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Anotações sobre o julgamento do STF

O julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130 pelo Supremo Tribunal Federal – independente da decisão final – ofereceu uma ocasião única aos estudantes das Comunicações. Como a grande mídia tem historicamente sonegado aos leitores, ouvintes e telespectadores o debate sobre o seu papel, nada melhor do que um julgamento, transmitido ao vivo pela TV Justiça, para um revelador panorama do que pensam os proponentes da ação, os ministros da Corte Suprema e as variadas interpretações legais de questões como liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

Apesar das dificuldades quase impenetráveis das tecnicidades legais, o interessado leigo notará de saída no texto da ADPF (ou da "Inicial", como preferem os advogados), subscrito pelo PDT em fevereiro de 2008, uma ausência de rigor conceitual: não se faz diferença entre liberdade de comunicação, de expressão, de pensamento, de opinião, de informação e de imprensa. Constata-se também que são usados como referência para sustentação do argumento editoriais de jornais de três dos principais grupos empresariais de mídia do país, isto é, O Globo, a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Equaciona-se, sem mais, a liberdade de imprensa de grandes grupos de mídia com a liberdade individual de expressão.

Já os votos dos onze ministros proferidos ao longo do julgamento, iniciado no dia 1º e encerrado em 30 de abril (pendente a publicação do acórdão), são extremamente reveladores. Faço aqui apenas umas poucas anotações pontuais.

De que país estamos falando?

O parecer do relator, apoiado integralmente por outros seis ministros, remete a uma "imprensa" idealizada que não é possível identificar-se com aquela em funcionamento no nosso país. Diz ele, por exemplo, no parágrafo 29:

"O que se tem como expressão da realidade, portanto, é, de uma banda, um corpo social progressivamente esclarecido por uma imprensa livre e, ela mesma, plural (visto que são proibidas a oligopolização e a monopolização do setor). Corpo social também progressivamente robustecido nos seus padrões de exigência enquanto destinatário e consequentemente parte das relações de imprensa. De outra banda, uma imprensa que faz de sua liberdade de atuação um necessário compromisso com a responsabilidade quanto à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público. Do que decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade, até porque, sob o prisma do conjunto da sociedade, quanto mais se afirma a igualdade como característica central de um povo, mais a liberdade ganha o tônus de responsabilidade. É que os iguais dispõem de reais condições de reagir altivamente às injustiças, desafios e provocações do cotidiano, de modo a refrear os excessos ou abusos, partam de onde partirem, venham de quem vierem" (…) [grifos no texto original].
A primeira pergunta que ocorre é se o fato de o parágrafo 5º do Artigo 220 da Constituição – aliás, não regulamentado – rezar que "os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio" significa, automaticamente, a não existência de monopólio e/ou oligopólio na mídia brasileira?

A segunda pergunta, por óbvio, é se a mídia brasileira "faz de sua liberdade de atuação um necessário compromisso com a responsabilidade quanto à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público"?

Estamos falando do mesmo país e da mesma mídia? Bastaria lembrar, por exemplo, a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, em Santa Catarina, contra o Grupo RBS (cf. Ação nº 2008.72.00.014043-5 , de janeiro de 2009). Segundo nota do próprio MPF "a situação de oligopólio é clara, em que um único grupo econômico possui quase a total hegemonia das comunicações no estado. Por isso, a ação discute questões como a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação social para garantir o direito de informação e expressão; e a manutenção da livre concorrência e da liberdade econômica, ameaçadas por práticas oligopolistas" [veja aqui].

Uma rejeição e três ressalvas

Um dos ministros julgou inteiramente improcedente a ADPF. Afinal, perguntou ele, desde o fim do regime militar, em 1985, não tem sido livre a imprensa? Qual o "preceito fundamental" ferido que justificaria a "Inicial"? (Editorial sobre a decisão do STF, publicado na edição de sábado (2/5) do Correio Braziliense, traz o título "Imprensa alforriada". Ora, alforria, significa, "libertação concedida ao escravo; libertação de qualquer grupo ou domínio". Era essa a situação da imprensa brasileira nos últimos 24 anos?).

Os votos dos três ministros que não concordaram integralmente com o relator fizeram diferentes ressalvas, e pelo menos um deles mencionou en passant a questão da concentração da propriedade da mídia nas mãos de uns poucos grupos empresariais e a omissão que não "dá voz" ou trata com preconceito a determinados grupos sociais. Na verdade, a principal preocupação estava no "vazio legal" que se seguiria à revogação total da Lei 5.520/67 em relação ao "direito de resposta", garantido pelo inciso V do artigo 5º da Constituição.

Se, por um lado, preocupava a incerteza jurídica que a ausência de regulação representa para as empresas de mídia sujeitas a decisões de primeira instância de "um juiz qualquer", por outro, o "direito de resposta" trouxe finalmente ao debate o seu esquecido sujeito principal, isto é, o cidadão, justificativa única para a liberdade de expressão e para a liberdade de imprensa.

A quase totalidade das considerações dos ministros sempre foi feita no pressuposto de que o Estado representa uma ameaça permanente para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Ignora-se que, nas sociedades contemporâneas, essas ameaças têm partido também – ou, sobretudo – da autocensura e dos próprios conglomerados de mídia (ver, neste Observatório, "A privatização da censura "). Somente um ministro lembrou-se de mencionar a necessidade de proteger os cidadãos do poder da própria mídia, totalmente assimétrico em relação a ele. Outra ressalva lembrou que recuperar a reputação erroneamente destruída pela mídia é como tentar juntar as plumas de um travesseiro atirado pela janela do último andar de um arranha-céu.

Desânimo reiterado

Há quase quatro anos, escrevendo neste OI sobre a decisão do STF de arquivar a Petição 3486-4 (ver "Liberdade de imprensa e liberdade de empresa"), manifestei meu desânimo em função dos argumentos desenvolvidos à época revelarem um incrível descolamento entre as normas legais e o pensamento jurídico vis-à-vis a reflexão crítica contemporânea, não só na academia e nos observatórios de mídia, mas também entre profissionais experientes que pensam com seriedade o jornalismo, no Brasil e no exterior.

O julgamento da ADPF 130, não conduz a outra conclusão. Até mesmo a frase incompleta de Thomas Jefferson, refúgio permanente da grande mídia para desqualificar as críticas justificadas que se fazem contra ela, foi repetida como referência da verdade (ver "Anotações sobre Jefferson e a imprensa ").

Num país onde o Congresso Nacional, que deveria fazer as leis que regulassem democraticamente as atividades da mídia, permite que seus integrantes sejam eles próprios concessionários de emissoras de rádio e televisão, estamos, infelizmente, longe do reconhecimento legal de que, como afirma o jurista Fabio Konder Comparato:

"A liberdade de expressão é, tradicionalmente, considerada a pedra angular dos regimes democráticos. (…) Hoje, no entanto, todos entendem que a expressão pública do pensamento passa, necessariamente, pela mediação das empresas de comunicação de massa, cujo funcionamento exige graus crescentes de capitalização. Aquele que controla tais entidades dispõe, plenamente, da liberdade de expressão. Os demais membros da coletividade, não. ("É possível democratizar a TV?" in Adauto Novaes, org., Rede Imaginária – TV e Democracia; Companhia das Letras, 1991).

 

TV Brasil: de ‘público’ e públicos

A última grande crise da TV Brasil, levando à saída de sua direção do que ainda restava do time do Audiovisual e do MinC, deveria provocar profundas meditações sobre todo o projeto. Reduzir a discussão a uma possível incapacidade de gestão da jornalista Tereza Cruvinel é privilegiar a forma ao conteúdo (e injusto com a pessoa). Apontar, como fez o cineasta Orlando Senna, numa mensagem que “caiu” na internet, a própria forma de organização empresarial da TV Brasil como origem dos seus males, chega mais perto das raízes, mas ainda foge da sua essência. Afinal, qualquer entidade ligada ao Estado brasileiro terá que se organizar conforme suas leis e regras. Pode-se até questionar se essas leis e regras são boas. Se não são (e o acima assinado, por experiência própria, acha que, de fato, elas são muito ruins, bur(r)ocráticas na forma e neoliberais no fundo), então que se as modifique em bloco, e não para atender a um particular projeto político, ou a uma isolada entidade.

O que devemos discutir é o próprio projeto político. Como nasce, de súbito, essa TV Brasil? Por que nasce no MinC? A mensagem entre Orlando Senna e seus pares nos dirime as dúvidas. Tratava-se de criar um canal de televisão para uma certa produção audiovisual brasileira, ou para uma certa política cultural que desejava um canal de televisão para se expressar. Logo, também, para os grupos de poder que, na sociedade ou no Estado, vocalizam aquela produção e aquela política. Fique absolutamente claro que não se está a negar a necessidade de contarmos com um grande projeto audiovisual brasileiro. Aqui, tão somente, trata-se de apontar a tentativa de apropriação, por alguns, de um discurso que, originariamente, tinha um outro propósito, bem distinto. Daí a confusão. Daí a frustração.

Sou grato ao professor Venicio Lima que há dias, numa troca particular de e-mails, lembrou-me as origens da proposta, abrigada na nossa Constituição, de criação de um sistema público de radiodifusão, complementar ao estatal e ao privado. Conforme ele mesmo escreveu em artigo publicado, no início do ano, no Observatório da Imprensa, essa proposta nasceu, visando a Constituinte, no já extinto Centro de Estudos de Comunicação (CEC), definindo o sistema público como “aquele que sendo financiado tanto por contribuições diretas do público, como pelo estado e/ou pela iniciativa privada tem, todavia, sua programação sob o controle de segmentos organizados da sociedade civil".

Proposta parecida, encontramos agora no projeto de Lei Audiovisual argentino que prevê a criação de uma reserva do espectro para “pessoas jurídicas sem fins lucrativos”. Claro que essas “pessoas” são financiadas pelo Estado ou por agentes privados, mas o que as distingue das entidades empresariais é não terem finalidades lucrativas; e o que as distingue do Estado é nascerem de iniciativas da sociedade civil: sindicatos, ONGs, igrejas, associa-ções das mais diversas etc.

O projeto de Cristina Kirchner, sob este aspecto, é preciso: não confunde iniciativas privadas não-comerciais, com “entidade pública” pois entidade pública é necessariamente o Estado (embora, reconheçamos, no Brasil de hoje, está sendo muito difícil pensarmos assim…). O espírito da proposta original do CEC, feita há 25 anos, seria similar ao do atual projeto argentino. Se esta assertiva está correta, a iniciativa do Governo Lula, conduzida pelo MinC e, levando atrás de si centenas de almas bem intencionadas (para alegria do Diabo…), só poderia resultar no que resultou: numa disputa de poder dentro do aparelho estatal, ou melhor, neste caso, do Executivo, com a vitória final do grupo que pode não entender de gestão, mas entende muito bem de comunicação social (e mais ainda de “lulismo”…). Afinal, um canal aberto de televisão é, antes de mais nada, um meio de comunicação social de massa e generalista, não uma sala de cinema na sala de visita das pessoas.

Se olharmos para os tão decantados modelos de TV pública à volta do mundo (todos eles, hoje em dia, cada vez menos “públicos” e mais comerciais), poderemos observar algumas características comuns. Em primeiro lugar, são financiados por impostos diretamente cobrados aos cidadãos (no Japão, até hoje, a NHK mantém um exército de cobrança que vai de casa em casa, recolhendo as devidas taxas). Isto cria um compromisso direto com a cidadania ou, ao menos, com o contribuinte. Em segundo lugar, não menos importante, eles vingaram e sobrevivem em Estados parlamentaristas. A divisão explícita, transparente, de poder dentro do Parlamento provavelmente dá a outras instituições do Estado maior grau de autonomia relativamente ao governo (Maioria) de plantão.

Num Estado presidencialista, o presidente concentra muito mais poder que os outros poderes, e boa parte das instituições do Estado, sobretudo a radiodifusão, não poderão deixar de ser, de um modo ou de outro, instrumentos do Executivo. Em terceiro lugar, o grau de desenvolvimento político e cultural dessas sociedades separa razoavelmente bem o público do privado. No Brasil dos Gilmar Mendes, dos Sarney, dos Renan Calheiros, dos “diretores” do Senado, da farra das passagens aéreas, dos palácios do Edmar, do deputado-namorado da Galisteu, dos… das… não faltam exemplos, neste Brasil, a mostrar que ainda teremos que caminhar muito para um dia ficar claro a quem quer que seja servidor público, a diferença entre vida privada e vida pública. E dinheiro privado, e dinheiro público.

Para esta caminhada muito ajudará um forte setor privado não-comercial: uma mídia produzida e distribuída por grupos e movimentos sociais, conforme suas organizações cidadãs, voltada para a defesa dos múltiplos interesses da cidadania, vocalizando-os na esfera pública. Aqui, podemos começar a nos entender conceitual e politicamente. Precisamos construir uma esfera pública no Brasil, aquele espaço onde cidadãos privados expõem suas razões em público, razões que só podem ser, se expostas em público e para o público, identificadas com o interesse público, com o interesse da comunidade, com o interesse da sociedade, não com meras motivações instrumentais do indivíduo.

Para isto, há que se reservar um espaço, no espectro, para sistemas que sirvam a esse campo de manifestação, lembrando, porém, que, hoje, muito à frente do mundo de 1988, esse espaço deve servir não apenas para a radiodifusão mas também (e, talvez, principalmente) para as redes interativas de banda-larga (tecnologia “Wi-Fi”, por exemplo). E não se trata só do espectro, mas de toda a forma de expressão midiática, inclusive impressa, que ainda sirva para as manifestações da cidadania e da sociedade organizada.

Para isso, tanto quanto assegurar espaço eletromagnético ou, conforme o caso, lambda, para a esfera pública, há que se discutir também o financiamento. Se o Estado (supostamente público) usa recursos (sabidamente) públicos para sustentar a mídia através de suas campanhas publicitárias, não pode, porém, alocar esses recursos conforme critérios meramente comerciais, considerando apenas, ao gosto das agências de publicidade, os números de circulação ou audiência. Recursos públicos devem ser usados também para financiar a mídia não-comercial, a mídia que fortalece a esfera pública. Aliás, um Executivo comprometido com o fortalecimento da democracia, deveria assumir essa idéia como uma de suas mais importantes propostas, talvez até mais do que a da TV “pública”.

Esta é uma tese que deverá ser discutida na Conferência Nacional de Comunicação. Trata-se de um dos principais itens do programa do Fórum Mídia Livre (FML) que reúne exatamente a mídia da esfera pública, a mídia privada não-comercial comprometida com a cidadania e a democracia participativa. Será pelo caminho do fortalecimento da esfera pública cidadã que, talvez, consigamos democratizar e publicizar realmente o Estado brasileiro. E, um dia, este Estado terá uma TV pública, não porque mudou-se um nome e usurpou-se um discurso, mas porque o Estado será, ele mesmo, de fato público.

Marcos Dantas é professor do curso de comunicação da PUC do Rio de Janeiro.

Lei de Imprensa: muito além da letra da lei

O Supremo Tribunal Federal deve votar na quinta-feira (30) a proposta de extinção da Lei de Imprensa, parte do chamado "entulho autoritário" herdado da ditadura militar. A iniciativa é do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) e já teve dois votos favoráveis: dos ministros Carlos Ayres Britto (relator) e Eros Grau.Caso não se repita a recente refrega entre o presidente da corte Gilmar Mendes e o ministro Joaquim Barbosa, e os ânimos dos meritíssimos estejam efetivamente serenados, é possível que a votação se encerre nesta semana.

O deputado Miro Teixeira está eufórico com a nova oportunidade de vestir a toga na mais alta instância judiciária. Mantém-se completamente afastado do turbilhão que envolve a totalidade dos seus pares na Câmara Baixa (baixíssima, aliás) envolvidos nas mordomias e no tráfico das passagens aéreas.

A euforia do deputado é justificada: a Lei de Imprensa é um estatuto caduco. Porém sua extinção pura e simples não resolverá os problemas relacionados com a liberdade de expressão e acesso à informação. Nosso jornalismo – digital, eletrônico ou impresso – não se tornará mais qualificado, mais livre e mais responsável no momento em que for extinta, integral ou parcialmente, a famigerada legislação promulgada em 1967, há 42 anos.

Rapidez e firmeza

Miro Teixeira está vivamente empenhado em acabar com este símbolo do autoritarismo. Acredita que uma imprensa é livre a partir do momento em que supera os constrangimentos impostos pelos poderes políticos, militares e econômicos. Ainda não sabemos o que pensa o ex-jornalista, ex-ministro das Comunicações e incansável parlamentar a respeito do acesso irrestrito à informação, concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas empresas e, sobretudo, qual o seu projeto para a criação de entidades capazes de constituir um contrapoder democrático ao poder incontrolado dos grandes conglomerados de comunicação.

O direito de resposta é uma questão que ocupa nossos legisladores desde os tempos da primeira Carta Magna. O "crime de imprensa" é uma noção antiquada que, para ser efetivamente removida, necessita de um ambiente informativo pluralista, diversificado, sem o qual a sociedade jamais saberá com precisão qual é a ofensa, quem o ofendido e o ofensor. Mas existem novas circunstâncias, criadas a partir da redemocratização, que precisam ser encaradas com rapidez e firmeza de modo a evitar que a eventual extinção da abominável Lei de Imprensa não se transforme em ritual remotamente semelhante à conquista da liberdade.

Processo de mudança

Se a Lei de Imprensa é o símbolo da ditadura, a sua eliminação não pode ser simbólica nem subjetiva. Se o deputado Miro Teixeira comover e convencer os supremos magistrados a sepultar os mecanismos censórios entranhados na Lei 5.250, está automaticamente convocado para obrigar o Congresso – onde milita – a restabelecer o Conselho de Comunicação Social, previsto pela Constituição Cidadã de 1988 e seqüestrado há dois anos pelos interesses escusos dos coronéis eletrônicos.

Denunciados por este Observatório da Imprensa numa representação à Procuradoria Geral da República, continuam na ilegalidade na dupla condição de parlamentares-concessionários. Não será necessário vestir a toga nem desgastar as cordas vocais para desarquivar uma denúncia que poderá acabar com a aberração original da nossa mídia eletrônica.

O fim da Lei de Imprensa não é um fim. É um início. Deve gerar providências complementares imediatas. Um processo de mudança – se é que desejamos efetivamente uma mudança no campo da informação – exige novos instrumentos, novo sistema de forças e freios. Exige, principalmente, uma aliança de vontades, um mínimo de consenso entre os principais atores do elenco.

O fim da Lei de Imprensa não pode parecer uma quixotada.

Conferência Nacional de Comunicação: a hora é de unir forças

Talvez você já tenha lido isso em algum lugar. Depois de anos de espera, finalmente foi publicado o decreto que oficialmente convoca a I Conferência Nacinoal de Comunicação (Confecom). No jargão do presidente, “pela primeira vez na história desse país” a sociedade terá o direito de participar – e intervir – na forma como é tratado esse direito no Brasil. Mérito para as entidades, redes, fóruns e articulações que formam o conjunto do movimento pelo direito à comunicação.  Não é de hoje que essa ‘turma faz barulho’ para que o governo convocasse esse processo.

A mobilização, que já acontecia há vários anos, ganhou corpo quando  foi criado o movimento Pró-Conferência Nacional de Comunicação, ao final do Encontro Nacional de Comunicação, em junho de 2007. O grupo, com mais de 30 representações oriundas de diversos segmentos, já destacava-se pela grande diversidade entre os sujeitos participantes. Quase dois anos depois, podemos dizer que o ‘jogo’ da conferência já começou. Se naquele momento nossa meta era garantir a realização da Confecom, a dificuldade agora é bem maior. A disputa, agora, é para que este processo aconteça de forma realmente representativa, transparente e democrática. Não é fácil.

Poucos dias após a publicação do decreto que convoca a conferência, o Ministério das Comunicações, nomeado coordenador do processo, divulgou uma portaria em que indica as entidades e órgãos governamentais que deverão formar a comissão organizadora da Confecom. Além dos integrantes do poder público, serão oito representantes dos empresários e oito dos movimentos pela democratização da comunicação.

Levando-se em conta as alianças históricas de setores do governo com os donos da mídia, é preciso muita atenção para se compreender a correlação de forças que se desenhará quando todos os integrantes dessa comissão forem devidamente nomeados. Ainda mais porque, ao publicar a portaria que delimita as vagas, no Ministério das Comunicações literamente ignorou as discussões que vinham sendo realizadas pelo Comitê Pró-Conferência.

Intervir na portaria, discutir o regulamento, sugerir conteúdos e metodologia… Tudo isso merece tanta importância quanto os dias da conferência propriamente dita. É nesse processo que se define as “regras do jogo”, que se não forem bem estabelecidas podem transformar essa processo num espaço de legitimação do ‘faroeste midiático’ que conhecemos.

A construção da Confecom (e das etapas regionais) não pode nem deve ficar restrito apenas a organizações que têm na comunicação sua área de atuação. Essa é uma luta de toda a sociedade brasileira, de movimentos urbanos e rurais, de comunidades tradicionais, do movimento pela educação, pela saúde, pelo meio ambiente… Afinal de contas, as políticas de comunicação (ou a falta delas) acaba interferindo em todos os segmentos da sociedade.

Alguns desafios são prementes: a mobilização e a preparação das conferências municipais e estaduais, a interiorização do debate, a articulação para que temas de interesse local sejam pautados nas discussões nacionais. Afinal de contas, quem pautará a subrepresentação regional e as questões que são específicas de locais pouco (ou nada) atendidos pelos meios de comunicação em massa? Apesar da demora para a assinatura do decreto presidencial, a construção da conferência será rápida. Pouco mais de sete meses nos separam dos três primeiros dias de dezembro, quando a etapa nacional será realizada.

Protagonista do debate, cabe à sociedade civil organizada, em suas diversas matizes, mobilizar-se, articular-se e qualificar-se para o debate. Só com uma presença significativa dos sujeitos que vislumbram um novo paradigma da comunicação no Brasil poderemos fazer com que a I Confecom signifique realmente um marco democrático na história desse país.

Rosário e Ivan são integrantes do Centro de Cultura Luiz Freire, organização integrante do Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom). Ela também faz parte da coordenação da Campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania, enquanto ele é conselheiro do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

Argentina: o longo caminho de uma lei dos meios de comunicação

Desde que iniciou o conflito que as entidades ruralistas mantém, há mais de um ano, com o governo argentino, a cada dia torna-se evidente outro conflito, que atravessa a sociedade de maneira estrutural: o sistema de meios de comunicação que temos e o papel que eles desempenham na construção das alternativas sociais, culturais, econômicas e políticas de nossa vida coletiva. Poderíamos remontar o surgimento público deste conflito a outros momentos de nossa história recente, mas há um fato importante que marcou essa disputa que os grandes meios abraçaram e trabalharam em cadeia como nunca.

Por ocasião do feroz conflito e da investida midiática contra a política do governo pra o campo, com as implicações “desconstituintes” que muitos intelectuais destacados do país apontaram, o governo de Cristina Fernández de Kirchner decidiu finalmente apresentar um anteprojeto de lei para substituir a atual Lei de Radiodifusão do país. A lei vigente foi redigida nos tempos da última ditadura militar e várias vezes emendada pelos diferentes governos constitucionais que se seguiram, sem que isso tenha modificado de maneira substancial a matriz antidemocrática de nosso sistema de mídia. Muito pelo contrário, muitas das modificações feitas consolidaram a concentração da propriedade dos meios e a lógica mercantil para o sistema de comunicação.

A apresentação de uma nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual comporta outros dois marcos: a redação de seu conteúdo foi feito na base de consultas com os atores sociais implicados e, em boa medida, recolheu as propostas da “Coalizão por uma Radiodifusão Democrática”, integrada por organizações sociais de base, organismos de direitos humanos e meios comunitários. Por outro lado, abriu-se um processo para divulgar a nova lei para a opinião pública por meio de debates convocados tanto pelo governo como por outras instituições. No entanto, os grandes ausentes deste esforço para difundir esse tema prioritário para a democratização da sociedade são, justamente, os grandes meios de comunicação.

No debate sobre meios e cidadania, organizado pelo Departamento de Comunicação do Centro Cultural da Cooperação, realizado esta semana em Buenos Aires, a pesquisadora e professora universitária da Universidade de Buenos Aires (UBA), Lila Luchessi, observou que “a nova lei é muito positiva e é muito importante porque é a primeira vez que um governo abre um anteprojeto de lei para a discussão pública com a sociedade civil”. O jornalista do Página 12 e também professor da UBA, Washington Uranga, acrescentou que “os meios não falam dos meios,na medida em que não discutem o sistema de meios. Isso implicaria realizar processos de autocrítica que não estão habilitados neste âmbito”.

Ele continuou: “Revisemos as campanhas políticas desde a volta da democracia e busquemos juntos quais foram os debates sobre o sistema de comunicação do país: não há nenhum. Quando se discutiu isso? Nunca. Esse tema não está na agenda midiática, mas tampouco está na consciência política da sociedade. Como sociedade que se pensa democrática, deveríamos ter nos ocupado deste tema, para possibilitar o surgimento de outros meios de comunicação. É preciso garantir socialmente a existência de outros meios e isso não é algo que interesse às grandes empresas midiáticas, mas sim à cidadania e aos dirigentes políticos. Nem tudo pode ficar entregue livremente à lógica do mercado”.

A cobertura que os meios de comunicação realizaram sobre o conflito do governo com o “campo”, em torno da questão das retenções sobre as exportações agrárias, foi o detonador de várias reflexões e questionamentos em torno dos quais girou o debate, especialmente as questões relativas à manipulação da informação, à construção das agendas da mídia, e ao choque de interesses e as noções de “responsabilidade” e “liberdade de imprensa”.

Em relação ao papel dos meios e sua responsabilidade social, Uranga afirmou:

“Os meios são protagonistas e corresponsáveis dos processos políticos e sociais que vivemos. Influem no político,no econômico e no social. Vivemos em uma sociedade muito midiatizada, ou seja, em uma sociedade que transporta os debates políticos e sociais aos meios. Portanto, o sistema de meios e nós que trabalhamos nos meios temos um peso, uma relevância e uma carga de responsabilidade. Responsabilidade, inclusive, em termos de como pensar a governabilidade: quando alguém define uma manchete, quando escreve, tem que pensar sobre esse tema. Isso nos impõe certos limites à liberdade, nos dá um marco. E assumo isso quando escrevo”.

Especialista na análise da cobertura de informações políticas, Luchessi abordou o tema da transparência, da construção de agendas e da representação dos acontecimentos nos meios de comunicação de massa. “Em termos de transparência, seria importante que os meios apresentassem claramente sua posição. Se as empresas midiáticas expusessem quem são, para quem atuam, etc., seria outra coisa”, afirmou.

“Nenhum meio reflete sobre os acontecimentos; constroem a agenda em função de seus interesses e do que as empresas de pesquisa dizem sobre o que preocupa as pessoas. Como aparecem relatadas as coisas nos meios de comunicação? Na medida em que se trata de uma narrativa, é uma construção. E essa construção se realiza de acordo com determinados interesses que, em geral, não são transparentes”, agregou. Em conexão com esse tema, Uranga completou: “O espaço dos meios é um espaço público, mas de disputa simbólica pelo poder, ou seja, político. No entanto, nem todos participam desse espaço. É um cenário no qual alguns participam e outros não. Através dos meios, distintos atores sociais tentam impor um sentido comum, valores interpretativos da sociedade, que expressam uma hegemonia”.

O jornalista Eduardo Blaustein, por sua vez, fez uma análise da situação dos meios de comunicação no marco de uma contextualização mais ampla. Ele afirmou que, para além da possibilidade de uma nova lei, são muitas as condições que operam sobre o estado atual da cultura informativa: “É preciso assumir que não há respostas no curto prazo. O estado atual dos meios é uma construção de décadas, é algo que diz respeito ao estado cultural da sociedade. Não há nenhuma lei mágica. São grandes construções sociais e políticas. São evoluções culturais muito lentas. Os meios que temos também são sintomas da sociedade que somos. Ainda que muitas organizações sociais possam ter rádios a partir da nova lei, isso não vai mudar a situação dos meios da noite para o dia. A batalha não se esgota na disputa meios/contrameios. Trata-se de uma construção maior”.

Durante o debate também foram abordadas questões tais como a naturalização de representações racistas da sociedade, repetidas algumas vezes pelos “movileros”, a manipulação exercida pela editorialização e pela propagação do discurso único a partir da homogeneização produzida pela concentração midiática. Em torno dessas análises, Uranga destacou que o desafio é construir um sistema no qual haja “meios com pluralidade de vozes e de atores, que funcionem como mecanismos de representação. É preciso buscar a emergência em novos atores sociais que não são necessariamente os meios. Na medida em que existam esses novos atores, poderemos ter meios de comunicação que os possam expressar.

Não podemos pensar o processo vinculado à comunicação e à informação fora dos processos sociais e culturais; portanto, as mudanças virão de mãos dadas com mudanças políticas e culturais. Será um processo coletivo, complexo, multifacetado, uma luta do conjunto dos atores sociais e da cidadania. O futuro que quero construir depende do passo que vou dar hoje, por menor que ele seja. Esse anteprojeto de lei pode ser feito porque houve uma construção de anos de propostas e projetos alternativos. Até agora não havia condições políticas para colocá-lo sob a forma de uma lei, mas houve uma caminhada que o permitiu”.

Resta ver se o caminho iniciado pelo anteprojeto de lei e, muito antes, pelo movimento das rádios comunitárias, da imprensa livre e das organizações sociais que reclamam não só a democratização do acesso à informação, mas também que a comunicação seja entendida como um direito social que só se completará na medida em que haja uma pluralidade de vozes e participação coletiva, atinge a legitimidade social necessária para vencer aos poderosos interesses que se opõem a ele: as corporações midiáticas e o establishment (político, empresarial, social) que sempre se beneficiou de um sistema fechado às vozes dissidentes, defensor do status quo hegemônico e consolidado hoje como nunca antes.

Maria Eva Blotta é jornalista, correspondente do Democracy Now em Buenos Aires

Tradução: Katarina Peixoto