O ex-ministro da cultura Gilberto Gil concedeu entrevista a jornalistas da Terra Magazine em Salvador durante o Carnaval. Gil falou sobre a nova fase na carreira, sobre a versão baiana da mais tradicional festa popular do Brasil e sobre cultura, novas tecnologias e propriedade intelectual.
Nesta parte da entrevista, o compositor fala das discussões lançadas pela turnê de Banda Larga Cordel. Vê uma abertura democrática inexorável a partir da quebra dos monopólios das indústrias culturais, especialmente a fonográfica. E defende a pirataria como forma de resistência contra os obstáculos que impedem a circulação livre de conhecimentos. "Pirataria é desobediência civil", crava.
A indústria fonográfica cedeu a essa nova democracia?
Sim. Se não cedeu ainda, parcialmente ou em alguns aspectos, é uma questão de tempo, não tem muito mais para resistir. Não sei em que base essa lógica de hegemonia e dominância do modelo industrial da cultura, seja lá por que for, em que base eles vão buscar sustentar uma visão de manutenção dos seus interesses intactos. Não sei. Não vejo. Falo de democracia exatamente nesse sentido. Há um ímpeto. Tudo o que eles próprios criam, tudo o que é produzido pelo mundo hegemônico da dominância capitalista, é elemento de fortalecimento da base democrática. Você pega todas as novas tecnologias, tudo o que está na Bolsa da Nasdaq, os grandes empreendimentos da indústria de ponta no mundo… Eu estava falando de um computador de dez dólares! Vai estar aí o projeto da Índia e do Japão. Quando você fala de um computador de dez dólares, de qual exclusão digital você pode estar falando a médio prazo? No momento em que você tenha computadores espalhados por aí, como é que você vai evitar o MP3, o MP4 e etc. etc. etc.? Não vai.
Ainda pode haver uma RIA, a sociedade das indústrias fonográficas americanas, que faz lobby no Congresso, ainda pressiona a Suprema Corte americana pra não dar ganho de causa aos jovens… Ainda pode, por quê? Porque é a classe média americana, a sociedade americana que tem computador. Mas os grandes mercados mundiais da música ainda estão com eles, que ainda vendem discos, ainda vendem DVDs. No momento em que um menino lá da tribo de não sei onde, da periferia, tenha computador, e as lan-houses estejam em todas as casas, cada casa seja uma lan-house (risos), em todas as favelas… Como eles vão controlar o desenvolvimento? Não é o desdobramento natural dos produtos, das tecnologias, dos instrumentos, das ferramentas, que eles mesmos ofereceram?
Certo…
Eles criaram o telefone celular. Há cinco anos, no Carnaval da Bahia, eu me lembro de um anúncio que dizia assim: "Compre seu celular pelo preço de um abadá" (risos). O marketing da comercialização feita pelos agentes aqui na Bahia já percebia o imbricamento. Uma coisa já está com a outra. O que o cartaz queria dizer? O cartaz dizia de uma acessibilidade nova, de uma popularização. Como o abadá era popular aqui no Carnaval, o celular também já era. Trate a idéia de adquirir o celular da mesma maneira que você trata a idéia de brincar o Carnaval.
No Brasil, não dá pra fazer uma inversão? Grande parte dos artistas se acomodou muito mais à visão conservadora do que a própria indústria fonográfica. Porque a indústria sente no bolso.
Sente mais rápido porque os artistas recebem por último! (risos) Eles recebem as migalhas que a indústria quer deixar pra eles. Mas quem recebe mesmo o volume polpudo é a indústria, eles é que sabem onde está o buraco. Eles estão começando… Mesmo que tenham chegado tarde também. Você vê que toda análise mais acurada que o sistema faz nos Estados Unidos e na Europa é de que eles chegaram tarde. Tanto é que eles não conseguiram muito mais, nem conseguem. A União Européia chegou primeiro do que eles, não é? Os fóruns informais mundiais, as redes mundiais, a blogosfera chegou primeiro. Todos chegaram primeiro do que eles.
Por que resistir?
Eles querem resistir. Porque isso é natural, eles são refratários, são acomodados, e são ciosos dos seus interesses, que eles tendem a interpretar como seus direitos. Acham que seus interesses têm que ser interpretados como seus direitos. Às vezes não são seus direitos, são só seus interesses, que não precisam ser respeitados como direitos. Não são direitos, não. A pirataria tem direito a desafiá-los. Pirataria é desobediência civil. Tem que ser vista assim, também. Não tem que ser vista só como criminalidade. Tem que ser vista como desobediência civil! Assim como os protestos das esquerdas, dos sindicatos…
É resposta à exclusão cultural?
É resposta à exclusão, um desafio para a criação de novos modelos, um desafio para a abertura de espaços mais democráticos, de participação. Não à toa está sendo politizada. O Partido Pirata já tem 2% do eleitorado na Suécia. Já tá concorrendo, já tem candidatos concorrendo na Alemanha. Por exemplo, nós já temos o OPP, o POP, Partido da Organização Pirata, na Suécia…
Tem que ser Pop mesmo…
É… No Brasil, devia ser Pop!
O Brasil já teve a pirataria avant-première, com Tropa de Elite.
Pois é! Coisas desse tipo. São antecipações irrecusáveis, que precisam ser feitas, porque são experimentalistas, são feitas com a missão generosa de ampliar os espaços, forçar a elasticidade. Não são necessariamente só associação criminosa. Então, a criação dos partidos da pirataria… Estou falando de três ou quatro países que já os têm, como a Suécia, uma civilização, uma sociedade irrepreensível, pelos nossos próprios padrões de leitura. Tá lá o partido advogando as questões da pirataria, colocando em leitos mais seguros, em canalizações mais convenientes a discussão sobre o que é propriamente crime, o que não é crime, o que deve ser descriminalizado, através de novas legislações. Uma idéia de que, ainda que seja pirataria hoje, não deverá mais ser pirataria amanhã.
Com sua obra, você abriu um flanco para a pirataria?
É evidente. Fiz propositalmente, pra dizer: nós precisamos ter bases experimentais para essa elasticidade, para essa visão nova, para essa nova formação de compartilhamentos. Fiz, fiz, porque fiz.
Mas foram dois flancos: na sua obra e no Ministério da Cultura, abrindo o debate.
Porque o Estado tem esse papel, o Estado renovado… Na nossa conversa anterior à entrevista, falávamos no papel da próxima eleição no Brasil. O discurso eleitoral vai ter que incorporar essas questões todas. Aqueles que almejem à presidência vão ter que cuidar dessas coisas, vão precisar falar dessas coisas, vão precisar trabalhar essas questões de uma forma mais adequada, mais contemporânea. Não vão poder ignorar essas questões. Ali, como ministro, eu disse: na parte que me toca, esse ministério é da Cultura e uma das questões a reformar no País é a Cultura, a interpretação do papel do Estado, do papel da sociedade, da sociedade do direito, o que é o Direito, quais são os direitos difusos que vão aparecendo cada vez mais, a partir de novas configurações de sociabilidade. Fiz mesmo. Fiz com toda consciência.
E o direito autoral? E a descentralização da cultura, que era uma das principais metas de sua gestão?
Claro, propriedade intelectual, direito autoral, patentes. O candidato (José) Serra, por exemplo, vai ser obrigado a colocar essas discussões fortemente na pauta dele. Porque ele, como ministro da Saúde, quebrou a patente (de medicamentos). Quer dizer, em função de interesses públicos. É isso! (risos) Vai ter que falar do assunto…
Pronto, jogou na agenda de Serra!
Na agenda… O Partido Pirata já devia estar cobrando… (risos)
No Banda Larga, você compôs suas músicas a partir dessa fragmentação, dessa pluralidade que está por aí. No próximo, depois de Banda Larga, a inspiração vai ser a mesma? Pra mais, pra menos?
Não sei. É aquilo que a gente falou: ainda estou vivendo uma inocência.
O que te inspira?
Ah, eu acho que por uma questão natural de estar nesse movimento, estar nessa tendência, vou ainda querer esclarecer um pouco mais. São questões novas, por exemplo, aquilo que a gente fala em "Os pais". Os pais são contra isso, contra aquilo outro, mas ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais. Então, acho que eu vou um pouco querer fazer isso nas produções artísticas, nos discos, pra usar uma expressão antiga. Os discos são tribunas, né? Tem disco pra tudo. Ecoam vontades, demandas, lutas, etc. Eu vou, provavelmente, querer fazer no meu próximo disco ainda uma plataforma de lançamento dessas idéias, dessas questões, desses questionamentos, dessas ponderações. Provavelmente. Mas eu não sei.
Começou a compor?
Já, mas eu ainda não comecei, digamos assim, a centralizar no conceito. "Quero uma canção que fale disso, quero uma canção que fale daquilo…" Ainda tô na base do laboratório com as substâncias ainda em separado, vendo como é que eu vou combinar, pra depois, quando eu tiver condições de produzir: "isso aqui é combinação desse elemento com esse", aí então eu vou escolher o que é que eu vou produzir. Eu misturei preto com vermelho, deu isso; misturei azul com amarelo, deu verde. Aí então que eu vou usar verde pra pintar isso. Vou usar vermelho pra pintar aquilo outro.
"Não tenho medo da morte" traz essa indefinição?
Ah, ali então… É aberto pra tudo. Ali, é aquilo: a gente é de uma transitorialidade absoluta, uma finitude, com horizonte irremediável. Tudo isso tem um fim, portanto só vale a pena, na verdade, aquilo que você amealhou, no sentido mais profundo dos valores. É aquilo que você botou na sua bolsa. É aquilo que você tem como valor, sua moeda de troca com a vida, com o mundo. Aquilo com que você se faz compreender. Aquilo com que você interpreta os outros para compreendê-los. Aquela música eu gosto. Só fiz o disco por causa dela.
Nasceu num quarto de hotel?
Foi, em Sevilha. Eu tinha ido a Sevilha pra um encontro sobre internet, sobre novas tecnologias, onde estava o Antonio Damásio, neurocientista português, que fez "O erro de Descartes". Estava ele, Manuel Castells, o grande teórico catalão, o John Perry Barlow, do cyberspace, e vários outros desse campo. Estávamos nesse seminário, três ou quatro dias discutindo essas questões todas. Um dia, de manhã, eu acordei com aquela música. Eu escrevi toda, todo o poema, todo assim bru-bru-bru, as quatro estrofes. Cheguei no Rio depois, chamei meu filho Bem, mostrei a ele: "Olha, tem esse poema, essa letra… Vamos fazer alguma coisa? Queria fazer uma coisa meio toada nordestina". Aí ele programou na máquina um ritmo, eu peguei o violão e saí cantando… Fiz aquela melodia, sem nenhuma elaboração, sem nenhuma veleidade musical, propriamente, sem nenhuma pretensão de sofisticar. Nada. Como, diante daquelas palavras, um canto se esboçaria? E ele se esboçou daquele jeito, com aquela melodia, e aí pronto.
Na fase em que elaborou essa canção, você ainda estava em seu convívio direto com a política…
Tava, tava. Quando aparece o presidente ali…
Isso. Mas como é que, com todas aquelas indagações, você conseguia conviver com os vazios da política. Porque há um vazio em Brasília, o vazio da burocracia…
De tudo.
O vazio dos prédios, o vazio de algumas pessoas com que você era obrigado a conviver. Como era lidar com todos esses vazios?
A gente tem esse vazio total, de tudo. O vazio que está em todas as coisas. E cabe a nós, com nossa alma e nosso espírito, com nossa inteligência e nossa cultura, cabe a nós preencher esses vazios. É isso que a gente faz o tempo todo. É a obra do poeta. O poeta vai dando sentido à política. Porque ela é só discussão vazia, ela tem que ser necessariamente um vazio onde caibam todas as contradições dos discursos múltiplos. O que é o espaço político? É a ágora, onde todo mundo fala, onde todo mundo defende sua visão parcial, seus interesses. A política é o conflito, o choque, que só pode se dar no vazio. E só pode produzir vazio (risos). É vazio por forma e por conteúdo. A poesia é esse outro lado. É uma dedicação generosa a dar sentido às coisas, que é o papel do poeta. É isso que nós devemos continuar fazendo. Esse é o nosso papel.
Quais são os próximos passos de Banda Larga?
Banda Larga deve fazer agora algumas cidades do Norte. Faltam três do Nordeste, algumas do Norte (Manaus, Belém), algumas do interior de São Paulo, onde eu tenho compromisso por patrocínio. Um dos meus patrocinadores é a Telefônica, que tem interesses específicos em praças no interior de São Paulo, levar esse tipo de mensagem, essa associação de marca com o conteúdo cultural aproximado. Então, vou fazer cinco cidades do interior de São Paulo, e aí tem algumas capitais do Sul que ainda não fui, Porto Alegre e Florianópolis… E eu não quero também estender muito o Banda Larga, cobrir todo o território brasileiro…
Turnê ainda é um formato antigo?
É aquela coisa, eu não preciso… Primeiro, porque eu não tenho mais energia pra isso, nem nada. Segundo, porque os acessos múltiplos que todo mundo pode ter aos vários produtos do Banda Larga são franqueados, cada vez maiores… Claro, eu posso chegar com um show do Banda Larga, mas eu prefiro chegar com outra coisa, não fazendo só aquele repertório.
O acesso a Banda Larga é franqueado. O espectador pode tirar fotos, gravar, colher imagens. Mas qual é o saldo dessa experiência?
Eu não sei direito.
Da turnê.
Não sei. Não tenho muita curiosidade no sentido de usar a econométrica pra estabelecer isso, pra saber medir.
E no sentido do que você queria?
Estou lá, estou cantando, tem a sonoridade razoavelmente modificada com a banda, com os instrumentos, com os computadores, que também são um dos elementos do trabalho. Isso também está sendo levado pro público. A gente vai, provavelmente, fazer um DVD ou um produto similar, complementar, que falte… Mas eu tirei da cabeça essa questão. Fico mais preocupado na conformação geral do perfil de modelo do negócio. Qual é o modelo através do qual a gente vai ofertar, fazer essas ofertas novas e receber o pagamento por essas ofertas? Como a gente vai fazer essa troca com esses mercados que estão aí? Fico mais preocupado com esses traços gerais da remodelação do que, na verdade, com uma econometria clássica, que fica ali medindo resultado…
Mesmo da crítica?
Mesmo da crítica. Não quero saber. A crítica que ande junto, que caminhe. Porque eu entendo que a crítica tem todo o direito – até mais, o dever – de continuar fazendo suas leituras, suas interpretações, etc. O que é preciso, apenas, é que passem a trabalhar um pouco mais com essas novas lógicas. Eu, por exemplo, nas críticas de Banda Larga, ressenti um pouco essa questão, a exigência de um disco… "Ah, mas não é um disco!"
A crítica está presa a coisas que você já deixou?
Mas é isso que eu digo! Se eu estou dizendo que não é um disco, pra que discutir que deveria ser um disco? Discuta o fato: "não ser um disco: o que é isso, então?". Em não sendo um disco, como é, e pá e tal… Em que medida estamos suficientemente informados sobre "não ser um disco". Orientar a crítica. Não tô dizendo que deixem de criticar ou deixem de ver, de encontrar lacunas, de encontrar vazios, deficiências no trabalho. Mas, não. É um pouquinho caminhar junto com a proposta, caminhar pra onde a gente está caminhando. É só isso que eu achei: tinha um certo viés retrô na visão da crítica. Mas, tudo bem!