Executivo também poderia fazer uma Medida Provisória anistiando os milhares de presos políticos, acusados de fazer comunicação – na linguagem do Estado, "operar emissora sem autorização". Porque até as minhocas lá de casa, volto a citá-las, sabem que raramente rádio comunitária autorizada é comunitária. Ter um papel pregado na parede não quer dizer nada. Porque o papel, como já foi mostrado em estudo realizado pelo professor Venício Lima, tem sido dado pelo Ministério das Comunicações aos amigos e compadres políticos ou religiosos.

Outra coisa é a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Ela foi entregue a uma pessoa do PSDB (e eu, pensando que o PSDB era oposição!), Ronald Sardenberg. Ele foi ministro da Ciência e Tecnologia do honorável presidente FHC (intelectual brilhante, garboso, elegante, inteligente, segundo a mídia na época). E que ministro?! Foi ele quem fechou acordo para entregar a Base de Alcântara, no Maranhão, para os norte-americanos, que pretendiam fazer por lá uma base militar. Só não deu certo porque os movimentos sociais fizeram um barulho arretado e o Congresso Nacional vetou. Mas isso é outra história. Pois bem, essa Anatel, eficiente em fechar rádios não autorizadas, nem deveria existir, mas se temos que engolir, pelo menos que se atualize. É preciso ensinar aos agentes sobre direitos humanos, por exemplo. O crachá, acreditam alguns, lhes dá o direito de humilhar os pobres.

A Polícia Federal também precisar aprender muito sobre a questão. Alguns agentes, diga-se a bem da verdade, se sentem constrangidos em fazer esse "trabalhinho" de pegar rádio "pirata"; eles sabem que é uma covardia botar fuzil e metralhadora no peito de pobre de ficha limpa na polícia. Mas boa parcela da PF ainda usa e abusa do poder, humilha e constrange. São os que reproduzem a mentira de que rádio pirata derruba avião e tratam os que estão na rádio não autorizada como se fossem marginais da pior espécie. Na verdade, o grande crime dessa gente é querer exercer o direito humano de se comunicar.

Um relatório metafísico

Ainda com relação à Anatel, se o governo quer fazer algo pelas rádios e acabar com a enrolação, é preciso botar um freio nesta instituição transgênica. A agência tem feito de tudo para impedir o funcionamento das rádios comunitárias (vide "O fim da Anatel" e "A lei troncha faz dez anos", aqui no Observatório). Ainda recentemente colocou para consulta pública (nº 27, com prazo até 22/08) proposta de exclusão das rádios comunitárias do dial. Isso mesmo, a Anatel considera que fica melhor para as comunitárias operarem abaixo da freqüência de 88 MHz – isto é, fora do espectro de radiodifusão, que vai de 88 a 108 MHz.

Por que uma proposta como esta, que os tecnocratas da Anatel defendem publicamente (acredite, caro leitor, sem nenhum traço de vergonha na cara), não é feita a uma grande rede? Ora, porque nenhuma emissora se submeteria a isso. Claro. Empurraram essa sobre o povo porque ele não tem poder nem capacidade de enfrentamento. Taí, se o governo quer fazer alguma coisa, muda essa Anatel, muda a perspectiva da Anatel, muda a política da Anatel; não permita que coisas esquisitas e vergonhosas, como esta "consulta", se tornem públicas.

O Executivo também tem que tomar juízo e aprender o mínimo sobre comunicação. Diz o professor Luiz Gonzaga Motta: "Não há poder sem imprensa, nem imprensa sem poder" (Imprensa e Poder, UnB, 2002). Mas isso é uma parte da lição. Ele também diz no mesmo texto: "É a imprensa que seleciona, tipifica, descontextualiza, estrutura e referencia o real". Se é assim, se o monopólio da mídia constrói esse real, o real que lhe interessa, por que não investir nas mídias alternativas?

Se o governo quer fazer algo de verdade, aproveite a primeira parte do Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), concluído em agosto de 2005, e conheça a realidade da radiodifusão comunitária. A segunda parte, onde estão as propostas do GTI, jogue no lixo ou mande incinerar – o que tem lá é ridículo. Ah, sim, este relatório tem um quê de metafísico – todo mundo conhece, mas ainda é tratado como sigiloso.

"Função do Judiciário é fazer justiça"

O Judiciário. O Ministério Público Federal é uma instituição rachada: uma banda acha que a rádio não autorizada não deve ser criminalizada; a outra banda defende que o caso é de cadeia. Os ministérios públicos estaduais estão na mesma situação: uma turma para cá, a outra para lá.

Muitos juízes decidiram pela insignificância da atividade e arquivaram processos; eles não caíram no engodo de que rádio comunitária derruba avião ou atrapalha os serviços de segurança, como soam boatos insistentemente por aí.

Os legalistas não precisam se irritar. Afinal, é fato que a legislação tem tido diversas leituras: há juízes que consideram crime operar emissora sem autorização e outros que (com base na Constituição e nos direitos humanos) não vêem nada disso. Os dois seguem a lei. Ou alguém acredita que algum juiz desobedeça a lei? Portanto, é uma falácia dos agentes da Anatel ou da PF afirmarem que seguem a lei ao fazer a repressão. Fosse assim, muitos juízes deveriam estar na cadeia por não reconhecerem como crime a operação de rádio comunitária sem autorização.

Na verdade, os atos da Anatel e da Polícia Federal são políticos. Se a Anatel fosse tão ciosa no cumprimento da lei, como diz, deveria fechar as centenas de emissoras de rádio e televisão com outorga vencida. Somente em São Paulo, conforme estudo feito pelo Intervozes, 90% das rádios comerciais são piratas. Mas a Anatel não parece interessada nesta ilegalidade. Ilegalidade de rico é diferente, meu caro leitor.

O fato é que o Judiciário, e em especial o Ministério Público, está sendo experimentado nessa questão. Se a lei é contra o povo, o Judiciário deve seguir a lei? O Ministério Público deve obedecer ao Estado mesmo quando seus agentes repressores são acionados para servir aos interesses de uma minoria? O juiz federal Paulo Fernando Silveira, de Uberaba, Minas Gerais, tem uma posição bem clara: "A função do Judiciário não é seguir a lei, mas fazer justiça."

Menos ganância e manipulação

Se queremos um novo país, temos que repensar a Justiça. Seguindo por este caminho, fica a pergunta: é justo que a comunidade tenha um veículo de comunicação? É justo que o povo seja excluído de um espaço (eletromagnético) que lhe pertence? É justo que homens e mulheres, trabalhadores ou aposentados, sejam presos e algemados como criminosos por quererem se comunicar? É justo que o Estado faça uma leitura da lei reproduzindo uma opressão de cinco séculos sobre esse povo?

As igrejas. Elas precisam ser mais cristãs. Isto é, reduzir a gula, a usura, a ganância, que as levam a acumular bens, em especial emissoras de rádio e televisão. Diz uma entidade da Igreja católica, a Associação Nacional Católica das Rádios Comunitárias, Ancarc, que possui mais de 200 rádios comunitárias autorizadas. A Ancarc está associada à CNBB. Isso mesmo, faz parte da tal linha "progressista" da Igreja católica. Não me espanta. A ganância demoníaca pelo poder levou a Igreja a montar um dos maiores latifúndios da comunicação do Brasil. Os números são difíceis de obter porque a propriedade é camuflada junto ao Executivo.

Católicos e evangélicos disputam a posse sobre o que é do povo. Quem tem mais poder político leva mais vantagem. A Igreja Católica ganha, por enquanto: ela possui emissoras comerciais, educativas e até "comunitárias". Talvez por circular com desenvoltura em várias ideologias – é esquerda ou direita, conforme a conveniência – sempre está no poder e sempre usa este poder em seu benefício. Ah, em nome de Deus, claro. Machiavel escreveu O príncipe com base nas práticas da Igreja católica da época, sua luta pelo poder – que, como se percebe, continua até hoje. A ganância de poder da Igreja católica é tamanha que – não bastassem as inúmeras TVs e rádios que possui – ainda ocupa as manhãs de domingo da TV Brasil para transmitir a "santa" missa.

Se as igrejas querem de fato democratizar as comunicações, o mínimo a fazer é uma ação humanitária e cristã: devolver as rádios comunitárias ao legítimo dono, o povo. Padres e bispos, cardeais e papas, escutem meu sermão do planalto central: sejam menos gananciosos, não manipulem o povo, entreguem o poder ao povo.

Um novo modelo de comunicação

Jornalistas e radialistas. Os colegas poderiam estudar mais o assunto. Quando se fala em rádios comunitárias, eles reproduzem o pensamento único dos patrões e associam a prática ao crime. Não se dão ao trabalho de investigar como a rádio funciona, questionar as autoridades, avaliar a repressão, procurar entender a conjuntura. Regra geral, as matérias nos jornais, rádios ou TVs, no Norte ou Sul do país, dizem a mesma coisa: relatam o fechamento da rádio, citam a legislação, reproduzem a fala da autoridade repressora. O repórter não se dá ao trabalho de pensar. Talvez porque saiba que este é o tipo de matéria que agrada ao chefe. E feita desse jeito: tendenciosa, ouvindo apenas uma fonte, sem questionamentos. Na verdade, ele faz textos de propaganda.

O que os jornalistas podem fazer? Apenas isso: buscar a verdade. Se fizer, isso o mundo já melhora muito.

As entidades. Por uma série de motivos, várias entidades da sociedade civil se aproximaram das rádios comunitárias. Elas perceberam que a democracia na comunicação tem nas rádios comunitárias um dos instrumentos-chaves. Nem todas essas entidades atuam diretamente com comunicação. Mas estão juntas no processo de transformação; acreditam na comunicação.

Para justificar sua enrolação, alguns do governo (praticantes do sindicalismo medieval) afirmam que o movimento das rádios comunitárias é confuso e não mobiliza. E cobram carro de som em frente ao Planalto. Como se rádio comunitária fosse movimento de massa. Infelizmente alguns dirigentes do movimento das rádios comunitárias ainda não aprenderam que rádio comunitária é mídia, e uma mídia diferente, que não tem dono, e que ela não é uma "base", como existe nas categorias profissionais; e assim, mergulhados nesse equívoco, baixam a cabeça e ficam frustrados porque não conseguem juntar povo na Praça dos Três Poderes.

Não percebem que o governo erra ao cobrar isso. Como se para ter reconhecido o direito à comunicação (ou a respirar, ou à alimentação), o povo precisasse se organizar, fazer passeata, berrar em frente ao Planalto e levar bordoada da polícia. É claro que na cabeça dos sindicalistas jurássicos instalados no poder (qualquer poder) essa é a regra. Talvez pensando em manipular depois… Para eles, só se reconhece direito humano se tiver organização e mobilização. Em tempo: Marx, tão citado, não tem a nada a ver com isso. Em resumo, para estes dinossauros, um homem passando fome na rua não existe, ele não vai conseguir comida. Ele só existe quando fundar uma associação dos famintos na rua.

Em resumo, tá sobrando política e faltando cultura no governo. Deveria jogar menos o jogo da política (parar de olhar para as rádios comunitárias e para os que a fazem como peças do tabuleiro e, portanto, manipuláveis ou não) e pensar mais em como mudar a situação. Mais cultura significa aprender. Aprender com as rádios. Porque temos grandes e boas experiências em atividade. No sertão da Bahia – em Santa Luz ou Valente, Lençóis ou Itaberaba –, no interior do Goiás, nos pampas gaúchos (Pelotas, Santa Cruz, Alvorada), na baixada fluminense, em São Gonçalo ou Niterói ou Guapimirim (Rio de Janeiro), no Alto José do Pinho (Recife) ou na aldeia dos índios Xucuru (Pesqueira), em Manaus, em Planaltina (DF)… São rádios de qualidade, rádios decentes, rádios feitas pelo povo.

Atenção, colegas jornalistas: elas estão construindo um novo modelo de comunicação – radiojornalismo, locução, participação comunitária, estética. Se o governo acordar para isso, o mundo pode mudar. Para melhor.

* Dioclécio Luz é jornalista, escritor, pesquisador, autor do livro A arte de pensar e fazer rádios comunitárias

O que é o jornalista?

O ministro da Educação Fernando Haddad não respondeu à pergunta do título, como queriam os jornalistas da Associação de Correspondentes Estrangeiros de São Paulo que o entrevistaram na segunda-feira (15/9). "Se eu respondesse, anularia a discussão que vai definir este ponto básico, identificar o núcleo duro do jornalista, e esse é um debate que vale a pena", disse Haddad.

Quando o ministério decifrar a pedra fundamental do jornalista, e o que permite a um profissional ostentar o título, a intenção é oferecer, por meio de um mestrado, o exercício da profissão a graduados de outras áreas. Todos terão de apresentar a qualidade básica fundamental, necessária à sua formação.

A inclusão já acontece em alguns países. A conceituada Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York, única integrante do seleto grupo de universidades da Ivy League que forma jornalistas e oferece um dos melhores mestrados do mundo, abre os braços para médicos, engenheiros, psicólogos e o resto, e aguarda serena a chegada dos poucos à reta final.

O esforço compensa. Provas duríssimas e aulas extenuantes permitirão ao candidato ostentar o mesmo título concedido a estrelas do rádio, TV, internet e imprensa escrita, e eles nem sempre exibiram na entrada o diploma de Jornalismo que a lei brasileira exige.

"Mas vai valer a pena? Jornalistas ganham tão pouco no Brasil…", argumentou um colega. O ministro riu: "Pode ser que depois a coisa mude", disse.

Qualidade da profissão

O que desvalorizou a profissão e fez despencar os salários foi a esquizofrenia das universidades. Expelem todos os anos jornalistas em escala crescente para um mercado minguante. É o inverso do que acontece com a formação tecnológica.

O ministro insinuou: "Mas podemos induzir a procura para uma ou outra área, através de financiamentos educacionais mais ou menos atraentes". O que pode conter em parte a enxurrada de profissionais de faculdades públicas, mas não das particulares.

Uma proposta que valerá a pena se ficar comprovada a qualidade primordial que faz um jornalista um profissional distinto. A aposta para alguns é a cultura; para outros, a curiosidade; para terceiros, o espírito comunitário; para muitos, o dom para a investigação, a qualidade de não desistir, como a que levou o repórter Tim Lopes até o fim; para a maioria, o desprendimento de abrir mão da vida pessoal em favor da informação ao público.

São características que podem caber na Saúde e na Lei, em qualquer profissão. Mas a pergunta vai mais a fundo, e por isso os sindicatos insistem no diploma. A essência é aquela fibra que não permite ao engenheiro escapar da culpa pelo prédio que ruiu. É a ética do jornalista, o compromisso único e direto com a verdade. Uma qualidade que não se aprende em banco de escola, mas se não constar do DNA do profissional é motivo suficiente para expulsá-lo do time.

Como medir essa fina característica antes de testá-la no dia a dia? E até que ponto a abertura vai apurar a qualidade da profissão?

Isso só será avaliado depois da discussão proposta pelo ministro, da qual todo jornalista adoraria fazer parte. Para saber, afinal, se é ou não é jornalista.

* Norma Couri é jornalista.

Grampo, Dantas, Abin: Tragicomédia no teatro da República II

(…)

No papel de Ministro da Defesa, o que esse personagem defende só podemos especular. O que seria impróprio. Mas em papéis anteriores, encarnados pelo mesmo personagem podemos averiguar. O que é assombroso. Quando parlamentar constituinte, ainda um quase desconhecido, ao meter a mão do gato no fechamento da Constituição – no mesmo sábado das suas primeiras páginas amarelas na Veja, em 27 de agosto de 1988 – o interesse mais premiado na manobra, desvelada 18 anos depois, foi o da agiotagem internacional, que na época asfixiava nossa economia. Ainda não havia o pré-sal, nem a crise global de alimentos e outros recursos, mas já atuava, como desde sempre, a ganância dos ricaços, em seguidas crises financeiras pelas veias abertas da América Latina.

Em papéis encenados sob negra toga, sua marca não foi menor. Talvez até mais sinistra. Quando a violação do painel de votação do Senado revelou, em 2001, um caso exemplar de virtualidade deleuziana, produzindo no refluxo uma lei que exigia o registro material do voto para possibilitar recontagens manuais, por eleitores fiscais quando necessário em eleições gerais (Lei nº 10.408/02), ele urdiu a derrubada da lei, enquanto presidia o TSE e depois o STF. Algo que levou dois anos, ritos e exorcismos para a pílula azul apagar o painel da memória, canalizados numa nova lei (Lei nº 10.740/03), aprovada sem nenhum debate técnico, por acordo entre os poderes, com irregularidades na tramitação, batizada pelo senador que nos legou o Valerioduto e sacramentada pela seita do santo byte.

Esta seita tem entre seus relicários a urna eletrônica inauditável, entre seu alto clero autoridades republicanas, e por hóstia a pílula azul de Matrix, ingerida pelos olhos e ouvidos no altar das audiências e tiragens. Ela sustenta o status quo, alimentando a fé que demoniza a maleta da Abin mas confia cegamente na urna de Jobim. Um resultado é palpável: na única democracia ocidental que atualmente virtualiza a contagem e impede totalmente a recontagem manual de votos, há políticos e parapolíticos cada vez mais descarados e atrevidos no que tange à corrupção, operada por consórcios cada vez mais poderosos de milícias engravatadas (as de ricaços). Para se imaginar onde isso vai dar, quando o trânsito ferrado ao TSE chegar, seguimo-lo enquanto passa pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para conhecer seus frutos.

(…) De Sanctis [o juiz que autorizou a operação Satiagraha] sofreu investidas de [Gilmar] Mendes já no julgamento dos dois habeas corpus, que libertaram Dantas. Além de considerar o fato de De Sanctis ter considerado a prisão com base no risco de que o investigado pudesse alterar provas contra si um "rematado absurdo" – sabe-se lá por que é tão absurdo isso –, Mendes mandou o segundo pedido de prisão para o CNJ e para a Corregedoria da Justiça Federal – e só não fez uma representação formal contra o juiz porque houve uma revolta dos magistrados. Mas, de qualquer forma, na mídia, De Sanctis foi para o banco dos réus.

Na sexta-feira passada (5/9/2008), em conversas com integrantes da CPI dos Grampos, Mendes apontou o dedo acusador para todas as varas de Justiça especializadas em crimes financeiros. As varas foram criadas em 2003 a partir da constatação de que os juízes das varas comuns não tinham conhecimento especializado para investigar esses crimes. Disse Mendes aos parlamentares que os juízes que atuam nessas varas especializadas, junto com delegados e o Ministério Público também especializados, formam uma espécie de "consórcio" que pode agir como "milícia". As varas de Justiça, os policiais e os promotores especializados foram, todos, de uma bandejada, para a cadeira de réus.

Uma denúncia de que, após o segundo habeas corpus, o ministro teria sido grampeado, fez com que posicionasse suas baterias contra a Abin – suposta autora do grampo de uma conversa telefônica entre Mendes e o senador Demóstenes Torres, em parceria com a PF. A última semana foi perdida numa discussão interminável sobre se os equipamentos da Abin são apropriados para fazer grampos ou apenas fazem varreduras de escutas. Na dúvida, e antes da comprovação da denúncia, a Abin foi para o banco dos réus. (…).

Passados dois meses da prisão de Dantas, todas as instituições que trabalharam no seu inquérito foram julgadas por Mendes – e os juízos de valor feitos pelo presidente do STF de cada uma delas, generosamente estampados pelos jornais. Não fossem as eleições, o presidente do Supremo teria sido o pautador hegemônico da mídia nesse período, sem que fossem necessárias informações mais consistentes do que acusações entre aspas do presidente da mais alta Corte para condenar instituições que exercem o seu papel na democracia brasileira, tal qual o STF. (Maria Inês Nassif, "As instituições e as brigas de botequim", 11/09/08)

Pela árvore, os frutos

Pela árvore dos fatos e versões, conheceremos seus frutos. Começando pela supracitada matéria publicada no jornal Valor Econômico, onde a jornalista conclui:

(…) O sistema judicial tem problemas estruturais que devem ser debatidos seriamente. É impossível, todavia, que todo o sistema seja ineficiente ou corrompido. Os casos de desvios criminosos devem ser investigados pela polícia e julgados pela Justiça. É impossível também que, em toda a cadeia que forma o sistema policial e judicial, apenas Mendes e Dantas sejam inocentes. O discurso politicamente correto de zelar para que o país não se torne um Estado policial é um instrumento para mobilizar todo o sistema pelo conflito e, por meio dele, obter hegemonia incondicional. (Maria Inês Nassif, 11/09/08)

Tal hegemonia incondicional, que alguns buscam, é o que aqui chamamos de estado judicialesco. A expressão foi cunhada por um dos esteios de lucidez neste drama, juiz aposentado e especialista em combate ao crime organizado, Wálter Maierovitch, em artigo publicado por uma revista que não se vendeu a vesgos vestais do Estado de Direito, aos que agora só enxergam riscos à ordem e abusos de poder no próprio Estado, e só no seu poder executivo ou instâncias subalternas. Com o intuito de seguir conhecendo os frutos da árvore judicialista citamos mais dois depoimentos, agora de "milicianos" (dos não-ricaços), começando pelo juiz federal da vara especializada em crimes de lavagem de dinheiro de Curitiba.

(…)"Até ontem, as capas das revistas diziam que o Brasil era o país da impunidade. Agora, falam que o Brasil é um Estado policial. Tenho a sensação de que perdi alguma coisa, de que dormi cinco anos e não vi essa transformação tão rápida de um estado para o outro". (Sérgio Fernando Moro, 12/09/2008)

Moro também vê retrocesso na tentativa de limitar os métodos de investigação. Considera preocupante isso ocorrer dentro do atual "cenário de intimidação dos magistrados". Defende, junto com sua associação de classe, o uso de métodos especiais para o combate ao crime organizado, como as escutas telefônicas legais, para desmontar estruturas criminosas cada vez mais sofisticadas. Estruturas que, na gíria do trânsito ferrado, seriam consórcios de milícias de ricaços e potentes, à margem virtual da Lei. O CNJ, também presidido por Mendes, havia aprovado a centralização pelo órgão dos pedidos de escutas telefônicas em todo o país. "A dúvida que existe, dentro desse cenário de intimidação, é o que será feito no futuro com as informações sobre o número [pedidos] de escutas de cada magistrado", completa Moro.

O juiz De Sanctis acrescenta:

(…) "É muita ingenuidade achar que o inquérito policial tradicional vá combater o crime organizado. É preciso surpreender a criminalidade. O Brasil é o segundo país mais violento do mundo. Nós vivemos sob terrorismo. Presidiários usam técnicas de terrorismo. Nossa criminalidade usa técnicas de terrorismo. Ou a gente põe o dedo na ferida e enfrenta isso com base nas leis ou vamos fingir que a coisa não acontece. Mas não sei fingir. Não sou ator. Não faz sentido a idéia de que falta respaldo legal às "técnicas especiais de investigação", entre as quais inclui-se a interceptação telefônica. Além da lei da interceptação, o Brasil é signatário de pelo menos quatro convenções das Nações Unidas que tratam dessas questões: as convenções de Viena, de Palermo, de Mérida e de Varsóvia. Mas todo mundo começa a questionar a técnica de investigação e esquece o crime". (Fausto de Sanctis, juiz federal que autorizou a operação Satiagraha, 12/08/08)

Doutrina do choque

A ingenuidade pode ser só virtual. Cabe analisar como esse tipo de hegemonia incondicional se instala, e como é possível sinergizar esse tipo de estranhamento, expresso por juízes cuja retidão de caráter os leva à legítima militância de cumprir o dever. Recorremos a uma estudiosa do assunto, a jornalista Naomi Klein, que num livro descreve a estratégia política do processo, em termos do que ela chama de doutrina do choque. Essa estratégia explora momentos em que as pessoas se desesperam na busca de soluções para crises, quando se inclinam a acreditar em curas mágicas. A estratégia se vale desses momentos dramáticos, ou os insufla, para esparramar políticas públicas impopulares que, no lugar de resolver o problema, antes o camufla com difusa insegurança jurídica, mas que são muito lucrativas para corporações ou cartéis monopolistas. Quais?

A pergunta nos leva de volta ao drama, ou melhor, às atividades do personagem no epicentro do enredo. Quais são suas atividades, ou suas "ex-"? As duas já citadas bastam, para tecermos um fio de Ariadne neste caso. Tal fio é necessário para navegarmos no labirinto desse choque. Nessa transformação tão rápida, de país da impunidade para "Estado policial", provocada pelo pavio Satiagraha. Aceso pela imagem algemada de um banqueiro falsário e corruptor, disso condenado alhures em última instância e aqui tratado como intocável, por fariseus nos quatro poderes (talvez clientes ou reféns). Fio necessário pois, no labirinto desse choque, é muito fácil se perder. Por exemplo, ao ler matérias incessantes sobre grampeagem descontrolada, como a da Folha de S.Paulo intitulada "Órgãos do governo terão que entregar maletas de grampo".

Para quem prefere a outra cor da pílula, essa matéria é um bom exemplo de como as do seu condão informam: onde distorcem e escondem. O título sugere que órgãos do governo não mais poderão usar as tais maletas. Seria ilegal a esses órgãos possuírem-nas? Porém, o corpo da matéria dirá que a entrega é para cumprir intimação judicial, expedida pela primeira vara da Justiça Federal do DF, para submetê-las a perícia da Anatel, a pedido do Ministério Público, acionado por agentes da mídia, que identificaram e informaram quais órgãos as possuem, para investigar se o uso das mesmas tem sido ilegal. Em seguida, o subtítulo informa:

"Equipamento é capaz de fazer escutas em celulares sem depender de operadoras e, por isso, sem necessidade de uma autorização judicial".

O contexto da matéria passa então a conotar o seguinte: entre órgãos do governo, a Abin; entre prévias acusações contra a mesma, uma reiterada mas vazia suspeição; e entre os silogismos de suas manchetes, uma implícita, absoluta, repentina e inexplicada idoneidade.

Quem só lê as manchetes, engole a pílula azul. No corpo da matéria, a Abin não aparece. Nem sua maleta afamada, uma OSCOR 5000. Dez vezes mais barata que as ali citadas (Rohde & Schwarz), capaz de fazer só varreduras, e não escutas telefônicas, segundo o fabricante. Mas se for capaz, poderia fazê-las legalmente, tanto quanto as ali citadas. E há casos, como lembra o general Félix, que doutra forma não faria sentido fazer escuta. Quando se investiga, por exemplo, uma operadora. Mas para simplificar, em manchetes: "órgãos de governo" e "ilegal", será que cola? Por fim a pedra de toque, por onde aponta o fio de Ariadne: por acaso as operadoras, das quais dependem os sem-maleta para escutas autorizadas, também não teriam aparelhos que podem ser "usados efetivamente para interceptações"? Simplicando: só.

A questão de fundo

Então a questão de fundo passa a ser: por que essas investigações só vão checar maletas? Por que não vão checar se as escutas feitas pelas operadoras foram autorizadas? Seria porque as operadoras, (ex-?)vilãs no Procon, acabam de adquirir a auto-idoneidade, dos vesgos vestais? Seria porque elas não são órgãos de(sse) governo? Ou porque são autoridades judiciais? Ou auto-judicantes? Seriam elas apêndices, ou órgãos do sottogoverno? Se a pedra de toque não encaixa, se a narrativa ficou confusa, basta trocar "operadoras" por "maletas" na manchete da Folha. Manobra que seria, por sinal, um ato de justiça poética se desprezarmos o diminutivo. Ou ler 1984, de George Orwell. Aos que ainda não entenderem, talvez seja útil antes vomitar a pílula azul, fixar por um tempo a vista nas imagens correspondentes (centrais de comutação) e ler:

"Equipamento (das operadoras) é capaz de fazer escutas em celulares sem depender de operadoras maletas, (extensões de maletas, juízes, leis, etc.) e, por isso, sem necessidade de uma autorização judicial".

O próprio personagem epicêntrico nos lembra, do palco da CPI dos grampos, numa cena sobre a operação Chacal: a operadora da telefonia fixa de Brasília sob seu controle contratou a Kroll para investigar. O que, exatamente, a operação Chacal fala nos autos. Com mais discernimento e eloqüência do que fora deles falam os nobres e os supremos iracundos vestais. A grampeagem ilegal de operadoras, obtidas com simples comandos de teclado em suas centrais computadorizadas, precisa ser complementada com arapongagem de campo, para suprir competitivamente a indústria do suborno e da corrupção, e a montagem de consórcios e milícias engravatadas no sottogoverno. De fato, a trajetória pública desse personagem começou já à sombra de um dos peso-pesados nacionais desta subdoutrina do choque.

Se nas operações Chacal e Satiagraha isto só aparece virtualmente nos autos, esvaziados de eficácia probante por manipulações casuísticas do princípio jurídico da reformacio in melius, manobras que a potência explosiva das operações inflaciona, exorbita e esparrama, por outro lado isto está evidente noutros palcos da política global que o drama ecoa. Dentre as crises que revelam esta subdoutrina, a mais espetacular já vista guarda semelhanças com a primeira. Ambas alvejaram um governo popular, com a fúria fanática do paganismo neoliberal. Ambos espionados através de seus serviços telefônicos. Ambas arapongagens armadas com empresas terceirizadas. Ambas abafadas conforme a cartilha da doutrina do choque. Diferindo, em essência, só no papel de quem controla a operadora envolvida.

No caso da espionagem que penetrou a Casa Branca e o Departamento de Estado dos EUA entre 1997 a 2000, as centrais de telefonia locais (PABX) atacadas eram as mais protegidas do planeta, mas a empresa terceirizada pela operadora para fazer e manter o software de bilhetagem (Amdocs), o programa que emite as cobranças, teria programado a central de comutação da Bell Atlantic para grampear e desovar escutas, que iam parar no Mossad, serviço secreto de um governo "aliado". No caso Kroll, investigada pela operação Chacal, a missão da empresa terceirizada pela BrT era a de validar, complementar ou estender as informações estratégicas obtidas, provavelmente, com grampos e desovas da própria BrT. Lá, eclodiu um escândalo sexual com uma estagiária. Aqui, cogita-se uma luva de R$ 1bi para uma fusão.

A mãe das ciberbatalhas

Dada essas diferenças, resta indagar a quais interesses pode servir, no nosso drama, seu epicêntrico personagem. Neste ponto não convém especular a quais serve, pois as mais prováveis respostas não evitariam conotações que poderiam levantar infundada suspeita de possível intenção difamatória. Como a intenção aqui não é esta, resta analisar, em tese, o papel que o controle das empresas de telecom representa para o exercício do poder e da ação política nas sociedades contemporâneas. Como sugerido na introdução. Recorremos então a uma autoridade no assunto, Paul Ohm, professor de Direito da Universidade do Colorado e ex-procurador federal nos EUA. Em artigo acadêmico ele explica que, com a internet, as operadoras ganharam meios, motivos e oportunidade para virtualmente acabar com a privacidade.

Mas a batalha da privacidade é só o começo, para reconhecimento do terreno. Estatísticas do Procom, investidas do sottogoverno na esfera normativa, e agora os atos deste drama, já nos mostram como nela a democracia e os cidadãos se tornaram mero joguete e massa de manobra, e portanto, como esta batalha já está decidida. A batalha seguinte é pelo controle da infra-estrutura semiológica em que consiste a Internet. O consórcio que dela se apoderar terá em mãos um instrumento de controle social fabuloso, inédito e sub-reptício. Nesta maior batalha, o que está em jogo virtual são corações, mentes e monopólios. Para a conquista dos primeiros, as bandeiras da privacidade, das liberdades civis e outros zumbis pós-modernos servem, com a pílula azul, de camuflagem eficaz para ações conformes à doutrina do choque.

A quem a re-monopolização privada das telecomunicações interessa? Ela não seria útil a quem queira ressuscitar zumbis pós-modernos do direito; ao contrário, mesmo com o desmonte do Estado que hoje conhecemos, mesmo em busca de qualquer quimera judicialesca. Uma luva de R$ 1bi, em grana dos contribuintes no BNDES, para o epicêntrico personagem "deixar acontecer" uma certa fusão, cobriria e codificaria possíveis respostas. Uma BrOi cobriria quase 80% da telefonia fixa do país, e rasgaria de vez a justificativa apresentada, como lei natural travestindo um dogma neoliberal, para a privataria fernandista. Por que não a grana nas operadoras espelho? Talvez este seja mais um caso de alguém que é pago para sair de um negócio pela porta da frente, para voltar quieto pela porta virtual dos fundos que ele mesmo preparou.

Assim foi com o general John Poindexter nos EUA, réu no escândalo Irã-Contras do governo Reagan, caso que deu em nada além de vítimas inocentes, quem atualmente controla o programa Total Information Awareness, hoje tocado com obscuros fluxos financeiros. Como cabe a um serviço de inteligência de um sottogoverno que se instala no coração do império, e que busca recrutar, com suja e farta grana, milícias engravatadas para seus consórcios. "Satiagraha" quer dizer verdade buscada. A verdade foi plantada no espírito, revelada ao coração e registrada para quem a busca. No mais tradicional dos nossos livros. Lá aprendemos que se uma operação Satiagraha for derrotada, o será por um tempo, pois pela operação do Erro. Lá também aprendemos que, ao invés de lépidos Habeas Corpus, é a verdade que liberta.

* Pedro Antônio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina e do Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), entre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. Para conhecer sua página pessoal, clique aqui

 

Grampo, Dantas, Abin: Tragicomédia no teatro da República I

Há uma tragicomédia em cartaz no teatro da República. Encena-se um drama cujo enredo admite várias leituras, entre plausíveis e risíveis. Seria mesmo engraçado, não fosse o perigo que semeia no futuro do país, a forma como alguns personagens centrais ao drama vão nele encenando seus papéis. Em meio ao drama o cenário deixa exposto, ao espectador atento, o motivo deste artigo.

Para estudiosos das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e das transformações que elas promovem, este drama expõe detalhes de como as TIC, suas estruturas e controles, se constituem em instrumentos cada vez mais essenciais ao exercício do poder e da ação política em sociedades contemporâneas. E também, como a mistura desta nova essência com velhos ranços e vícios pode ser explosiva e destruidora, quando dissolvida em virtualização eletrônica de crescente densidade e complexidade.

Esse potencial explosivo surge da virtualização mesma. Para entender como, é necessário refletir honestamente sobre o que é o virtual. Recorro ao filósofo Gilles Deleuze, para quem o virtual não é o irreal, mas a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Com a virtualização, mentes se fragilizam. Tornam-se mais facilmente adestráveis, induzidas a crer no que convém. Até a se portar como se cressem, naquilo que lhes pareça ser o que lhes convém crer. Por medo ou violência simbólica, como no enredo do filme Matrix, lá pela escolha da pílula azul.

Começamos por analisar uma narrativa que de azul se urde neste drama. No dia em que comemoramos o 186º ano de independência do país, relativa ao império português, a revista semanal que aqui mais circula relatou:

“A revelação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) espionou autoridades do governo, senadores da República e ministros do Supremo Tribunal Federal provocou uma vigorosa reação institucional contra o aparato estatal que vem violando de maneira acintosa a privacidade dos cidadãos. Na semana passada, uma reportagem de VEJA mostrou que o descontrole chegou ao extremo de agentes a serviço da Abin terem interceptado ilegalmente uma conversa telefônica entre o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, a mais alta corte de Justiça do país, e o senador Demóstenes Torres, um dos líderes oposicionistas no Congresso. O episódio só não se transformou numa grave crise graças à ação rápida e convincente das autoridades. (…) Por último, sob o comando de Lacerda, um delegado de polícia, servidores da agência foram pilhados ouvindo telefones de ministros de estado, ministros do Supremo, senadores, do presidente do Congresso e até de auxiliares próximos do presidente Lula. Dono de uma teoria muito pessoal sobre o caso, ele propaga que as gravações ilegais foram feitas por pessoas ligadas ao ex-banqueiro Daniel Dantas.”

Drible da vaca

Ex-banqueiro? Um claro e virtual enigma, no que se quer induzir com o "ex". Com que roupa esse personagem do drama vai se apresentar agora? Com as que ele tem encenado, "ex" parece só colar virtualmente. No comando da Brasil Telecom (BrT), por exemplo: quando o seu controle sobre a empresa que abocanhou a telefonia fixa de Brasília era oficial, era através de um arranjo societário em que seu banco detinha apenas 1% das ações; distribuídas com farto dinheiro público para viabilizar o tal arranjo, que, hoje, se alega desfeito. Ou não, já que outros envolvidos não entendem como, pois pedem à Justiça que esclareça. Mas, a qual Justiça?

"Ex-banqueiro" porque ele teria transferido as operações do seu banco (Opportunity) a um tal BNY Mellon, o que antes significa mais pendengas para sua folha corrida. Isso só se justificaria para evitar, nesse momento, um volume importante de saques, como opina o jornalista Paulo Amorim. Os fundos offshore do seu banco são tipicamente "D+30" ou "D+60" (uma ordem de saque é cumprida 30 ou 60 dias depois). Sua primeira prisão no Brasil foi em 8 de julho, portanto, o dia da "transferência" para o Mellon (8 de setembro) era "D+60". Nesse dia é publicada uma reportagem "investigativa", assinada pelo mesmo jornalista que vazou a operação Satiagraha.

A reportagem informa: "Dantas dribla Receita com recursos judiciais – Fisco só conseguirá analisar 670 das 24 mil operações financeiras do disco rígido do Opportunity apreendido pela PF em 2004". O personagem estaria conseguindo, com recursos judiciais e estratagemas na Justiça, livrar 23.330 investidores que aplicaram em seus fundos de forma ilegal. Ilegal porque esses fundos, uma das maquinações do fernandismo, são para "não residentes" e os investidores residem no Brasil. Ou seja, a tal "reportagem" pode ser lida, segundo Paulo Henrique Amorim, assim: "Alô, alô rapaziada, fique tranqüila. Não saque seu dinheiro do Opportunity. O Dantas deu o drible da vaca nos otários do Fisco."

E como seria esse drible da vaca? Em câmera lenta, pode-se acompanhar o lance a partir daquela apreensão, durante a operação Chacal. Tal operação investigava a massiva espionagem praticada por agentes da Kroll, multinacional de arapongagem pilhada em 2004 com e-mails privados de autoridades do governo. Nela o dono do Opportunity, e controlador da BrT, surgiu como mandante. Porém, sob o argumento de que Daniel Dantas talvez não fosse Daniel Dantas, a mais suprema ministra bloqueou, por mais de quatro anos, a coleta de provas nos discos apreendidos. Inclusive provas de crimes fiscais, que prescrevem em cinco anos. Um exemplo didático de virtualidade deleuziana.

Teoria e prática

As cenas com esse personagem dão vertigem, pois propagam virtualidades. No palco da CPI dos grampos, por exemplo, onde ele confirmou que responde a ação judicial pela contratação da Kroll, alegou que não foi ele o responsável: "Não contratei a Kroll, a Brasil Telecom contratou". Então, tá. Sem mais perguntas dos deputados. E se mais perguntas houvessem, outro habeas corpus havia para ali ele calar-se. Como já se calou alhures a justiça Britânica, e aqui desde sempre a mídia corportativa, sobre condenações por atos que incluem o de fraudar processo em que era réu, nas ilhas Caymann, com virtualizações que cá ele chama de "encruar". Lá, condenado em última instância, caso encerrado.

Aqui, caso aberto com a fonte de seus infames habeas corpus, frutos até de processo virtual (mas não eletrônico). A suprema fonte teria sido espionada e grampeada pela Abin! Tal é a teoria que se quer revelar, por acusação que é fruto duma fonte virtual (no sentido de oculta). Ninguém ouviu, viu, ou dá conta da realidade ou da origem do tal grampo. Nenhuma prova ou indício da gravação, de um diálogo que teve testemunhas. De cuja publicação mais se fartam os próprios "grampeados", pelo uso que depois fazem dela, para exorbitâncias e desatinos com fulcro em acusação tão açodada quanto vazia. Enquanto agentes da mídia se esgoelam para tentar colar o ônus da prova na acusada.

Dessa teoria – e prática – sobre o caso, as conseqüências pedem escrutínio. Começando pela autoria. O dono dessa teoria muito pessoal sobre o caso é um veterano parteiro de teorias muito pessoais obre casos semelhantes, também virtuais. Tal prática pode estar associada, nele e seus patrões, à síndrome da mosca azul, neles manifesta por confusões mentais. Confundem lucratividade com credibilidade, tiragem com coragem, etc. A narrativa acima mostrou que o descontrole chegou ao extremo desses agentes, a serviço de seus papéis no drama, terem confundido ilogicamente fato com boato, objetivo com subjetivo, acusação com prova, raciocínio com espasmo iracundo. A segunda tentativa de parir a teoria serviu de senha para um coro de leviandades, doutros atores. Mas os grampeados, esses não querem ir ao palco da CPI.

A verborragia só não se transformou numa grave crise intestinal, naqueles com mais de dois neurônios ativos, graças à ação freudiana do inconsciente nessas sumidades midiáticas: elas acharam útil adjetivar a reação de certas autoridades, como o fizeram. Num surto de fraqueza psicológica, traíram sua autoconfiança. Duvidaram que uma tiragem maior que milhão bastasse para ali firmar verdades. E disseram, então, que a vigorosa reação institucional de autoridades, a qual evitou grave crise, foi rápida e "convincente". Para quem? Se a performance dos atores no palco foi mesmo convincente para a platéia, não precisava dizer. Bastava ao leitor vê-la. Veja! Cadê o áudio? E se foi autogrampo?

Delação patriotada

Alguns talvez nunca vejam o final desse drama. Apenas a ele sucumbam, atônitos. Se essa teoria muito pessoal, erguida sobre fonte virtual em montanhas de tiragens reais, for mesmo só isso e não a verdade buscada, a trama midiática dos agentes decrépitos desse enredo seguirá pelo surreal, alimentada pela pílula azul de Matrix. Os "fartos documentos" que comprovariam a teoria nunca virão à tona, só mais forjas. Como nas outras teorias semelhantes, sobre contas de Lula em fundos offshore,sobre dólares de Fidel Castro para sua campanha, etc. Ou, como na pretensa "comprovação" da origem do suposto grampo, centro das atenções em vários momentos desse drama, provável armação do mesmo araponga privado (Jairo) que muitas vezes já trouxe o mesmo repórter e a mesma revista para "dentro do assunto".

Aquele na capa da edição 2027 da revista IstoÉ (Ambrósio), acusado de ser o agente da Abin que comandou a grampeagem de autoridades, não pertence aos quadros da Abin e nada comandou. Ex-servidor da Aeronáutica, esteve no SNI, do qual se aposentou em 1998, portanto antes da criação da Abin, em 1999. Desde que se aposentou, não participou de qualquer atividade da Abin, informa a sua Assessoria de Comunicação Social. Mas poderia ter perambulado por lá, ou pela delegacia de Protógenes Queiroz, insinua a "denúncia", enquanto sua participação na operação Satiagraha limitou-se à de classificar planilhas. Como se o Art. 4º do Código de Processo Penal não permitisse ao delegado, ou demandasse se boicotado, recrutar quem ele quisesse para lhe auxiliar nas investigações. Como se a lei 9.883/99 que criou a Abin, e instituiu o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) em 2002, não permitisse operações conjuntas com Abin, PF e outras forças.

Quanto a esse tipo de delação, ela poderia dar cadeira elétrica por traição, no país que seus autores nos vendem como modelo, se põe em risco a segurança do Estado. Aqui, talvez só grampo ou algema em banqueiro corruptor daria, se tal decrepitude correr solta, ao pôr em risco a blindagem paralegal do sottogoverno. Se alguém comandou ou não uma operação que teria produzido grampos, gravações que ninguém ouviu, viu ou delas dá conta, grampos cujo vazamento só beneficia a grampeados, e se para isso ele agiu usando ou não dependências da Abin ou da PF, a questão que cabe ao real (verdadeiro) jornalismo é: a serviço de quem, e por que, essa coisas se cogitam.

Agir de forma a que a ação pareça ter outra razão ou origem, até opostas, é tática bem manjada na espionagem e na política. Eficaz se executada na espuma das ondas de intrigas, efeito alcançável em massa com a pílula azul. Cabe então voltar ao enredo para mais detalhes. Alguns revelam como seus autores e atores presumem a imbecilidade do espectador que tome a cena ao pé da letra, ou como os agentes decrépitos envolvidos oferecem sua hipocrisia, àqueles na platéia que prefiram se embebedar com ela. Um exemplo: o prejuízo ao erário com o bloqueio dos discos rígidos, para a Rede Globo não é notícia; já o custo de 52 auxiliares para investigar esse e outros prejuízos, sim [Jornal Nacional, 10/9/2008].

Agentes decrépitos

Nos outros exemplos, essa presunçosa decrepitude pode ter chegado ao fundo do poço com a trama da maleta. Quem não está no pau-de-arara [14] quer saber se o dono da trama mentiu. Quando, em reunião na qual seu ex-funcionário chamou às falas o chefe de governo, o atual ministro da Defesa afirmou que a Abin possuía aparelhos para grampear celulares, mostrando nota fiscal do aparelho e acenando com a possibilidade de uma crise institucional, para que fosse afastado o diretor da Abin. Afirmação depois desmentida até pelo fabricante da exposta maleta, retrucado com intrigas de que o equipamento pode ser usado para grampo se acoplado a uma "extensão" própria a isso.

Assim foi descartado quem viabilizou, com cooperação institucional de praxe, a operação Satiagraha, para em seu lugar ser instalado um ex-funcionário do principal investigado. Este, banqueiro corruptor e "ex-"controlador da telefonia fixa de Brasília, e aquele, subordinado na BrT a quem foi flagrado na investigação tentando subornar a PF. Possíveis razões para aspas em "ex" serão adiante ventiladas, mas antes aquelas para o tal descarte. A nota fiscal e a intriga foram brandidas quando o supremo ministro de trânsito ferrado, em atropelosa audiência marcada por desrespeitosa intimidação pública, chamou o presidente da República às falas. Depois do descarte, a assombração da maleta foi lançada sobre a mídia, que a soçobrou sobre a platéia da pílula azul. Finalmente acordada, aos berros, para o fim da privacidade.

Cabe indagar, então, quem, além do banqueiro corruptor, ganha com essa trama da maleta. A Abin é o órgão de inteligência de um Estado cuja importância no mundo alcança novos patamares com a atual crise global. É o órgão de governo ao qual compete, num mundo sob o risco de colapso financeiro, energético, de recursos alimentares e outros naturais, missão essencial para a defesa dos interesses do nosso Estado. Na defesa do agronegócio, da Amazônia, do pré-sal, do urânio e outros recursos, num jogo que a História mostra como é sujo, traiçoeiro e cruel. Então, defende o quê um ministro da Defesa ao assim tratá-la? Faria sentido político se fosse a captura do seu comando, mas para quê?

Se a Abin é assim tratada por quem possa almejar seu comando, se um tal comando não hesita em esculhambá-la, acuá-la e acusá-la até em público, ao invés de protegê-la de traições e danosas exposições quando corruptos apaniguados se alvoroçam, assustados com um braço ainda sadio da Lei, se tão açodado escracho significa manietá-la em seu dever de espionar onde lhe caiba, de cooperar em investigações locais quando a ameaça percorre ramificações externas, se com ele a Abin desfaria sua missão primeira, antes lançada à lama do sottogoverno para defender-se como Kafka em tribunais virtuais, então, cabe indagar o quê, exatamente, tal personagem defende como ministro da Defesa.

* Pedro Antônio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, ex-membro do Conselho da Fundação Software Livre América Latina e do Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), entre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. Para conhecer sua página pessoal, clique aqui

A ilusão de controle na internet

A imprensa tradicional é um instrumento de organização e mobilização de redes sociais. Mas funciona praticamente em mão única, mesmo quando utiliza as novas tecnologias de comunicação do século 21. Para alguns analistas, a imprensa inventada por Gutenberg parece deslocada na época contemporânea porque tenta se apropriar da amplitude potencial da internet sem abrir mão dos controles possibilitados pela mídia impressa e pela televisão não-interativa, que não se abrem para a intervenção do público. Aliás, a própria idéia de "público" só faz sentido no teatro, no cinema e nas mídias não-interativas, uma vez que quando o sistema se abre para a co-autoria, os papéis acabam se misturando em algum ponto do processo. O leitor se torna co-editor.

Mesmo que determinado movimento seja iniciado em um blog, de autoria definida, quando a interatividade se expande a mensagem inicial passa por um processo de mutações constantes, submetendo-se ao arbítrio de todos que tenham acesso a ela. A imprensa tradicional não parece preparada para essa democracia toda. Afinal, parte do seu negócio se baseia na promessa de influenciar a fatia mais opinativa da população, aquela que supostamente é mais bem informada e mais articulada, e isso implica assegurar certo controle sobre a agenda desse "público".

Os blogs de jornais e revistas e os portais de emissoras de televisão tentam conter a interatividade em determinado círculo. Quanto mais próximo do núcleo de opinião se situar o limite desse círculo, mais restrita será a participação do "público" e mais distante estará essa mídia das potencialidades das novas tecnologias.

Idéias inovadoras

Acontece que a sociedade está mudando. Segundo a Technorati, que monitora conteúdos postados em blogs de vários idiomas, o explosivo crescimento do número de blogs em todo o mundo está sendo acompanhado por um grande amadurecimento no uso dessa ferramenta, o que leva ao surgimento de mídias alternativas de grande reputação, algumas das quais comparáveis a grandes jornais.

A característica principal desses veículos é que eles nasceram como pontos de informação e debate, passando por um período de funcionamento caótico, e acabam se consolidando como fontes de informação confiável e de qualidade para quem aprende a selecionar.

Esse fenômeno está alterando o modo como as pessoas se informam e partilham suas convicções e suas demandas. Alguns blogs criados por empresas como ferramentas de relacionamento com clientes evoluíram para plataformas de captação de opiniões sobre produtos e serviços, seleção de futuros colaboradores e fonte de idéias inovadoras. Mas essa evolução exige que a empresa esteja aberta a certos riscos, como a amplificação de queixas, que de outra forma ficariam localizadas, e o questionamento de seus processos de comunicação com o mercado.

Oportunidade perdida

Difícil imaginar que uma empresa tradicional de comunicação se arrisque a abrir completamente seus conteúdos para comentários e contribuições de leitores, sem interferência de qualquer ordem. Isso poderia subverter a hierarquia que determina os processos de captação e edição de notícias, fazendo com que parte do material jornalístico acabe adquirindo formas e significados diferentes daqueles que orientaram a pauta. No entanto, isso já está acontecendo de certa forma, quando as redes de relacionamento se apropriam de notícias de jornais, revistas e da TV e as reproduzem com novas abordagens.

Dito de outra forma, o que se pode constatar é que, por mais que resistam à avalancha de mudanças, os meios tradicionais acabam perdendo o controle sobre o destino do conteúdo que produzem, quando eles caem no ambiente caótico das redes. Se tivessem uma estratégia de engajamento real nas novas tendências, abandonando a ilusão do controle, seriam a vanguarda da comunicação no século 21, agregando à reputação construída no século passado a confiança de uma relação mais aberta com a sociedade.

* Luciano Martins Costa é jornalista.