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O direito autoral como monopólio

Recentemente, quando o direito autoral completou 200 anos, a revista The Economist publicou um editorial criticando a desmedida dos atuais termos de proteção (“Copyright and Wrong”, 08/05/2010). Muitos leitores se perguntaram como uma revista liberal poderia se juntar aos ativistas que defendem os bens comuns numa cruzada pela reforma radical do direito autoral. A resposta é que o direito autoral é um monopólio e, portanto, um corpo estranho numa economia de livre mercado.

Na sua gênese, o direito autoral foi fruto da reforma de um dispositivo da economia corporativa inglesa – os “copy rights” outorgados por uma corporação de ofício, a Companhia dos Livreiros de Londres. Esse primeiro copy right era um direito perpétuo que a corporação cedia a uma oficina para editar um determinado livro. Esse regime passou a ser criticado no final do século XVII e início do século XVIII por ser monopolista e também por ser instrumento de censura (já que a coroa utilizava a autorização dada à corporação para controlar o que era publicado).

Fruto da pressão por concorrência de mercado e liberdade de expressão, de um lado, e os interesses comerciais dos livreiros, de outro, em 1710 foi criado esse sistema híbrido que chamamos copyright (ou direito de autor, na tradição do direito da Europa continental). Ele reformava o antigo copy right corporativo, transformando o direito perpétuo em direito temporário (válido por 14 anos, renováveis por mais 14) e passando a titularidade do direito, do editor para o autor da obra. Nascia assim o direito autoral como o conhecemos: um monopólio temporário sobre uma obra do espírito que busca estimular a criação dando ao autor a prerrogativa exclusiva de explorá-la.

Ainda no século XVIII, o direito autoral foi levado para os Estados Unidos, após a independência e para a França, após a revolução. Embora a filosofia de legitimação fosse diferente, ele mantinha a forma de um monopólio temporário sobre a obra que era dado ao autor. Por isso, o direito autoral sempre foi um encrave monopolista num sistema que buscava a livre concorrência. Ele era, por exemplo, a única exceção aceita por James Madison (um dos pais fundadores dos Estados Unidos) para o sistema de livre mercado – e era aceito apenas porque era temporário e porque não era uma finalidade em si, mas um meio para se estimular o autor.

Quando no último século os prazos e o escopo de proteção do direito de autor ultrapassaram qualquer limite razoável, ficou patente que esse monopólio, de meio, havia se convertido em fim e que ao invés de estimular os criadores, estava apenas beneficiando intermediários e criando entraves para que o público tivesse acesso às criações do espírito.

Assim, vimos recentemente no caso brasileiro (onde o termo de proteção é de 70 anos após a morte do autor) que o acesso a uma obra importante como a de Freud enfrentou obstáculos por todo o século XX e ainda no começo do XXI. A editora que detinha os direitos de tradução para língua portuguesa havia decidido que a forma mais adequada de publicar a obra era por meio de uma tradução da tradução para o inglês. Muitos estudiosos discordavam desta opção, mas o monopólio que a editora brasileira detinha impedia que se publicasse uma tradução direta do alemão. Durante muitos anos, professores mais rigorosos divulgavam clandestinamente traduções diretas do alemão para seus alunos como se estivessem cometendo um delito. A obra de Freud começou a ser publicada ainda no século XIX. O público brasileiro teve que esperar mais de 110 anos para ter acesso a uma tradução direta do alemão, quando a obra de Freud entrou em domínio público.

As distorções deste sistema de monopólio também impedem que bibliotecas e cinematecas tirem cópias de obras raras para fins de preservação quando não conseguem autorização dos detentores do direito – quando esses detentores não são localizados, uma leitura rigorosa da lei diria para a instituição simplesmente deixar o original estragar; essa mesma lei proíbe hoje que estudantes tirem cópias de livros que estão esgotados – em média, um terço de toda base bibliográfica dos cursos.

Esse conjunto atordoante de distorções faz com que pessoas de bom senso repensem o papel dos direitos autorais no mundo contemporâneo, seja porque impedem a livre concorrência, seja porque deveriam ser bens comuns. Se ainda há motivo para se acreditar neste dispositivo que busca criar monopólios temporários para estimular o autor a criar novas obras, então é preciso que esse monopólio seja muito bem regulado, com termos de proteção mais curtos e exceções e limitações definidas. A chave para se entender a posição da The Economist é a seguinte: ao contrário de outros setores da economia, no direito autoral, quanto mais regulação existir, mais livre é o mercado – e, inversamente, quanto mais amplo é o direito, mais prevalecem os efeitos deletérios do monopólio.

Trololó na TV Cultura

A bola queimou para a TV Cultura, com as demissões dos jornalistas Heródoto Barbeiro e Gabriel Priolli. Explicações complicadas terão que ser dadas pelo candidato à presidência José Serra – acusado de ter pedido a cabeça dos jornalistas – e pelo vice-presidente de conteúdo da emissora, Fernando Vieira de Mello, recém-chegado por lá, após ter sido afastado da Band.

Como já é amplamente sabido, as duas demissões supostamente têm na base questionamentos feitos pelos jornalistas ao alto preço dos pedágios nas estradas de São Paulo – Barbeiro no Roda Viva, onde Serra considerou a questão um "trololó petista"; Priolli em reportagem para o Jornal da Cultura, e que sequer estava editada.

Barbeiro era um nome importante do jornalismo da Cultura havia muitos anos; foi editor, repórter, apresentador e âncora. Priolli teve várias passagens pela emissora, mas tornou-se diretor do Jornalismo apenas cinco dias antes de ser demitido. É possivelmente um recorde mundial, que deixa para a TV Cultura uma questão que ela tem que responder com urgência: ou o novo diretor de Jornalismo, que a emissora conhecia bem em várias outras funções, demonstrou uma inadequação meteórica para o cargo, ou a emissora cedeu mesmo, como escreveram Luis Nassif e outros jornalistas, às exigências do candidato tucano.

Diálogo de répteis

Se isso não é envaidecedor para José Serra, é muito menos para a emissora. Menos ainda para a utopia de se construir uma televisão pública livre no Brasil. O incidente deixa a TV Cultura numa situação visivelmente constrangedora, mas impacta enormemente o debate que vinha acontecendo – especialmente desde a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – sobre a possibilidade de sobrevivência do jornalismo independente numa televisão pública.

A principal razão para isso é que a própria Cultura vinha ironicamente sendo apontada como um modelo bem sucedido dessa possibilidade. Isso em oposição à EBC, que como empresa alegadamente ainda não conseguiu decolar, cujo jornalismo foi esfacelado há tempos, onde essa história de independência é uma balela.

Em vista do experimentado pela EBC – e à luz do que acontece neste momento na TV Cultura –, televisão pública e jornalismo independente parecem ser no Brasil expressões mutuamente excludentes. Mas se o jornalismo não é independente numa televisão pública, não ofenderá perguntar:

– A quem interessa, então, uma televisão pública, e por que os governos investem tanto dinheiro nelas?

A possibilidade de construção de uma televisão pública livre, original e relevante é inversamente proporcional ao nível de promiscuidade que possa existir entre governos e seus partidos e os mecanismos de gestão dessas emissoras. Se for comprovado que o PSDB demitiu dois jornalistas da Cultura por terem feito perguntas sobre os pedágios das estradas paulistas, isso autorizará a EBC a afastar quem se posicione criticamente a qualquer ação do governo Lula. Tal quadro estaria alguns pontos abaixo de um diálogo de répteis – subvencionado pelo dinheiro da sociedade brasileira.

Fundo do poço

A sociedade tem que saber imediatamente se Heródoto Barbeiro e Gabriel Priolli foram de fato demitidos por ordem de José Serra. Se não, por que o foram, que tipo de erros contundentes ambos cometeram – até porque são nomes conhecidos pelo público e respeitados no ambiente profissional.

A sociedade tem também que saber quem está ganhando dinheiro público nas emissoras públicas para não lutar por sua independência e, pelo contrário, torná-las mais e mais subservientes aos interesses dos políticos.

Relações promíscuas com vários setores estão no DNA de muitos políticos – não refiro a qualquer um em especial – e isso talvez não possa ser combatido com tanta facilidade. Mas "laranjas" que são postos nas televisões públicas que o povo está pagando – e que as colocam a serviço do atraso, que as lançam ostensivamente no descrédito público –, estes devem ser combatidos e denunciados por quem quer que defenda a possibilidade de uma imprensa equilibrada, de uma televisão pública independente e voltada para o interesse público.

Ser conivente com isso é jogar a televisão brasileira no fundo do poço, é trair os mais elementares ideais libertários.

* Nelson Hoineff é jornalista, cineasta e diretor de TV.

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ENTRE ASPAS

Sayad nega ingerência política na TV Cultura
Sonia Racy e Jotabê Medeiros # reproduzido de O Estado de S.Paulo, 12/7/2010

O presidente da Fundação Padre Anchieta, João Sayad, negou ontem [domingo, 11/7] ter havido motivação política no afastamento de Gabriel Priolli da Diretoria de Jornalismo da TV Cultura. Ele alegou que Priolli não tinha o perfil adequado para o cargo na emissora, gerida pela fundação.

"Foi uma escolha equivocada", afirmou Sayad. Jornalista experiente, com passagem por alguns dos principais jornais e televisões do Brasil, Priolli trabalha para a TV Cultura há mais de uma década e permaneceu apenas uma semana no cargo.

Seu afastamento alimentou a suspeita de ingerência política na emissora pública ligada ao governo de São Paulo. Segundo versão amplificada pela internet, Priolli foi afastado do posto por orientar a produção de uma reportagem sobre as tarifas de pedágio nas estradas estaduais, tema abordado com insistência pela campanha do PT ao governo paulista.

O jornalista preferiu não se manifestar sobre o episódio: "Vou manter silêncio, pois ainda sou funcionário da TV Cultura". O destino de Priolli dentro da emissora deve ser definido hoje, em reunião com o vice-presidente da fundação, Ronaldo Bianchi. Tanto a nomeação quanto a destituição de Priolli foram comunicadas a ele pelo diretor de Conteúdo da TV Cultura, Fernando Vieira de Mello.

O seção paulista do PT anunciou que vai pedir ao Ministério Público Eleitoral que investigue o afastamento de Priolli. O candidato do partido ao governo de São Paulo, Aloizio Mercadante, foi entrevistado para a reportagem sobre pedágios, assim como o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin.

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Pedágio na Cultura
Fernando de Barros e Silva # reproduzido da Folha de S.Paulo, 12/7/2010

Começou mal, muito mal, a gestão de João Sayad à frente da TV Cultura de São Paulo.

Na quarta-feira da última semana, confeccionava-se, para o jornal noturno da emissora, uma reportagem sobre os pedágios paulistas, aos quais o próprio candidato tucano ao governo, Geraldo Alckmin, havia feito reparos. No início da noite, o diretor de jornalismo da TV Cultura, Gabriel Priolli, foi chamado à sala de Fernando Vieira de Mello, vice-presidente de conteúdo.

Ali ouviu a bronca: a TV não poderia se ocupar de assunto tão delicado sem o seu conhecimento prévio. Vieira de Mello ecoava um protesto que tinha origem em algum escaninho da burocracia tucana.

A reportagem não foi ao ar naquela noite. E Priolli foi afastado de suas funções na tarde de quinta-feira. Durou uma semana no cargo.

Consta que a reportagem sobre os pedágios foi exibida na noite de sexta, feriadão de 9 de julho. E alega-se que foi derrubada na antevéspera porque estava "mal feita". Ninguém deve ter visto o resultado final. Como quase ninguém teria visto se fosse exibida na quarta.

A verdade é que a Cultura é uma TV mais lida do que assistida. Os próprios conselheiros da Fundação Padre Anchieta acompanham a emissora pela imprensa.

A saída de Heródoto Barbeiro do "Roda Viva" nada tem a ver com a pergunta que ele fez no programa a José Serra uma semana antes -justamente sobre pedágios. A sua substituição por Marília Gabriela já estava acertada pela direção. Mas, ao enviar Priolli para a Sibéria, os tucanos conseguiram transformar uma mentira em algo verossímil.

O episódio escancara a ingerência política do tucanato na TV pública de São Paulo. Quando uma reportagem sobre pedágios vira questão de Estado, então é melhor fechar o departamento de jornalismo e exibir "Cocoricó", onde ao menos as crianças são levadas a sério.

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Diretor de jornalismo da Cultura é afastado
Ana Paula Sousa # reproduzido da Folha de S.Paulo, 10/7/2010

Após uma semana no posto, o jornalista Gabriel Priolli deixou de ser diretor de jornalismo da TV Cultura. A decisão, tomada pelo jornalista Fernando Vieira de Mello, vice-presidente de conteúdo da emissora, alimentou boatos a respeito da ingerência política sobre o canal.

No final da tarde de quinta-feira [8/7], Mello chamou Priolli à sua sala para comunicá-lo do afastamento. Priolli, que já era funcionário da Cultura, disse, à Folha, que preferia não falar sobre o episódio.

Nos corredores da emissora e na blogosfera, circula a informação de que, por trás da saída de Priolli, está uma reportagem sobre problemas e aumento nos pedágios.

A reportagem teria sido "derrubada" – jargão para o que não é veiculado – por Mello. "A reportagem não foi ao ar na quarta-feira por uma razão simples: não estava pronta", diz Mello.

"Eram ouvidos só [Geraldo] Alckmin e [Aloísio] Mercadante. Em período eleitoral, somos obrigados a ouvir todos os candidatos. Foi isso que fizemos", acrescenta.

De acordo com ele, o material iria ao ar ontem [9/7] à noite, no Jornal da Cultura.

Dias antes, outra dança de cadeiras originou rumores sobre a influência do governo estadual sobre a TV.

Segundo estes, Heródoto Barbeiro teria sido substituído por Marília Gabriela no Roda Viva por ter feito uma pergunta incômoda a Serra.

A TV atrela a mudança à busca de uma "nova cara" para o canal. Mello observa, ainda, que nem Priolli nem Barbeiro foram demitidos. Ambos devem assumir novas posições na emissora.

Mídia e clichês da liberdade nas Américas

A suposta dificuldade de sustentação da liberdade de expressão nas Américas, e em especial na Venezuela, tende atualmente a ser enquadrada no cenário midiático hegemônico no Brasil como um problema gerado por governantes autoritários em busca de promoção pessoal, que se esforçariam para interditar os meios de comunicação que os aborrecessem. É intrigante perceber como este clichê, embora bastante desgastado, pode ser revivido para obscurecer questões de enorme relevância para sociedades que pretendam aperfeiçoar seu sistema democrático de governo.

Segundo os lugares-comuns repercutidos com frequência, Chávez cassa concessões de TV que lhe fazem oposição, enquanto Lula simpatiza com a possibilidade de restringir a liberdade de imprensa, se isso lhe for favorável. Nas Américas, o norte avançado se caracterizaria pelo primado da mídia livre, enquanto o sul atrasado ainda sofreria tentativas de contenção do pensamento livre movidas por líderes populistas.

A capacidade de disseminação do imaginário preenchido por estes estereótipos ainda surpreende os mais atentos. Mas não deveria. A história é retratada com elementos narrativos pitorescos, às vezes folhetinescos até. Tem tudo para encantar e cativar.

Enquanto tal enquadramento é veiculado, são convenientemente deixados de lado aspectos da necessária regulamentação democrática do serviço público de radiodifusão, incluindo aí as emissoras que exploram comercialmente o espectro de transmissão. Propaga-se a cena que repete mais uma vez a imagem do Estado como inimigo da liberdade, dissociando-o das funções de poder público e confinando-o ao papel de ferramenta de mandatários dotados de desejos totalitários. Reafirma-se a noção de que mídias livres são resultado natural da competição de mercado. Curiosamente, embora tenham surgido episódios recentes que desmereceram ainda mais a defesa intransigente do livre mercado na economia como um todo, na América do Sul ela se mantém firme no campo das comunicações.

Como resultado, é perturbador o reconhecimento da defasagem entre países como o Brasil e o contexto internacional de regulação de mídia. Ao passo que a preservação do interesse público exige a contínua operação de um aparato eficiente e cada vez mais complexo no contexto midiático europeu, no Brasil é difícil saber até o valor de uma concessão de radiodifusão. Os princípios editoriais das emissoras no campo do jornalismo não são nem ao menos esclarecidos. Sua missão social se confunde com seu caráter comercial. Seus acertos contam-se por eventuais rompantes de jornalismo alegadamente investigativo. Neste ambiente de escassez de referenciais seguros, prospera a imagem, construída por meios impressos, de presidentes dispostos a calar as mídias. A regulação da palavra impressa certamente não cabe em uma democracia, exceto contra os casos usualmente respaldados por lei, como calúnia e difamação, mas também é certo que TV e rádios livres de instrumentos de defesa do interesse público sobre sua programação facilitam a difusão, por outras mídias, de simplificações e reducionismos. Se estes são, muitas vezes, a matéria-prima do jornalismo comercial, em oposição ao jornalismo público, a prevalência do mercado no regime de produção de informação jornalística implica um empobrecimento notável da esfera pública.

Chávez parece ter avançado contra um cenário similar ao brasileiro. Se suas investidas podem ou não ser consideradas democráticas, é uma questão ainda em aberto. Alguns consideram perfeitamente admissível e até necessária a não-renovação da concessão pública de uma emissora que teria participado ativamente num golpe de Estado. Na Argentina, tentativas de conter o monopólio da propriedade de mídia para, em tese, assegurar a diversidade de opinião, em linha com o que muito se fez na Europa Ocidental, foram torpedeadas como arroubos dirigistas.

Bem, isso tudo não é novidade para quem milita na área da economia política da comunicação no Brasil. Nova, no entanto, é a dimensão crescente que as pressões pela regulação democrática da comunicação tem assumido em países sul-americanos, de forma que não é descabido esperar por mudanças.

* Danilo Rohtberg é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, coordenador do site Plural – Observatório de Comunicação e Cidadania.

A velha mídia está derretendo

Como um iceberg a navegar em águas quentes e turbulentas, a velha mídia está derretendo. O mundo está mudando, o Brasil é outro e os brasileiros desenvolvem, aceleradamente, novos hábitos de informação.

Um retrato desse processo pode ser visto na recente pesquisa encomendada pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom-P.R.), destinada a descobrir o que o brasileiro lê, ouve, vê e como analisa os fatos e forma sua opinião.

A pesquisa revelou as dimensões que o iceberg ainda preserva. A televisão e o rádio permanecem como os meios de comunicação mais comuns aos brasileiros. A TV é assistida por 96,6% da população brasileira, e o rádio, por expressivos 80,3%. Os jornais e revistas ficam bem atrás. Cerca de 46% costumam ler jornais, e menos de 35%, revistas. Perto de apenas 11,5% são leitores diários dos jornais tradicionais.

Quanto à internet, os resultados, da forma como estão apresentados, preferiram escolher o lado cheio do copo. Avalia-se que a internet no Brasil segue a tendência de crescimento mundial e já é utilizada por 46,1% da população brasileira. No entanto, é preciso uma avaliação sobre o lado vazio do copo, ou seja, a constatação de que os 53,9% de pessoas que não têm qualquer acesso à internet ainda revelam um quadro de exclusão digital que precisa ser superado. Ponto para o Programa Nacional da Banda Larga, que representa a chance de uma mudança estrutural e definitiva na forma como os brasileiros se informam e comunicam-se.

A internet tem devorado a TV e o rádio com grande apetite. Os conectados já gastam, em média, mais tempo navegando do que em frente à TV ou ao rádio. Esse avanço relaciona-se não apenas a um novo hábito, mas ao crescimento da renda nacional e à incorporação de contingentes populacionais pobres à classe média, que passaram a ter condições de adquirir um computador conectado.

O processo em curso não levará ao desaparecimento da TV, do rádio e da mídia impressa. O que está havendo é que as velhas mídias estão sendo canibalizadas pela internet, que tornou-se a mídia das mídias, uma plataforma capaz de integrar os mais diversos meios e oferecer ao público alternativas flexíveis e novas opções de entretenimento, comunicação pessoal e “autocomunicação de massa”, como diz o espanhol Manuel Castells.

Ainda usando a analogia do iceberg, a internet tem o poder de diluir, para engolir, a velha mídia.

A pesquisa da Secom-P.R. dá uma boa pista sobre o grande sucesso das plataformas eletrônicas das redes sociais. A formação de opinião entre os brasileiros se dá, em grande medida, na interlocução com amigos (70,9%), família (57,7%), colegas de trabalho (27,3%) e de escola (6,9%), o namorado ou namorada (2,5%), a igreja (1,9%), os movimentos sociais (1,8%) e os sindicatos (0,8%). Alerta para movimentos sociais, sindicatos e igrejas: seu “sex appeal” anda mais baixo que o das(os) namoradas(os).

Estes números confirmam estudos de longa data que afirmam que as redes sociais influem mais na formação da opinião do que os meios de comunicação. Por isso, uma informação muitas vezes bombardeada pela mídia demora a cair nas graças ou desgraças da opinião pública: ela depende do filtro exercido pela rede de relações sociais que envolve a vida de qualquer pessoa. Explica também por que algo que a imprensa bombardeia como negativo pode ser visto pela maioria como positivo. A alta popularidade do Governo Lula, diante do longo e pesado cerco midiático, talvez seja o exemplo mais retumbante.

Em suma, o povo não engole tudo o que se despeja sobre ele: mastiga, deglute, digere e muitas vezes cospe conteúdos que não se encaixam em seus valores, sua percepção da realidade e diante de informações que ele consegue por meios próprios e muito mais confiáveis.

É aqui que mora o perigo para a velha mídia. Sua credibilidade está descendo ladeira abaixo. Segundo a citada pesquisa, quase 60% das pessoas acham que as notícias veiculadas pela imprensa são tendenciosas.

Um dado ainda mais grave: 8 em cada 10 brasileiros acreditam muito pouco ou não acreditam no que a imprensa veicula. Quanto maior o nível de renda e de escolaridade do brasileiro (que é o rumo da atual trajetória do país), maior o senso crítico em relação ao que a mídia veicula – ou “inocula”.

A velha mídia está se tornando cada vez mais salgada para o povo. Em dois sentidos: ela pode estar exagerando em conteúdos cada vez mais difíceis de engolir, e as pessoas estão cada vez menos dispostas a comprar conteúdos que podem conseguir de graça, de forma mais simples, e por canais diretos, mais interativos, confiáveis, simpáticos e prazerosos. Num momento em que tudo o que parece sólido se desmancha… na água, quem quiser sobreviver vai ter que trocar as lições de moral pelas explicações didáticas; vai ter que demitir os pit bulls e contratar mais explicadores, humoristas e chargistas. Terá que abandonar o cargo, em que se autoempossou, de superego da República.

Do contrário, obstinados na defesa de seus próprios interesses e na descarga ideológica coletiva de suas raivas particulares, alguns dos mais tradicionais veículos de comunicação serão vítimas de seu próprio veneno. Ao exagerarem no sal, apenas contribuirão para acelerar o processo de derretimento do impávido colosso iceberg que já não está em terra firme.

* Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.

Argentina: TV Pública inteligente e polêmica questiona monopólio da mídia

Voltei de Buenos Aires recentemente. Estive na cidade por alguns dias e uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a forte polarização política que existe lá e em todo o país. De um lado, setores do governo, peronistas de diversos matizes, setores da esquerda e a maior parte da população mais pobre, que apoiam o governo da presidenta Cristina Fernandez de Kirchner. De outro, a oposição, composta por diversos partidos, inclusive setores do peronismo, pelos dirigentes do “campo” (agropecuária) e por quase toda a grande imprensa, capitaneada pelos jornais Clarín e La Nación, os dois maiores do país e donos de canais de TV e rádios. O nível de conflito político é alto, talvez maior do que o nosso nesse período já quase eleitoral, sendo que lá a eleição é só no ano que vem.

Uma das frentes mais radicalizadas nesta disputa é justamente a dos meios de comunicação. A presidenta Kirchner comprou a briga com os grandes grupos que monopolizam a mídia no país, e está batendo de frente com eles. Aprovou no Congresso a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, mais conhecida como “Ley de medios”, que só não entrou ainda em vigor porque os grandes grupos monopolistas e os setores políticos que os apoiam estão usando todos os recursos jurídicos possíveis para evitar que isso ocorra. Mas tudo indica que a lei, que fere de morte os privilégios que estes grupos têm hoje, controlando TVs (aberta e a cabo), rádios, jornais, internet etc., vai mesmo começar a vigorar ainda este ano. Com a nova lei, simplesmente não poderá mais haver grupos de sejam proprietários de todos estes meios ao mesmo tempo, nem em nível local e muito menos em nível nacional. No Brasil, por exemplo, seria uma lei que atingiria fortemente o poder da Globo.

Um dos elementos mais interessantes nesta batalha que vem sendo travada contra os grandes grupos que controlam a mídia é o programa televisivo “6,7,8”, exibido diariamente pela TV Pública (do governo federal). Trata-se de um programa dedicado, segundo seu apresentador, Luciano Galende, a fazer “uma resenha crítica dos meios de informação na Argentina”. O programa é muito bem feito, e bate pesado nos grandes jornais, rádios e TVs, desmascarando seus interesses, suas manipulações grosseiras e seu falso distanciamento ao noticiar e comentar os principais fatos políticos, sociais e econômicos. E bate de frente com os jornalistas que fazem o papel de porta-vozes desses interesses, principalmente aqueles articulistas que, do alto de uma pretensa “autoridade” jornalística ou profissional, se dedicam a defender os interesses do patrão, do grande capital, dos reacionários etc. Se compararmos ao Brasil, seriam as mírians leitão, os alis kamel, sardembergs, diogos mainardis e outros desse naipe.

O programa estreou a cerca de dois anos e vem aumentando sua audiência e repercussão, o que com certeza incomoda muita gente.

É um programa que a gente não está acostumado a ver no Brasil – e acho mesmo que em poucas partes do mundo haverá algo que se assemelhe a “6,7,8”. Não há meias palavras nem luva de pelica, a crítica é direta e aberta. Mas é uma crítica em geral bem feita, fundamentada, e quase sempre ilustrada com imagens ou textos que deixam aquele que é objeto da crítica em situação delicada, pois fica difícil negar certas coisas diante de evidências irrefutáveis.

Por exemplo, há poucos dias uma famosa apresentadora de TV, algo como uma Hebe Camargo argentina, confessou em seu programa que em 1977, durante a ditadura militar que matou pelo menos 15 mil argentinos, um sobrinha sua (e o marido da sobrinha) foi sequestrada pela repressão. Graças à sua intervenção junto a um general que conhecia, sua sobrinha foi solta, mas o marido continua desaparecido até hoje. No programa foram mostradas as imagens dessa mesma apresentadora, em 1978, durante o mundial de futebol na Argentina, afirmando que havia uma campanha orquestrada para “denegrir” o país no exterior, que na Argentina todos viviam bem e em liberdade. Ela foi uma das que apoiou a campanha da ditadura “nosotros argentinos somos derechos y humanos”, que visava desacreditar as denúncias de violações de direitos humanos que ali ocorriam naquele exato momento. Isso um ano após ela ter acionado o general amigo para livrar a sua sobrinha da tortura. Quer dizer, fica desmascarada a conivência, mais do que isso, o apoio dessa senhora à brutal repressão que houve no país. Ela sabia o que acontecia e apoiava o que era feito. Não há como ela negar isso. E o programa desnuda essa situação, com imagens que não podem ser desmentidas.

E desse mesmo modo vários outros temas são abordados. É impressionante a capacidade da produção do programa de achar imagens e textos em seus arquivos que desmontam as opiniões atuais de muitos dos comentaristas dos grandes meios de comunicação. Diante desses “desmentidos” feitos por sua própria voz e imagem, como reagir e negar a exatidão da crítica?

E, é claro, o programa elege seus amigos. Neste momento, Maradona é o maior desses amigos, por ter enfrentado a mídia e ter assumido posições políticas mais à esquerda e mais governistas.

O programa é montado de forma inteligente. Um apresentador, cinco debatedores fixos e dois convidados diferentes a cada dia. Esta bancada debate as matérias feitas pela produção, matérias sempre em tom forte, de denúncia e desmascaramento do que está sendo dito pelos grandes meios. Os debatedores são muito perspicazes, e os convidados quase sempre são muito simpáticos aos pontos de vista defendidos no programa.

Essa é uma das críticas que “6,7,8” recebe, a de não abrir espaço ao contraditório. É apenas em parte correta, pois para fazer a crítica da grande mídia o programa exibe o que a grande mídia diz. A diferença é que desmonta o que é dito, ao contrário do que estamos acostumados a ver, ou seja, tal comentarista fala um absurdo e fica por isso mesmo, não há debate ou contraditório. E quase todos os comentaristas da grande mídia dizem – por que será? – a mesma coisa, pensam do mesmo jeito. Com “6,7,8” o quadro muda. Estes comentaristas têm resposta, muitas vezes com base em coisas que ele mesmo disse em outros momentos. É claro que estes comentaristas não gostam nada disso, e acusam o programa de “constranger” sua liberdade de opinião, um argumento totalmente falacioso.

Outra crítica a “6,7,8”, esta mais consistente, é que se trata de um programa “oficialista”, ou seja, governista, pró-Kirchner. De fato é, e eles assumem isso, o que não deixa de ser uma postura pouco usual na TV, em qualquer parte. O programa não se assume exatamente como pró-governo, mas sim como a favor das principais linhas políticas que norteiam o governo, o que não significa concordar e aprovar tudo o que o oficialismo faz. Há críticas ao governo e aos seus membros, claro que não com a mesma intensidade que as feitas aos que estão do outro lado, mas o programa não é acrítico. E nem busca aquela postura, em geral falsa, do tipo “somos independentes e criticamos a todos da mesma maneira, estamos acima das diferenças entre os lados em disputa”.

Outra de suas características interessantes é que, vira e mexe, os debatedores do programa criticam as matérias feitas pela produção de “6,7,8”. Deve-se dizer que a produção – comandada por Diego Gvirtz – é mais oficialista que a bancada de debatedores, e por vezes tem a mão muito pesada em relação às críticas a certos jornalistas e comentaristas da oposição. E os debatedores do programa não deixam barato, criticam o seu próprio programa no ar, sem problemas.

Enfim, trata-se de uma experiência inovadora na TV, a começar pelo fato de se propor a fazer uma críticas dos meios de comunicação no veículo mais popular dentre todos eles, a TV, e não apenas aquela crítica mais teórica, mas sim a crítica direta, dando nome aos bois e usando as imagens dos outros canais de TV para fazer isso.

É certo que algumas das críticas feitas ao programa são corretas, mas sem dúvida é um espaço que oxigena a TV argentina, e sem dúvida está tendo repercussões importantes. Hoje, os jornalistas e comentaristas de todos os meios sabem que estão sob a lupa crítica de “6,7,8”, e que não podem sair falando coisas impunemente, haverá cobrança pelo que foi dito. Não se trata de censura, de nenhuma maneira, mas de debate público.

Para quem quiser dar uma olhada, “6,7,8” pode ser assistido pelo site da TV Pública argentina: www.tvpublica.com.ar. O programa vai ao ar às 21 horas todos os dias, menos sábado. Vale a pena.

*Flamarion Maués editor de livros e historiador.