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TVE-RS: A agonia do desamparo

A TVE-RS, pertencente à Fundação Cultural Piratini, vem prestando importantes serviços à comunidade gaúcha desde sua fundação, em 1974, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. No entanto, tem potencial para fazer muito mais, radicalizando sua missão de serviço público, para tal necessitando desatrelar-se dos governos de plantão, uma característica de sua atuação. De toda forma, possui uma programação voltada para os meios culturais e notícias da região e cumpre papel social ativo no setor televisivo.

Nos últimos anos, vem aumentando seu grau de dificuldades de operação na mesma proporção em que tem sido intensificada a desatenção do governo estadual para com os objetivos da televisão pública, em especial a respeito do Conselho Deliberativo e dotação orçamentária adequada para produzir e distribuir conteúdos que atendam à diversidade social. No ideário neoliberal, um canal público de TV é descartável, na medida que (quase) tudo, inclusive a midiatização, deve ser entregue ao privado.

Não se identifica um compromisso do governo do estado do Rio Grande do Sul em relação à TVE. Os embates entre as diretorias da emissora, nomeadas pelo Executivo, e o Conselho Deliberativo têm sido freqüentes nos últimos anos, assim como as denúncias de interferências em sua linha editorial. Agora, a TV Educativa do Rio Grande do Sul vai mudar de prédio, pois estava instalada em um imóvel pertencente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) — e um acordo não foi viabilizado por aparente falta de empenho para tanto.

A necessária independência

Um possível convênio com a TV Brasil não foi definido, ao que tudo indica, por questões menores, já que aquela é controlada pelo governo federal, comandado pelo PT, e a TVE é da alçada de um governo estadual do PSDB. A emissora gaúcha preferiu seguir retransmitindo a programação da TV Cultura, de São Paulo, mediante um pagamento mensal, enquanto a TV Brasil cederia seus conteúdos gratuitamente. Mais do que isso, o problema é que as questões partidárias ou de governos seguem sobrepondo-se às públicas.

Na verdade, a prioridade de atender aos governos não é exclusividade da TVE do Rio Grande do Sul. Não necessariamente no mesmo grau, interferências político-partidárias identificam-se até em algumas estações públicas européias, ainda que na Europa encontrem-se exemplos históricos de compromisso social, como a BBC. Em qualquer dos casos, trata-se de uma espoliação da sociedade, que perde um dispositivo efetivamente público num embate que, principalmente no Brasil, contabiliza muitas derrotas.

Carece a TVE-RS de um modelo de financiamento adequado que garanta a quantidade de recursos suficiente para cumprir seu compromisso público e, em simultâneo, assegure sua autonomia em relação aos governantes de plantão. Necessitando sempre do governo estadual para administrar suas decisões financeiras, apresenta-se hoje como uma emissora que, apesar do esforço de seu quadro de funcionários de carreira, tem dificuldade de se manter com a independência necessária para midiatizar a realidade aos gaúchos.

Transparência e seriedade

Cedo ou tarde terão que ser discutidas as relações de poder entre Estado e setor privado, cuja dinâmica, considerando-se elementos como parceria publicitária e acessos prioritários a fontes, tem garantido o espaço da televisão comercial, mas não o avanço da comunicação pública, seja detida pelo Estado ou não. Isto se chama ausência de compromisso para com a coisa pública, numa área tão estruturante quanto a comunicação, cuja força econômico-político-social é mais que sabida, como reconhecem o mercado publicitário e o setor político.

A sociedade precisa acompanhar de perto este momento crucial envolvendo a TVE do Rio Grande do Sul, monitorando a anunciada mudança para um prédio emblematicamente denominado Centro Administrativo. Como se espera que as administrações estaduais se mantenham distantes dos ambientes públicos de comunicação — e o Estado cumpra sua obrigação de fornecer referentes comunicacionais aos cidadãos —, é hora de os eleitores ficarem vigilantes, cobrando transparência e seriedade nesse campo.

* Valério Cruz Brittos é professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos.
* Diego Costa é graduando em Jornalismo pela mesma instituição.

Banda larga: direito para quem pode pagar

Ao privatizar os serviços de telecomunicações no Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso definiu que o serviço de telefonia fixa deveria ser explorado em regime público. Isso significa que a telefonia móvel e o acesso à internet banda larga por tecnologia fixa ou móvel (3G) poderiam ser explorados em regime privado.

E qual a diferença entre a exploração de serviços em regime público ou privado se quem irá oferecer ambos são empresas privadas e em quase todos os casos multinacionais? Ao definir que a telefonia fixa deveria ser explorada em regime público, as empresas – sejam elas privadas, públicas ou estatais, nacionais ou multinacionais – ficam obrigadas a cumprir determinadas normas que visam algumas garantias do interesse público, ou seja, interesses da sociedade brasileira e não apenas dos acionistas das empresas.

 

É sempre bom lembrar que essas normas não significam nenhum ataque à liberdade de expressão, pois os meios de comunicação – em especial os radiodifusores e a imprensa escrita – têm o hábito de classificar qualquer medida normativa ou de fiscalização que busquem garantir os interesses públicos como medidas que atacam a liberdade de expressão – entendendo esta como liberdade de mercado. No caso da telefonia fixa, as obrigações “impostas” pelo Estado são medidas como a garantia da universalização, garantindo acesso a todas as pessoas independentemente de localização e condição sócio-econômica; a continuidade, para que não haja nenhuma paralisação injustificada e o controle de tarifas e metas de qualidade. Além de garantir que haja "bens reversíveis", isto é, que os bens essenciais à prestação de serviços sejam devolvidos à União quando extinta a concessão do serviço em todo território brasileiro.

Com isso, a sociedade brasileira através do seu Estado está dizendo aos poderosos grupos econômicos o seguinte: Vocês até podem lucrar com o meu direito de me comunicar, mas pelo menos garantam que toda a população brasileira vai conseguir falar no telefone fixo e que todos vão pagar mais ou menos a mesma coisa por isso.

Como podemos constatar, não se trata da atuação descontrolada do monstro da censura ou mesmo da influência de Vladimir Lenin – talvez o homem mais importante do século XX – sobre o governo do PSDB que promoveu mais esse ataque à liberdade dos meios de comunicação já tão perseguidos na República Socialista do Brasil.

Pois bem, talvez por ser considerada um serviço fundamental, como a saúde e a educação, a telefonia fixa tenha sido o único serviço de telecomunicações preservado em regime público ao se privatizar o sistema. Em época de convergência tecnológica – onde falar ao telefone, assistir televisão, ouvir o rádio, escrever no computador e navegar na internet irão habitar o mesmo aparelho eletrônico -, como ficará esse direito fundamental se balizado pelos interesse privados e não pelos públicos?

Se compararmos o gráfico que nos conta como anda a penetração da banda larga fixa no território brasileiro com o gráfico que nos conta como anda o potencial de consumo do povo que habita esta mesma região, vamos chegar a simples e direta conclusão de que poderão exercer o direito de se comunicar aqueles que tiverem poder aquisitivo para consumir. O serviço de banda larga, por ser oferecido em regime privado, não precisa ser universalizado e nem sequer seguir uma cobrança de taxas isonômicas. O Norte e Nordeste brasileiro além de pagar mais por velocidades menores ainda tem de agradecer aos céus se o serviço existir na região em que vive.

Ora, se estamos falando em universalizar a banda larga no Brasil, o mínimo razoável para que isso aconteça seria colocar também esse serviço em regime público. E como fazer isso?


O artigo 18 da Lei Geral de Telecomunicações brasileira – Lei 9.472 de julho de 1997- diz que: “Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto:

I – instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado;

II – aprovar o plano geral de outorgas de serviço prestado no regime público;

III – aprovar o plano geral de metas para a progressiva universalização de serviço prestado no regime público;

IV – autorizar a participação de empresa brasileira em organizações ou consórcios intergovernamentais destinados ao provimento de meios ou à prestação de serviços de telecomunicações.

Parágrafo único. O Poder Executivo, levando em conta os interesses do País no contexto de suas relações com os demais países, poderá estabelecer limites à participação estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações.

Isso significa exatamente que o atual presidente da República – ou quem venha a sucedê-lo – pode por um simples decreto colocar o serviço de banda larga em regime público, e desta forma dizer às empresas de telecomunicação o mesmo que foi dito pelo presidente Fernando Henrique para o caso da telefonia fixa.

A consulta à sociedade brasileira, por meio da primeira Conferência de Comunicação, composta por 40% de empresários de comunicação, por 40% da sociedade civil não-empresarial e por 20% do poder público aprovou um resolução que entende que o acesso à internet banda larga é um direito fundamental e deve ser garantido pelo Estado, que deve instituir uma política de tarifas que torne viável o acesso residencial a toda população, garantindo a gratuidade do serviço sempre que necessário. Por esse motivo essa mesma conferência aprovou por unanimidade que a banda larga deve passar a ser oferecida e explorada em regime público.

Lula, agora só falta o seu decreto.

 

* Pedro Ekman é arquiteto e militante do Coletivo Intervozes 

A apologia do faroeste

É muito bom, de lavar a alma mesmo, quando a gente esbarra com um artigo que gostaria de ter escrito, em que alguém coloca os pingos nos is. Comigo, ao menos, volta e meia acontece isso. Pois bem, foi essa a sensação que tive ao ler Venicio Lima discorrendo sobre a recusa sistemática e raivosa da mídia gorda brasileira – que de tudo e todos se dispõe a falar e a criticar – em discutir a atuação de um único setor de nossa sociedade: ela própria, mídia gorda. Diz o professor:

"Na verdade, a grande mídia tem se colocado acima das leis, da Constituição e das decisões do Judiciário, apesar de se apresentar como defensora suprema das liberdades. Ao mesmo tempo, se recusa a discutir ou a negociar, boicota conferências nacionais, distorce e omite informações, sataniza movimentos sociais, partidos, grupos e pessoas que não compartilham de seus interesses, projetos e posições. Dessa forma, estimula a intolerância, a radicalização política e o perigoso estreitamento do debate público."

Antes, Lima cita alguns trechos do Capítulo 5 do Título VIII da Constituição Federal . Com apenas cinco artigos, números 220 a 224, intitula-se "Da Comunicação Social". Junto com o artigo 5 e uma dúzia de outros, deveriam, a meu ver, ser matéria de ensino na escola, para ajudar a formar brasileiros sabedores de alguns de seus direitos – passo essencial para que, um dia, possam vir a exigir seu cumprimento. Por sinal, estou encerrando algumas turmas de uma disciplina na graduação em que a leitura destes cinco capítulos – que, colocados num processador de texto, cabem em duas páginas – é feita em voz alta e discutida em sala de aula com os alunos. Ao contrário do que muitos podem pensar, em geral eles gostam da experiência e produzem um debate acalorado. Há quem faça questão de vir me dizer que considerou a aula mais importante do curso.

Pois bem, nossa Constituição data de 1988. Em outubro, fará 22 anos. Desde que começou a valer, uma série de leis fundamentais para a garantia de direitos e o exercício da cidadania foram elaboradas e promulgadas a partir de indicações no texto constitucional. Por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor.

Contudo, na área de comunicação, embora a Carta Magna estabeleça a necessidade de leis, órgãos e mecanismos federais para regulamentar o setor, continuamos numa terra de ninguém. Um cínico poderia argumentar que 22 anos é pouco tempo para o Congresso trabalhar – legislar – no sentido de cumprir a lei maior do país, elaborada lá mesmo. Ocorre, porém, que o atual estado de coisas não se mantém por acaso. Ele favorece os grandes. No faroeste e na selva, como bem nos ensinam os filmes de bangue-bangue e os documentários de bicho da TV a cabo, vencem os mais fortes.

Um dos pontos que me impressionam nisso tudo é que os canais de radiodifusão – emissoras de rádio e televisão – são concessões públicas. Mas atuam como se não o fossem, pois não estão submetidas a praticamente nenhum tipo de regulação e avaliação. O vale-tudo é, por incrível que pareça, maior do que em setores como transportes (marítimo, aéreo, ferroviário, rodoviário, metroviário), energia elétrica, telefonia fixa, telefonia celular e fornecimento de gás. Pois, nesses, ainda que os serviços sejam caros e horrorosos e as empresas façam dos cidadãos gato e sapato e lhes roubem de diversas formas a cada dia, existem órgãos responsáveis pela fiscalização. Até os bancos, exemplo-mor de banditismo em terras brasileiras, estão, em tese, sujeitos à fiscalização e ao cumprimento de determinações do Banco Central. Se tais instâncias fiscalizadoras – federais, estaduais e municipais – pouco ou nada fazem, é um outro problema. Na prática, quase sempre funcionam para ignorar os direitos e queixas dos cidadãos, as leis e o interesse público; e proteger as empresas. Ou seja, atuam de forma inversa em relação às funções para as quais foram criadas. Mas, ao menos, existem.

E na área de comunicação? Faroeste, terra sem lei, vale-tudo, estado de natureza. Nos últimos anos, algumas das poucas regulamentações existentes caíram por decisões do Supremo Tribunal Federal presidido por Gilmar Mendes – como, no caso do jornalismo, o diploma específico obrigatório para o exercício da profissão e a Lei de Imprensa. Veja bem, leitor: não estou entrando no mérito destas leis – que, não custa lembrar, datam de 1969 e 1967, respectivamente. Tenho, é claro, uma opinião sobre elas, mas esta não vem ao caso, no momento. Meu argumento é que, na maioria das vezes, uma lei ruim é melhor do que lei nenhuma.

Na publicidade e produção audiovisual, iniciativas tímidas como a classificação indicativa geram uma celeuma danada e campanhas inacreditáveis na televisão, em que esperneiam entidades que representam anunciantes (empresas multinacionais de grande porte, em sua maioria), agências de publicidade e veículos de comunicação da mídia gorda.

Em contrapartida, entidades e movimentos sociais, representantes de setores significativos da população e da sociedade brasileira, têm seus pontos de vista sistematicamente ridicularizados, ignorados, atacados. Seu pecado é exigir a garantia de direitos e a aplicação da Constituição Federal. Raros são os detentores de mandato no Congresso Nacional que vêm a público, nestas ocasiões, dar a cara a tapa e se arriscar a sofrer uma crítica furiosa da mídia gorda. É bom lembrar que dezenas de congressistas são concessionários de serviço público de rádio e/ou televisão. Violam, portanto, o artigo 54 da Constituição Federal , que proíbe que detenham "cargo, função ou emprego remunerado" em "empresa concessionária de serviço público". Mas nada lhes acontece. (Para quem tiver interesse, um panorama da trágica situação está no projeto Donos da Mídia , que presta um inestimável serviço à democracia brasileira ao tornar públicas as informações sobre propriedade dos meios de comunicação.)

Dos partidos, então, infelizmente espera-se menos ainda: mesmo aqueles à esquerda têm uma resistência colossal para abraçar a luta pela democratização da comunicação e lhe dar a importância devida. Uma importância que fica nítida se levadas em conta as características históricas da sociedade brasileira e da conformação dos grupos que compõem a mídia gorda.

Infelizmente, quando o assunto é comunicação e a mídia gorda se sente contrariada e ruge, mesmo o governo federal, eleito para um mandato pela vontade soberana do povo brasileiro (não cabe discutir aqui os numerosos problemas de nossa democracia), treme de forma impressionante.

Felizmente, contudo, graças a uma série de fatores – um deles a luta ferrenha, difícil, muitas vezes solitária de militantes da democratização da comunicação em todo o país -, o tema ganhou visibilidade inédita nos últimos anos. Oxalá, tal como tem ocorrido quanto à exigência da verdade sobre os crimes cometidos pelos agentes da ditadura, a pressão social garanta que o debate sobre a comunicação veio para ficar.

* Rafael Fortes é jornalista, historiador e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Edita o blogue A Lenda.

A grande mídia unida contra a democracia

Primeiro foram as críticas desqualificadoras da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Depois, os ataques contra as medidas do Programa Nacional de Direitos Humanos. Agora, os grandes jornais apontam suas armas para o texto-base da Conferência Nacional de Cultura. Em comum, propostas que visam algum grau de democratização da comunicação e veículos que não aceitam os princípios constitucionais e são contra a punição para violações de direitos humanos praticada pelos meios de comunicação.

Os últimos dois meses foram agitados para os interessados na defesa da liberdade de expressão e do direito à comunicação. Leitores desavisados terão certeza de que a liberdade de expressão nunca esteve tão ameaçada. Segundo uma campanha do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), estão querendo soltar o monstro da censura. Para os mais tarimbados, fica ao menos a dúvida: que propostas justificam tamanho alvoroço das grandes corporações de comunicação? Por que motivo as matérias e argumentos são tão parecidos? Se a análise vai a fundo, desvela-se uma cobertura que escamoteia interesses privados e que se transforma em campanha propagandística. Com requintes de má fé.

Farsa em três atos

Em geral, quando se fala de “ações orquestradas da grande mídia”, esta é muito mais uma figura de linguagem do que uma literalidade. Na maioria das vezes, os grandes meios de comunicação são como um quarteto de cordas, que não precisa de maestro – os músicos se acertam pelos ouvidos e por discretas trocas de olhares. Mas isso não se aplica ao tratamento dado ao tema da comunicação no último mês. Quem leu os grandes jornais, por exemplo, percebeu que a Associação Nacional de Jornais assumiu o literal papel de maestrina para este tema.

No caso da Confecom, o grande bloqueio se deu antes de sua realização, quando as principais entidades representativas do setor empresarial resolveram abandonar o barco. Bandeirantes, RedeTV! e as empresas de telecomunicações continuaram no processo até o fim. Das 665 propostas aprovadas, 601 obtiveram consenso ou mais de 80% de aprovação nos grupos de trabalho e nem precisaram ser votadas. Outras 64 foram aprovadas na plenária final, dentre elas nenhuma entendida por qualquer setor como tema sensível.

Nenhuma das 665 propostas atenta contra a liberdade de expressão ou contra a Constituição Federal. Ao contrário, várias delas buscam ampliar o alcance da liberdade de expressão nos meios de comunicação (hoje restrita a seus donos) e regulamentar artigos da Carta Magna que estão há 21 anos sem ser aplicados, especialmente pela pressão contrária de parte do setor empresarial. Dois temas foram destacados pelos grandes veículos ao criticarem as resoluções: uma proposta que estabelece um Conselho Nacional de Comunicação e outra que estabelece um Conselho Federal dos Jornalistas.

No primeiro caso, trata-se de um órgão para formulação, deliberação e monitoramento de políticas públicas, baseado nos princípios da Constituição, justamente com o papel de buscar equilíbrio no setor. Conselhos similares existem em várias democracias avançadas, inclusive nos Estados Unidos, onde ele é entendido como garantidor da liberdade de expressão. No segundo caso, trata-se de um conselho profissional da categoria, como já têm os médicos e advogados, cujo projeto inclui, como uma das infrações disciplinares de um jornalista, “obstruir, direta ou indiretamente, a livre divulgação de informação ou aplicar censura”. Como se vê, o oposto do que a maioria das notícias veiculadas tentaram dizer ao leitor.

Segundo ato

A farsa seguiu com a acusação de que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos representaria uma peça autoritária. Um conjunto de medidas de defesa de direitos humanos, da memória e da verdade foi tachado como se fosse o oposto do que é. Deve ser por isso que os setores militares conservadores se rebelaram para defender os "princípios democráticos" que sempre os guiaram contra o "autoritarismo" daqueles que lutaram contra a ditadura. Alguém consegue acreditar?

Nas propostas relacionadas à comunicação, duas pseudo-ameaças à liberdade de expressão. No primeiro caso, a defesa da regulamentação de um artigo da Constituição Federal com a indicação de que ele aponte punições para violações a direitos humanos. De novo não há aí nenhuma restrição, apenas a determinação de responsabilidades posteriores a publicação, como estabelece a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), ratificado pelo Brasil. Na ausência destas definições, estaremos legitimando o racismo, a homofobia e o uso de concessões públicas para defender assassinatos de pessoas, fato infelizmente recorrente.

A outra proposta atacada foi a de “elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações”. Na prática, essa é a proposta de institucionalização da Campanha pela Ética na TV (“Quem financia a baixaria é contra a cidadania”), que nunca serviu para atacar liberdade de expressão, mas, ao contrário, ajudou a criar pontes entre os espectadores, usuários do serviço de rádio e TV e as emissoras. Estas, embora recebam uma concessão para cumprir um serviço público, nunca admitem se submeter a obrigações de serviço público, nem mesmo àquelas estabelecidas pela Constituição Federal. Alguns podem até questionar a utilidade desse ranking, mas certamente ele não representa ataque à liberdade de expressão. O restante da diretriz 22 (que trata sobre comunicação) do PNDH-3, trata da garantia ao direito à comunicação democrática e ao acesso à informação. Mas disso nenhum meio de comunicação falou.

Terceiro ato

As recentes críticas ao texto-base da Conferência Nacional de Cultura são o ápice da farsa (termo talvez mal-apropriado aqui, já que ela nada tem de cômica). O Estado de S. Paulo, O Globo e a Folha de S. Paulo atacaram o texto por ele dizer que “o monopólio dos meios de comunicação representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural”.

A contestação foi à afirmação de que há ocorrência de monopólio nos meios de comunicação no Brasil. O trecho fica mais claro se citada a frase imediatamente anterior: “A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais”. É um texto, portanto, que defende as liberdades, e aponta a concentração nos meios de comunicação como ameaça à democracia e aos direitos humanos. Com ele concordariam até os republicanos dos Estados Unidos, como demonstram recentes votações no Congresso daquele país. Mas não os jornais brasileiros.

É preciso deixar claro que “monopólio” ali é usado em sentido amplo e agregador. Até porque, embora a Constituição Federal (de novo…), em seu artigo 220, proíba a existência de monopólios e oligopólios, nunca houve a regulamentação deste artigo. Portanto o Brasil não tem como estabelecer critérios precisos para determinar se há ou não ocorrência de monopólio neste setor. Qual a referência? A propriedade? O controle? A participação na audiência? A participação no mercado publicitário? Todas as democracias avançadas estabelecem medidas não apenas anti-monopólios e oligopólios, mas anti-concentração, combinando os diferentes critérios citados acima. No Brasil, os únicos limites à concentração existentes foram estabelecidos em 1967 e são mais tênues do que os aplicados nos Estados Unidos, França e Reino Unido. O próprio Estadão já tocou, em editoriais recentes, no problema da concentração no rádio e na TV; agora nega sua existência.

Também não passou despercebida pelos jornais a proposta de regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal, que prevê a regionalização da produção de rádio e TV e o estímulo à produção independente. A matéria usa uma declaração completamente equivocada do deputado Miro Teixeira para dizer que o artigo não admite regulamentação. Embora haja pareceres que defendem que o artigo pode ser auto-aplicável, o seu inciso III diz justamente que as rádios e TVs deverão atender ao princípio de “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”. Isto é, ele não só admite como solicita regulamentação. Bola fora ou má fé?

Outro ponto atacado pelos jornais é o trecho em que o texto defende o fortalecimento das rádios e TVs públicas e sua maior independência em relação aos governos. Diz o texto preparado pelo Ministério da Cultura: “As TVs e rádios públicas são estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto, elas precisam aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União”. Assim, o texto defende o controle social sobre as mídias públicas justamente para que estes veículos não sejam apropriados pelos governos. O foco é justamente a defesa da liberdade de expressão para todos e todas. Onde há ataque à mídia? Onde há ameaça à liberdade de expressão?

Dejà vu

Para quem acompanha esse debate, esse comportamento não é novidade, embora o tom raivoso e histérico nunca deixe de assustar. Parte dos meios de comunicação não aceita nenhum tipo de medida que possa diminuir o poder absoluto exercido hoje por eles. Regras que em outros países democráticos são entendidas como condições mínimas para o exercício democrático, aqui são tratadas como ameaças à liberdade de expressão. A grita esconde, na verdade, a defesa de interesses corporativos, em que a liberdade de imprensa se transforma em liberdade de empresa.

A liberdade de expressão defendida por esses setores não é a liberdade ampla, mas a liberdade de poucas famílias. Contra qualquer medida que ameace esse poderio, lança-se o discurso da volta da censura, independentemente de não haver em nenhum desses documentos propostas que prevejam a análise prévia da programação. Independentemente de esses veículos negarem o direito à informação de seus leitores e omitirem informações e opiniões relevantes para a compreensão autônoma dos fatos, agindo de forma censora. Independentemente de os setores proponentes dessas medidas terem sido justamente aqueles que mais lutaram contra a censura estabelecida pela ditadura militar, da qual boa parte desses veículos foi parceira.

Nessa situação, quem deve ficar apreensivo com a reação são os setores que tem apreço à democracia. Como lembra um importante estudioso das políticas de comunicação, foi com este mesmo tom de “ameaça à democracia” que estes jornais prepararam as condições para o acontecimento que marcaria o 1º de abril de 1964. De novo, aqui eles não mostram nenhum apego à Constituição Federal e ao verdadeiro significado da democracia. Obviamente não há hoje condições objetivas e subjetivas para qualquer golpe de Estado, mas os meios de comunicação já deixaram claro de que lado estão.

Com culpa no cartório, empresários da comunicação atacam PNDH

É só se falar em algum tipo de ação da sociedade para evitar os abusos freqüentemente cometidos pelos meios de comunicação que os seus controladores, imediatamente, pulam. Os gritos mais recentes são contra a proposta de criação de uma comissão governamental para acompanhar a produção das empresas do setor e estabelecer um ranking dos veículos “comprometidos com os direitos humanos”, contida no Programa Nacional dos Direitos Humanos lançado no final do ano pelo governo.

Em nota oficial, as entidades empresariais de comunicação bateram na velha tecla da “ameaça à liberdade de expressão”. São capazes de afirmar que os direitos humanos “estão acima de qualquer questionamento” para, em seguida, negar a possibilidade de um acompanhamento público do respeito que eles dizem dedicar a esses direitos. Ora, se são tão respeitosos com os direitos humanos, como afirmam, porque temem que a sociedade, através do governo, comprove na prática esse comportamento.

Parte da resposta está em diversos programas veiculados diariamente por grande parte das emissoras de rádio e televisão do Brasil, violadores contumazes dos direitos humanos. É a prova definitiva do cinismo com que são escritas essas notas oficiais assinadas pelas entidades patronais.

Veja uma das frases do documento empresarial: “A defesa e valorização dos direitos humanos são parte essencial da democracia, nos termos da Constituição e de toda a legislação brasileira, e contam com nosso total compromisso e respaldo”.

E agora compare esse texto com o relato de dois telespectadores, a respeito de um tipo de programa, chamado policialesco, que prolifera em nosso pais.

O primeiro de Salvador:

“Há cenas de pessoas mortas ou agonizando, ao vivo, com tiros recebidos na cabeça. Há casos de travestis quase nus se agredindo ou pessoas se agredindo com paus, pedras ou socos durante as reportagens”.

Outro de Porto Alegre:

“Aqui no Rio Grande do Sul temos um exemplar desse tipo de programa também. É apresentado por um sujeito bizarro que dá chineladas em uma mesa. Ele acompanha as ações policiais, e dão a ele o direito de humilhar e zombar das pessoas que são alvo de ações policiais”.

Mas há mais elementos concretos para tornar a nota oficial dos empresários uma peça de ficção. Basta ver como são tratados os negros nas telenovelas, os homossexuais nos programas de auditório e os pobres nos espetáculos policialescos acima mencionados.

Para quem ainda não teve o desprazer de ver esse tipo de programa basta entrar na internet e no YouTube e clicar, por exemplo, em títulos como “Se Liga Bocão”, da TV Itapoã ou “Na Mira”, da TV Aratu, ambas de Salvador. Ou ainda “Bronca Pesada” e “Papeiro da Cinderela”, da TV Jornal do Recife. Ou em muitos outros.

É esse desrespeito embrutecedor da sociedade brasileira que o Programa Nacional de Direitos Humanos quer coibir. E tal proposta não saiu da cabeça iluminada de qualquer ministro para ser imposta à sociedade. Ela é resultado de um longo período de acúmulo de conhecimento e de maturação política. Basta lembrar que a 7a. Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em 2002, já apontava a TV como um elemento violador desses direitos. Nasceu aí a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, até hoje em atividade, apontando periodicamente os programas que, segundo o público, mais violam os direitos humanos.

Cabe ressaltar a preocupação que o Ministério Público tem tido com a questão. Acionado por entidades da sociedade civil o MP moveu ação contra o programa do João Kleber, de caráter claramente homofóbico, e conseguiu decisão judicial suspendendo-o por um mês.

E, no Recife, vale a pena reproduzir alguns trechos da Ação Civil Pública assinada pelos promotores de Justiça Jecqueline Elihimas e José Edivaldo da Silva sobre os programas pernambucanos acima citados. Dizem eles, em resumo:

"O que se enxerga nos programas, que passam ao largo de uma legítima expressão artística, é apenas um enfoque bizarro tanto de situações do cotidiano ou dos próprios seres humanos, ali escolhidos para servirem de troça aos telespectadores. Sob o manto dissimulado da comédia, o que na verdade se vê é a execração pública das pessoas humildes, de suas vidas privadas, de seu sofrimento e dramas pessoais. Dessa forma, tornam a realidade cruel, injusta, sofrida ou violenta de uma população já excluída, um motivo de zombaria para os que a assistem. O que se vê é uma postura constante de veiculação e propagação de idéias preconceituosas, discriminatórias e homofóbicas e que atentam claramente contra princípios constitucionais, em especial à dignidade humana".

São afirmações que só confirmam a pertinência e a aplicação urgente do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, ainda que o empresariado que opera concessões públicas de rádio e TV grite e esperneie.