Nas ruas de Buenos Aires, cartazes e grafites expressavam a expectativa de boa parte da população argentina que, desde 2009, aguarda a efetivação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, mais conhecida como “Ley de Medios”. “Monopolios o nación”, aponta categoricamente o impresso afixado no muro; “Clarín miente”, diz a pichação feita no alto de um dos muitos prédios novecentistas da capital argentina. As distintas formas de manifestação assinalavam a chegada do “7D”, ou 7 de dezembro, dia estabelecido pela Suprema Corte do país, em maio último, como prazo para que as empresas de comunicação apresentassem planos de adequação à nova legislação. Dentre outros pontos, as novas regras prevêem a divisão equânime do espectro eletromagnético entre entes públicos, privados e sem fins lucrativos.
Às vésperas da tão aguardada data, tema de ampla campanha do governo da presidenta Cristina Fernández de Kirchner, contudo, os juízes da Câmara Civil e Comercial Federal, Francisco de las Carreras e María Susana Najurieta, decidiram prorrogar a medida cautelar que mantém suspenso o artigo 161. Conforme este ponto da lei, caso os titulares das licenças de serviços não atendam à norma no prazo estabelecido, poderão tê-las transferidas. Na prática, com a implementação do regulamento, as empresas teriam que abrir mão do excesso de concessões que possuem. O grupo Clarín, por exemplo, ao invés das 240 concessões no sistema de cabo, nove rádios AM, uma FM e quatro canais na televisão aberta que detém hoje, passaria a ter até 24 licenças de TV a cabo, 10 emissoras de rádio e uma de TV aberta.
A suspensão deu seguimento à intensa disputa pública que se dá, dia a dia, desde que fora aprovada a lei. A amplitude da discussão que ocupa as capas dos principais periódicos em circulação pode ser percebida em conversas nos cafés, paradas de ônibus, táxis e afins. Toda a cidade debate seu sistema de comunicação. Para muitos defensores da lei, esse cenário já pode ser apontado como uma grande conquista. É o que defende a jornalista Mariana Moyano, professora da Universidade de Buenos Aires e integrante da equipe do programa “6, 7, 8”, atração da TV pública voltada à leitura crítica dos meios. De acordo com ela, “O debate e o nível de consenso a que chegou essa lei permitiu que as pessoas se apropriassem do tema. O principal grupo de oposição a ela hoje tem que se colocar contra uma lei democraticamente aprovada, pondo em risco, inclusive, sua credibilidade”.
Moyano afirma sem pestanejar: “O rei está nu”. De fato, o que ocorre na Argentina demarca uma ruptura com o silêncio imposto durante décadas em relação à organização e aos interesses que envolvem os meios de comunicação, assim como acontece em toda a América Latina. Naquele país, a intensa mobilização das entidades da sociedade civil organizada, desde 2004, em torno da Coalición por uma Radiodifusión Democrática, levou à compreensão de que era necessário mudar a legislação que organizava o sistema de comunicação. Fruto do período ditatorial, a Lei 22.285, de 1980, estabelecia limites à liberdade de expressão ao condicioná-la às chamadas “necessidades de segurança nacional” e legitimava o Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), organismo que tinha a função de supervisionar o conteúdo das emissoras e controlar o serviço de radiodifusão.
Além disso, a norma tratava a comunicação como negócio, por isso apenas entidades com fins lucrativos poderiam possuir licenças para explorar o serviço de radiodifusão. Isso significa que sindicatos, cooperativas, associações comunitárias e outros grupos estavam terminantemente excluídos do acesso aos meios, ambientes privilegiados para a disputa de ideias na sociedade contemporânea. As mudanças posteriormente efetivadas por governos democráticos, promovidas sob a égide da lógica neoliberal, não mudaram tal situação, ao contrário, reforçaram a concentração dos meios através da privatização e da fusão de empresas da indústria audiovisual, além de abertura de espaços para entidades estrangeiras.
“A ‘Ley de Medios’, ao contrário, parte da compreensão de que a comunicação é um direito humano.”, explica o integrante do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco), Néstor Busso. “Tomamos a comunicação como um direito humano, não como um negócio comercial ou um produto”, defende. As consequências de tal perspectiva estão inscritas na lei: o espectro eletromagnético é compreendido como um bem público que deve ser usufruído pelos diversos entes da sociedade de forma igualitária e a multiplicação das vozes veiculadas através dos meios de comunicação é assegurada tanto através dos mecanismos de fomento à produção quanto pelos limites postos à concentração, dentre outras medidas.
Embora a integralidade da norma ainda não esteja plenamente assegurada, suas consequências já podem ser diagnosticadas. No mesmo dia 7 de dezembro, por exemplo, foi inaugurada a transmissão do canal de televisão intercultural Wall Kintun TV, da comunidade mapuche Buenuleo, de Bariloche. Pela primeira vez, comunidades indígenas e trabalhadores da região puderam veicular suas histórias e imagens, fazendo frente ao único canal aberto que até então existia ali, o Canal 6, que pertence ao grupo Clarín. A Escuela Popular de Medios Comunitarios, localizada em Buenos Aires, também criada após a aprovação da nova lei, é outro exemplo do resultado da democratização da palavra que agora segue em curso na Argentina.
"Ley de Medios" se baseia em entendimento internacional e ampla participação popular
O advogado Damian Loretti, que contribuiu para a elaboração da proposta apresentada pela sociedade civil e incorporada pelo governo, explica que para avançar rumo à garantia do direito à comunicação a lei foi produzida a partir de diálogos com regramentos internacionais sobre direito à comunicação que foram fixados, por exemplo, pela Organização das Nações Unidas e pela Organização Internacional do Trabalho, bem como pelas leis antimonopólicas existentes em diversos países, dentre eles os Estados Unidos. Mesmo o capítulo que trata do desinvestimento – o que tem gerado a maior polêmica – é baseado no documento Indicadores de Desenvolvimento Midiático, publicado pela Unesco em 2008. O texto sustenta que, para incrementar o pluralismo e a diversidade nos meios, “as autoridades responsáveis de executar as leis antimonopólios contam com as atribuições suficientes, por exemplo, para negar as solicitações de licenças e para exigir o desinvestimento nas operações midiáticas atuais quando a pluralidade esteja comprometida ou se alcancem níveis inaceitáveis na concentração da propriedade”.
Loreti pondera o fato de a lei ater-se ao conteúdo dos meios, não à tecnologia utilizada para que possam chegar ao público. Ele destaca ainda os mecanismos de controle e participação social estabelecidos, tais como audiências públicas; criação da Defensoria do Público; medidas para tornar os conteúdos acessíveis às pessoas com deficiência; proteção para crianças e adolescentes; definição dos direitos do público e, inclusive, dos sentidos e funções do sistema público de comunicação. Tudo isso foi fruto de “um empoderamento concreto dos direitos de quem assiste cotidianamente as telas ou o rádio”, defende Loreti, que pontua o processo amplo de consulta popular ao qual foi submetido o projeto de lei. Além de basear-se nas propostas apresentadas pela citada coalizão, frente que reuniu centenas de personalidades e organizações políticas, dentre as quais centrais sindicais, universidades, sindicatos e movimentos sociais, o projeto de lei incorporou mais de cento e sessenta propostas apresentadas em audiências públicas e que estão apontadas no texto – que cita, inclusive, os nomes de seus propositores.
A consistência da lei e sua contribuição para a garantia de direitos são reconhecidas por entidades internacionais. Em entrevista recente, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas, Frank La Rue, afirmou que “a Argentina está assentando um precedente muito importante. Não só no conteúdo da lei, porque o projeto original que vi é o mais avançado que existe no mundo em lei de telecomunicações, mas também no procedimento que se seguiu, o processo de consulta popular. Parece-me que esta é uma lei realmente consultada com seu povo”. Já a ONG Repórteres Sem Fronteiras emitiu nota em apoio à “Ley de Medios”, na qual destacou ser a proposta um exemplo para a garantia da liberdade de notícias e informações.
Agora, a sociedade argentina aguarda nova manifestação da Suprema Corte, que já foi provocada pelo governo do país. Para pressioná-la, movimentos sociais e defensores da proposta foram à Praça de Maio no domingo, 09. O ato, convocado pelo governo para comemorar o aniversário da recuperação da democracia e o Dia Internacional dos Direitos Humanos, contou com milhares de pessoas, muitas das quais produtoras de comunicação e cultura. Entre microfones, lentes, percussões e vozes, um sentimento: é necessário mudar a comunicação para consolidar a democracia e garantir que o enfrentamento ao monopólio possa dar lugar à diversidade de vozes e de culturas que existem no país.