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Comunicação e legitimidade: o direito de antena na greve

Em uma sociedade feita de comunicação, a importância da versão pode ser maior que a do fato. Isso fica claro quando observamos os processos conflituosos que envolvem as negociações coletivas a respeito de salários e condições de trabalho. Quando se trata de uma greve, por exemplo, é raro que o cidadão comum conheça quais são as reais demandas da categoria envolvida. Gostaríamos de explorar as conseqüências dessa distância entre versão e fato, uma distância artificialmente produzida, diga-se de passagem, já que cidadão e trabalhadores em greve normalmente compartilham das mesmas condições de vida, preocupações e sonhos.

A greve é um dos principais instrumentos de pressão de que dispõem os trabalhadores para ver atendidas suas necessidades, suas reivindicações, seus anseios. É uma manifestação coletiva da força dos trabalhadores. Justamente por ser fenômeno coletivo o êxito de uma greve depende da adesão que o movimento é capaz de produzir. Isso se reflete na legitimidade da paralisação. Uma greve legítima não é legítima apenas porque um tribunal a declara. A legitimidade, o valor social de uma greve é produzida por aquilo que é possível comunicar sobre a greve. É assim com todo conflito social. Se tomarmos como juiz a opinião pública, a legitimidade de uma determinada reivindicação depende tanto do conteúdo (o que realmente se deseja) quanto da forma (como é reivindicada).

Essa conclusão prévia é perturbadora porque ainda não diz nada de concreto. Se as coisas são realmente assim, então é possível que existam manifestações absolutamente ilegítimas que podem ser descritas como pleitos legítimos, e vice-versa. Não acreditamos que tudo seja o que parece ser, e tampouco que se possa dourar a pílula a ponto de mascarar a realidade.

Nosso palpite inicial é o de que a chance de sucesso desse jogo com a legitimidade depende principalmente de oportunidades que estão distribuídas de maneira desigual. Aqui, nos referimos ao direito (e não ao poder) de produzir versões sobre determinado conflito coletivo, do tipo que normalmente pode conduzir a uma paralisação do trabalho.

Vejamos, por exemplo, o caso das greves em atividades relacionadas a necessidades mais imediatas da população. Quando serviços como polícia e transportes são paralisados por força de alguma disputa sobre direitos trabalhistas, o fato é que a versão dos trabalhadores dificilmente consegue chegar a quem realmente interessa, quem realmente pode ser considerado como opinião pública.

Ilustrativa dessa situação foi o lamentável episódio ocorrido durante a greve dos policiais civis do Estado de São Paulo, na segunda metade de 2008. O Observatório do Direito à Comunicação (de 13.11.2008) noticiou que um juiz da Vara de Fazenda Pública do Estado impediu a veiculação, na Rede Globo, de um comercial organizado pelos grevistas. No comercial, os policiais batiam à porta do governador mas não eram atendidos. Um dos fundamentos da decisão judicial foi o “temor” e a “insegurança” que poderia causar à população.

Aqui, um outro aspecto do direito de greve precisa ser esclarecido. Como movimento de pressão e de manifestação de força por parte dos trabalhadores, a greve incomoda. E necessariamente deve ser assim. A paralisação deve causar transtornos. Ela cria obstáculos aos interesses do empregador (que, muitas vezes, é o Estado). Mas também incomoda a sociedade. Uma paralisação dos bancários, por exemplo, pode impedir que um cidadão pague suas contas diretamente no banco – ele terá que procurar outros meios, ou negociar uma prorrogação de prazo com seu credor. Uma greve no sistema de transporte coletivo provavelmente fará com que muitas pessoas cheguem atrasadas a seus compromissos. Não há nada de errado nisso. Esse incômodo é inerente e indispensável ao exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado.

É claro que nas atividades consideradas por lei como “essenciais”, as partes envolvidas devem manter a prestação de serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da população. Entretanto, a manutenção dessa quantidade “mínima” de serviços não pode reduzir o direito de greve. Decisões judiciais que, supostamente considerando a essencialidade do serviço, determinam a manutenção de quantitativos elevados de trabalhadores em atividade, de modo a neutralizar os efeitos da paralisação, ignoram a Constituição e impedem o exercício regular da greve. Falta-lhes esta percepção: a greve causa incômodos, mesmo nas atividades essenciais.

E é exatamente por esse motivo, ou seja, pelo desconforto gerado pela paralisação, que o direito de greve deve ser acompanhado do direito à comunicação. A lei geral de greve (Lei nº 7.783/1989) assegura aos grevistas o direito à livre divulgação do movimento. A previsão legal reforça essa prerrogativa, mas seria mesmo dispensável diante de uma leitura constitucionalmente adequada dos dispositivos que garantem a liberdade de expressão e o próprio direito de greve. Em todo caso, a possibilidade de comunicação e divulgação das reivindicações dos trabalhadores é fundamental para o êxito da paralisação. Dessa forma, por mais que a lei garanta o direito de greve a muitas atividades consideradas essenciais, o sucesso (pelo menos no que se refere à legitimidade) de uma mobilização no ambiente de trabalho vai depender da capacidade de produzir interpretações, de disseminar informações, enfim, de comunicar sobre as motivações do movimento.

Nessa medida, a legitimidade da greve – e do incômodo que ela produz – depende da adesão, não apenas dos trabalhadores, mas, com freqüência, da própria opinião pública. Daí a importância de os grevistas contarem com instrumentos para a divulgação de suas idéias, necessidades e reivindicações. Entre os meios para manifestação do movimento estão a internet, o rádio, os jornais e a própria televisão. Trata-se, portanto, do reconhecimento da capacidade de comunicação dos trabalhadores.

A grande inovação nesse ponto nos parece ser a descrição dessa capacidade de comunicação como uma necessidade jurídica. Quer dizer, percebemos que é importante que o direito do trabalho possa garantir a igualdade de condições na comunicação sobre um conflito no ambiente de trabalho. Isso vale para os conflitos coletivos (de que estamos tratando aqui) e para os conflitos individuais. E essa igualdade não pode ser assegurada apenas como uma formalidade, mesmo que seja uma formalidade processual. Não. É preciso que a capacidade de gerar comunicação seja protegida também no âmbito social, “fora” dos autos, na produção social de notícias, comentários e descrições.

Pensamos, por exemplo, na disseminação do direito de antena como instrumento da negociação coletiva. A proposta seria assegurar aos trabalhadores espaço nos meios de comunicação para expor a sua versão a respeito do conflito. Quando se trata de uma atividade essencial, é igualmente fundamental que o usuário, digamos, de um serviço de ônibus, saiba não apenas que pode chegar atrasado ao seu compromisso, mas também possa formar a sua opinião a respeito da necessidade ou não do movimento grevista que provocou aquela conseqüência indesejada para o indivíduo. Acreditamos que a garantia desse direito pode ser uma contrapartida à possibilidade de coberturas jornalísticas que desvalorizem o direito coletivo à greve, diminuindo-o, como é a tática usual, a uma manifestação egoística e ilegal de determinados membros de uma categoria. Atribuir aos trabalhadores a capacidade de comunicação do movimento paredista significa fornecer-lhes os meios para o exercício pleno do direito de greve, de modo que também a sociedade possa reconhecer a paralisação como o exercício de um direito.

* Renato Bigliazzi é mestre em Direito (UnB) e pesquisador do grupo “Sociedade Tempo e Direito – STD”.
* Ricardo Lourenço Filho é mestre em Direito (UnB), professor universitário e pesquisador do grupo “Sociedade, Tempo e Direito – STD”.

Rádios comunitárias: Projeto do governo amplia repressão

O ano passado acabou para as rádios comunitárias com duas notícias, uma boa e uma ruim. A boa é que a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, ninho dos parlamentares donos de emissoras comerciais, aprovou projeto substitutivo (PL nº 4549/98) do deputado Walter Pinheiro (PT-BA) anistiando os que foram punidos por colocar rádio no ar sem autorização. É o tipo de coisa que só acontece a cada cem anos. A notícia ruim é que o governo Lula encaminhou ao Congresso Nacional Projeto de Lei (nº 4573/08) que aumenta mais ainda a repressão sobre as rádios comunitárias. Isto é, quando todo mundo esperava que o governo do PT fosse apoiar a proposta avançada de Walter Pinheiro (companheiro de partido!), agora tramitando na última comissão da Câmara, ele manda uma outra absurdamente reacionária.

Por que o governo Lula encaminhou Projeto de Lei tão ruim para o Congresso Nacional poucos dias depois da Câmara aprovar o substitutivo de Walter Pinheiro? A intenção do governo era atrapalhar o processo ou impedir avanços? Estamos tratando de má-fé do governo para com as rádios comunitárias? Quem articulou politicamente este projeto? Alguma entidade colaborou com ele?

Má-fé e retrocesso

Dizem fontes seguras que a história desse projeto começou em setembro do ano passado, quando representantes de entidades de rádios comunitárias estiveram com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Desse encontro, e de um acordo posteriormente firmado entre o Ministério da Justiça, Ministério das Comunicações e Casa Civil, teria brotado a proposta.

Antes de analisar o PL do governo, gostaria de recordar apenas dois pontos do que escrevi na época (25/09/08) NESTE Observatório ("O que fazer pelas rádios comunitárias") sobre esse encontro com Tarso Genro. Fiz duas sugestões ao governo:

1. O Executivo deveria parar de continuar enrolando o movimento das rádios comunitárias.
2. O Executivo já sabe o que fazer. Não se admite mais que erre em questões primárias.

Está claro que esse PL não é um erro, mas uma opção política, um ato de má-fé e um retrocesso para a comunicação popular do país.

"Expor a perigo" a segurança

O que diz o PL 4573/08?

Ele começa mexendo numa velharia ainda viva contida no artigo 151 do Código Penal. A proposta elimina os incisos II, III e IV do parágrafo 1º do art. 151 do Código Penal (Decreto Lei nº 2448/40). Este fóssil jurídico, que ainda fala em coisas como "comunicação telegráfica ou radioelétrica" e em "aparelho radioelétrico", até hoje é usado pela Polícia Federal como justificativa para reprimir rádios não autorizadas. Eis o texto completo. A parte em negrito é a que o Governo pretende subtrair:

"Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º – Na mesma pena incorre:
I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;
II – quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;
III – quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;
IV – quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal".

Com o fim destes incisos, fica tudo resolvido? Não é bem assim. Trata-se de um engodo, uma armadilha. Porque o PL 4573/08 também propõe mudanças no Parágrafo 1º do artigo 261 do Código Penal.

Diz o texto original do Código Penal em vigor:

"Art. 261 – Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
Parágrafo 1º – Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição de aeronave:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos" (grifo nosso).

E agora a proposta do governo de como deve ficar este parágrafo 1º:

"Parágrafo 1º-A Na mesma pena do caput incorre quem, mediante operação de serviços de radiodifusão, expõe a perigo a segurança de serviços de telecomunicações de emergência, de segurança pública ou fins exclusivamente militares, ou, ainda, o funcionamento de equipamentos médico-hospitalares" (grifo nosso).

Politicamente esperto

Observe que originalmente havia uma punição para quem "expõe a perigo" e outra punição no caso de "naufrágio… queda ou destruição de aeronave". Se o acidente acontecia, a punição era maior. Existe uma diferença muito grande nisso. O PL do governo diz que basta a pessoa expor a aeronave ao perigo (não precisa que ocorra o acidente) para que ela seja condenada à pena de reclusão de dois a cinco anos. Hoje, esse tipo de ameaça (reclusão) paira somente sobre aquelas emissoras sem autorização; se esse projeto for aprovado todas podem ser citadas.

Quanto aos riscos às aeronaves, como todo mundo sabe que rádio comunitária não derruba avião, os inimigos das rádios comunitárias nunca iriam ter um avião no chão que servisse de exemplo. Logo, estão tentando adequar o texto legal à ficção que criaram. Com isso, mudam um pouco a justificativa mitológica para repressão: a rádio não derruba avião, mas cria o perigo dele cair.

À parte os deslumbramentos de burocrata, tecnoburocrata ou carrapato do poder, que traz para os dias atuais expressões típicas dos tempos de Machado de Assis ("expõe a perigo") e a vontade férrea de defender o poder (e seu emprego), a redação do PL é uma tentativa escancarada de legitimar os abusos hoje cometidos pelos órgãos de repressão. É sabido que os inimigos das rádios comunitárias usam exatamente esses argumentos (interferência no sistema de aviação, na segurança e nos serviços de saúde) para cobrar mais repressão do Estado. Se hoje os agentes do Estado cometem abusos usando tais bobagens como argumento para fechar rádio, se este PL for aprovado eles estarão dentro da lei para enquadrar e botar na cadeia aqueles que, na sua opinião, merecem punição.

É preciso reconhecer: quem bolou isso, embora tenha mofo no cérebro, foi muito esperto politicamente.

O argumento de "derrubar avião"

O mesmo Projeto revoga o Artigo 70 da Lei 4.117/62, mais um fóssil jurídico, este criado pela ditadura militar (Decreto 236/67) ainda hoje usado com pela Polícia Federal. E também estabelece que o artigo 183 da Lei 9472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), muito usado pelos agentes da Anatel, não se aplica à radiodifusão.

Se as leis 4.117/62 e 9.472/97 não serão utilizadas para reprimir as emissoras comunitárias, imagina-se que agora se fará uso da legislação de rádios comunitárias, a Lei 9.612/98. Está errado quem pensou nisso. O óbvio não funciona na política. Ao invés de incluir na lei pertinente todas as punições de que o tema trata, o governo transforma o caso num crime de ordem penal.

Enfim, o que temos em resumo nessa primeira parte do projeto é:

1) O Código Penal – e não mais a Lei 4.117/62 ou a Lei 9472/97 – pode ser o instrumento central para reprimir as emissoras, autorizadas ou não.

2) Emissoras autorizadas ou não autorizadas podem ter seus equipamentos apreendidos e seus dirigentes podem ser submetidos ao processo penal. (Antes isso ocorria somente com as não-autorizadas).

3) No Código Penal substitui-se a pena de "detenção, de um a seis meses, ou multa (art. 151) por uma de "reclusão de dois a cinco anos" (art. 261). Trocou seis por meia dúzia mais um pouco.

4) A redação permite uma leitura subjetiva sobre a existência de crime. Um juiz, ou mesmo um desses agentes (!), pode achar que a emissora está provocando interferências em sistemas de segurança, equipamentos hospitalares (aparelho de tomografia?), telecomunicações e aeroviário e fechar a emissora. Hoje é assim. Fecha-se a rádio sob o argumento de que pode derrubar avião. Claro que há um lado otimista: juízes e agentes da Anatel de bom senso vão querer provas antes de fecharem a emissora.

"Apoio cultural"

Para as emissoras não-autorizadas no ar, não bastasse a incursão no Código Penal, o governo propõe um tratamento especial. Diz o texto do seu PL:

"Art. 21– A operação de estação de radiodifusão sem autorização do poder Concedente constitui infração gravíssima sancionada com a apreensão dos equipamentos, multa e a suspensão do processo de autorização de outorga ou a impossibilidade de se habilitar em novo certame até o pagamento da referida multa".

A novidade é que antes o diretor da entidade era "apenas" indiciado em processo na Polícia Federal. Agora, além do indiciamento e da possibilidade de ser preso, e da apreensão dos equipamentos, ele e a entidade recebem uma outra punição: o processo da rádio ao qual está ligado fica paralisado até o pagamento da multa.

O PL propõe modificações no artigo 21 da Lei 9.612/98 (lei das rádios comunitárias), o que trata das infrações cometidas pelas rádios.

Com relação à publicidade, por exemplo, fica valendo o artigo 18, em vigor, que admite a propaganda apenas como "apoio cultural". Mas o que é apoio cultural? A nova proposta do governo é medíocre porque não leva em conta que "apoio cultural" é um conceito sem definição. A norma operacional 01/04 (art. 19.6.1) diz que considera apoio cultural a "divulgação de mensagens institucionais". Mas o que são "mensagens institucionais"? Isso só quem sabe é o agente repressor. O mesmo que aplica a multa quando acha que a rádio está descumprindo esse artigo.

Estado contra o povo

O Capítulo XI, do Decreto 2.615/98, que trata das infrações cometidas pelas rádios comunitárias, lista 29 motivos para punir. Mas não tem aí a questão da publicidade. Hoje, a Anatel multa, mas sem uma base legal. Portanto, esta mudança proposta pelo governo visa a atender aos interesses dos agentes repressores, que precisavam de uma base legal para fazer o que já fazem hoje.

Deve-se considerar que para uma comunidade pobre conseguir recursos para pagar a multa imposta pelo poder público não é fácil. Na falta de recursos, a cobrança vai para dívida pública e os projetos sociais ligados à entidade são vetados – e assim também a própria rádio. Centenas de rádio foram multadas por operarem sem autorização ou por colocarem no ar publicidade que, segundo os agentes, infringe a lei.

A multa é um instrumento de repressão política. Uma estratégia cruel: é criando dívidas que você aniquila o pobre. É o Estado contra o povo brasileiro. A serviço das elites econômicas (e não somente do campo da comunicação), o Estado faz uso desse instrumento.

Uma proposta ridícula

O destaque no projeto do governo é sua ênfase no combate ao proselitismo. Sua proposta estabelece como "infração gravíssima" a prática do proselitismo de qualquer natureza. Mas o que é "proselitismo"? A Lei 9.612/98, em pelo menos dois artigos (art. 4º, parágrafo 1º; art. 11), já faz o veto ao domínio das rádios comunitárias pelas igrejas e ao proselitismo que praticam. Mas, curiosamente, os agentes da Anatel e da PF nunca encontraram isso. Centenas de rádios são dominadas por padres e pastores e eles nada vêem. Em Copacabana, em Brasília, as antenas são maiores do que as torres das igrejas, se avistam a quilômetros, mas nem a PF nem a Anatel conseguem ver. São antenas invisíveis – talvez por razões espirituais. Ou seriam econômicas?

Estudo feito no ano passado pelo professor Venício Lima e pelo consultor legislativo Cristiano Lopes revela aquilo que todo mundo já sabia, mas não tinha provas: o Ministério das Comunicações distribui autorizações de rádios comunitárias para políticos, padres e pastores aliados. Por que o Ministério da Justiça não apura essas denúncias? Por que não descobre quais os servidores públicos envolvidos nesta indecência? Por que a Polícia Federal, a Abin, o FBI, sei lá, não investigam a participação do ministro Hélio Costa nesta distribuição de rádios? Por que a Polícia Federal não investiga como a Igreja Católica conseguiu autorização para mais de 200 rádios ditas comunitárias, se isto é ilegal, imoral, indecente? Por que o Ministério da Justiça não investiga o que ocorre dentro da Casa Civil, aonde montaram um balcão para distribuir rádios comunitárias para X e Y?

Fazer este tipo de coisa, depurar o setor, é muito mais do feitio do Ministério da Justiça e seria muito mais saudável para sociedade, do que fazer alianças com outros ministérios e apresentar esta proposta ridícula de projeto. A gente esperava mais de Tarso Genro e sua equipe.

* Dioclécio Luz é jornalista, mestrando em comunicação pela UnB, autor de “A arte de pensar e fazer rádios comunitárias”.

Publicidade infantil: Restringir para proteger

O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) está cada vez mais rigoroso com relação à fiscalização da propaganda infantil. Se em 2007 sete comerciais foram suspensos pelo órgão, em 2008 o número foi para 17.

Qual seria o regime mais adequado à proteção dos direitos das crianças? Seria razoável a imposição de limites à publicidade infantil? Isso significaria uma restrição arbitrária à liberdade de comércio? Como equilibrar os direitos das crianças com a liberdade empresarial?

O tema ganha especial destaque no Legislativo, a partir de projeto de lei que determina a proibição de qualquer comunicação mercadológica destinada a crianças, aprovado pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara em 2008 e sob a apreciação da Comissão de Desenvolvimento Econômico, cujo parecer do relator defende ser a publicidade uma "atividade virtuosa, e não viciosa".

De acordo com o projeto, entende-se por comunicação mercadológica: "Toda e qualquer atividade de comunicação comercial para a divulgação de produtos e serviços, independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado", o que abrange "a própria publicidade, anúncios impressos, comerciais televisivos, "spots" de rádio, "banners" e "sites" na internet, embalagens, promoções, "merchandising" e disposição dos produtos nos pontos-de-venda".

A comunicação mercadológica dirigida às crianças é aquela que faz uso de cenários fantasiosos, cores, músicas, personagens infantis e crianças modelo protagonizando os filmes publicitários. Pesquisas comprovam o impacto da propaganda endereçada à criança: contribui para a obesidade infantil (e outros distúrbios alimentares e doenças associadas), a erotização precoce, o estresse familiar e a violência, entre outros.

Na maioria dos países desenvolvidos e com forte tradição democrática -como Suécia, Inglaterra, Alemanha-, a restrição à publicidade que se dirige às crianças não contou com a resistência das empresas. Nos EUA e na Europa, as empresas multinacionais têm concordado com essa política de "autolimitação", comprometendo-se a restringir significativamente a publicidade destinada às crianças.

O mesmo não tem ocorrido no Brasil. No caso brasileiro, qualquer iniciativa de restrição e limitação suscita acirradas manifestações por parte do setor empresarial, sob o argumento de que tais propostas constituiriam atos de censura ou cerceamento da liberdade de expressão.

Não bastando a duplicidade de políticas empresariais adotadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento, não há que confundir a publicidade e a liberdade de expressão.

A liberdade de expressão é direito consagrado no âmbito internacional e interno, enunciado em instrumentos de proteção de direitos humanos. Trata-se de um direito assegurado às pessoas físicas, abrangendo a livre manifestação do pensamento político, filosófico, religioso ou artístico. O alcance de tal direito não compreende a publicidade – atividade que utiliza meios artísticos visando essencialmente à venda de produtos.

Diferentemente de reportagens jornalísticas, veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, a publicidade necessita adquirir um espaço na mídia para se alojar. A sua lógica é a mercantil, orientada pela equação de compra e venda de produtos.

Os parâmetros internacionais e constitucionais endossam a absoluta prevalência dos interesses da criança, seu interesse superior e a garantia de sua proteção integral, na qualidade de sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento.

Nesse sentido, destacam-se a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, a Constituição do Brasil de 1988 e o ECA. Ademais, organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e o Comitê Permanente de Nutrição, reconhecem que a publicidade tem um papel central no desencadeamento de problemas alimentares, como a obesidade infantil.
Como a criança encontra-se em processo de desenvolvimento biopsicológico, não tem o discernimento necessário para compreender o caráter da publicidade, o que torna seu direcionamento às crianças abusivo e, por conseguinte, ilegal.

O clamor é o mesmo: a proteção da infância merece prevalecer ante o ilimitado exercício da atividade comercial concernente à comunicação mercadológica destinada às crianças.

Na agenda brasileira, emergencial é disciplinar o exercício da atividade publicitária. Restringir a publicidade endereçada às crianças não é ato de censura e tampouco ofensa à liberdade de expressão. É imperativo ético na defesa e proteção à infância.

* Flávia Piovesan é doutora em direito constitucional e direitos humanos, professora da PUC-SP, PUC-PR e Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha), procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Tamara Amoroso Gonçalves é advogada e mestranda em direitos humanos pela USP.

A confissão de Sarney e a cassação que devemos cobrar

Imortal, talvez. Infalível, certamente não. Fisgado em grampo da Polícia Federal em conversa com seu filho, Fernando Sarney, o senador do Amapá – ou o quarto senador do Maranhão – confessa o óbvio não assumido: as emissoras de televisão e rádio, bem como os jornais e todo e qualquer veículo de comunicação, servem de batalhão de elite na guerra política.

“Vamos botar isso na TV”. Sintético, o presidente do Senado se refere a uma denúncia de corrupção contra Aderson Lago, tucano que comanda, de fato, o governo do Maranhão. Aderson, primo do governador Jackson Lago, enquanto deputado estadual, destacou-se pela oposição ferrenha ao sarneísmo durante os dois mandatos da governadora Roseana Sarney (1995-1998 e 1999-2002). Vale o registro, porém, que o mesmo Aderson Lago já teve abrigo cativo na família real do Maranhão.

Entretanto, o que nos interessa aqui, mais do que os elementos e o mérito da disputa, é a confissão explícita de José Sarney revelando o uso político de uma concessão pública.

A Constituição, no seu artigo 54, é inequívoca quanto à proibição de parlamentares serem concessionários de rádio e TV:

“Os Deputados e Senadores não poderão:
I – desde a expedição do diploma:
a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;
[…]
II – desde a posse:
a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou ela exercer função remunerada.”

A essa vedação objetiva, somam-se os princípios gerais da administração pública, listados no artigo 37 da Carta Magna:

“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”.

E tanto a Constituição quanto o Código Brasileiro de Telecomunicações determinam a subordinação das emissoras de rádio e TV às finalidades – educativas, artísticas, culturais e informativas – que atendam ao interesse público da sociedade brasileira.

Ao confessar, incauto, a conduta em que se vale de uma concessão do Estado para obter favorecimento político de caráter pessoal, o ex-presidente da República e dirigente máximo da instituição que elabora as leis do país reforça a constatação de que o Estado não é neutro e tampouco a Justiça é cega.

A família Sarney, embora destronada do governo estadual após quatro décadas de domínio, controla não apenas os principais meios de comunicação do estado mais indigente do país. O Judiciário maranhense, por exemplo, está profundamente atado às redes de relações de poder tecidas desde que José Sarney derrotou a oligarquia comandada por Vitorino Freire, em 1965.

Jamais a hegemonia do clã Sarney esteve tão ameaçada quanto no momento atual. Derrotado nas urnas na eleição de 2006 e praticamente varrido das principais cidades maranhenses em 2008, tem os negócios investigados a fundo pela PF e pelo Ministério Público Federal (MPF). Fernando Sarney é acusado de crimes contra o sistema financeiro, formação de quadrilha, falsidade ideológica, fraude em licitação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, entre outros delitos, e teve prisão preventiva solicitada pelo MPF. Atacado duramente até por publicações conservadoras, como as revistas The Economist e Veja (através de um colega de partido, o senador Jarbas Vasconcelos) e denunciado pela Folha de S. Paulo, veículo no qual assina coluna semanal, o patriarca Sarney pode ter na direção do Senado menos uma prova de força do que um derradeiro e incerto respiro. A conferir.

Na lista histórica de confissões desse tipo, não esqueçamos o que disse o nosso sumo magnata da mídia. Em 1987, The New York Times publicou entrevista com Roberto Marinho, tão reveladora do seu pensamento quanto pouco conhecida do grande público:

“Sim, eu uso o poder [da Rede Globo], mas eu sempre faço isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas (…). Nós gostaríamos de ter poder para consertar tudo o que não funciona no Brasil. Nós dedicamos todo o nosso poder para isso. Se o poder é usado para desarticular um país, para destruir seus costumes, então, isso não é bom. Mas se é usado para melhorar as coisas, como nós fazemos, isso é bom”. (Citado em: “Mídia: Teoria Política”, de Venício Lima, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001.)

Em 2005, como lembra o professor Venício Arthur de Lima em artigo no Observatório da Imprensa, Sarney cunhou uma máxima que resume a relação entre políticos e mídia no Brasil: “Se não fossemos políticos, não teríamos necessidade de ter meios de comunicação”, registrado em Carta Capital (nº 369, de 23/11/2005).

Na conversa flagrada pela PF, divulgada semanas atrás, Sarney economizou nas palavras, mas não deixou dúvidas quanto a uma das finalidades da sua emissora de televisão.

Diante de tal declaração de culpa, o mínimo que se pode esperar das autoridades é a cassação da concessão da TV Mirante (anagrama de mentira), afiliada da Rede Globo.

Como bem apontou a revista inglesa, Sarney representa o mais autêntico dinossauro político do país. É sinônimo do atraso e do fisiologismo. A renúncia do posto recém-assumido no Senado seria a conseqüência esperada, desejada e, ademais, lógica, embora, na política, esse termo não tenha muito sentido.

* Rogério Tomaz Jr. é jornalista formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Jornalistas e jornalistas

O jornalista deve ser um combatente, não um espectador.
– José Carlos Mariátegui –

Glória, RJ, sede da rádio CBN, segundo semestre de 2008. A emissora das Organizações Globo convida todas as assessorias dos candidatos à Prefeitura do Rio para discutir as regras e a ordem das entrevistas e a cobertura. Oswaldo Maneschy, representando o PDT, questiona a opção da CBN de utilizar as pesquisas de opinião como critério para definir a ordem das entrevistas. Ele sabe que essas pesquisas já foram utilizadas para fraudar eleições, como ficou claro no escândalo do Pró-Consult. Marisa Tavares, diretora de jornalismo, acaba aceitando sortear a ordem. Mas sobre o tempo de cobertura, ela sentencia: “Não vou perder tempo cobrindo partido pequeno”. Ao que Maneschy responde: “Nos últimos 20 anos elegemos três governadores no Rio de Janeiro. Isso é partido pequeno, Marisa?”. Ela não respondeu, mas quando o representante do PDT saiu da sala, Marisa comentou: “Maneschy abraçou uma causa… Ele parou nos anos 80”.

Conto essa história porque sinto uma onda reacionária de jornalistas que atualmente vendem sua força de trabalho às corporações de mídia contra aqueles profissionais que escolheram um caminho diferente. Isto fica bastante visível no menosprezo da diretora da CBN em relação ao Oswaldo Maneschy. Para se posicionarem desta forma, esses jornalistas acreditam piamente no mito da imparcialidade. Acham que basta ouvir os dois lados, mas aparentemente não percebem que a vida não é feita em preto e branco. Ou, mais além, parecem não saber que as empresas onde trabalham estão a serviço de um determinado projeto político. Nesse sentido, pode-se dizer sem medo de errar que todo jornalista abraça uma causa, tanto os que escolhem militar num partido político, ONG ou movimento social, quanto aqueles que suam a blusinha para ingressar numa das poucas corporações de mídia. A diferença é o que cada um defende.

Num país capitalista, autoritário, machista, racista e brutalmente desigual como o Brasil, as corporações de mídia cumprem um papel fundamental para a manutenção do sistema. Enquanto equipamento de controle social, seu objetivo é reduzir a resistência diante de todas essas formas de opressão. Resistência que geralmente se manifesta através dos movimentos sociais, criminalizados pela mídia corporativa e defendidos pela outra imprensa.

Muitas vezes os jornalistas que abraçam a mídia grande não se dão conta deste processo. Como cada vez mais a pauta chega pronta – desde quem pode ser ouvido até o que o ouvido deve dizer, passando pelo fato não desprezível da criteriosa escolha de quem é o “outro lado” autorizado a ser ouvido – esses jornalistas se transformam em autômatos. Toda a formação acadêmica, sobretudo nas áreas de sociologia, filosofia e semiologia vão por água abaixo. Daí William Bonner ter dito que forma uma jornalista em seis meses (melhor teria sido falar em “adestramento”). Diante desta alienação, voluntária ou não, o resultado é que passam a vida como meros espectadores, incapazes de refletir sobre sua própria profissão e sua missão social. O máximo que conseguem é levantar a voz contra os jornalistas que escolheram caminhos diferentes.

* Marcelo Salles, jornalista, foi correspondente da revista Caros Amigos no Rio de Janeiro entre 2004 e 2008. Atualmente é correspondente da revista Caros Amigos em La Paz (Bolívia), editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.