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Alargando a banda

O governo federal vem desenvolvendo o Plano Nacional de Banda Larga a fim de universalizar e baratear o acesso dos brasileiros à internet, mas está enfrentado forte oposição das empresas de telecomunicação e agora surgem acusações de que haveria empresários e políticos beneficiados no processo. Não vou entrar nesse tipo de discussão. O que importa saber é qual o papel do Estado em uma questão como essa, que diz respeito a um serviço de utilidade pública – as telecomunicações. Como esses serviços são fundamentais para a sociedade, e em boa parte, monopolistas, no passado entendia-se que deviam ser realizados diretamente pelo Estado. Nos "30 anos neoliberais" (1979-2008), entendeu-se que deveriam ser privatizados e, em seguida, regulados. Especialmente os serviços de telecomunicação, porque haviam deixado de ser puramente monopolistas. Agora, no quadro de um governo crítico do neoliberalismo, surge o projeto de desenvolver um serviço de banda larga do Estado. Fará sentido uma iniciativa dessa natureza?

Não sei se a Telebrás – a empresa que se ocupará da banda larga – logrará cobrar apenas entre R$ 15 e R$ 35 por mês pelo acesso de internet rápida. Sem dúvida, além de fornecer seus serviços a organizações públicas terá que estabelecer todo um conjunto de relações com as empresas privadas do setor para chegar aos setores mais distantes. Dessa forma, a Telebrás poderá desempenhar um papel complementar na regulação do sistema de telecomunicações. E o Estado estará, assim, exercendo seu papel regulador de forma mais efetiva.

Isso não significa a volta ao Estado produtor. O Estado produtor é justificado em uma fase inicial do desenvolvimento de um país. Nós sabemos quão importante foi o papel de empresas estatais na área de siderurgia, da petroquímica, da construção aeronáutica, etc. A partir, porém, do momento em que o setor privado nacional passa a ter a capacidade técnica e a dispor de capital para assumir esses setores competitivos, o Estado deve se retirar. O mercado e a regulação geral do Estado exercida por meio da lei realizarão melhor o trabalho: com mais eficiência e menos corrupção.

Diferente é a situação das empresas que, ou são monopólios naturais ou são beneficiadas por rendas ricardianas, como é o caso da mineração, inclusive o petróleo, ou são empresas produzindo serviços de utilidade pública. Neste último caso o setor privado pode ter um papel importante, mas na condição de concessionário. A atividade é de tal forma importante e estratégica para a nação que esta, por meio dos seus representantes no Poder Legislativo, a torna responsabilidade do Estado – o qual, entretanto, poderá concedê-la à exploração do setor privado. Nesse caso, porém, o serviço de utilidade pública deverá se pautar pelas políticas definidas pelo governo democraticamente eleito e seus preços deverão ser determinados e fiscalizados nos termos estabelecidos por agência reguladora. O papel dessa não é o de definir políticas, mas o de fazer o papel do mercado que não existe: é garantir que os preços cobrados pelas empresas sejam próximos dos que existiriam se um mercado competitivo existisse.

Entretanto, a agência reguladora administrada por técnicos independentes não é a solução mágica para os serviços de utilidade pública. O papel de reproduzir o mercado é muito difícil. As manobras das empresas reguladas para escapar ou enganar a regulação são infinitas. E a literatura econômica sobre sua capacidade de capturar o regulador é antiga e respeitável. Foi especialmente desenvolvida por um economista ilustre da Universidade de Chicago, George Stigler.

Na falta de um mercado competitivo, a regulação é um second best – é uma boa alternativa, mas uma alternativa sempre imperfeita: está longe de garantir que um serviço de utilidade pública seja eficiente e barato. Os dirigentes da agência estão sempre sujeitos à captura. Por isso, é às vezes conveniente dar ao Estado instrumentos adicionais de regulação, como se está fazendo agora com a implementação do Plano Nacional de Banda Larga. A Telebrás e sua banda larga oferecerão um serviço que será também instrumental na regulação do setor. O fato de que as empresas do setor se oponham ao plano é uma indicação de que ele poderá ser efetivo em limitar lucros abusivos.

Mas surge então a pergunta inevitável: "E a corrupção que esse tipo de ação governamental pode ensejar?" Sempre que uma atividade não possa ser regulada de forma relativamente automática e impessoal pelo mercado, e o Estado precise regulá-la, surge a possibilidade da corrupção, porque as empresas envolvidas não hesitarão em tentar corromper os servidores públicos e porque, em casos mais raros, servidores aproveitarão a oportunidade para chantagear as empresas. Mas não é por isso que se deixará de tomar decisões – de governar. No caso do Plano Nacional de Banda Larga, o governo está tomando decisões que, em princípio, me parecem boas. As denúncias de tráfico de influência surgidas recentemente não invalidam o plano.

A força do capitalismo decorre do fato de que nele as atividades econômicas são reguladas pelo mercado. Mas o capitalismo é também uma forma de organizar a produção na qual a ganância e a corrupção estão sempre presentes. Por isso, quanto mais desenvolvida e mais complexa é uma sociedade, mais ela precisa de regulação, e, portanto, mais necessárias se tornam as decisões. Governar é tomar decisões – e essas poderão ser boas ou más, honestas ou corruptas, republicanas, voltadas para o interesse público, ou individualistas, orientadas apenas pelo interesse privado. Para evitar as decisões desonestas precisamos de polícia, de Ministério Público, de Poder Judiciário, de imprensa livre. Para termos políticos republicanos e boas decisões precisamos de cidadania ativa e de um Estado crescentemente democrático e transparente. Não é pela omissão, não é deixando de tomar decisões por medo da corrupção que um país será bem governado. A corrupção está sempre à nossa volta e não será fugindo dela, mas a enfrentando, que o País poderá avançar.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é economista, cientista político, três vezes ministro (no governo Sarney e nos dois mandatos de Fernando Henrique), é desde 2005 professor emérito da FGV.

A audiência na TV Cultura

Desde o final de fevereiro, a TV Cultura de São Paulo vem sendo questionada publicamente sobre o seu desempenho no Ibope. O debate começou no Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, à qual pertence a emissora, e logo ganhou páginas de jornais, revistas, além de blogs e sites. Como integrante do conselho, presenciei todas as discussões. Nem todos os argumentos, porém, chegaram ao conhecimento da opinião pública. Por isso julgo pertinente fazer aqui alguns esclarecimentos [veja "TV Cultura: Governo de São Paulo critica baixos índices de audiência" ].

Comecemos pelos números do Ibope. Como o próprio presidente da Fundação Padre Anchieta, o jornalista Paulo Markun, declarou ao jornal Folha de S.Paulo no dia 17 de março, a audiência média (por minuto domiciliar) da Cultura, das 7 às 24 horas na grande São Paulo, é de 1,4%. Trata-se de um índice modesto, sobretudo quando comparado aos da Globo, que são dez vezes mais altos, segundo cálculos da própria Cultura com base em dados do Ibope.

Um quadro desalentador, certo? Errado. Esses números devem ser lidos com mais atenção. A Cultura tem menos telespectadores que a líder no Ibope, é fato, mas também tem muito menos dinheiro. O orçamento anual da Rede Globo (conforme foi divulgado pela Folha em 8/12/2008) é 36 vezes maior que o da Cultura e, quando levamos em conta essas proporções, as coisas começam a mudar de fisionomia.

Tome-se como exemplo a programação infantil da emissora, que registra entre três e quatro pontos. Melhor ainda: se considerarmos apenas o universo das crianças de 4 a 11 anos de idade, veremos que até 10% delas ficam ligadas na Cultura. Enfim, para quem gosta de contabilizar quantidade de telespectadores em função do dinheiro investido, os resultados ainda deixam a desejar, mas estão longe de ser pífios.

Cultura e informação

Falemos um pouco mais de cifrões. No ano passado, o orçamento da Cultura atingiu a casa dos R$ 204,4 milhões. Desses, apenas R$ 85,9 milhões vieram dos cofres do governo estadual. O restante teve origem em receitas próprias, como os serviços prestados a terceiros (à TV Justiça, por exemplo), os financiamentos viabilizados pela Lei Rouanet e a publicidade. Não é verdade, portanto, que o Estado de São Paulo destine anualmente R$ 200 milhões à Cultura, como chegou a ser noticiado. Ele investe bem menos do que isso.

A verdade é que investe pouco. O montante de R$ 85,9 milhões chega a ser tímido perto dos R$ 350 milhões reservados pelo governo federal, apenas em 2008, para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que põe no ar a TV Brasil. É ainda mais rasteiro diante das fortunas que o poder público, em todos os níveis da administração, paga aos veículos privados pela veiculação de publicidade governamental.

Para que se tenha uma ideia, apenas no ano de 2007 a Presidência da República e seus principais ministérios ocuparam espaços publicitários avaliados em R$ 449,4 milhões pelo Mídia Dados, editado pelo Grupo de Mídia São Paulo. No mesmo ano, só os espaços publicitários do governo paulista atingiram o valor de R$ 59,3 milhões. O fato é que os governos põem muito mais dinheiro nas emissoras privadas do que nas públicas e, estranhamente, não se vê ninguém reclamando da qualidade dos programas comerciais patrocinados por verbas públicas.

Isso tudo quer dizer que devamos descartar o debate sobre a audiência da TV pública? De modo algum. A audiência é desejável. Quanto maior, melhor. Mas é preciso ir com calma. Para uma TV comercial, os índices de audiência vêm em primeiro lugar porque são a medida de sua mercadoria: o que ela vende para os anunciantes são os olhos da plateia – e quem mede a quantidade de olhos são os pontos do Ibope.

Já para uma TV pública, o que mais importa é levar cultura e informação de qualidade aos diversos segmentos da população. A quantidade de telespectadores é um dos critérios a levar em conta, por certo, mas não é o único nem o prioritário (se assim fosse, bastariam alguns auditórios espalhafatosos no domingo e noticiários sensacionalistas nos finais da tarde para que todo mundo se desse por satisfeito).

Mais ousadia

A TV pública existe para ser uma alternativa ao mercado. Existe para ser diferente. Se se contentasse em reeditar as fórmulas da radiodifusão comercial, aí, sim, desperdiçaria cada centavo nela investido. Nós não precisamos de emissoras públicas que façam proselitismo governista – e também não precisamos delas para fazer eco aos ditames da indústria do entretenimento. Elas só são necessárias porque são de outra natureza. Se fossem iguais, seriam dispensáveis.

Uma TV comercial não pode se dar ao luxo de exibir programas de literatura ou de música clássica. Eles não dão lucro. Já a TV pública tem o dever de mantê-los na grade, pois os cidadãos que normalmente não têm acesso às salas de concerto ou aos saraus literários dependem dela para conhecer essas formas de arte. Do mesmo modo, quando difunde criações da cultura popular, a TV pública dá visibilidade a manifestações que sem ela minguariam na escuridão.

Claro que não se faz uma boa programação pública apenas com folclore e clássicos. Claro que não se pode dar de ombros para as preferências dos telespectadores. Tanto isso é verdade que uma das marcas das boas emissoras públicas é a sua capacidade de inovar e surpreender, dentro de uma grade diferente, diversificada e ampla.

Oferecer qualidade cultural sem se divorciar do público não é um desafio qualquer. É espinhoso. Melhorar a nossa TV pública requer muito mais do que técnicas espertas que prometem turbinar a audiência. Requer de nós a arte de promover o encontro entre as necessidades culturais de nossa gente e a inteligência, a inventividade, a capacidade de envolver o público.

Melhorar a nossa TV pública começa pela ousadia de compreendê-la.

Jornalistas e sua formação

Na quarta-feira da semana passada houve um ato público na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Está no site do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo: "Mais de duzentas pessoas, entre dirigentes sindicais, profissionais, professores e estudantes de jornalismo de todo o País, participaram hoje (17/9), em Brasília, de um ato público em defesa da formação específica em jornalismo e da regulamentação profissional da categoria." Segundo a nota, a intenção dos manifestantes foi "sensibilizar os ministros (do Supremo Tribunal Federal) que devem julgar, ainda este ano, o recurso extraordinário (RE/511961), ação que questiona a constitucionalidade da legislação que regulamenta a profissão no Brasil".

Embora a imprensa fale pouco do tema, é grande a expectativa em torno do julgamento. Trata-se de saber se a exigência do diploma de jornalista para os que trabalham na imprensa impõe ou não uma barreira ao direito de livre expressão, assegurado na Constituição. Por que só diplomados em Jornalismo podem ser empregados em jornais? Quanto a isso, o País espera a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Mas o debate não fica só aí. Há outras frentes em que os destinos da profissão de jornalista estão em jogo. Citemos duas. No âmbito do Ministério do Trabalho, um grupo de trabalho pretende redigir um projeto para a regulamentação da atividade. A segunda frente está no Ministério da Educação.

Recentemente, o ministro Fernando Haddad lançou a idéia de constituir uma comissão para discutir as diretrizes da formação dos cursos de Jornalismo, identificando e delimitando com maior clareza os conhecimentos práticos e teóricos que precisam ser dominados pelos que concluem a graduação. A partir daí, o ministro espera abrir uma nova possibilidade para a formação de jornalistas, sem prejuízo dos cursos que já existem: "A comissão fará uma análise das perspectivas de graduados em outras áreas, mediante formação complementar, poderem fazer jus ao diploma" (Folha de S.Paulo, 17/9/2008).

Desde logo, fica bem claro que essa discussão não se confunde com a outra, sobre exigência – ou não – de diploma para que alguém seja empregado na área, o que é assunto para o Ministério do Trabalho. Ela cuida especificamente das diretrizes da formação. Sua pauta é educacional, não trabalhista. Seu objetivo é estudar a possibilidade de que gente como cientistas sociais ou economistas, por exemplo, possa, por meio de um curso mais breve, algo em torno de dois anos, habilitar-se a ter um emprego regular em veículos de informação. A iniciativa, como se vê, não ameaça nem reforça a exigência do diploma.

Ainda sobre exigência do diploma, é bom que se saiba que, na prática, ela ajudou a elevar o padrão da profissão no Brasil. Pesa contra ela, no entanto, o fato de ter sido imposta pela ditadura militar (o decreto-lei é de 1969) e, agora, surge com força essa alegação de que ela agride princípios constitucionais, dúvida que só pode ser dirimida pelo Supremo. De todo modo, não é aí, nessa formalidade abraçada por interesses corporativos, que se encontra o âmago do debate. O que deve falar mais alto, nessa matéria, não é a defesa sindical de uma categoria, mas o direito à informação, de que todo cidadão é titular. Essa é a pedra de toque. O que se deve buscar não é o conforto dos que hoje estão empregados, mas o melhor sistema para assegurar qualidade à mediação do debate público.

Por isso é que se pode afirmar: o ponto dramático repousa sobre a qualidade das faculdades. Onde elas são boas, seus formandos têm lugar no mercado. Mesmo em países que não dispõem de nenhuma obrigatoriedade de diploma, como os Estados Unidos, a Alemanha, a França e outros, nota-se a preferência dos empregadores por jovens que tenham cursado uma boa escola de Jornalismo. Aí, as faculdades adquiriram autoridade não em função de uma reserva de mercado, mas pela capacitação que são capazes de aportar aos estudantes. E no Brasil? O que seria das faculdades se elas não estivessem protegidas pela reserva de mercado? Elas sobreviveriam como estão? Ou seriam forçadas dramaticamente a se aperfeiçoar? Se seriam obrigadas a se aperfeiçoar, por que não cuidar disso desde já?

Que ninguém se iluda: boas faculdades são fundamentais. Elas não são dispensáveis, como alguns ainda tentam fazer crer. A presunção de que o jornalismo é um "ofício que se aprende na prática" é tão ingênua quanto despreparada. Contra isso se levantou, desde o final do século 19, Joseph Pulitzer. De magnata da mídia americana, ele se projetou como o principal inspirador do Curso de Jornalismo da Universidade de Colúmbia, que só começaria a funcionar em 1912, um ano após a sua morte. Contra o comodismo de seus contemporâneos, que viam na criação da escola uma perda de tempo, Pulitzer afirmava que era necessário transformar aquilo que não passava de um ofício numa profissão nobre. E acertou. Seu texto em defesa da escola de Colúmbia, lançado em 1904, resiste como um pequeno clássico (The School of Journalism, Seattle: Inkling Books, 2006). Deveria ser lido pelos adeptos da tese de que "jornalismo se aprende na prática".

Qualquer um de nós, quando vai ao médico, ao advogado ou ao dentista, procura profissionais com bons currículos acadêmicos e científicos. Mas, quando se trata de servir informação ao público, imaginamos que um prático, sem formação, pode dar conta do recado. Não pode – ou não pode mais, a não ser excepcionalmente. A porta para o futuro, também nesse caso, está na qualificação dos profissionais. Com diploma ou sem diploma, é da qualificação que dependerá a consistência e a fecundidade do nosso debate público.

* Eugênio Bucci, jornalista, é professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados, da USP.

Sem independência, não há TV pública

Há um discreto avanço administrativo na Medida Provisória (MP) 398 de 2007, que autorizou o Poder Executivo a criar a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, estatal responsável pela TV Brasil. A fusão de duas antigas instituições – a TVE do Rio de Janeiro e a Radiobrás – em uma terceira, totalmente nova, traz racionalidade à gestão das emissoras federais, além de economia de recursos e ganhos de escala. Nesse sentido, o governo acertou: superou divergências e formulou uma proposta mínima para a modernização do setor.

Ocorre que, como alertei há duas semanas neste mesmo espaço, a MP é tímida diante do que precisa ser feito. Se representa uma evolução administrativa, está longe, muito longe, de avançar em matéria de independência – e, sem independência, sobretudo independência ante o governo, não há TV pública de verdade. Agora, quando a matéria tramita no Congresso Nacional, os parlamentares têm a oportunidade de corrigir a falha, ao menos em parte.

Segundo estabelece a MP 398, a EBC é uma empresa pública semelhante à velha Radiobrás: ainda é vulnerável a interferências governamentais. Quanto a isso, as alterações do relator, deputado Walter Pinheiro (PT-BA), não trouxeram maiores novidades. Mas ainda há tempo. Por pelo menos dois caminhos, o Congresso poderia tentar elevar o grau de autonomia política e editorial da EBC.

O primeiro caminho passa por aumentar o poder do Conselho Curador. Embora inteiramente nomeado pelo presidente da República, esse conselho tem o compromisso declarado de reunir representantes da sociedade e de agir com altivez. Pois bem, se isso é mesmo para valer, cabe perguntar: por que ele nem sequer participa, nem mesmo de modo indireto, da eleição dos dirigentes da empresa? Por que apenas o presidente da República e o Conselho de Administração, composto unicamente de representantes do governo, podem decidir sobre quem serão os diretores? Se quiser alterar esse quadro, o Legislativo deve encontrar formas de envolver o Conselho Curador na escolha dos diretores-executivos e, com isso, reduzir um pouco a potencial influência do Palácio do Planalto sobre as decisões da nova empresa. A forma para se viabilizar essa alteração dependerá, por certo, da legislação que disciplina o funcionamento das empresas públicas, mas alguma saída há de existir. Está nas mãos do Congresso.

A segunda modificação tem ainda mais urgência. A prevalecer o que dispõe a MP – em dispositivos mantidos pelo relator -, a EBC ficará vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cujo ministro conservará a prerrogativa de indicar o presidente do Conselho de Administração, órgão superior de direção da estatal. Sejamos claros: esse vínculo institucional da EBC com a Presidência da República vai na contramão dos melhores princípios da comunicação pública. Nos Estados democráticos, emissoras públicas têm muito mais afinidade com a área da cultura do que com áreas encarregadas da agenda da Presidência da República. Isso significa que devem ser tratadas como entidades culturais, não como postos avançados da comunicação de governo.

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República não é um organismo com finalidades culturais. Basta ver do que ela se ocupa. Em primeiro lugar, gerencia a publicidade do governo, ou seja, compra espaço publicitário nos meios de comunicação privados. Além disso, cuida da assessoria de imprensa da Presidência da República, trabalhando para promover uma imagem favorável do presidente. Faz comunicação de governo, não comunicação pública. Nada tem que ver com cultura em sentido amplo – ou com a atividade jornalística em sentido estrito. Aliás, pelos cânones da ética jornalística, um organismo dedicado à assessoria de imprensa não deveria supervisionar uma empresa pública encarregada de informar com objetividade. Simples assim. Se se quer de fato uma EBC jornalística, não se pode querer uma EBC vinculada à Presidência da República.

As incompatibilidades são claras. Fiquemos apenas num exemplo. No início de fevereiro, a Secretaria de Comunicação Social organizou e conduziu uma coletiva em que três ministros de Estado – cujos gabinetes funcionam dentro do Palácio do Planalto – sustentaram que a divulgação dos gastos com cartões corporativos da Presidência poria em risco a segurança nacional. Trata-se de uma linha de raciocínio que se opõe ao direito à informação e, portanto, ao espírito do jornalismo. Como poderia então o jornalismo, mesmo em uma empresa pública, submeter-se a essa lógica?

A verdade é que os propósitos e os métodos da assessoria de imprensa – em órgãos públicos ou privados – não são compatíveis com os propósitos e métodos do jornalismo. Pretender o contrário é confundir a opinião pública, tentando levá-la a crer que não há oposição natural entre o papel de difundir versões oficiais e o papel de informar o cidadão com objetividade. É, de resto, muito improvável que um jornalismo independente possa prosperar à vontade dentro de uma estrutura funcionalmente tão próxima à Presidência da República.

Alegam que, na condição de empresa pública, a EBC desfrutará de autonomia administrativa. É fato. Entretanto, vinculada ao Planalto, ela estará mais exposta ao risco da confusão de papéis. Para baixar riscos dessa natureza, emissoras públicas – dedicadas, por definição, à diversidade cultural e à informação apartidária – ficam mais confortáveis e mais livres quando se relacionam com o Poder Executivo por meio da área da Cultura. Em síntese, é ao Ministério da Cultura que a EBC deveria se vincular. Emissoras públicas são mais públicas quando sabem guardar distância da comunicação de governo.

* Eugênio Bucci, integrante do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo), foi presidente da Radiobrás de 2003 a 2007

Empresa Brasil de Comunicação: uma Radiobrás sem “eira”?

A Medida Provisória (MP) nº 398, de 9/10/2007, que autorizou o governo federal a criar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil, está prestes a perder a eficácia. Prorrogada por 60 dias em dezembro, ela agora bate no prazo fatal: ou é aprovada, mesmo que com modificações ou substituição, ou morre. Se morrer, levará junto a EBC, que já começou a operar com funcionários próprios. Mas, atenção, não arrastará consigo a TV Brasil.

A explicação é simples. Na hipótese de naufrágio da EBC, a TV Brasil poderá continuar suas transmissões abrigada pela velha Radiobrás – esta deveria ser extinta para dar lugar à nova empresa, mas se manteve em atividade. Assim, os que pretendiam derrotar a MP para forçar o fechamento da TV Brasil caíram do cavalo. Isso não significa que a matéria se tenha tornado irrelevante. Ao contrário. A sobrevivência ou não de mais um canal de TV da administração pública é o de menos (já há dezenas de emissoras desse tipo no País, tanto no âmbito estadual como no federal). O debate central tem que ver, isto sim, com a estrutura que deve ter uma instituição moderna de comunicação pública, agenda que merece a melhor atenção dos representantes do povo. É a primeira vez, em décadas, que o tema entra para valer na pauta do Congresso.

Se a questão se resumisse a lançar mais uma estação de TV, o governo federal não teria de inventar empresa alguma. A ele bastariam as entidades que já existem: a Radiobrás, cujos diretores e conselheiros são nomeados e demitidos pela Presidência da República a qualquer tempo; e a TVE do Rio de Janeiro, que, embora tenha a forma de organização social e não de empresa pública, também tem seus conselheiros e dirigentes feitos e desfeitos pelo Palácio do Planalto. Juntas, as duas somam aproximadamente 2.500 empregados e contam com emissoras de rádio e TV em Brasília, no Rio de Janeiro e no Maranhão.

Além disso, essas velhas estruturas guardam a cultura de promoção pessoal das autoridades, coisa que alguns expoentes do Executivo, de variados matizes partidários, apreciam em silêncio. Nos canais oficiais e (supostamente) públicos do Brasil inteiro, a chapa branca é a regra, ressalvadas as honrosas exceções – que existem, ou existiram, ajudando a demonstrar a natureza antidemocrática da velha comunicação governista. Portanto, mais grave do que o risco de a TV Brasil passar a bajular governantes – um risco real, mas um risco futuro – é a cultura de subserviência cristalizada do presente.

Em resumo, a MP 398 não surgiu porque o governo precisa de autorização para abrir um canal de TV, mas porque ele precisa propor mudanças no modelo sabidamente ultrapassado, se quiser conquistar legitimidade para a sua iniciativa. De poucos anos para cá, a opinião pública despertou para a gravidade da usurpação que vitima emissoras públicas e reclama por uma renovação. A MP veio prometer uma resposta a isso. Seu problema é que promete, mas não entrega.

Há mais debilidades que acertos na MP, a começar por sua natureza de medida provisória, que não deixa muito espaço para a elaboração legislativa – um projeto de lei seria mais adequado. Quanto aos acertos, registre-se o principal: fundir a Radiobrás e a TVE do Rio numa nova instituição, que centralize operações hoje dispersas, por vezes superpostas e redundantes, constitui um passo de racionalidade administrativa. No mais, a EBC tem o semblante – e a nomenclatura – de uma Radiobrás recauchutada. A velha estatal nasceu nos anos 70 com o nome de Empresa Brasileira de Comunicação. A estatal nova se chama Empresa Brasil de Comunicação e, em muitos aspectos, é isso mesmo: uma Radiobrás sem o sufixo ''eira''. Vejamos mais de perto a sua constituição.

A exposição de motivos assinada pelos ministros Franklin Martins, Dilma Rousseff e Paulo Bernardo fala em ''preocupação presente de garantir a autonomia da nova empresa, por meio da criação de mecanismos institucionais protetores dos dois flancos que poderiam se constituir em ameaças: a subordinação às diretrizes do governo e o condicionamento às regras estritas de mercado''. Muito bem. Ocorre que tanto a MP como o Estatuto da EBC, apresentado pelo Decreto Presidencial nº 6.246, de 24/10/2007, não dão conseqüência àquela ''preocupação''. Em relação à falta de independência do modelo antigo, o avanço é quase nulo. Basta ver como se compõe o ''órgão de orientação e de direção superior da EBC'', o Conselho de Administração (ver artigos 14 e 15 do Estatuto e artigos 12 e 13 da MP). São cinco membros. O ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República indica dois deles. O terceiro é o diretor-presidente da empresa. Os outros dois vêm do Ministério do Planejamento e do Ministério das Comunicações. A esse conselho cabe eleger e destituir os diretores da EBC, à exceção de dois, o diretor-presidente e o diretor-geral, nomeados diretamente pelo presidente da República. Ora, pode haver estrutura mais passível de ''subordinação às diretrizes do governo''? Pode haver algo de mais semelhante à antiga Radiobrás?

A novidade se resume à presença de outro conselho, o Curador, que tem um representante eleito pelos funcionários e ''representantes da sociedade civil'' – designados, note o leitor, também pelo presidente da República. O Conselho Curador é vistoso, mas não manda. Embora esteja autorizado a, por maioria absoluta, imputar voto de desconfiança aos diretores, tem funções mais consultivas que deliberativas.

Agora, o Congresso pode transformar essas tímidas adaptações em uma renovação de verdade. Recusar sumariamente a MP não seria um gesto sábio. Os parlamentares têm nas mãos a chance de criar – ou abrir caminho para que seja criada – uma instituição de comunicação pública que seja de fato independente do governo.

(*) Eugênio Bucci é jornalista, membro eletivo do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo), professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007 – publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 14/02/08