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Conferência Nacional de Comunicação: A batalha pela Democracia

Num tipo de realidade político-social fragmentária e entrópica como esta em que vivemos hoje, cada um se achará no direito de considerar algo que lhe toca de perto como aquilo que de mais importante aconteceu no Fórum Social Mundial 2009. Mas como, na dinâmica histórica, há processos que se impõem a outros e, só por isto, o processo avança, certamente dois ou três eventos serão percebidos como aqueles que caracterizaram este Fórum. Dentre estes, sem dúvida alguma, o anúncio, pelo presidente Lula, da realização da I Conferência Nacional de Comunicação.

Lula foi muito feliz ao escolher o espaço do Fórum para fazer seu anúncio, reforçado por uma entrevista à imprensa do secretário-geral da Presidência, Luis Dulci, e por uma conversa da ministra Dilma Roussef, com lideranças do encontro. Diante dos movimentos sociais organizados, o governo, por diferentes vozes, comprometeu-se em levar à frente esta decisiva reivindicação do movimento popular.

Decisiva, por que? Porque o avanço e aprofundamento da democracia, num país como o Brasil, não será possível sem um reordenamento geral do sistema brasileiro de comunicações que favoreça à multiplicação e diversificação do poder de dizer e do direito de escolher o que ler, ver ou ouvir. O processo que ora se inicia não deverá ter por alvo simplista, enfraquecer ou desmontar o sistema comercial de comunicações, mas, sim, fomentar, fortalecer, consolidar os sistemas não-comerciais de comunicações, as publicações, emissoras, portais, sítios ou blogs que prestem serviço ao público, na sua diversidade, não sendo e não podendo, por isto, serem sustentados por anúncios publicitários, nem servirem à ideologia do mercado.

O comprometimento público do Governo com a Conferência, coloca os movimentos populares diante de uma enorme responsabilidade: fazer propostas. Já não se trata mais de lutar pela Conferência e de denunciar a enorme quantidade de absurdos legais e morais que caracterizam as comunicações brasileiras no presente momento. Existe uma infinitude de demandas reprimidas que, agora, precisarão ser ordenadas, priorizadas, sistematizadas em um projeto sólido para ser levado ao debate, seja com o campo comercial, seja com a própria sociedade. A “costura” desse projeto vai requerer um enorme esforço de negociação, de articulação, de composição, sem o quê o resultado mesmo da Conferência poderá acabar sendo a frustração de muitos.

Por outro lado, ao menos em princípio, a Conferência tem um limitador: a Constituição brasileira. A não ser que se possa avançar uma discussão que ponha em questão a própria Constituição, o debate estará subordinado aos artigos 5, inciso IX; 21, inciso XI e XII; e 220 a 224 da Constituição. Como sabemos, muitas dessas cláusulas foram modificadas durante o governo Cardoso, resultando neste atual dromedário que trai completamente o resultado de um trabalho constitucional efetivamente realizado pelo povo, através das suas muitas representações, como lembrará qualquer um que tenha estado presente às memoráveis jornadas legislativas de 1987-88.

É preciso não esquecer uma lição chave daquele processo: nas Comunicações não existe acordo. A Constituinte foi organizada de baixo para cima: subcomissões de deputados e senadores elaboravam ante-projetos setoriais específicos; estes ante-projetos eram rediscutidos e sistematizados numa comissão mais ampla, reunindo um grupo de subcomissões afins. Destas, um novo ante-projeto setorial mais abrangente subia para a Comissão de Sistematização, onde um grupo de parlamentares elaborava, respeitando os ante-projetos que lhe chegavam, o verdadeiro ante-projeto da Constituição, a ser finalmente discutido e votado por todos os constituintes, em sucessivas seções plenárias.

Na subcomissão de Comunicações, Ciência e Tecnologia, o relatório elaborado pela deputada Cristina Tavares não foi votado. Irritada com as manobras dos deputados pefelistas (hoje, os Demos), ela e a bancada democrática e popular se retiraram da sala de reuniões. O relatório aprovado foi votado apenas por um grupo de parlamentares. Na Comissão que reuniu Comunicações, Ciência e Tecnologia, Educação, Família (e outros tópicos), a briga foi ainda mais dura: sendo impossível um mínimo consenso sobre as comunicações, a Comissão simplesmente não apresentou qualquer relatório. Encerrou seus trabalhos, em função de prazos improrrogáveis, sem ter elaborado a sua proposta de projeto, inclusive nos demais tópicos. Assim, sem algum documento formal no qual pudesse se apoiar, a Sistematização pôde recuperar o ante-projeto de Cristina Tavares e inseri-lo, com algumas capciosas mudanças, no texto constitucional final.

Uma dessas mudanças, enviava para o artigo 21, que trata das “competências da União”, o ordenamento básico da exploração dos “serviços de telecomunicações” e, separadamente, da dos “serviços de radiodifusão”. Assim, o tratamento do campo das comunicações foi segmentado em dois ramos com distintos tratamentos: telefonia, inclusive, celular, de um lado; rádio e TV, de outro. Como fica a internet? E a TV por assinatura? E a TV digital? No rigor da lei magna, ressalvada muita criatividade jurídica da qual, aliás, este país é pródigo, estão no limbo constitucional. No entanto, àquela época já se sabia que novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs) estavam a caminho, e que a convergência empresarial-tecnológica (CTE) desenhava-se no horizonte. Por isto mesmo, tratou-se, já então, de separar os setores, assim se resguardando interesses cristalizados…

O outro dispositivo nascido desse conturbado processo, inventou um sistema público de comunicações, distinto do estatal e do privado – proposta esta que não se encontrava no relatório da deputada Cristina Tavares. Assim, sugeria-se que a radiodifusão não seria, em princípio, um serviço público, ainda que prestado por entidades privadas concessionárias. Ou seja, abria-se o caminho para a definitiva privatização dos recursos de comunicação, sobretudo e principalmente o espectro de freqüências, exceto aqueles que passariam a ser nominalmente “públicos”.

Como o que é estatal, em princípio, é público, e o que é público acaba, de algum modo, sujeito a algum tipo de ordenamento estatal (não se confundindo estado com governo, como muitos fazem), tem sido um problema qualificar, definir e até pôr em prática este conceito de “público”, como podemos facilmente observar na prática concreta desta TV pública criada pelo governo Lula. Alguns dizem que ela tem sido mais estatal do que pública. Ora, se é estatal, é pública. A nossa dificuldade é que nem sempre o estado brasileiro é, de fato, público…

O debate que vamos travar agora não poderá ignorar os avanços econômicos, sociais e tecnológicos dos últimos 20 anos. Entrarão na agenda questões como, por exemplo, o modelo político-econômico da recém-introduzida TV digital. Ou sobre a disseminação das redes de banda-larga de curto alcance (Wi-Fi). Ou ainda sobre as potencialidades de um regime de espectro aberto. Se é consenso social (velho) que a telefonia precisaria ser universalizada e, para isso, se necessário, subsidiada, será necessário firmar consenso social (novo) sobre a universalização da infra-estrutura de banda-larga, se necessário com subsídios. Definir a banda-larga como serviço público, mesmo que concedido a agentes privados (como, no passado, foram definidas a telefonia e a radiodifusão) já representará um grande avanço na direção do socialismo do século XXI: universalizar a telefonia significava, outrora, permitir a qualquer um conversar, por telefone, com algum outro ou outra, sempre individualmente, mas universalizar a banda-larga, logo a internet, permitirá a todo mundo dialogar com o mundo todo.

Não se espere, diante dessas amplas possibilidades, que os centros políticos de poder que servem ao capital financeiro mundializado se desfaçam, sem luta aberta, dos seus até agora exclusivos meios de controle político-ideológico da sociedade Logo, esta será a Conferência que colocará realmente em questão a essência da democracia brasileira. Ela interessa, por isto, a todos os movimentos populares, a toda a sociedade, não apenas aos intelectuais, profissionais ou militantes que há muito já se empenham nesta causa pela democratização das comunicações. Por isto mesmo, como em 1988, a batalha será muito dura.

* Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutor em Engenharia de Produção pela COPP-UFRJ e autor de “A lógica do capital-informação: da fragmentação dos monopólios à monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais” (Ed. Contraponto).

Rede pública abre novos horizontes

Quando se fala de televisão pública no Brasil, logo vem à mente de muitos a figura de um canal governamental, o que rendeu à TV Brasil o codinome pejorativo de TV Lula. Assim, a televisão não-comercial seria necessariamente um órgão de publicidade do Executivo. Isto é um equívoco que as redes privadas, detentoras dos maiores veículos de radiodifusão no país, fazem questão de ampliar. Uma TV pública é um projeto que passa por lógicas públicas, o que, se não ocorre plenamente no país, cabe à sociedade lutar por isso.

A maioria dos brasileiros também desconhece a televisão digital. Em virtude da lenta implantação, dos altos custos dos equipamentos e de poucas campanhas de esclarecimento, os telespectadores acreditam que a nova tecnologia apenas trará melhor resolução de imagem e chances de assistir à TV pelo celular. Deixa-se de lado a inclusão digital e a interatividade, transformando ainda o potencial desta em recurso de consumo ao longo do entretenimento.

No entanto, está surgindo uma excelente oportunidade para que questões como essas sejam esclarecidas a partir da prática. Em novembro de 2008, um protocolo de intenções assinado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Ministério da Educação acordou a formação de uma infra-estrutura única, para compartilhamento de transmissões digitais.

Conteúdos mais relevantes

Isto vai possibilitar uma rede pública de televisão digital, com as TVs Brasil, Câmara, Senado, Justiça, Educação e Cidadania, podendo contar ainda com um canal do Ministério da Cultura. Após a licitação para a montagem da plataforma integrada, a expectativa é de que a rede pública estréie em 2010 em todas as capitais e em 2012 nas 230 cidades com mais de 100 mil habitantes. Tal infra-estrutura corresponde à criação de uma importante rede pública, que retornará como patrimônio à EBC, de modo que cada um dos entes federais aderentes entrará com R$ 10 milhões anuais para cobrir os custos da operação.

Além da iniciativa, que por si só chama a atenção, devido ao ineditismo em um país com histórico de oligopólio midiático privado, uma segunda promessa se destaca: a rede pública de televisão digital protagonizará a multiprogramação. Inicialmente, os seis canais deverão veicular 12 programações simultâneas no sinal aberto, podendo chegar a 24, o que representaria um enorme impacto sobre o audiovisual brasileiro. Assim, a exemplo de países europeus, pode-se ter um verdadeiro sistema televisivo duplo, público e privado.

Grandes organizações, como Globo, SBT e Record, já sinalizaram que não pretendem trabalhar com multiprogramação em virtude de acreditarem que o mercado publicitário não daria conta de tantas opções. Assim, as redes comerciais do país ficarão a reboque das emissoras não-comerciais em uma das principais ferramentas da TV digital, por impedimento de um fator que sempre as distinguiu positivamente (quanto à abundância de recursos): o comercial.

O que essas novidades trarão de novo, por enquanto, ainda é uma grande incógnita, até porque o sistema público também é dotado de sérios problemas e carece de avanço. Mas o principal fato novo é que o dito campo público está se fortalecendo em estrutura no meio de comunicação presente em quase todos os lares do país, trazendo, inevitavelmente, conteúdos mais relevantes socialmente. A falta de compromisso com índices de audiência deve possibilitar a experimentação, inovando em termos de padrão técnico-estético.

Fazer comunicação após o FSM

Nas semanas anteriores ao Fórum Social Mundial, várias rádios comunitárias foram fechadas em Belém. Estes eram um dos poucos meios de comunicação que estavam transmitindo uma visão do evento que iam além do festivo-turístico. Todas elas estavam transmitindo desde a UFPA para toda Belém, no espaço de Comunicação Compartilhada do Fórum de Rádios.

Durante o FSM, foi anunciado que o Executivo Federal fará a convocação 1ª Conferência Nacional das Comunicações. Logo após o anúncio, mais de 200 pessoas estiveram presentes na plenária promovida pela Comissão Pró-Conferência Nacional de Comunicação, já começando a organizar a sociedade civil no processo. As falas deste espaço apontaram a necessidade de organização popular nas etapas estaduais.

Sem falar na restrição de movimentação nos espaços. Que o diga a comunidade de Terra Firme, vizinha onde estavam acontecendo grande parte das atividades do Fórum. E que não tinha os R$ 30 necessários para se credenciar no evento.

Este três fatos, entre muitos, mostram como os desafios da vida real são marcantes na luta pelo direito a comunicação.

Mesmo dentro do fórum, esta perspectiva entra em choque com uma realidade existente de verticalização, restrição e criminalização de uso dos meios, conseqüências do sistema comunicações existente no Brasil. O que nos impõe, citando Marcos Dantas [1], desafios de "fomentar, fortalecer, consolidar os sistemas não-comerciais de comunicações, as publicações, emissoras, portais, sítios ou blogs que prestem serviço ao público, na sua diversidade, não sendo e não podendo, por isto, serem sustentados por anúncios publicitários, nem servirem à ideologia do mercado."

O Fórum aceitou este desafio, produzindo sua própria informação através da Comunicação Compartilhada. Neste espaço mostrou-se na prática como é possível produzir comunicação contra-hegemônica através de audiovisual, rádio comunitária e notícias escritas. O que para alguns foi uma continuidade do que se tem no cotidiano, para outros foi aprendizado. O que pode estimular que os seus participantes construam seus próprios meios de comunicação, com suas próprias formas de distribuição, quando voltarem para seus lares.

Além disso, tivemos excelentes espaços de reflexão sobre comunicação. Espaços que raramente existem na dinâmica da luta concreta. Seja pela falta de tempo que nos impõem a batalha diária, seja pela própria ontologia do Fórum apontar para este momento reflexivo. E que também ajudaram na formação destes sujeitos comunicadores.

As diversas trocas de experiências realizadas devem apontar para a construção e organização de uma nova realidade, onde se horizontaliza a possibilidade de uso da comunicação. Nosso desafio pós Belém-2009 é superarmos as dificuldades deste uso, algumas registradas no começo do texto. E quem não pode estar neste espaço receba um pouco do que foi construído nestes seis dias.

Afinal, se uma outra comunicação é possível, ela não deve ser apenas para quem sempre teve o microfone.

* Marcelo Arruda é radialista comunitário e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

[1] http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4134


Imprensa brasileira em 2009: Dois caminhos

Três fatos históricos ocorridos em menos de duas semanas resumem, em grande parte, o que foi 2008 e indicam as possibilidades para os anos seguintes. No dia 20 de dezembro a Bolívia foi declarada território livre de analfabetismo, no dia 27 o governo israelense iniciou um ataque que assassinou centenas de palestinos e no dia 1o de janeiro Cuba comemorou 50 anos de Revolução.

O primeiro fato foi ignorado pelos meios de comunicação de massa brasileiros, o segundo foi relativizado e o terceiro, menosprezado. Com isso, editores e articulistas não foram capazes de enxergar a relação entre os três acontecimentos, reduzindo assim o prisma de suas análises e comprometendo suas coberturas jornalísticas.

Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que não é todo dia que um país erradica o analfabetismo. Poucas são as nações que lograram este objetivo, mesmo entre aquelas economicamente desenvolvidas. Na Bolívia, 819.417 pessoas entre 15 e 80 anos aprenderam a ler e escrever durante os 30 meses do Programa de Alfabetização, implementado com a ajuda dos governos cubano e venezuelano. Cuba entrou com o método “Yo, sí puedo”, além de médicos que realizaram 250 mil consultas, 3 mil cirurgias de vista e distribuíram 210 mil óculos para a população. Por sua vez, a Venezuela doou 8 mil painéis de captação de energia solar para que o programa também pudesse ser implementado nas áreas desprovidas de energia elétrica. Assim, Bolívia se tornou o terceiro país latino-americano livre do analfabetismo, depois de Cuba (1961) e Venezuela (2005).

Para eliminar o analfabetismo na Bolívia, os três governos investiram o equivalente a 36 milhões de dólares. Esse valor se refere a todos os custos do programa, incluindo as doações, como os painéis solares venezuelanos, a assistência médica cubana e todo o equipamento áudio-visual. 36 milhões de dólares é menos do que os EUA enviam para Israel a cada três dias em armas e equipamentos de guerra, uma ajuda cujo valor total anual é de aproximadamente US$ 5 bilhões.

O ataque de Israel contra a Palestina deixou mais de 1.200 palestinos mortos e aproximadamente 5.000 feridos. A maior parte dos mortos eram crianças, mulheres e idosos. Milhares de palestinos estão neste momento desabrigados, sem alimentos, medicamentos e água corrente. Até um edifício da ONU foi atingido. Não há médicos suficientes para atender a tanta gente. Chefes de Estado do mundo inteiro classificaram a agressão israelense como “genocídio” ou “carnificina” e pediram um cessar-fogo imediato. A resposta do governo israelense veio pelo vice-ministro de Defesa Matan Vilnai: “Isso é só o começo”. O presidente eleito dos EUA calou, enquanto o governo estadunidense declarou que a matança “só vai parar quando o Hamas deixar de disparar mísseis contra Israel”.

Enquanto as corporações de mídia informavam ao público brasileiro que o genocídio cometido contra o povo palestino se tratava de um conflito de igual para igual entre o “grupo terrorista Hamas” e Israel, os cinqüenta anos da Revolução Cubana foram apresentados como uma “ditadura em declínio” (Folha de S. Paulo, 30 de dezembro de 2008) de onde restou apenas “a memória de uma aventura que se prometia gloriosa e a evidência de um desastre construído” (O Estado de S. Paulo, 1 de janeiro de 2009). O termo “ditadura” também foi utilizado pela TV Globo para classificar o governo cubano. No mais, foram fartas as matérias enviadas de Havana, que naturalmente continham apenas os relatos dos que são contrários ao governo cubano.

Nesse sentido, a não publicação da erradicação do analfabetismo na Bolívia não foi apenas um lapso midiático, mas uma escolha editorial fundamental para a legitimação do sistema capitalista, mesmo às custas de uma gigantesca falha jornalística – que deveria se estudada em toda faculdade de comunicação que se pretenda séria. Se não, como poderiam explicar que um país socialista como Cuba, debaixo de um feroz bloqueio econômico, alcance a façanha de exportar um conhecimento capaz de dotar todos os cidadãos bolivianos da capacidade de ler e escrever? Como poderiam explicar que essa empreitada fora conquistada com o mesmo investimento de um punhado de bombas utilizadas para massacrar o povo palestino? E, mais difícil ainda: como explicar que a maior potência militar e econômica do mundo ainda tenha analfabetos em sua população?

Essas respostas jamais serão encontradas nas corporações de mídia porque sua simples publicação significa a negação de tudo aquilo que defendem. Pela mesma razão jamais reconhecerão a motivação capitalista (o saque às riquezas do Oriente Médio) no bombardeio à Palestina ou os projetos solidários internacionalistas de Cuba. Enquanto um é relativizado, outro é ignorado.

Os três eventos históricos que ocorreram entre 20 de dezembro e 1o de janeiro testemunham as infinitas capacidades do ser humano. Por um lado, a brutalidade desmedida, a violência, a agressão, a guerra, a morte. De outro, a cooperação, a solidariedade, a paz, a vida. Cabe aos povos e governos de todo o mundo decidir que caminho seguir em 2009 e nos anos seguintes.

* Marcelo Salles, jornalista, é correspondente da revista Caros Amigos em La Paz (Bolívia), editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.


Preparação do 2º Fórum Nacional de Televisão Pública

[Texto apresentado no pré-evento da XII Socine 2008 – Universidade de Brasília]

Desde o 1º. Fórum Nacional de Televisão Pública – que ocorreu em maio de 2007 e resultou na "Carta de Brasília" – a rede pública de televisão no país começou a ganhar contornos. Naquele momento, o presidente Lula entregou à Secretaria de Comunicação Social e ao recém-empossado ministro Franklin Martins a missão de instalar a Empresa Brasil de Comunicação. Criada em outubro de 2007, a EBC tem a missão de implantar e gerir o sistema público de comunicação previsto pelo artigo 223 da Constituição Federal.

Dezessete meses após o encontro, as entidades que representam as TVs públicas reuniram-se com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, buscando apoio para a realização do II Fórum Nacional de TVs Públicas. O objetivo é debater questões que não foram esclarecidas na primeira edição do evento, como a regulamentação das emissoras públicas – já que falta um aparato jurídico para este campo das comunicações –, a programação e o processo de migração digital, segundo afirmação de Paulo Alcoforado, da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

O cidadão, um não-protagonista

O presidente Lula, de quem partiu a idéia de criação da televisão pública no país, entende esses novos canais como os veículos capazes de pôr no ar aquilo que as outras televisões não põem, as notícias positivas que não são dadas, os debates sobre grandes temas nacionais que não são realizados, os programas educativos que ficam confinados às emissoras educativas.

No entanto, dez meses após sua estréia a TV Brasil depara com o desafio de consolidar-se como emissora pública e de afastar definitivamente os receios que a cercam. Com orçamento limitado e programação baseada quase exclusivamente na grade herdada da extinta TVE, a direção da TV Brasil esforça-se para produzir a única novidade até o momento – o telejornal Repórter Brasil.

Fazer uma aposta quase que exclusivamente num jornalismo de qualidade e diferenciado pode ser um equívoco. As TVs privadas, depois da competição trazida pelas emissoras a cabo, apesar das críticas e de naturais falhas, já começam a ocupar este espaço. E como os recursos para a TV pública são escassos, outras áreas acabarão por ser menos contempladas.

A criação da TV Pública e de outros canais de comunicação sujeitos ao controle social é uma antiga aspiração da sociedade brasileira que ganhou expressão na Assembléia Constituinte de 1988.

No entanto, no projeto da nova TV patrocinada pelo governo Lula, há uma série de distorções, tanto nos pressupostos que lhe deram origem, quanto no meio escolhido para a sua implantação. A pressa com que o processo foi conduzido foi tão evidente que o principal interessado – o cidadão – como sempre não sentou à mesa de discussões. Pelo menos, não como protagonista. A iniciativa atropelou o escrutínio do Congresso e já está no ar desde 2 de dezembro de 2007, por força de uma medida provisória cujo cerne foi aprovado pela Câmara.

Origem de concessões e outorgas

As MPs, por terem prazo exíguo de andamento na Câmara e no Senado, sempre tramitam de maneira precipitada, sem as necessárias reflexões, sem debates mais aprofundados. E, ao final, são aprovadas com poucas modificações com relação ao texto original.

Ou seja, o que saiu em matéria de televisão pública da mesa de trabalho dos grupos escolhidos pelo governo foi o que ficou valendo, com alterações cosméticas. Do modo como o processo foi conduzido, a sociedade foi brindada com uma televisão pública sem saber o que isso significa, o que é na vida real, e se lhe interessa pagar por tal oferta.

É baixa a credibilidade de uma empreitada que nasceu de uma medida provisória e que deixa intocada a estrutura das comunicações estatais no país, moldada pelo aparelhamento e pelo empreguismo – e sem relevância em termos de audiência. Prova disso é que em maio de 2008 uma pesquisa CNT/Sensus revelou que 62% dos entrevistados não sabem da existência da nova TV pública.

Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para a divulgação dos feitos oficiais do governo de plantão, com alguma prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a pública, eqüidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana. Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor apenas.

A rigor, merecem maiores reflexões os conceitos de televisão pública, estatal e comercial, visto que todos se originam de concessões e outorgas "públicas".

Três vertentes de independência

Os sistemas estatal/governamental e privado/comercial são velhos conhecidos nossos. Um, o governo paga; o outro, os anunciantes sustentam.

Individualmente, têm qualidades e defeitos. Falta conhecer a televisão pública e quais seriam suas apregoadas vantagens. Por estar livre dos compromissos dos dois outros modelos, tanto do ponto de vista do financiamento quanto de gerência, a televisão pública, segundo seus defensores, estaria também livre para perseguir uma televisão de qualidade, não voltada exclusivamente para o entretenimento ou para defender os interesses do governante (e financiador) de turno. Poderia inovar, experimentar, criar sem limites.

Poderia dar voz àqueles que não têm voz na televisão comercial e àqueles que aos governantes só servem na urna. Todos os tipos de diversidades culturais, étnicas, de gênero teriam nela uma fonte de expressão.

Ela funcionaria, acredita-se, até mesmo como um êmulo para as televisões comerciais, forçadas que seriam a buscar novos formatos, a encontrar novos temas para seus programas, a optar por conteúdos de melhor qualidade, a partir da concorrência trazida pela televisão pública. Cita-se, como exemplo, o caso do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura de São Paulo.

As outras emissoras teriam sido forçadas a melhorar a programação para as crianças porque perderam audiência para a televisão do governo paulista.

Portanto, para estar eqüidistante dos binômios mercado/audiência e governo/propaganda oficial, a televisão pública teria de ser totalmente independente desses entes, em três vertentes: independente financeiramente, independente gerencialmente e, por fim, independente editorialmente.

Condicionantes inegociáveis

Se a TV pública não tiver fontes permanentes de recursos, intocáveis, não será pública; será estatal. Se não puder tomar decisões de contratar, demitir, que salários pagar e tudo mais que caracteriza o gerenciamento de uma empresa, não será pública; será estatal. Se não for editorialmente independente, não puder decidir o que veicular, como tratar os assuntos, seja no jornalismo ou em outro tipo de programação, não será pública; será estatal. Estará sujeita aos humores e desejos do seu financiador governamental (com o dinheiro público, óbvio).

Orlando Senna, logo após sua exoneração do cargo de diretor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC, controladora da TV Brasil), divulgou carta pública alertando os representantes da sociedade civil para que intervenham no sentido de tornar a emissora "blindada contra os poderes e interesses governamentais e econômicos".

Esses são requisitos básicos, condicionantes inegociáveis. A televisão pública deveria funcionar no Brasil como deveriam funcionar, idealmente, as agências reguladoras em alguns setores da economia, como a Anatel, a Aneel e a Ancine. As agruras pelas quais elas passam – corte de recursos, interferências ministeriais – mostram que no Brasil a prática é outra. E o exemplo da Anac, com suas indicações políticas – que deram no que deram – não recomenda entusiasmos nesse campo.

Detalhamos abaixo estas vertentes.

O modelo da BBC

Carta de Brasília: "A TV Pública deve ser independente e autônoma em relação a governos e ao mercado, devendo seu financiamento ter origem em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis"

Os mecanismos de financiamento da nova emissora são um dos pontos mais controversos desde sua formação. Se a verba da emissora vier apenas do orçamento da União, não haverá a independência necessária – a TV pública deveria ter sua gestão assegurada através de verbas públicas ou de setores sociais.

A TV Brasil simplesmente ajuda a inflar o número de rádios e TVs educativas que, na primeira gestão petista, subiu 26%. Ela já nasce contando com 2.000 funcionários, reunião do quadro da Radiobrás com o da TVE do Rio de Janeiro.

Pelas informações disponíveis, do próprio ministro Franklin Martins, a operação da rede pública custará R$ 500 milhões anualmente. Fala-se em financiamento via serviços prestados, patrocínio institucional, uso das leis de incentivo. Mas esse nem sempre é um recurso certo. Para ter uma qualidade constante, a TV pública deverá ter recursos certos.

Aqui cabe um paralelo. A BBC traz um modelo interessante de financiamento: seus recursos provêm basicamente do pagamento, por todos os britânicos que possuem televisão, de uma taxa de 136 libras por ano, dinheiro que não pode ser apropriado pelo governo, nem contingenciado, nem congelado. O orçamento da BBC em 2007 passou dos 3 bilhões de libras.

A derrota de Blair

Afinal, por que o contribuinte será obrigado a arcar com um canal de TV tão caro e tão redundante em relação a seus antecessores? O II Fórum Nacional de TVs Públicas deveria procurar explicações plausíveis para a existência deste novo canal no Brasil.

A instituição de um Conselho Curador composto por representantes da sociedade civil – da sociedade civil próxima ao petismo – não nos dá garantia alguma de que a nova TV vai se livrar do chapa-branquismo. Isto porque os 15 conselheiros da TV – assim como o diretor-presidente e o diretor-geral – foram escolhidos e nomeados pelo presidente, e não por entidades da sociedade civil.

Novamente, a BBC pode ser citada como um tipo ideal: existe uma tradição na emissora em que os conselhos públicos, formados por pessoas reconhecidamente não partidárias, servem para impedir que os produtores de rádio e televisão sofram interferências políticas e comerciais. Seu conselho é indicado pela sociedade, representa de fato a sociedade, e não grupos restritos de pressão e interesse. São eleitos pelo Parlamento, têm mandatos, não podem ser trocados livremente ao bel-prazer de um primeiro-ministro insatisfeito. No episódio envolvendo reportagem da BBC sobre a participação da Grã-Bretanha na guerra do Iraque, Tony Blair pressionou para afastar pessoas do jornalismo da emissora e não conseguiu. A BBC se pôs contra, por exemplo, a guerra das Malvinas e do Iraque e nada abalou sua vida.

"Comunicação moderna, democrática e financeiramente saudável"

Há exemplos no mundo de televisões públicas; as nossas (TV Cultura paulista, e as educativas estaduais e federais), não o são. Mesmo a TV Cultura, que mais se aproxima do modelo no Brasil, sofre influências indiretas constantes do grande patrocinador. E sua quase permanente penúria financeira a torna dependente, sim, do governo paulista, em maior ou menor grau, dependendo do inquilino de ocasião no Palácio dos Bandeirantes.

Não há naturalmente nenhum modelo pronto e acabado para a realização de um projeto dessa ordem. Reproduzir modelos externos bem-sucedidos, como o da BBC, é desaconselhável. Há o modelo norte-americano, mais recente, também tido como exemplar, mas muito longe do alcance e prestígio da BBC. Quem já assistiu à RAI (Itália), TVE (Espanha) e RTP (Portuguesa) tem, às vezes, a impressão de estar sintonizado em alguns dos programas menos recomendáveis de algumas redes privadas brasileiras.

Será necessário pesquisar um caminho próprio e não é impossível que do mero processo de busca surjam decisões cruciais – como a de relativizar (sem, no entanto, desprezar) a importância do fator audiência; ou de perceber a real importância da independência total da TV pública em relação ao poder político.

Por fim, a TV Brasil certamente ainda não é a rede nacional pública de televisão que muitos sonhamos. Embora não tenha sido discutida a contento, talvez seja um importante passo no sentido de provocar o necessário debate sobre o papel dos meios de comunicação no Brasil – procurando "alcançar o seu objetivo de empresa pública de comunicação moderna, democrática e financeiramente saudável", como disse Senna em sua carta pública de despedida.

* Alessandra Meleiro é pesquisadora de pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
* José Márcio Mendonça é presidente do Instituto Iniciativa Cultural.