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Porque somos contra salvar o projeto do senador Azeredo

O Ministério da Justiça, pressionado por setores da Polícia Federal aliados ao Senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), agora presidente da Comissão de Relações Internacionais do Senado, quer apresentar uma proposta para "melhorar" o projeto substitutivo de crimes na rede (de autoria da equipe do Azeredo). A proposta do Ministério da Justiça de fato retira uma quantidade enorme de absurdos e imprecisões do substitutivo do senador Azeredo, mas mantém elementos inaceitáveis e introduz novidades obscuras, tais como a tentativa de criminalizar "provedores de conteúdo" que não tenham condições de vigiar seus usuários. A seguir uma breve crítica a proposta do Ministério da Justiça:

1- Precisamos definir uma lei com os direitos dos cidadãos na comunicação em redes digitais. A violação dos direitos essenciais definidos nesta lei é que deve ser considerada prática criminosa.

2- Devemos exigir o direito de navegar sem termos nosso rastro digital controlado pelas corporações, pelos criminosos e pelos Estados autoritários. Armazenar dados da nossa navegação por mais de seis meses deve ser considerado crime. O projeto de salvação do Substitutivo do Azeredo faz exatamente o contrário.

3- A proposta legitima o DRM, mecanismo de restrição de cópias em aparelhos e sistemas informatizados, e criminaliza a sua inutilização. A nova redação do artigo 285-A diz que é crime "Acessar, indevidamente, informações protegidas por restrição de acesso, contidas em sistema informatizado". Redação absurda.

4- Para impedir o crime de invasão bastaria escrever que seria considerada prática criminosa "invadir servidores de rede e computadores sem autorização de seu responsável". Mas a comunidade da vigilância, coordenada pela equipe do Senador Azeredo, quer deixar a porta aberta para interpretações mais amplas. Continua inaceitável o artigo 285-A.

5- O projeto de salvação do Substitutivo do Senador Azeredo define que provedor de acesso é "qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, que faculte aos usuários dos seus serviços a possibilidade de conexão à Internet mediante atribuição ou validação de endereço IP". Assim fica claro que uma escola, faculdade, qualquer lan house ou empresa que forneça uma conexão à Internet está enquadrado como provedor.

6- O projeto de salvação do Substitutivo do Senador Azeredo exclui o famigerado artigo 22, mas mantém o seu conteúdo piorado no artigo 5. Os provedores devem guardar dados de navegação dos seus usuários por 3 anos (Qual é o interesse do pessoal que insiste em 3 anos? vemos claramente as mãos das auditprias de conformidade). Além disso, seguindo a lógica do Geraldo Alckimin, em São Paulo, exige que os provedores tenham "nome completo, gênero, filiação, data de nascimento e número de registro de pessoa física ou jurídica de seus usuários". Minha mãe, agora para acessar a Internet terei que mostrar meu RG…

7- O projeto liquida as redes abertas anônimas dentro de instituições privadas. Por exemplo, no seminaŕio de cidadania digital da Caśper, terei que cadastrar todo mundo que for asistir as palestras e twittar, pois do contrário estarei violando o projeto de salvação do Substitutivo do Senador Azeredo.

8- O mais contraditório e lamentável é que os telecentros, as redes abertas mantidas pelo Poder Público estão fora dessas regras (até porque inviabilizaria todos estes projetos de inclusão digital). Veja o Art. 6º. Repare que as lan houses, pessoas jurídicas privadas, terão que pedir o RG e o nome dos pais do usuário, mas a rede aberta de Copacabana, não. Diria um observador mais atento que isso será derrubado pelo Supremo. O que será derrubado? A não aplicação da lei aos projetos de inclusão digital, pois não existe essa de dizer que crime só é cometido através de pessoas jurídicas privadas. Equivale a dizer que "violar o código penal é crime, menos nos programas de inclusão digital". Pegadinha de mau gosto.

9- O senhor Alckimin sancionou uma lei em SP que exige registro cadastral (não com filiação e outros dados como no projeto em questão) há mais de 3 anos. No mesmo período o crime digital cresceu absurdamente. Resultado da medida: fracasso total. Os mais bem humorados poderiam até concluir que a lei de cadastro e identificação gerou um crescimento estatístico dos crimes na Internet, a partir do Estado de SP. Piada. Estas medidas visam apenas a aplicação arbitrária quando for de interesse da alta e da baixa administração (um fiscal que queira prejudicar uma lan house por motivos particulares).

10- Agora, vamos ao pior! REPARE. O projeto de Salvação do Substitutivo do Azeredo atingiu o seu limite de obscurantismo no parágrafo 5º do Art. 5º. No projeto anterior não existia nenhuma alusão aos chamados provedores de conteúdo. Agora a comunidade da vigilância quer controlar e vasculhar as redes sociais. Querem que todo provedor de conteúdo demonstre "possuir a capacidade de coletar, armazenar e disponibilizar dados informáticos para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" (inciso III).

11- Veja o que é provedor de conteúdo no Art. 4º:
"II – provedor de conteúdo: qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, que coloque informações à disposição de terceiros por meio da Internet." Quem será atingido por este artigo? O site de uma empresa pequenina, um cluster de blog, o twitter, o Facebook, o Youtube, o site da paróquia da sua preferência, o Yappr, o wordpress, a wikipedia, o digg, o gazeta esportiva online, o sourceforge, etc. Enfim, quase todo mundo que monta uma página na web.

12- Quem quer isto? A comunidade de vigilância que nunca se conformou com a comunicação distribuída. Eles querem impedir que possamos continuar divulgando a rede TOR, hospedada no Eletronic Frontier Foundation, usada para assegurar a comunicação anônima, sem intrusão. Querem agir como o governo autoritário da China.

13- Por fim, continua a tal regulamentação da lei depois de sua aprovação. Imagine a PF fazendo tal regulamentação. Imagine se não reaparecerá a necesidade das auditorias de conformidade. É claro que voltarão. Fizemos várias conversas com o Julio Semeghini e com o Ministério da Justiça. Explicamos que esta lei é absurda, pois atinge o cidadão e pouco afeta os crackers. Esta lei facilita o abuso, a chantagem, o vigilantismo.

O MJ e o deputado do PSDB ficaram de agendar uma reunião com os técnicos da PF que dizem que esta lei irá permitir o combate aos crimes digitais. Mostramos que isto não ocorreria. A reunião não aconteceu. O projeto que apresentam melhorou muito pouco em relação ao Substitutivo do Azeredo e piorou de modo intenso na questão do provimento de acesso e agora (novidade) conteúdo. Lamentável. As empresas que usam wordpress terão que provar que têm capacidade de vigilância sobre as suas postagens, sobre as redes sociais que venham formar. Absurdo.

Mistificações em torno da liberdade abstrata

A causa da liberdade provoca paixões. Paixões que alucinam. Empolgado na defesa de sua proposta de abolição da Lei de Imprensa, na sessão em que o Supremo Tribunal Federal começava a discutir o tema, o deputado Miro Teixeira exagerou na metáfora clássica do "quarto poder": a imprensa não seria apenas representante do povo, seria o próprio povo. Assim resumiu O Globo a fala do deputado, na edição de quinta-feira (2/4):

"A imprensa são os olhos do povo. Requeiro que desapareça a possibilidade de pena a jornalista ou responsável pela publicação sempre que houver causalidade com o direito do povo e que nós possamos ter um país em que o povo possa controlar o Estado e não que o Estado possa controlar o povo, como temos hoje". E o povo, como todo mundo sabe, "se vê" na Globo.

Caberia perguntar, então, qual o sentido da democracia e da realização regular de eleições diretas para os mais variados cargos legislativos e executivos do poder do Estado, qual o sentido da existência dos mais diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, se quem nos representa – perdão: quem incorpora nossa identidade – são as empresas de comunicação? Grandes empresas privadas de comunicação, segundo o modelo vigente no país.

Grandes empresas privadas podem ser a referência de expressão do interesse público?

Quem sabe a pergunta nem faça sentido, pois é forçoso reconhecer que, identificada com o "povo", a imprensa estabeleceria essa "linha direta" – portanto, sem mediações – comprometida com a expressão daquilo que outro deputado, em outra ocasião, chamou de "instintos mais primitivos". Afinal, o "povo" é assim.

Entretanto, vindo de quem vem, o raciocínio nem é tão surpreendente. Num passado relativamente recente, numa das muitas vezes em que os exageros televisivos expressavam precisamente esses "instintos" e levaram à discussão sobre a necessidade de se estabelecer limites para a programação, Miro Teixeira, então ministro das Comunicações, argumentava singelamente que "o melhor controle é o controle remoto" [CartaCapital, "Globo: questão de Estado", 1/10/2003]. Era uma declaração absolutamente coerente com a lógica neoliberal da democratic marketplace, na qual o cidadão é assimilado ao consumidor e o consumidor "tem sempre razão". Hoje, porém, com o abalo provocado por uma crise financeira global de consequências ainda imprevisíveis, conviria refrear um pouco esse ardor em torno do mercado.

Liberdade de expressão x liberdade de imprensa

Retornemos ao argumento original. Esse "direito do povo" a que o deputado se refere é o direito à liberdade de expressão, automaticamente identificado ao da liberdade de imprensa. Seria importante desfazer o equívoco, porque afinal se trata de duas coisas diferentes: bastaria indagar, por exemplo, se o jornalista funcionário de uma empresa goza de tal liberdade; ou mesmo se "o povo" não teria a sua liberdade de expressão restrita quando envia uma carta não publicada ou – nesses tempos de "cidadãos-repórteres" – manda uma colaboração ou denúncia que acaba descartada. (Neste segundo caso, a resposta óbvia é não, porque não há jornalismo sem edição, e editar significa fazer escolhas. Jornais devem zelar por sua linha editorial. Além disso, em qualquer suporte diferente da internet, têm espaço limitado).

Mas essa confusão é muito adequada quando se deseja tratar abstratamente desse tema tão delicado que é a liberdade de imprensa, esquecendo-se convenientemente as condições concretas em que se pratica o jornalismo e os interesses envolvidos no negócio da imprensa, especialmente num contexto de forte concentração dos meios de comunicação.

Ressalvas ignoradas

Na exposição de motivos em que sustenta a proposta de revogação da lei, Miro Teixeira busca fundamentação em uma série de juristas, entre os quais pelo menos dois apontam conflitos que ultrapassam a demanda específica da petição. Assim, José Joaquim Gomes Canotilho ressalta:

"A liberdade interna de imprensa (…), que implica a liberdade de expressão e criação dos jornalistas bem como sua intervenção na orientação ideológica dos órgãos de informação (…), pode considerar-se em colisão com o direito de propriedade das empresas jornalísticas".

Logo a seguir, José Afonso da Silva argumenta:

"A liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mas especialmente têm um dever. Reconhece-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e ideias, mas sobre eles incide o dever de informar à coletividade de tais acontecimentos e ideias objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original, do contrário, não se terá informação, mas deformação. Os jornalistas e empresas jornalísticas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres".

A liberdade "natural"

O jurista prossegue nos termos clássicos que reiteram o papel da imprensa como "quarto poder", elemento de expressão da vontade popular e de defesa contra os excessos do Estado. Não envereda pela discussão das questões complexas e sempre polêmicas sobre objetividade e imparcialidade, que estão no cerne da prática jornalística. Apenas anota a crítica: jornais e jornalistas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres.

É quanto basta, sobretudo porque a frase jamais será mencionada – muito menos destacada – em qualquer jornal. E, embora sirva-se do argumento de dois juristas que fazem tais ressalvas, Miro sustenta que "o pensamento e sua manifestação, assim como a informação, são naturalmente livres". Naturalmente: vivemos num mundo – e num país – igualitário, sem coerções ou constrangimentos.

Liberdade e responsabilidade

Ao justificar seu voto pela extinção total da Lei de Imprensa, o ministro Ayres Britto, relator da ação proposta pelo deputado, mencionou a necessidade de "permanente conciliação entre liberdade [para a atuação da imprensa] e responsabilidade", porque, "sob o prisma do conjunto da sociedade, quanto mais se afirma a igualdade como característica central de um povo, mais a liberdade ganha o tônus de responsabilidade". Entretanto, não explorou esse caminho, que conduziria a uma estimulante discussão sobre a suposta, ou pretendida, "mudança de paradigma" – da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa – ensejada há mais de 60 anos pelo famoso relatório da Comissão Hutchins, como Venício A. Lima expôs em artigo neste Observatório (ver "A responsabilidade social da mídia").

Pelo contrário, logo no início de sua declaração de voto, o ministro cita a Primeira Emenda da Constituição americana, sem recordar que, desde 1919, a Suprema Corte daquele país estabelece limites à livre expressão, como o advogado José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo também publicado neste Observatório (ver "O drama da verdade – ou discurso sobre alguns mitos da informação").

A sequência do discurso é a reiteração do pensamento liberal clássico. Ayres Britto define a imprensa como "o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade" e considera que "é pelos mais altos e largos portais da imprensa que a democracia vê os seus mais excelsos conteúdos descerem dos colmos olímpicos da pura abstratividade para penetrar fundo na carne do real".

No entanto, deixa-se ficar na abstratividade, ao reforçar o argumento de Miro Teixeira, que vê "a imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade", e daí concluir que ela significa o "garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência" (o destaque é meu).

As "neves eternas da legalidade"

Vício de jurista, talvez, como escreveu certa vez o também jurista Nilo Batista, com a verve que lhe é peculiar:

"Juristas sofrem de uma doença profissional perigosa, proveniente do contraste entre as altas temperaturas da fundição do discurso do poder e as neves eternas da legalidade compreendida pelo viés positivista, que congela esse discurso na lei. Tal enfermidade nos habilita a perceber conflitos sociais como simples deficiência de normatização, que o inesgotável Estado do bem-estar jurídico tratará logo de suprir, motivo pelo qual adquirimos a capacidade mágica de superá-los com dois ou três artigos e parágrafos. Ficamos sempre um pouco desorientados perante a força bruta que rompe os modelos legais, ansiosos por repousar no porto seguro de alguns incisos e alíneas".

(A propósito, o trecho é parte de um artigo que o autor enviou à Folha de S.Paulo, no qual tentava polemizar com um professor norte-americano que, em artigo reproduzido no caderno "Mais!", defendia a política de guerra de Bush. "Tentou em vão", como escreveu na revista da qual é editor, e na qual finalmente publicou seu texto. "Parece que a opinião de juristas brasileiros, salvo poucas exceções, não interessa muito ao `Mais!´, ou interessa mais ou menos").

Penetrando "a carne do real"

Assim, só é possível pensar que a imprensa é esse "garantido espaço de irrupção do pensamento crítico" se desconsiderarmos as situações objetivas e optarmos pelo consolo dos incisos e alíneas, como numa paráfrase à máxima do Direito: dentro da lei, dentro da vida. Dessa forma, o ministro pode afirmar que "quem quer que seja pode dizer o que quer que seja". Pode, ainda, elogiar o caminho da autorregulação da imprensa, buscando o exemplo do noticiário sobre o parlamentar americano que se suicidou em frente às câmeras: as imagens foram congeladas antes do disparo fatal.

Entretanto, se quisesse "penetrar fundo na carne do real", poderia ficar por aqui mesmo e recordar o recente episódio da cobertura em "tempo real" do sequestro e assassinato da jovem Eloá Pimentel, em Santo André; ou do acompanhamento ao vivo do "caso Isabella"; ou dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006; e paremos por aqui porque a lista é interminável.

Um equívoco de origem ancestral

Como se há de perceber, este artigo não pretendeu discutir a necessidade ou não de uma Lei de Imprensa, embora esta seja uma questão de extrema relevância. Pretendeu apenas demonstrar os descaminhos de um debate central para a cidadania, quando se desconsidera a realidade concreta para a definição do direito de informar e ser informado.

Não seria possível concluir sem mencionar uma hipótese para as origens desse equívoco tradicional que suspeita do poder do Estado e aceita placidamente o poder econômico. Como argumentei certa vez, a idéia de autonomia ou independência da imprensa significa implicitamente autonomia ou independência em relação ao Estado – o que ratifica o conceito de "quarto poder" –, enquanto a dependência em relação ao poder econômico é vista como parte da ordem natural das coisas.

A origem dessa dicotomia sugere uma remissão completamente descontextualizada ao entendimento do mercado como uma extensão da vida doméstica, na qual os cidadãos deliberam "livremente". Ou seja, enquanto a naturalização do papel político da imprensa como fiscal do poder tem dois séculos, a naturalização da subordinação da imprensa às leis do mercado é um pouco mais antiga: remete à polis grega, ao oikos como extensão da vida privada. O que mais impressiona é que, na era da mais extrema concentração de capital do mundo globalizado, esse equívoco ainda sobreviva.

TV Digital: acertos e desacertos no processo de implantação

Passado pouco mais de um ano de seu lançamento, a TV digital atinge 46% da população. No entanto, o percentual de brasileiros que aderiram à tecnologia é ainda insignificante: apenas 645 mil usuários, até dezembro de 2008. A falta de esclarecimento e conteúdos atrativos para a população, incentivos para as indústrias, definições para a interatividade e regulação para a nova mídia são carências que ajudam a entender o atraso na adesão.

Mesmo assim, 12 cidades brasileiras já transmitem o sinal digital. São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Campinas, Cuiabá, Belo Horizonte, Florianópolis, Vitória, Salvador, Porto Alegre, Curitiba e Teresina são as pioneiras. Em breve, mais cidades do interior paulista, bem como Uberlândia, também terão acesso à tecnologia. O objetivo do Ministério das Comunicações é avançar no cronograma de implantação e levar a televisão digital para todas as capitais brasileiras até o final de 2009.

A campanha do Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD), denominada "Democracia Digital", veiculada pelas emissoras televisivas abertas a partir do carnaval, tenta convencer a sociedade das vantagens da nova tecnologia, como maior qualidade de imagem e som de forma gratuita (na verdade, sem pagamento adicional direto). Contudo, os pseudo-benefícios apresentados estão longe de atingir as expectativas geradas pelo polêmico sistema nipo-brasileiro, na verdade mais nipo do que brasileiro.

Expectativas estas causada pela promessa de interatividade e, conseqüentemente, maior participação dos telespectadores na programação, o que garantiria maior diversidade e inclusão social, além de outras características levantadas durante o processo de implantação, como a multiprogramação (transmissão simultânea de até quatro programas por canal).

Lançamento do primeiro middleware

Um fator adicional a ser analisado é que, neste momento, há necessidade de reduzir custos na produção de conversores e televisores, para torná-los acessíveis à população. Neste caso, uma solução poderia ser dada pelo governo federal através de isenção fiscal ou incentivos financeiros. Seria uma ação provisória, perante a inviabilidade do crescimento do setor a partir unicamente das variáveis econômicas. Outro ponto frágil na definição do caminho nacional de televisão digital é que o compromisso dos japoneses de instalar uma indústria de semicondutores no Brasil, divulgado pelo governo brasileiro no período do acordo entre os dois países, em 2006, padeceu por não cumprimento, um caminho presumível, já que tal solução não foi formalizada.

Na última semana de fevereiro de 2009, o primeiro middleware baseado em Ginga chegou ao mercado. Ele foi desenvolvido pela RCA Soft Informática, de Campinas, e está disponível para compra no sítio da empresa. Basicamente, o usuário que fizer a aquisição só vai usá-lo para acompanhar os testes digitais de algumas emissoras paulistas e, ainda assim, sem a linguagem Java, que permite a interatividade esperada. No entanto, o lançamento do middleware representou a estréia comercial do primeiro componente genuinamente brasileiro da TV digital, fruto de sérias pesquisas acadêmicas.

Inclusão digital e diversidade

Poucas pessoas ficaram sabendo da novidade porque, na prática, não houve repercussão, estando as questões da possível interatividade na televisão digital brasileira muito marcadas por desinformação. O alvo das atenções nesse período foi outro importante recurso da TV digital: a multiprogramação. Regularizada de forma exclusiva para as emissoras da União, ela tornou-se proibida mesmo para as TVs educativas estaduais. O argumento do ministro das Comunicações, Hélio Costa, é evitar abusos por parte das emissoras comerciais, como o aluguel dos canais. Entretanto, a promessa é de que a situação se regularize num curto espaço de tempo.

A medida adotada pelo governo federal pode ter sido uma decisão política, originada da pressão exercida pelos grupos de comunicação hegemônicos, notadamente a Rede Globo. É fato que a multiprogramação não é aprovada pela Globo, já que a produção de conteúdos para mais de uma programação, além de envolver grandes investimentos, aumenta a disputa por audiência e patrocinadores, favorecendo as não-líderes, ao multiplicar ainda mais a oferta de produtos culturais. Desse modo, mesmo que o Ministério das Comunicações regularize essa questão, o impasse está longe de acabar, uma vez que a tecnologia pode ampliar a comercialização de espaços para outros agentes, assim como a pirataria.

Uma nova legislação para a comunicação eletrônica, que englobe as plataformas convergentes com a tecnologia digital, poderia solucionar grande parte dos problemas, com a criação de políticas públicas que fomentem a inclusão digital e garantam maior diversidade no amplo setor das comunicações. Esta é, sem dúvida, uma pauta que deve estar presente na Conferência Nacional de Comunicação, convocada para dezembro de 2009 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O que não se pode é endossar uma conferência para discutir a comunicação que só aborde os veículos alternativos, deixando de lado a mídia hegemônica nacional.

A responsabilidade social da mídia

No Brasil, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior ao trabalho da Hutchins Commission, de 1947.

Há 62 anos, em 27 de março de 1947, era publicado nos Estados Unidos o primeiro volume que resultou do trabalho da Hutchins Commission – “A free and responsible press” (Uma imprensa livre e responsável). A Comissão, presidida pelo então reitor da Universidade de Chicago, Robert M. Hutchins, e formada por 13 personalidades dos mundos empresarial e acadêmico, foi uma iniciativa dos próprios empresários e foi por eles financiada.

Criada em 1942 como resposta a uma onda crescente de críticas à imprensa, a Comissão tinha como objetivo formal definir quais eram as funções da mídia na sociedade moderna. Na verdade, diante da crescente oligopolização do setor e da formação das redes de radiodifusão (networks), se tornara impossível sustentar a doutrina liberal clássica de um mercado de idéias (a marketplace of ideas) onde a liberdade de expressão era exercida em igualdade de condições pelos cidadãos.

A saída foi a criação da “teoria da responsabilidade social da imprensa”. Centrada no pluralismo de idéias e no profissionalismo dos jornalistas, acreditava-se que ela seria capaz de legitimar o sistema de mercado e sustentar o argumento de que a liberdade de imprensa das empresas de mídia é uma extensão da liberdade de expressão individual.

Em países europeus, com forte tradição de uma imprensa partidária, no entanto, a teoria da responsabilidade social enfrentou sérias dificuldades e a doutrina liberal clássica teve que se ajustar à implantação de políticas públicas que regulassem o mercado e estimulassem a concorrência.

Responsabilidade Social

A responsabilidade social tem sua origem associada à filosofia utilitarista que surge na Inglaterra e nos Estados Unidos no século XIX, de certa forma derivada das idéias de Jeremy Bentham (1784-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).

Nos anos pós Segunda Grande Guerra, a responsabilidade social se constituiu como um modelo a ser aplicado às empresas em geral e às empresas jornalísticas estadunidenses, em particular, e começou a ser introduzido através de códigos de auto-regulação estabelecidos para o comportamento de jornalistas e de setores como rádio e televisão. O modelo está, portanto, historicamente vinculado aos interesses dos grandes grupos de mídia.

A responsabilidade social se baseia na crença individualista de que qualquer um que goze de liberdade tem certas obrigações para com a sociedade, daí seu caráter normativo. Na sua aplicação à mídia, é uma evolução de outra teoria da imprensa – a teoria libertária – que não tinha como referência a garantia de um fluxo de informação em nome do interesse público. A teoria da responsabilidade social, ao contrário, aceita que a mídia deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, mas subordina essas funções à promoção do processo democrático e a informação do público (“o público tem o direito de saber”).

Para responder às críticas que a imprensa recebia, a Hutchins Commission resumiu as exigências que os meios de comunicação teriam de cumprir em cinco pontos principais:

(1) propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de opinião);

(2) servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;

(3) retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;

(4) apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo; e por fim,

(5) distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

Esses cinco pontos se tornariam a origem dos critérios profissionais do chamado 'bom jornalismo' – objetividade, exatidão, isenção, diversidade de opiniões, interesse público – adotado nos Estados Unidos e “escrito” nos Manuais de Redação de boa parte dos jornais brasileiros.

Liberdade de imprensa vs. responsabilidade da imprensa

Analistas estadunidenses consideram que a Hutchins Commision talvez tenha sido a responsável por uma mudança fundamental de paradigma no jornalismo: da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa. Teria essa mudança de paradigma de fato ocorrido?

No Brasil, certamente, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior à Hutchins Commission. Basta que se considere, por um lado, a concentração da propriedade e a ausência de regulação na mídia e, por outro, as enormes dificuldades que enfrenta até mesmo o debate de temas e projetos com potencial de alterar o status quo legal.

Um exemplo contemporâneo são as resistências – que já se manifestam – em relação à realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicações. As recomendações da Hutchins Commission, se adotadas pelos grupos de mídia no Brasil, representariam um avanço importante. Para nós, a teoria da responsabilidade social da imprensa permanece atual, mesmo 62 anos depois.

A audiência na TV Cultura

Desde o final de fevereiro, a TV Cultura de São Paulo vem sendo questionada publicamente sobre o seu desempenho no Ibope. O debate começou no Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, à qual pertence a emissora, e logo ganhou páginas de jornais, revistas, além de blogs e sites. Como integrante do conselho, presenciei todas as discussões. Nem todos os argumentos, porém, chegaram ao conhecimento da opinião pública. Por isso julgo pertinente fazer aqui alguns esclarecimentos [veja "TV Cultura: Governo de São Paulo critica baixos índices de audiência" ].

Comecemos pelos números do Ibope. Como o próprio presidente da Fundação Padre Anchieta, o jornalista Paulo Markun, declarou ao jornal Folha de S.Paulo no dia 17 de março, a audiência média (por minuto domiciliar) da Cultura, das 7 às 24 horas na grande São Paulo, é de 1,4%. Trata-se de um índice modesto, sobretudo quando comparado aos da Globo, que são dez vezes mais altos, segundo cálculos da própria Cultura com base em dados do Ibope.

Um quadro desalentador, certo? Errado. Esses números devem ser lidos com mais atenção. A Cultura tem menos telespectadores que a líder no Ibope, é fato, mas também tem muito menos dinheiro. O orçamento anual da Rede Globo (conforme foi divulgado pela Folha em 8/12/2008) é 36 vezes maior que o da Cultura e, quando levamos em conta essas proporções, as coisas começam a mudar de fisionomia.

Tome-se como exemplo a programação infantil da emissora, que registra entre três e quatro pontos. Melhor ainda: se considerarmos apenas o universo das crianças de 4 a 11 anos de idade, veremos que até 10% delas ficam ligadas na Cultura. Enfim, para quem gosta de contabilizar quantidade de telespectadores em função do dinheiro investido, os resultados ainda deixam a desejar, mas estão longe de ser pífios.

Cultura e informação

Falemos um pouco mais de cifrões. No ano passado, o orçamento da Cultura atingiu a casa dos R$ 204,4 milhões. Desses, apenas R$ 85,9 milhões vieram dos cofres do governo estadual. O restante teve origem em receitas próprias, como os serviços prestados a terceiros (à TV Justiça, por exemplo), os financiamentos viabilizados pela Lei Rouanet e a publicidade. Não é verdade, portanto, que o Estado de São Paulo destine anualmente R$ 200 milhões à Cultura, como chegou a ser noticiado. Ele investe bem menos do que isso.

A verdade é que investe pouco. O montante de R$ 85,9 milhões chega a ser tímido perto dos R$ 350 milhões reservados pelo governo federal, apenas em 2008, para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que põe no ar a TV Brasil. É ainda mais rasteiro diante das fortunas que o poder público, em todos os níveis da administração, paga aos veículos privados pela veiculação de publicidade governamental.

Para que se tenha uma ideia, apenas no ano de 2007 a Presidência da República e seus principais ministérios ocuparam espaços publicitários avaliados em R$ 449,4 milhões pelo Mídia Dados, editado pelo Grupo de Mídia São Paulo. No mesmo ano, só os espaços publicitários do governo paulista atingiram o valor de R$ 59,3 milhões. O fato é que os governos põem muito mais dinheiro nas emissoras privadas do que nas públicas e, estranhamente, não se vê ninguém reclamando da qualidade dos programas comerciais patrocinados por verbas públicas.

Isso tudo quer dizer que devamos descartar o debate sobre a audiência da TV pública? De modo algum. A audiência é desejável. Quanto maior, melhor. Mas é preciso ir com calma. Para uma TV comercial, os índices de audiência vêm em primeiro lugar porque são a medida de sua mercadoria: o que ela vende para os anunciantes são os olhos da plateia – e quem mede a quantidade de olhos são os pontos do Ibope.

Já para uma TV pública, o que mais importa é levar cultura e informação de qualidade aos diversos segmentos da população. A quantidade de telespectadores é um dos critérios a levar em conta, por certo, mas não é o único nem o prioritário (se assim fosse, bastariam alguns auditórios espalhafatosos no domingo e noticiários sensacionalistas nos finais da tarde para que todo mundo se desse por satisfeito).

Mais ousadia

A TV pública existe para ser uma alternativa ao mercado. Existe para ser diferente. Se se contentasse em reeditar as fórmulas da radiodifusão comercial, aí, sim, desperdiçaria cada centavo nela investido. Nós não precisamos de emissoras públicas que façam proselitismo governista – e também não precisamos delas para fazer eco aos ditames da indústria do entretenimento. Elas só são necessárias porque são de outra natureza. Se fossem iguais, seriam dispensáveis.

Uma TV comercial não pode se dar ao luxo de exibir programas de literatura ou de música clássica. Eles não dão lucro. Já a TV pública tem o dever de mantê-los na grade, pois os cidadãos que normalmente não têm acesso às salas de concerto ou aos saraus literários dependem dela para conhecer essas formas de arte. Do mesmo modo, quando difunde criações da cultura popular, a TV pública dá visibilidade a manifestações que sem ela minguariam na escuridão.

Claro que não se faz uma boa programação pública apenas com folclore e clássicos. Claro que não se pode dar de ombros para as preferências dos telespectadores. Tanto isso é verdade que uma das marcas das boas emissoras públicas é a sua capacidade de inovar e surpreender, dentro de uma grade diferente, diversificada e ampla.

Oferecer qualidade cultural sem se divorciar do público não é um desafio qualquer. É espinhoso. Melhorar a nossa TV pública requer muito mais do que técnicas espertas que prometem turbinar a audiência. Requer de nós a arte de promover o encontro entre as necessidades culturais de nossa gente e a inteligência, a inventividade, a capacidade de envolver o público.

Melhorar a nossa TV pública começa pela ousadia de compreendê-la.