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Censura, não. Proteção.

Tem sede na Suécia o principal observatório das relações entre mídia e infância do mundo. A International Clearinghouse on Children, Youth and Media, criada em 1997 pela Unesco, monitora o cumprimento da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente no que diz respeito aos programas de tevê e, cada vez mais, também à internet e aos jogos eletrônicos. 

No país-sede da instituição, as tevês não podem exibir comerciais que tenham como público-alvo crianças com menos de 12 anos. As faixas horárias também são seguidas com rigor. Cecilia von Feilitzen, coordenadora científica da Clearinghouse e uma das principais estudiosas do tema no mundo, conversou com CartaCapital e, ao tomar pé da situação do Brasil, levou dois sustos. Um, ao saber que a classificação indicativa foi tratada como tentativa de censura. Outro, quando descobriu que os brasileiros assistem, em média, cinco horas de tevê por dia

No último anuário da Clearinghouse, é citada uma pesquisa que mostra a relação entre os programas infantis e o aumento da obesidade e até diabetes do tipo 2 na infância. A mídia tornou-se um problema de saúde pública infantil?
Cecilia von Feilitzen – Sem dúvida. A televisão tem também aspectos positivos, mas, em muitos países, pode ser considerada uma questão de saúde pública, pois determina certos padrões de comportamento das crianças e adolescentes. E não estamos falando apenas dos programas infantis. A partir dos 7 ou 8 anos, é comum que as crianças queiram ver o que os pais vêem, de reality shows a programas violentos e, pela televisão, comecem a conhecer o mundo. O problema é que eles são menos críticos e mais impressionáveis que os adultos. 

A influência da tevê vem crescendo?
Ela existe e é discutida desde o início da tevê e, antes disso, dizia respeito aos filmes. Durante todo o século XX, discutiu-se a influência negativa exercida, sobretudo, pela ficção que abusa da violência. Mas é fato que a situação piorou a partir do advento da tevê por satélite, em meados dos anos 80. Até então, as tevês exibiam apenas os programas nacionais, que podiam ser, até certo ponto, regulados. Com o satélite, a audiência da tevê dobrou no mundo e os canais se propagaram. E hoje, conforme avança a tecnologia, a preocupação com os efeitos nocivos da tevê só aumenta. Na Suécia, por exemplo, temos uma série de restrições para proteger crianças e adolescentes, mas não temos poder sobre os programas produzidos em outros países e transmitidos via satélite. 

Os tipos de restrição variam muito na Europa?
Não há regras únicas para a União Européia. Em muitos países, boa parte da programação infantil é composta de desenhos importados e, sendo assim, os governos locais não conseguem controlá-la. Mas nos países do norte da Europa, como a Suécia, os programas infantis são, sobretudo, feitos pelos canais públicos e as regras são claras. 

É verdade que é proibido anunciar produtos infantis durante a programação voltada às crianças?
Na Suécia, desde o fim dos anos 90, não são permitidos comerciais voltados às crianças, em nenhum momento da programação. Em outros países, a discussão estende-se, inclusive, para a propaganda de alimentos. A Grã-Bretanha e a Noruega proibiram, em certos horários, os comerciais de junk food. 

A seu ver, que medidas restritivas são razoáveis e não configuram coerção da liberdade da expressão?
Todos os países europeus, neste momento, têm regras que estipulam horários para a exibição de programas. Na Suécia, programas considerados inadequados para crianças não podem ir ao ar antes das 9 da noite. Em outros lugares, o horário-limite pode ser um pouco mais tardio, mas há uma espécie de agenda comum que todos seguem e é fiscalizada, em geral, por conselhos mistos, formados por gente de diversos setores. 

Quais os limites entre a regulação e a liberdade de expressão?
A liberdade de expressão é, freqüentemente, a liberdade de expressão de umas poucas pessoas que têm acesso à mídia, como os próprios jornalistas, políticos, celebridades e uma certa elite. Mas as crianças também devem ter direito à liberdade de expressão e à proteção contra o marketing de bebidas alcoólicas e de ideais corporais inatingíveis. Muita gente não tem direito de se expressar através da mídia. Então, não é justo defender os direitos de expressão apenas da mídia comercial. 

No Brasil, a discussão sobre classificação indicativa foi tratada, pelas tevês, como uma tentativa de censura. Isso acontece em outros países?
Censura não tem nada a ver com estabelecimento de faixas horárias. Impor horários e definir o que é aconselhável para crianças não têm nada a ver com censura, é apenas um aviso. Surpreende-me ouvir que a classificação seja tratada como censura. Em quase todos os países, são estabelecidos horários e estão previstas possibilidades de sanção para quem não os cumpre. Na Europa, na Austrália e outros lugares discute-se, inclusive, a insuficiência da auto-regulação. Deve haver grupos independentes que monitorem a programação. Nos Países Baixos, há agora uma organização financiada pela própria mídiaque estabelece a classificação para programas de tevê, filmes, DVDs e jogos de  computador. É uma classificação cruzada. A mídia, nesse caso, tomou consciência de que precisa fazer parte do processo de regulação. Em toda a Europa e no Canadá, neste momento, há também uma regulação dos jogos de computador. 

As crianças e adolescentes começam a passar mais tempo em frente a jogos de computador do que da tevê?
Não, a tevê ainda é a mídia mais utilizada. O que parece é que a internet e os games não vieram substituir, mas somar-se à televisão. De todo modo, ainda é uma minoria de crianças e adolescentes, no mundo, que tem acesso a jogos de computador. 

Mas, cada vez mais, fala-se nos jogos superviolentos que, não raro, servem de inspiração para a prática de alguns crimes.
Muitos jovens e adultos buscam nos games inspiração para a prática de crimes. Esse jovem tem problemas psicológicos, familiares e usa como exemplo os games e programas violentos. É uma espécie de imitação. Os jovens criminosos vêem várias vezes o mesmo jogo ou filme para aprender a praticar um crime. Os efeitos psicológicos dos games têm sido estudados. Questiona-se se eles são mero entretenimento. 

Qual o papel dos pais nesse caldeirão de imagens disponíveis? Aqui, as tevês alegam que devem ser os pais os únicos responsáveis pelo que os filhos vêem.
O problema é que esses pais nem sempre estão aptos a fazer isso. Muitos pais não tomam os cuidados devidos, outros não podem prestar atenção, porque não estão em casa. Os governos não podem abrir mão dessa responsabilidade e dizer que está tudo nas mãos dos pais. 

Quais seriam as particularidades da televisão latino-americana em relação aos países europeus?
Acho que você conhece melhor as tevês daí do que eu. Mas todos sabemos que, na América Latina, a televisão tem uma influência maior sobre a população do que na Europa. As pessoas, de modo geral, assistem muita televisão e têm pouco acesso a outros meios de informação. Não é assim? 

No Brasil, as pessoas vêem, em média, cinco horas de tevê por dia.
É verdade? É admirável. Se isso for verdade, é mais do que nos Estados Unidos, onde a população vê muita televisão. Na Suécia, são em média duas horas por dia. Cinco horas é, realmente, um fenômeno. 

É a principal diversão do povo brasileiro…
E tem a ver com a pobreza, suponho, com a falta de outras opções de lazer. Nessecaso, creio que é ainda mais importante prestar atenção nos efeitos que a mídia tem sobre a formação das crianças e adolescentes. Estamos preocupados, em primeiro lugar, com a violência, mas há uma série de outros pontos sobre os quais nos debruçamos. Há a pornografia em filmes e imagens várias, o excesso de marketing, o estímulo a preconceitos. Neste ambiente em que informação, entretenimento e propaganda se misturam e que o marketing de produtos infantis é milionário, governos e sociedade têm de prestar atenção à mídia e aos efeitos que ela tem sobre a infância.

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