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Rede pública terá autonomia de gestão, diz Franklin Martins

Confira uma síntese do que defendeu o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, em entrevista concedida ao programa Roda Viva da TV Cultura no último dia 23/4, sobre a proposta de criação de uma rede pública nacional de televisão.

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A televisão pública que está sendo preconizada pelo Governo Federal certamente não é uma TV estatal. Não é uma TV que vai ficar fazendo comunicação do governo, jornalismo chapa branca ou procurando passar os pontos de vista do governo para a sociedade. É uma TV pública, no sentido de que ela não vai se guiar pela lógica comercial. Isso significa que ela não precisa estar reunindo, perseguindo e mantendo altíssimos índices de audiência e, portanto, repetindo a mesma programação sempre. A TV comercial está condenada à repetição. A TV pública pode experimentar. Pode ter os vários Brasis dentro do Brasil que é a televisão e pode fazer o que se faz no mundo todo — ou seja, é uma TV que tem cultura, tem jornalismo isento, tem debates de assuntos de maneira aprofundada. É aberta para a produção independente, é aberta para a produção regional. E para garantir que não seja o governo controlando tudo isso, ela tem uma forma de gestão pública.  

O decreto que previu a criação da TV digital prevê ainda a possibilidade de quatro canais de TV pública – um de governo, um outro de cidadania, outro de cultura e um último de educação. Evidentemente nós não vamos começar com quatro canais. Nós não temos condições de fazer isso. Nós vamos começar com uma TV que vai ter um pouco disso tudo. Ela vai ser basicamente uma TV que vai ter jornalismo, debate, aprofundamento de questões. Vai ter cultura dentro dela, uma abertura para a produção independente que é fundamental. Ou seja, não é apenas uma estrutura central ou mesmo televisões regionais que produzem conteúdo. Ela tem que ter uma abertura para essa renovação que a produção independente traz e vai ter que estar aberta para a produção das diferentes regiões, dos diferentes estados. No primeiro momento ela será uma TV de certa forma generalista. Aos poucos pode ser que a gente possa ir dividindo. Evidentemente, já no primeiro momento, ela deverá ter algo também de TV educativa no primeiro momento. É talvez a primeira TV que possa se desmembrar dessa TV mãe, digamos assim.  

O Governo Federal está discutindo exatamente três questões que são essenciais para em função delas você ter uma TV pública, um modelo de gestão, um modelo de financiamento e um modelo de rede pública. Mas a idéia é partir do que o Governo Federal tem no momento atual, isto é, a Radiobras e a TV educativa do Rio e do Maranhão. A idéia é fundir essas estruturas, dar a espinha dorsal para uma programação que ao mesmo tempo se abra para a parceria com um conjunto de TVs culturais, educativas, universitárias já existentes.  Então a idéia é estabelecer uma parceria que vá aos poucos formando uma rede pública de televisão. Nós ainda não temos uma rede pública de televisão estruturada no Brasil. Nós temos o quê? Várias TVs públicas, universitárias, culturais, mas que você não pode dizer que constituem uma rede pública com um projeto próprio, com uma parceria definida e é isso que o Governo Federal pretende: exercer um papel de liderança dentro disso, quer dizer, que seja capaz de convocar, trazer para o mesmo movimento o conjunto de emissoras com esse caráter e ser capaz de constituir uma rede pública.

Qual a diferença entre esse modelo, descrito em linhas gerais, e o modelo seguido por exemplo pela TV Cultura? Eles são modelos semelhantes, só que a TV Cultura é uma TV do Estado de São Paulo e uma TV que dificilmente conseguirá exercer esse papel nacional de agrupar o conjunto das televisões. É preciso ver que o Governo Federal joga um papel de liderança dentro disso. Vai ter que ter parceria com a TV Cultura? Claro, e com a rede Minas, com a TV da Bahia, com cada uma delas, mas evidentemente só o Governo Federal possui condições para poder nuclear esse processo.        

Nós temos que ter um modelo de gestão, um modelo de gestão público. Ou seja, não é o estado quem manda. O governo, evidentemente, nomeia, compõe os comitês, compõe os conselhos etc., mas ele faz isso levando em conta a representação da sociedade, como faz a TV pública no mundo todo. E no mundo todo ela funciona assim e sempre funciona, de vez em quando, tendo problemas, tendo crises. Não existe um modelo perfeito que evita qualquer tipo de coisa. Agora, interferência na linha política do jornalismo, isso você também tem na TV comercial, vamos ser claros. Não é que a TV comercial faz o jornalismo sempre isento e não tem pressão e a TV pública tem. O problema existe para todo mundo. Como é que você resolve isso? Tendo um modelo de gestão pública e, principalmente, tendo um telespectador, um ouvinte, um leitor atento, vigilante que cobra e exige atenção. Eu acho que a sociedade quer isenção do jornalismo. Ele não quer um jornalismo chapa branca e ele não quer também um jornalismo que considere como sua missão a de fazer a oposição ao governo. Ele quer um jornalismo que se baseie naquilo que é o bom e velho jornalismo, baseado em fatos e não em preconceitos ou notícia embrulhada.

Não chegamos ainda ao seu modelo de financiamento. A TV pública, ela vai precisar ter um financiamento que garanta que ela vá funcionar independentemente da pressão do governo. Porque não é apenas no modelo de gestão que ela garante a sua independência, é também na questão do financiamento. Então, parte virá de dotações orçamentárias, parte virá de prestação de serviços que ela possa cumprir, mas parte virá do patrocínio de grandes empresas. Eu, por exemplo, sou contra comercial na TV pública. Mas sou a favor do patrocínio, ou seja, onde se associa a marca da estatal a determinado programa. Isso já vem sendo feito no Brasil, não tem nenhuma novidade.        

Também acho que há dotações orçamentárias que ela irá receber, isso tanto do Governo Federal como da rede pública, e também de governos estaduais que eventualmente se somem a essa rede. Teremos prestações de serviço, porque, por exemplo, a Radiobrás, hoje em dia faz comunicação de governo. Ela continuará uma parte dessa empresa, dessa estrutura que vai surgir com a fusão da Radiobras e da TV e prestará comunicação, continuará a fazer a comunicação de governo. Mas isso é um departamento à parte que vai ser remunerado. Haverá a prestação de serviços, por exemplo, de programas educativos que são feitos para o Ministério da Educação. Agora, a TV pública vai precisar de patrocínio e vai precisar também se abrir para outras formas possíveis. No Brasil nós não temos muita tradição de doação. Nos Estados Unidos, por exemplo, boa parte do orçamento da TV pública é mantido com doação.        

Acho que o governo tem que liderar a criação de uma rede pública, a rede pública vai fazer muito bem ao país. No mundo todo onde tem rede pública ela ajuda a televisão, inclusive comercial, a ter uma melhor qualidade. Vou te dar um exemplo. Nós temos um país em que 30% das pessoas vieram da África, têm origem na África. Qual é o programa sobre a África que existe na TV comercial brasileira? Digo mais. Qual é a televisão brasileira que tem um correspondente em algum país da África? Por que é que nós vivemos de costas para a África?   Eu acho que a TV comercial, pela sua dinâmica, provavelmente jamais fará isso. Ela não pode fazer isso porque muitas vezes ela está comprometida a determinados índices de audiência, ela arrisca pouco e aí petisca pouco. Acho que nós temos que fazer isso. Agora, por outro lado, eu acho que o governo tem que sempre procurar informar melhor.   

O Estado Brasileiro tem que procurar informar melhor. Eu acho que informação pública deve ser de domínio público. Evidentemente isso é um processo que não é um estalo ar de dedos. Você tem que ir aos poucos, construindo. O governo tem que ir sendo criticado. O governo tem que ir se abrindo. Agora eu acho que uma coisa não elimina a outra, acho que tem que estruturar e liderar uma TV, uma rede pública e, ao mesmo tempo, tem que sempre botar à disposição da sociedade, e através da mídia, de modo geral, a informação que é de domínio público. Há uma série de questões que não se discutem na nossa TV comercial. Por quê? Porque isso de se discutir, num primeiro momento, tira a audiência. Então eu acho muito importante que possa se aprofundar o debate.  

Eu acho que podemos fazer um jornalismo muito melhor, aprofundar muito mais. Debater muito mais as questões. Não é apenas publicar uma opinião. Por exemplo, a questão do etanol — eu não tenho visto grandes debates. Você vê reportagem, uma "falinha" de um, sonorinha do outro, mas grandes debates, grandes debates sobre a questão de crescimento econômico, meio ambiente, como eu estava dizendo não tenho visto. Acho que podemos avançar muito mais. Eu não estou com essa satisfação toda em relação à qualidade do que nós já fazemos como jornalismo. Nós podemos fazer muito mais.        

Eu quero ainda dizer o seguinte, que essa história de que a publicidade e a relação com a imprensa não podem estar na mesma estrutura, tem nela um pouco de hipocrisia. Primeiro porque no país inteiro é assim. A começar aqui por São Paulo. Ou seja, quem cuida das verbas de publicidade do governo do Estado de São Paulo é também a estrutura que cuida da relação com a imprensa. Não é uma coisa dividida. Foi assim sempre no país. Por exemplo, no governo Fernando Henrique era assim. Sérgio Amaral foi porta-voz durante 5 anos, e durante 3 anos e acho que 9 meses ele também, ao mesmo tempo, foi o Secretário da SECOM. Quer dizer, então, que esse é um modelo que existe. Mais do que isso, eu acho que podem se manter os guichês separados. Os grandes jornais do país, as grandes televisões, as grandes rádios, as grandes empresas de comunicação, elas têm uma redação e têm um departamento comercial. Os dois respondem ao mesmo dono. Se os donos conseguem manter os departamentos separado eu não entendo por que é que a gente acha que o governo não vai conseguir. Agora, se errar, se houver promiscuidade, se houver confusão, que haja a crítica. Agora, por antecipação, eu acho um pouco demais.                   

O governo e a imprensa tiveram uma relação muito dura, muito difícil nos últimos tempos. Nós atravessamos uma crise política brutal no último ano e meio. Eu diria que essa crise política não foi apenas brutal, foi selvagem, valeu tudo, o esfola e mata, o linchamento, paulada para tudo que é lado. O importante era desqualificar antes para não ter que discutir depois. Quer dizer, essa crise envenenou o país. E quem é que decidiu que ia desintoxicar o país? O eleitor. O eleitor não apenas elegeu o Presidente Lula pelo segundo mandato com a votação de 61%, mais ou menos o mesmo índice que ele teve na eleição anterior. Mais do que isso, o eleitor deixou claro longo de toda a campanha que ele queria um debate público qualificado e que não queria que a desqualificação prevalecesse sobre o debate.        

Vamos dar exemplos: todos os candidatos que partiram para um tipo de enfrentamento que passaram do ponto caíram imediatamente nas pesquisas. Aconteceu isso com a candidata Heloísa Helena, aconteceu isso com o candidato Geraldo Alckmin. Todos os candidatos que recusaram o debate sofreram, cairam imediatamente nas pesquisas. Aconteceu isso com o candidato Lula quando ele não foi ao debate e caiu nas pesquisas. E aconteceu isso com o candidato Alckmin quando ele se recusou a defender os pontos-de-vista históricos do partido na questão da privatização e despencou nas pesquisas. O que o eleitor mostrou o ao longo disso? Ele disse: eu quero um debate qualificado, eu quero discussão dos grandes problemas nacionais. Eu não quero viver nesse clima de esfola e mata. Isso foi um freio de arrumação para todos nós na sociedade. Foi para o governo, que está obrigado a ter uma relação mais tranqüila, mais profissional, mais evoluída com a imprensa e com a oposição. Foi para a oposição que está tendo de procurar o seu rumo porque está ficando claro que não basta aquele velho negócio que dizia, sangrar o Lula até à morte, isso não leva a lugar nenhum. Era obrigado a ter proposta. E a mídia também está tendo de refletir sobre o seu papel.   

Eu não vou aqui, hoje como Ministro, querer falar sobre o que a mídia fez ou deixou de fazer. Mas todos nós, jornalistas, sabemos que a mídia está na berlinda. E a mídia quando vai para a berlinda é ruim para ela. É como juiz de futebol que aparece demais em campo, se percebe a presença dele, mais do que a dos jogadores, há algum problema.   

Então, o que é que vai acontecer? Eu acho que a mídia vai sair melhor disso. Porque a crítica que a sociedade vai fazer, que o ouvinte, o leitor vai fazer, vai forçá-la a fazer uma reflexão e se sair melhor. Então, esse freio de arrumação é bom para todo mundo. A relação do governo com a mídia melhorou já nos últimos meses. Melhorou por quê? Porque a sociedade determinou que melhorasse.        

No mundo, a BBC de Londres é o modelo mais conhecido de TV pública. Independente do estado, é administrada por um conselho formado por integrantes da sociedade e mantida pela própria população. Criou uma marca de qualidade e reconhecimento com uma programação mais rica de conteúdo que as TVs comerciais. No Brasil, o modelo mais próximo de TV pública é o da TV Cultura de São Paulo. Administrada por um conselho Curador e mantida por um misto de verbas públicas, de publicidade e de prestações de serviços, ela também tem uma programação diferenciada com ênfase em cultura e cidadania.   A discussão sobre a televisão pública, que não é nova, é retomada agora com o fórum nacional de TVs públicas que articula para o mês que vem uma definição sobre o papel, a programação, as formas de financiamento e como montar uma rede nacional de TV pública no Brasil. A idéia é ter essas definições até o final do ano, antes da transição para a TV digital. A mudança de tecnologia pode abrir espaços para mais canais de TV. E é essa a oportunidade para ampliar os canais alternativos, oferecendo programação de qualidade, mais voltada ao interesse público do que ao interesse do mercado.        

Uma das questões fundamentais, a meu ver, dentro da TV pública é a criação de um espaço para a produção independente de um projeto que seja capaz de financiar, atrair, organizar a produção independente em todo o país. Um dos problemas da televisão comercial no Brasil é que ela, basicamente, produz praticamente tudo ou quase tudo daquilo que ela veicula, diferentemente de outros países no mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos as emissoras são obrigadas por lei a veicular um percentual elevado de produção independente – embora, muitas vezes, a produção independente lá não tenha nada de pequena, seja uma produção de grandes substituídos e etc. Mas se separa a figura de quem produz e quem veicula, de quem dissemina.   

Eu acho que no nosso caso, nós temos que procurar ter não só um fundo como ter uma programação para que você possa ter produção independente enquanto fornecedor regular de boa parte da grade da TV pública. Isso é fundamental para quê? Porque você tem criatividade, inovação. Você traz padrões novos. Você arrisca mais. Quer dizer, a televisão pública, ela tem que ser também o local de experimentação. Ela tem que ter um local onde a novidade encontra espaço e não apenas a repetição que é, de certa forma, um padrão da TV comercial.