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Politizando o jornalismo ambiental brasileiro

Nesta semana, mais exatamente de 18 a 20 de março, Cuiabá vai receber jornalistas e estudiosos da temática ambiental de todo o País durante a realização do III Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, reeditando, certamente, o sucesso dos eventos anteriores, ocorridos em Santos e em Porto Alegre.

O Congresso se insere num contexto particularmente importante porque, mais do que em qualquer outra época, a consciência sobre a emergência da crise ambiental está avançando e, também mais do que em qualquer época, são necessárias soluções urgentes e esforços ingentes de mobilização planetária.

O jornalismo ambiental cumpre um papel fundamental porque, se autêntico, está alinhado com o interesse público, repudia alternativas meramente cosméticas empreendidas por governos e corporações que, apesar do discurso, insistem em consolidar modelos de desenvolvimento que se mostram incompatíveis com a sustentabilidade na verdadeira acepção da palavra.

É evidente que cada um de nós pode (e sobretudo deve) dar contribuição para eliminar o desperdício crescente e irresponsável dos recursos naturais e que a solução efetiva para mitigar a crise ambiental em que nos metemos não está apenas nas mãos de autoridades e de empresas. Todos participamos, em escala maior ou menor, deste processo predador que privilegia um modelo de consumo que compromete a saúde do planeta. Se nada fizermos em conjunto, não teremos saída a médio e longo prazos, mesmo porque o problema já é grave demais para ser sanado com medidas isoladas e de pouca monta.

O jornalismo ambiental deve, portanto, estimular esta consciência individual e induzir os cidadãos a um mutirão em favor da proteção da biodiversidade, contra o desmatamento, o uso indiscriminado de agrotóxicos , a apropriação comercial da água doce , o aquecimento global etc. Mas ele precisa avançar além dos indivíduos e denunciar os abusos cometidos por corporações nefastas e por governos omissos e trazer para o primeiro plano os interesses empresariais e políticos que verdadeiramente jogam contra a natureza.

Há em curso uma adesão não crítica a uma postura transgênica que favorece as monoculturas na agricultura, mas também, como afirma Vandana Shiva, as monoculturas da mente,  ou seja soluções que apostam contra a biodiversidade e que consolidam monopólios, como o das sementes, da agroquímica, dos insumos veterinários, dos fertilizantes e assim por diante.

A imprensa, de maneira acrítica, tem se curvado a fontes comprometidas que defendem, cinicamente, as vantagens dos transgênicos e a dispensa da rotulagem, martelando um discurso hipócrita da solução tecnológica para a questão da fome que aumenta em todo o mundo.  A imprensa não tem percebido as relações de poder, o tráfico de influência que se manifesta em algumas esferas de decisão e não consegue identificar os lobbies poderosos que atuam sobre (ou estão dentro) da CTNBIO e se escondem em entidades aparentemente independentes, como o CIB e a ABAG, redutos dos grandes interesses empresariais.

O jornalismo ambiental precisa desmascarar as relações espúrias entre determinados setores da dita comunidade científica e os interesses inconfessáveis da indústria agroquímica e da biotecnologia, irmãos siameses  (você nunca percebeu que as empresas de biotecnologia e as de agrotóxicos – veneno e não remedinho de planta – são as mesmas?) que avançam sobre a produção de alimentos, tornando-a refém de insumos químicos e de estruturas monopolistas.

O jornalismo ambiental precisa denunciar a apropriação da água doce pelos grandes exportadores rurais e pelos complexos industriais (a produção de um único carro consome um número absurdo de litros de água, assim como a pecuária consome muito mais energia do que sua carne produz como resultado final). Precisa contemplar rapidamente a escalada da iniciativa privada que avança sobre a produção da água, tentando se garantir para o futuro em detrimento das demandas dos cidadãos. Olho vivo sobretudo no avanço da Coca-Cola, Nestlé e da Danone e de outras empresas menos votadas.

O jornalismo ambiental precisa deixar claro que o desmatamento da Amazônia, ainda que possa estar pontualmente declinando, continua sendo obsceno e que, nesse ritmo, a floresta estará fatalmente comprometida daqui a poucas décadas.

O jornalismo ambiental precisa evidenciar o processo manipulatório empreendido por organizações que praticam o "marketing verde", tentando utilizar o discurso ambientalista como forma de limpeza de imagem, esta hipocrisia tediosa de prometer plantio de árvores para continuar poluindo e emporcalhando o solo, a água e o ar.

O jornalismo ambiental não pode compactuar com bancadas de parlamentares que, a serviço de grandes proprietários rurais, se encastela no Parlamento para afrouxar a legislação ambiental e manter privilégios que, sistematicamente, atentam contra a nossa sustentabilidade.

O jornalismo ambiental precisa também olhar para o próprio umbigo para perceber que, pressionado pela sua própria sobrevivência, mídias ambientais podem estar estabelecendo parcerias que comprometem a sua independência, acreditando que determinadas corporações estejam realmente engajadas na luta a favor do planeta.

O jornalismo ambiental precisa assumir sua vocação militante e não se reduzir a uma mera modalidade do jornalismo moderno, que cobre a temática ambiental, mas não tem coragem de comprometer-se com as soluções verdadeiras. O jornalismo ambiental light faz o jogo do capitalismo selvagem.

O jornalismo ambiental precisa definitivamente andar de cabeça erguida, disposto a enfrentar os desafios que este momento lhe reserva. Não pode omitir-se, despolitizar-se como se as soluções não fossem, no fundo, de grande conteúdo político (o que não significa partidário porque os nossos partidos – inclusive o PV – são um arremedo de representação legítima). Vencer a fome é antes de tudo uma decisão política e não uma mera questão de tecnologia.

O jornalismo ambiental precisa deixar a tática do band-aid e do merthiolate e incorporar a tática do bisturi.

Que o Congresso de Jornalismo Ambiental recupere esta vocação militante, de coragem, e que saiba propor ações concretas para encaminhar o debate da questão ambiental. Que os colegas consigam inclusive identificar entre os patrocinadores, como a Syngenta, parceiros suspeitos que não têm uma história identificada com a biodiversidade, a sustentabilidade e a saúde de todos nós. Será que ninguém se lembra de  que a Syngenta é fruto da fusão da Zêneca Agrícola e da Novartis Agribusiness? Será que os colegas da área ambiental já se esqueceram do escândalo da Biomazônia com o envolvimento direto da Novartis, projeto felizmente abortado pelo governo brasileiro depois de denúncias veementes de entidades sérias como a SBPC? Puxa, é fácil recuperar o episódio: coloque "BioAmazônia Novartis" como palavra chave no Google e leia o que está lá.

O Congresso de Jornalismo Ambiental terá como objetivo reunir colegas que atuam na área e que, apesar de posições pontualmente divergentes, sabem que não se pode deixar o mercado (Monsantos, Bunges, Bayers, Cargills e Syngentas  etc da vida, bem como setores, como a mineração, papel e celulose, agroquímica, petroquímica, de biotecnologia etc) ditar livremente as regras do jogo.

Vamos ao congresso, respeitando as divergências, mas de olhos bem abertos. Não podemos sozinhos evitar que o planeta seja destruído, mas que pelo menos tenhamos a coragem de denunciar governos e empresas que, por interesses mesquinhos, ameaçam a vida de todos nós.

* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4 revistas digitais de comunicação.

Devassa na auto-regulação

A discussão sobre a censura ao comercial da cerveja Devassa protagonizado pela grã-fina Paris Hilton ficou mais tempo em cartaz do que o próprio clipe.

É bom que seja assim, porque a suspensão da propaganda foi uma empulhação. Embora oficialmente sancionada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), do governo federal, quem orquestrou, badalou e lucrou com a proibição foi o Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), entidade privada, sustentada pela mídia, sobretudo mídia eletrônica.

No caderno "Mais!" da Folha de S.Paulo (domingo, 7/3), o filósofo Renato Janine Ribeiro radiografou o episódio com precisão. A SEPM não poderia recusar o apoio a uma medida contra a exploração da mulher como objeto sexual. Se o fizesse estaria na contramão dos argumentos que justificaram a sua criação.

Interesses precisos

A peça publicitária não é mais devassa, nem mais agressiva, nem mais pornográfica do que dezenas de outras que jamais provocaram qualquer reação dos zelosos defensores da moral.

O comercial de Paris Hilton foi o pretexto para valorizar o conceito de auto-regulação no momento em que começou a esquentar a discussão sobre "controle público" da comunicação. Convém lembrar da onda tardiamente montada para combater o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos que, como os dois anteriores lançados nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, ousou classificar a baixaria televisiva como atentado aos direitos humanos.

Não cabe ao Conar discutir a qualidade da programação das concessões públicas de radiodifusão, seu negócio é cuidar do conteúdo da propaganda. Mas o Conar tem sido cada vez mais lembrado como modelo bem sucedido de controle de qualidade.

É bom que se registre que o Conar tem sido leniente em matéria de propaganda enganosa. Raramente estrila, geralmente condescende com o mercado. A entidade tem funcionado mais como lobby em defesa dos grandes segmentos anunciantes do que como um mediador entre interesses divergentes.

Rigor inócuo

As investidas do Conar contra a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de proibir a venda de remédios nas gôndolas das farmácias sob a alegação de que o consumidor não pode ser "tutelado" pelo farmacêutico é pueril e impertinente: nada tem a ver com publicidade e, por outro lado, ignora os perigos da automedicação e, sobretudo, das superdosagens.

Registre-se ainda que a auto-regulação é, em si, um conceito avançado. Uma sociedade capaz de criar poderes e contrapoderes é organicamente democrática. Mas as medidas adotadas pelas corporações auto-reguladas devem ter real significado para os demais segmentos da sociedade.

O rigor contra o comercial da Devassa é inócuo, tem algo farisaico. E deixa evidente a manobra de "vender" a auto-regulação como panacéia para impasses que nos EUA geralmente são resolvidos por agencias reguladoras propriamente ditas, como a Federal Communications Commission (FCC).

Liberdade de Expressão e seus 30 novos significados

Organizado pelo Instituto Millenium realizou-se em São Paulo no dia 1º de março de 2010 o I Fórum Democracia e Liberdade de Expressão congregando a fina flor do empresariado da comunicação brasileira e acolhendo representantes de grandes grupos de mídia da América Latina, em especial da Venezuela e da Argentina, além renomados nomes do colunismo político que brilham em nossos veículos comerciais. Pretendeu ser um contraponto à I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), cuja etapa nacional ocorreu em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro de 2009. A Confecom envolveu mais de 20.000 pessoas em todo o país, recepcionou 6.000 propostas originárias das etapas estaduais e aprovou 500 resoluções.

A Confecom de Brasília trouxe à discussão temas como Produção de Conteúdo, Meios de Distribuição e os Direitos e Deveres da Cidadania, o Fórum de São Paulo propunha a defesa de valores como Democracia, Economia de Mercado e o Individualismo.

Todo cidadão brasileiro era bem-vindo para participar da 1ª Confecom. Para assistir ao Fórum Millenium era indispensável o pagamento de R$ 500,00 a título de inscrição. Na Confecom as seis maiores corporações empresariais de veículos de comunicação do Brasil fizeram questão de marcar sua ausência. No Millenium as ausentes se fizeram presentes. Dentre as quais destaco: Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), entidades que envolvem a Globo, o SBT, a Record, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo, a RBS, Instituto Liberal, Movimento Endireita Brasil (MEB), e outras empresas que decidiram boicotar a I Conferência Nacional de Comunicação, numa demonstração de forte apreço pela democracia. Se essas entidades desejaram evitar o confronto na Confecom mostraram-se pintadas para guerra no Millenium.

Cotejando os temas abordados no Millenium e, principalmente, os conferencistas que lá foram vivamente aplaudidos, posso imaginar que se pretende agregar novos significados ao verbete “liberdade de expressão”.

São eles:

1. Liberdade de expressão é interditar todo e qualquer debate democrático sobre os meios de comunicação.

2. Liberdade de expressão só pode ser invocada pelos que controlam o monopólio das comunicações no país.

3. Liberdade de expressão é bem supremo estando abaixo apenas do Deus-Mercado.

4. Liberdade de expressão é moeda de troca nas eternas rusgas entre situação e oposição.

5. Liberdade de expressão é denunciar qualquer debate sobre mecanismos para termos uma imprensa minimamente responsável.

6. Liberdade de expressão é gerar factóides, divulgar informações sabidamente falsas apenas para aproveitar o calor da luta.

7. Liberdade de expressão é deitar falação contra avanços sociais, contra mobilidade social, contra cotas para negros e índios em universidades públicas.

8. Liberdade de expressão é cartelizar a informação e divulgá-la como capítulos de uma mesma novela em variados veículos de comunicação.

9. Liberdade de expressão é não conceder o direito de resposta sem que antes o interessado passe por toda a via crucis de conseguir na justiça valer seu direito.

10. Liberdade de expressão é explorar a boa fé do povo com programas de televisão que manipulam suas emoções e suas carências oferecendo uma casa aqui outro carro ali e assim por diante.

11. Liberdade de expressão é somente aprovar comentários aptos à publicação em sítio/blog da internet se estes referendarem o pensamento do autor e proprietário do sítio/blog.

12. Liberdade de expressão é ser leviano a ponto de chamar a ditadura brasileira de ditabranda e ficar por isso mesmo.

13. Liberdade de expressão é imputar ao presidente da República comportamento imoral tendo como fundamento depoimento fragmentado da memória de um indivíduo acerca de fato relatado quase duas décadas depois.

14. Liberdade de expressão é apresentar imparcialidade jornalística do meio de comunicação mesmo quando os principais jornalistas fazem de sua coluna tribuna eminentemente partidária.

15. Liberdade de expressão é fazer estardalhaço em torno de um sequestro que não ocorreu há quase 40 anos com a clara intenção de tumultuar o processo político atual.

16. Liberdade de expressão é assacar contra a honra de pessoa pública utilizando documentos de autenticidade altamente duvidosa e depois fazer mea culpa na seção “Erramos”.

17. Liberdade de expressão é submeter decisões editoriais a decisões comerciais de empresas e emissoras de comunicação.

18. Liberdade de expressão é somente dar ampla divulgação a pesquisas de opinião em que os resultados sejam palatáveis ao veículo de comunicação.

19. Liberdade de expressão é não ter visto “Lula, o filho do Brasil” e considerá-lo péssimo produto cinematográfico sem ao menos tê-lo assistido.

20. Liberdade de expressão é minimizar o descaso do poder público ante as enchentes de São Paulo e reduzir candidato à presidência a mero poste.

21. Liberdade de expressão é ter dois pesos em política externa: Cuba é o inferno e China é o paraíso.

22. Liberdade de expressão é demonizar movimentos sociais e defender a todo custo latifúndios vastos e improdutivos.

23. Liberdade de expressão é usar uma concessão pública para aumentar os níveis de audiência com o uso perverso de crianças no papel de vilões.

24. Liberdade de expressão é desqualificar quem não aprecia a programação servida pelo Instituto Millenium.

25. Liberdade de expressão é rejeitar in totum toda e qualquer proposição da Conferência Nacional de Comunicação.

26. Liberdade de expressão é apostar em quem ofereça garantias robustas visando manter o monopólio dos atuais donos da mídia brasileira.

27. Liberdade de expressão é obstruir qualquer caminho que conduza mecanismos de democracia participativa.

28. Liberdade de expressão é fazer coro contra qualquer governo de esquerda e se omitir contra malfeitorias de qualquer governo de direita. Ou vice-versa.

29. Liberdade de expressão é fugir como o diabo foge da cruz de expressões como liberdade, democracia, cidadania, justiça social, controle social da mídia.

30. Liberdade de expressão é lutar para manter o status quo: o direito de informar é meu e ninguém tasca.

* Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org

A confusão entre liberdade de expressão e de mercado

O Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, promovido em São Paulo pelo Instituto Millenium, em parceria com a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional dos Jornais, contou, na abertura, em 1º de março de 2010, com a presença do ministro Hélio Costa, das Comunicações. O evento aparentou ser uma "tímida versão" empresarial da Conferência Nacional da Comunicação (Confecom) nos moldes que inicialmente Hélio Costa queria promover a Confecom – um seminário sobre comunicação com participação restrita dos inscritos. Ao invés de debates acirrados, o fórum trouxe painéis com as idéias complementares do empresariado; no lugar de aprovação de propostas negociadas e votadas, doutrinação ideológica para a "liberdade" de mercado.

Na "Confecom da Abert e ANJ", o ministro da Comunicações do governo Lula, que não foi vaiado como na verdadeira, aproveitou para relembrar que, nas disputas entre empresários que defendem os oligopólios e movimentos sociais que lutam pela democratização, ele está no lado dos primeiros. "Nunca permitirei o controle público da mídia, primeiro porque sou jornalista e segundo porque sou ministro da Comunicações", enfatizou Costa. Cabe questionar que tipo de jornalista e de ministro é ele.

Medo e preconceito

Se fosse um jornalista comprometido com interesse social, Hélio Costa lutaria para que os meios de comunicação cumprissem seu papel de incentivar o debate público, por meio da participação da sociedade organizada e da audiência na programação e na gestão da política editorial dos veículos. Isso é controle público da mídia. Se fosse um ministro preocupado com a democracia e a coisa pública, trabalharia para que as concessões atendessem sua missão social: dar visibilidade aos diversos atores públicos e promover a inclusão social. Isso é controle público da mídia. Mas, ao contrário disso, os jornais e as concessões nas mãos de empresários que "topam tudo por dinheiro" estão comprometidos com o consumismo insustentável, a exclusão social das minorias e a competição agressiva. Esses são os contravalores da mídia que, para o ministro Hélio Costa, devem estar imunes de qualquer tipo de fiscalização, punição e controle?

A retórica (ou sofisma) que refuta o controle público da mídia utiliza-se de um artifício que tenta confundir liberdade de expressão com "liberdade" de mercado. A última consolida o poder dos empresários que, privilegiados nas relações socioeconômicas, possuem os meios de produção, as tecnologias e o acúmulo de riquezas. Dessa maneira, quando se confunde liberdade de expressão com liberdade de mercado, quem tem o controle do capital passa a reproduzir seu privilégio no mercado simbólico. As palavras, os sons e a imagens ficam concentradas nos interesses dos empresários que querem o consumo desenfreado e a exclusão de grupos sociais opositores.

Baseados nessa confusão entre mercado e expressão, Marcel Granier, diretor da RCTV, emissora venezuelana opositora a Hugo Chávez, o jornalista argentino Adrián Ventura e o equatoriano Carlos Vera tentaram confundir os abusos de seus governos com a proposta do Plano Nacional de Direitos Humanos de controle público da mídia.

A desinformação continua promovendo o medo e o preconceito sobre o assunto.

* Ismar Capistrano Costa Filho é jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE, professor de ensino superior e assessor de comunicação.

Acesso à informação pública: Um passo depois do outro

Após idas e vindas, com um certo atraso e com algumas modificações, finalmente foi aprovado, na última quarta-feira (23), o parecer do relator, deputado Mendes Ribeiro Filho (PMDB – RS), ao Projeto de Lei nº 219, de 2003, que regula o acesso à informação pública no Brasil. A matéria tramitava em uma comissão especial que analisava, além do projeto principal, outras quatro proposições a ele apensadas – entre elas o PL nº 5.228, de 2009, elaborado pela Casa Civil (ver, neste OI, "Liberdade, ainda que tardia").

Este é um passo importante para, finalmente, regulamentarmos o inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal, que estabelece o direito de todos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse geral e coletivo. O inciso prevê o "prazo da Lei" para que informações públicas sejam prestadas pelo Poder Público – prazo esse que, passados mais de 21 anos da promulgação da Constituição, ainda não foi estabelecido.

Os trabalhos da Comissão Especial que analisou o projeto de lei de acesso à informação pública começaram em 2 de setembro do ano passado, quando foi designado relator o deputado Mendes Ribeiro Filho. Diversas entidades foram ouvidas em audiências públicas ao longo de 2009 – entre elas as associações dos procuradores da República, do Ministério Público e dos Magistrados do Brasil, além da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Também participaram dos trabalhos o Arquivo Nacional, a Organização Transparência Brasil, a organização Artigo 19, a Unesco e a Universidade de Brasília.

Provimento de informações

O resultado foi a apresentação de um substitutivo bastante detalhado e abrangente, muito mais ousado do que o projeto enviado pelo Executivo, e que acolhe a maior parte das sugestões das muitas entidades que participaram do seu processo de elaboração. Se o projeto se tornar lei, qualquer pessoa – não apenas cidadãos, mas também estrangeiros – poderá apresentar pedido de acesso a informações a órgãos e entidades públicas, incluindo autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem a necessidade de justificar os motivos da solicitação. A informação deverá ser prestada imediatamente ou, em casos excepcionais, num prazo máximo de 20 dias, prorrogáveis por mais 10. As regras valem não apenas para a União, como previsto originalmente no projeto do Executivo, mas para estados, Distrito Federal e municípios.

Porém, o substitutivo, a exemplo do projeto do Executivo, faz muito mais do que simplesmente determinar os "prazos da Lei" para a oferta de informações públicas. Ele reitera que a regra é a transparência e que o sigilo somente será aceito para informações pessoais, para dados referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento científicos ou tecnológicos sensíveis e para informações que sejam imprescindíveis para a segurança da sociedade – tendo sempre como balizador o interesse público. O substitutivo também obriga a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações, reforçando que a regra é a transparência, e a exceção, o sigilo.

No âmbito do Poder Executivo Federal, caberá à Controladoria-Geral da União (CGU) zelar pela correta aplicação da lei. O órgão ganhou também a atribuição de dar a palavra final, na via administrativa, em relação ao provimento de informações. Caso um requerimento de acesso à informação pública seja negado em qualquer dos órgãos ou entidades sujeitas à lei, o cidadão poderá recorrer à CGU que, se julgar procedentes as razões do recurso, determinará a imediata liberação dos dados requeridos.

Como serão os sítios

O substitutivo cria ainda dois novos órgãos, com atribuições exclusivamente relacionadas ao acesso à informação pública: a Comissão de Reavaliação de Informações, ligada à Casa Civil e composta por ministros ou autoridades com prerrogativas similares, que será responsável pela gestão de informações sigilosas; e o Núcleo de Segurança e Credenciamento, integrante da estrutura do gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, a quem caberá garantir a segurança de informações sigilosas.

Ainda que a regulamentação dos procedimentos de acesso à informação seja um evento de importância ímpar para a sociedade brasileira, é na oferta proativa de informações que estão os avanços mais significativos da nossa embrionária lei de acesso à informação pública. A exemplo de diversos países latino-americanos que aprovaram suas leis de acesso recentemente, como Argentina, Chile, México e Uruguai, o substitutivo aprovado pela comissão especial da Câmara dos Deputados dedica vários artigos à publicação obrigatória de informações na internet.

De acordo com o substitutivo, diversas informações de órgãos e entidades públicas, como estrutura organizacional e registro de competências; repasses e transferências de recursos; registros de despesas; procedimentos licitatórios; e dados para acompanhamento de programas governamentais deverão ser obrigatoriamente publicados na internet. A proposta também especifica como deverão ser esses sítios na internet: eles deverão conter ferramentas eficientes de pesquisa de conteúdo; ofertar acesso automatizado a sistemas externos; possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos; manter atualizadas as informações disponíveis; entre outros requisitos.

Transposição para o mundo real

A proposição aprovada pela Comissão Especial, que agora será analisada pelo plenário da Câmara dos Deputados, foi capaz de superar diversos problemas que existiam na proposta do Executivo. Ela é muito mais abrangente, pois não se restringe apenas ao Executivo Federal, atingindo todos os poderes e todos os níveis da Federação. Além disso, o substitutivo extinguiu a possibilidade de sigilo eterno que existia na proposta elaborada pela Casa Civil: o prazo máximo para a manutenção de sigilo passa a ser de 25 anos, prorrogáveis uma única vez por mais 25 anos.

Mas, por mais bem elaborado que seja o projeto, há que se ter cuidado com duas euforias que se convergem nesse tema: a tecnológica e a legislativa. A visão mítica de que a tecnologia é a panacéia para a plena transparência governamental é uma ameaça. Outra ameaça está em não se dar conta de que a aplicabilidade real dos textos legais pode ser superestimada – afinal, quantos são os casos de legislações extremamente modernas, muito bem redigidas, que não passam de letra morta devido à sua incompatibilidade com ritos e costumes das sociedades em que estão inseridas?

Portanto – e isso não é novidade – o papel da imprensa é fundamental na transposição dessa futura lei do papel para o mundo real. Direitos são realmente aplicáveis se, e somente se, a sociedade os conhece, e sabe que pode contar com eles sempre que necessário. E não existe ainda instituição mais capaz de dar visibilidade pública ao tema do que a imprensa. É necessário que ela dê a devida atenção às regras sobre o acesso à informação pública que estão sendo construídas e que, no final das contas, são do seu próprio interesse, já que podem facilitar sobremaneira o acesso de jornalistas – e de qualquer pessoa – a dados governamentais.

* Cristiano Aguiar Lopes é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda.